Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
888/09.0GAVGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores: CRIME DE FURTO
VALOR DIMINUTO
CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
Nº do Documento: RP20150513888/09.0GAVGS.P1
Data do Acordão: 05/13/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A desqualificação do crime de furto, por força do valor diminuto dos bens, não faz renascer o crime de violação de domicílio, quando se concretizou na introdução na habitação por arrombamento.
II – Entre o crime de furto, praticado com introdução na habitação por arrombamento e o crime de violação de domicílio existe um concurso aparente de crimes, abrangendo a punição por aquele a totalidade da conduta do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 888/09.0GAVGS.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida sentença que terminou com o dispositivo seguinte:
«Pelo exposto, e ao abrigo dos preceitos legais citados, decide-se:
1. Absolver B… da prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º do novo Código de Processo Civil;
2. Absolver B… da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203º e 204º, n.º2, alínea e) do Código Penal;
3. Condenar B…, pela prática em dezembro de 2009, como autor material e como reincidente de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º1 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão.
4. Suspender a execução da pena referida em 3 pelo período de dois anos e nove meses com a condição de B… entregar ao queixoso a quantia de €58,40 e de entregar à associação “C…” a quantia de €150,00, dentro do prazo de suspensão.
5. Condenar o arguido no pagamento das custas e demais encargos com o processo, fixando a taxa de justiça em 3 Uc’s.
6. Após trânsito, remeta boletins à D.S.I.C. (artigo 5º, n.º1, alínea a) da Lei n.º57/98 de 10 de agosto).
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Notifique e deposite (artigo 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal).»
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Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A douta sentença sob recurso violou o disposto nos artigo 30.º, n.º1, 190.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, e 379.º, n.º 1 alínea c), do Código Processo Penal.
2. Existe concurso efetivo entre o crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal e o crime de violação do domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, ns.º 1 e 3, do Código Penal.
3. Os factos constantes da sentença que foram dados como provados integram a prática pelo arguido do crime de violação do domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, ns.º 1 e 3, do Código Penal.
4. A sentença sob recurso não se pronunciou sobre a questão do crime de violação do domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, ns.º 1 e 3, do Código Penal.
5. O arguido deveria ter sido condenado, igualmente pela prática do crime de violação do domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º, ns.º 1 e 3, do Código Penal.
Nestes termos, V. Ex.as Exmos. Desembargadores concedendo provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarando a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1 alínea c), e 2, do Código Processo Penal será feita JUSTIÇA.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve merecer provimento, alegando que a factualidade assente, maxime nos n.ºs 3 e 7, não integra o crime de violação do domicílio, porquanto a simples permanência no interior da habitação de outrem, desprovida do elemento objetivo «depois de intimado a retirar-se» não perfetibiliza o ilícito em causa, sendo certo que «a entrada sem o consentimento na habitação de outra pessoa» faz parte do elemento objetivo do crime de furto em apreço, (consumpção) não podendo ser de novo valorada, pela proibição consabida da regra «non ibis in idem». Também a desqualificação do furto não faz «renascer» ou autonomizar o crime de violação do domicílio, como vem suposto no recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A. Na sentença foram fixados os seguintes
Factos Provados:
1. Em data e hora não concretamente apuradas do mês de dezembro de 2009, anterior a 30-12-2009, B… dirigiu-se à residência sita na Rua …, s/n, área deste município de Vagos, pertencente a D…, com o intuito de retirar do seu interior, sem o conhecimento e o consentimento do seu proprietário, objetos com valor que sabia ali poder encontrar.
2. Nessa conformidade, com o auxílio de uma pedra, B… partiu um vidro de uma das janelas de acesso à sala, logrando dessa forma ali entrar.
3. Durante período não concretamente apurado, mas não superior a cinco dias, B… fez uso da residência, nomeadamente, aí confecionando refeições, dormindo e ingerindo bebidas que aí se encontravam.
