Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
63/19.5T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
CARÁCTER LIMITADO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2023062763/19.5T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O incidente limitado de qualificação da insolvência é aplicável apenas em dois casos regulados na lei - um caso, previsto, no art. 39º, nº 1, e o outro caso, previsto no art. 232º, nº 5, ambos do CIRE – tendo em comum a constatação da insuficiência da massa insolvente para o pagamento das custas processuais e das dívidas da massa;
II - No art. 39º, nº 1 é o juiz que, na própria sentença de declaração da insolvência, constata tal insuficiência e declara aberto o incidente de qualificação com carácter limitado; já no art. 232º, nº 5 é o juiz, oficiosamente, ou o administrador da insolvência que constata essa insuficiência (depois da sentença declarativa da insolvência) e a comunica ao juiz para que dê início ao procedimento de encerramento por insuficiência da massa insolvente;
III – Com a alteração introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11.1. à redação do art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE a condenação das pessoas afetadas pela insolvência a indemnizarem os credores da insolvente passou a ter o montante dos créditos não satisfeitos como limite máximo, o que significa que em nenhum caso a indemnização poderá ser superior àquele montante;
IV – Num caso em que correu incidente limitado de qualificação da insolvência, por se verificar a situação prevista no art. 39º, nº 1 do CIRE – insuficiência do património do devedor para satisfazer as custas do processo e as dívidas previsíveis da massa insolvente -, como não houve lugar a reclamação de créditos no processo de insolvência não se mostra possível atribuir a indemnização referida no art. 189º, nº 2, al. e) também do CIRE, uma vez que esta indemnização não pode ter como destinatários terceiros indeterminados e indetermináveis que nada reclamaram.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 63/19.5T8AVR-A.P1
Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 3
Apelação
Recorrente: “A..., Unipessoal, Lda.”
Recorrida: AA
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Em 7.1.2019, a sociedade “B... Unipessoal Lda.” requereu a declaração de insolvência da sociedade “C... Lda.”, tendo sido esta declarada por sentença proferida em 30.4.2019, nos termos e com os efeitos previstos no art. 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE).
A sociedade “A..., Unipessoal Lda.”, em 14.6.2019, requereu que esta fosse qualificada como culposa, com afetação de BB e AA.
Para tanto alegou, no essencial, que estes foram gerentes da sociedade insolvente, a qual já não se encontra a laborar pelo menos desde setembro de 2018, situação que foi determinada pela rutura conjugal ocorrida entre ambos.
Ambos constituíram novas sociedades, por si e interposta pessoa, tendo transferido para estas o património da insolvente, a clientela e os trabalhadores desta, causando elevados prejuízos aos credores.
Mais alegou que, em 2018, ocorreram elevadas transferências bancárias de contas da sociedade insolvente para contas dos sócios da empresa e que a requerida AA começou a contactar com fornecedores e clientes da sociedade insolvente de forma a procurar retomar relações comerciais, afirmando que ia continuar tudo igual e que se os primeiros a fornecessem lhes pagaria o que estava em aberto na sociedade “C...”.
Alegou ainda que a requerida AA, no último trimestre de 2018, retirou os computadores onde se achava o programa de faturação da sociedade insolvente, os quais se encontravam nas instalações desta e levou-os de forma a que não fosse percetível o real estado da sua contabilidade.
É sua convicção que a contabilidade da sociedade insolvente não condiz com a realidade, tendo-se falado, inclusive, da existência de créditos fictícios de forma a serem limpos os “stocks”.
Sustentou igualmente que ambos os requeridos tinham plena consciência que, com a sua atuação, estavam a defraudar as expetativas dos seus credores, encontrando-se, por isso, preenchidos os requisitos previstos no art. 186º, nº 2, als. a), b), d) e h) do CIRE.
Por decisão proferida em 10.7.2019, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, pese embora com carácter limitado.
O administrador da insolvência apresentou o seu parecer, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com afetação apenas de BB.
Para tanto alegou, no essencial, ter enviado cartas à sociedade e aos seus sócios, BB e AA, nos termos e para os efeitos dos arts. 29º, nº 2 e 83º do CIRE, cartas essas que foram sendo devolvidas, sem prejuízo de ter conseguido contactar telefonicamente com AA, solicitando a esta, por telefone e depois por email, que providenciasse pela entrega dos documentos a que alude o art. 24º do CIRE, sem prejuízo desta ter declarado que havia renunciado às funções de gerência em 26.1.2019 e que nada tinha que ver com a empresa.
Mais alegou que posteriormente a AA o informou de que havia sido casada com o outro sócio e gerente (BB) de quem veio a divorciar-se e não possuir qualquer documentação da sociedade insolvente uma vez que o BB se apropriou da mesma e a impediu de entrar na sede da sociedade.
Todavia, esses documentos contabilísticos viriam a ser-lhe facultados pelo TOC da sociedade.
Referiu ainda ter apurado que a sociedade deixou de laborar em setembro de 2018, data em que “encerrou as portas” e que a mesma era proprietária de vários bens móveis sujeitos a registo (veículos e reboques), bem como de diverso imobilizado, designadamente empilhadores, porta paletes, duas máquinas de embalamento e uma mesa de escolha, estando estes bens a ser utilizados na atividade de outra sociedade denominada “D..., Lda.”, que tem o mesmo objeto social da insolvente