4. Do seu interior retirou e utilizou, sem o conhecimento e o consentimento do seu proprietário, os seguintes objetos:
a) vinte conservas de peixe no valor de €23,80;
b) quatro conservas de frutas, no valor de €4,60;
c) dez garrafas de vinho, no valor global de €30,00;
d) seis garrafas de água com gás da marca “água das pedras”, de valor não concretamente apurado; e
e) duas garrafas de cerveja da marca “super bock”, de valor não concretamente apurado.
5. O arguido utilizou ainda vários utensílios de cozinha, em número não concretamente determinado, tais como pratos de sopa, pratos rasos, copos, panela de pressão, tachos e panelas, garfos, facas e colheres, frigideira, deixando-os com comida agarrada e seca.
6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objetos mencionados em 4, bem sabendo que não lhe pertenciam, que o seu proprietário não o autorizou a consumir tais objetos e que dessa forma atuava contra a vontade deste.
7. Sabia que não tinha autorização para entrar na residência acima identificada, pelo que entrou no local quebrando o respetivo vidro da janela que dá acesso à sala, logrando assim ter acesso ao seu interior.
8. Ao agir da forma supra descrita, causou um prejuízo ao ofendido no valor referente aos objetos subtraídos.
9. Sabia outrossim ser toda a sua conduta proibida e punida por lei penal.
10. O arguido foi condenado por acórdão transitado em julgado, proferido no âmbito do processo n.º401/00.4GAVGS do Tribunal Judicial de Vagos, na pena de seis anos e seis meses de prisão, pela prática, em 17-09-2000, de um crime de homicídio na forma tentada.
11. Esteve em cumprimento dessa pena de forma não contínua desde 24-03-2001 até 07-10-2007.
12. À data da prática dos factos, a condenação e o período de reclusão sofrido não serviram de suficiente advertência ao arguido contra a prática de crimes dolosos.
13. Na verdade não adquiriu hábitos de trabalho, não assumiu atividade profissional, ingeria habitualmente bebidas alcoólicas em excesso, beneficiou de saídas precárias no período de reclusão que desrespeitou.
14. D… ao verificar os factos plasmados em 5 deitou os mesmos no lixo e bem assim roupa de cama que se encontrava na residência.
15. O arguido é oriundo de um agregado familiar de baixo nível socioeconómico, sendo o mais novo de uma fratria de dois.
16. Quando tinha aproximadamente dois anos de idade a progenitora abandonou o lar, ficando o arguido a viver com o pai que faleceu pouco tempo depois, o que fez com que passasse a integrar o agregado familiar de uns tios de quem se autonomizou com 17 anos de idade.
17. O arguido concluiu o 6.º ano de escolaridade, passando a integrar o mercado de trabalho quando tinha 12 anos de idade, no setor da agricultura e da construção civil, sendo o seu percurso laboral marcado por um quadro de instabilidade.
18. Iniciou desde muito novo o consumo de substâncias etílicas, mantendo essa prática pelo menos até março de 2010, data em que se integrou na comunidade terapêutica denominada “E…” e onde se submeteu a tratamento pelo período de 18 meses, com internamento, seguido de estágio de 6 meses na própria instituição, sendo que lá ficou a trabalhar pelo período de 4 meses. 19. O arguido fez formação profissional integrada no Centro de Emprego e Formação Profissional, pelo período de 18 meses, onde concluiu o 9.º ano de escolaridade.
20. Desde julho de 2014 trabalha como manobrador de máquinas na empresa denominada “F…”, auferindo €500,00 mensais.
21. O arguido manteve relacionamento afetivo, tipo marital, do qual tem dois filhos com dez e quinze anos de idade, que vivem com a progenitora e com os quais não convive.
22. O arguido mantém relacionamento, tipo marital, há cerca de três anos, exercendo a companheira funções de auxiliar de educação em que aufere €518,00.
23. Desde março de 2010 até data não concretamente apurada do ano de 2014 foi acompanhado em consultas para desabituação alcoólica na equipa de tratamento de ….
24. O agregado familiar reside em casa pertencente à companheira do arguido.
25. O arguido já foi condenado na pena de:
a) 150 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º192/96, da secção única do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, pela prática, em 28-06-1994, de um crime de falsificação de documento;
b) 90 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º38/97, do Tribunal Judicial de Anadia, pela prática, em 23-10-1993, de um crime de furto qualificado;
c) 80 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º260/00.7GAVGS, da secção única do Tribunal Judicial de Vagos, pela prática, em 24-06-2000, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
d) seis anos e seis meses de prisão, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º155/01, da secção única do Tribunal Judicial de Vagos, pela prática, em 17-09-2000, de um crime de homicídio na forma tentada;
e) dois anos de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º17/10.7GBOBR, da Comarca do Baixo Vouga, Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro, pela prática, em 01-10-2010, de um crime de furto qualificado;
f) 300 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º25/10.8GBMGR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, pela prática, em 16-12-2010, de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de um crime de furto simples.
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B. Foram fixados os seguintes
Factos Não Provados:
Não se provou qualquer outro facto alegado na acusação ou alegado durante a discussão da causa, com pertinência para a decisão desta ou que se mostre em oposição com os dados como provados.
Nomeadamente, não se provou que:
A. Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas em 3 tenha utilizado ou estragado algumas roupas de cama não concretamente determinadas.
B. O arguido estragou, tornando-os inutilizáveis, os seguintes objetos: 24 pratos de sopa, no valor unitário de €1,49; 24 pratos rasos, no valor unitário de €1,79; 24 copos, no valor unitário de €0,49; 24 cálices no valor unitário de €0,79; 1 panela de pressão no valor de €75,99; 1 panela silampos, no valor de €43,99; 40 garfos, facas e colheres, no valor de €40,00; 1 tacho n.º 18 no valor de €12,90, uma panela n.º 16 no valor de €5,89, 1 tacho n.º 14 no valor de €9,25, 1 frigideira Celar no valor de €17,99, 1 panela de sopa n.º 28 no valor de €28,00, 1 centro de mesa com pé no valor de €29,90.
C. O arguido atuou com o propósito consumado de estragar os utensílios e demais objetos identificados em 5, que sabia não lhe pertencerem e que assim atuava contra a vontade do seu proprietário.
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C. Apreciação do recurso:
Conforme jurisprudência assente, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, sem prejuízo da apreciação das matérias de conhecimento oficioso.
No presente recurso coloca-se uma única questão que consiste em determinar se a sentença é nula, por omissão de pronúncia quanto à prática, pelo arguido, de um crime de violação de domicílio.
O Ministério Público, na 1.ª instância, defende que a sentença padece de nulidade, por omitir a condenação do arguido pelo cometimento de um crime de violação do domicílio, do tipo previsto e punível pelo artigo 190.º, n.º1 e 3, do Código Penal, dado que, no seu entender, a desqualificação do crime de furto implica o “renascimento” do crime de violação, em concurso efetivo, com o crime de furto simples e a factualidade provada preenche todos os elementos constitutivos do primeiro crime.
Todavia, nesta instância o Ministério Público assumiu posição divergente, pronunciando-se expressamente no sentido da improcedência do recurso, por entender que a desqualificação do furto não faz “renascer” ou autonomizar o crime de violação do domicílio, e, também porque a factualidade provada, nomeadamente nos n.ºs 3 e 7, não integra o crime de violação do domicílio, uma vez que a simples permanência no interior da habitação de outrem, desprovida do elemento objetivo «depois de intimado a retirar-se» não perfetibiliza o ilícito em causa, além do que a entrada, sem o consentimento, na habitação de outra pessoa faz parte do elemento objetivo do crime de furto em apreço, por isso, não pode ser de novo valorada, dada a proibição decorrente da regra ne ibis in idem.
Examinada a sentença recorrida não se confirma a existência de omissão de pronúncia, que determine a nulidade da decisão, nos termos propugnados pelo recorrente, considerando-se, ao invés, conforme ao direito aplicável a posição defendida nesta Relação pelo Ministério Público.
Vejamos.
As nulidades da sentença encontram-se enunciadas no artigo 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que prevê no n.º 1, alínea c), a omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não pudesse conhecer.
Decorre das disposições dos artigos 368.º, n.º 2, e 369.º, do Código Processo Penal que ao tribunal é exigível que, em sede de decisão final, se pronuncie sobre os factos alegados pela acusação, pela defesa e bem assim os resultantes da discussão da causa, sempre que relevantes para as questões de saber: a) se se verificaram os elementos constitutivos do crime; b) se o arguido praticou o crime ou nele participou; c) se o arguido atuou com culpa; d) se se verificou causa de exclusão da ilicitude ou da culpa; d) se se verificaram outros pressuposto de que a lei faz depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança; e) se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil; e bem assim para a determinação da sanção a aplicar, se for caso de condenação.
No caso concreto, o tribunal a quo pronunciou-se sobre todas as matérias que se impunham conhecer, mormente quanto à prática pelo arguido dos factos que lhe eram imputados na acusação e ao preenchimento dos ilícitos criminais também imputados na mesma peça acusatória.
Com efeito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido com base nos factos que foram apreciados pelo tribunal e imputou-lhe a prática dos crimes que foram igualmente objeto de apreciação na sentença.
Assim, na acusação foi imputada ao arguido, em autoria material e em concurso efetivo, a prática, como reincidente, de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos artigos 75.º, n.º1, 2 e 3, 76.º, n.º1, 203.º, n.º1, 204.º, n.º2, alínea e), do Código Penal e de um crime de dano, previsto e punível pelos artigos 75.º, n.º1, 2 e 3, 76.º, n.º1, 212.º, n.º1, do Código Penal, sendo certo que tais ilícitos foram apreciados na sentença, que julgou não demonstrado o crime de furto qualificado, por virtude de ter considerado o valor diminuto dos bens subtraídos, e outrossim julgou não demonstrado o crime de dano.
Ademais, o tribunal a quo pronunciou-se sobre a totalidade dos factos descritos na acusação, julgando-os provados e não provados, em conformidade com o juízo probatório que realizou.
Depois, procedeu à subsunção jurídica dos factos provados, tendo concluído pelo preenchimento do crime de furto simples e pelo afastamento dos ilícitos imputados na acusação, em função do que decidiu condenar o arguido pela prática do primeiro crime e absolvê-lo dos restantes crimes.
Ora, a arguição da nulidade da sentença, no presente recurso, funda-se na falta de pronúncia, pelo tribunal a quo, sobre o cometimento, pelo arguido, de um crime de violação de domicílio, que, segundo o recorrente, se verifica, por se mostrarem preenchidos os respetivos elementos constitutivos com a factualidade provada seguinte: «dirigiu-se à residência sita na Rua …, s/n, área deste município de Vagos, pertencente a D…, com o intuito de retirar do seu interior, sem o conhecimento e o consentimento do seu proprietário» (Facto n.º1); «com o auxílio de uma pedra, B… partiu um vidro de uma das janelas de acesso à sala, logrando dessa forma ali entrar» (Facto n.º2); «Sabia que não tinha autorização para entrar na residência acima identificada, pelo que entrou no local quebrando o respetivo vidro da janela que dá acesso à sala, logrando assim ter acesso ao seu interior» (Facto n.º 3).
Sucede, porém, que a indicada matéria de facto provada se reporta às circunstâncias que rodearam o cometimento do crime de furto, não existindo autonomia da introdução na residência relativamente à consumada apropriação de bens existentes no seu interior, de molde, a poder considerar-se verificado o referido crime de violação do domicílio.
Certo é que a imputação do tipo qualificado, do crime de furto, se apoiava nessa factualidade, que consubstanciava a entrada na habitação, mediante arrombamento, prevista na alínea e), do n.º 2, do artigo 204.º do Código Penal. Contudo, a desqualificação do furto, por virtude da ponderação do valor diminuto dos bens subtraídos[1], não determina a desconsideração do que ficou apurado quanto ao modo como o arguido acedeu àqueles bens e aos obstáculos que teve de vencer para o efeito, que se concretizaram na introdução na habitação, com recurso a arrombamento[2].
Na verdade, a mencionada matéria de facto evidencia que a entrada ilegítima na habitação não foi, em si mesma e por si só, visada pelo comportamento do arguido, mas ao invés foi pretendida somente como meio do mesmo conseguir o acesso aos bens de que pretendia apropriar-se.
Por conseguinte, apesar de se ter operado a desqualificação do furto a punição do crime simples de furto abrange a totalidade da apurada conduta do arguido, abrangendo, por isso, a factualidade provada que abstratamente poderia considerar-se subsumível ao crime de violação do domicílio[3], tratando-se de um mero concurso aparente de crimes.
Como ensina o Professor Figueiredo Dias, «A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais do que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou subjetiva tal que deixa de aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou restantes surgem também a uma consideração jurídico-social, segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77.º seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função do desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global»[4] (sublinhados nossos).
Alerta ainda o insigne Professor que os critérios de determinação da existência de concurso aparente não permitem «uma compartimentação estanque e rigorosa das hipóteses», ou «dos casos da vida», porque tais critérios «por si mesmos se interpenetram ou parcialmente coincidem», enquanto pode suceder que no mesmo caso possam convergir mais do que um dos critérios ou contrariamente possam dever ser complementados ou ao invés limitados por outros pontos de vista relevantes para a caracterização do sentido social do ilícito global.[5]
Acontece que, no caso concreto, quer por via do critério da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global[6], quer pela unidade de desígnio criminoso se afere a existência de mero concurso aparente de crimes, sendo por isso, completa e devida a punição do comportamento ilícito global, nos termos em que foi cominada na sentença recorrida, ou seja, mediante a punição do crime de furto, mesmo tratando-se do tipo matricial de furto simples.
Assim, a matéria de facto provada, a que se reporta o recorrente, não impunha a pronúncia sobre o crime de violação do domicílio.
Destarte, a sentença recorrida não padece da arguida nulidade, porquanto não deixou de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar.
Improcede, pois, o recurso.
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III – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Sem custas.
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Porto, 13-05-2015
Maria dos Prazeres Silva
Coelho Vieira
__________
[1] Em conformidade com o disposto no artigo 204.º, n.º4, do Código Penal.
[2] Circunstâncias de facto que não integram, como é inegável, os elementos essenciais do crime de furto simples (posto que a verificação do ilícito não depende do seu apuramento) mas o caracterizam, existindo uma clara conexão entre o modo de acesso aos bens e a consumação do furto.
[3] Considerando-se, ainda assim, imperfeitamente descrito o elemento subjetivo do tipo de crime de violação de domicílio nos factos provados: «6. O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objetos mencionados em 4, bem sabendo que não lhe pertenciam, que o seu proprietário não o autorizou a consumir tais objetos e que dessa forma atuava contra a vontade deste.
7. Sabia que não tinha autorização para entrar na residência acima identificada, pelo que entrou no local quebrando o respetivo vidro da janela que dá acesso à sala, logrando assim ter acesso ao seu interior.
8. Ao agir da forma supra descrita, causou um prejuízo ao ofendido no valor referente aos objetos subtraídos.
9. Sabia outrossim ser toda a sua conduta proibida e punida por lei penal.»
[4] Cf. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, pág. 1015.
[5] Vd. ob. cit., pág. 1016.
[6] No qual se pode abranger também a situação, como a que se verifica no caso dos autos, «em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente com o meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos» ob. cit., pág. 1018.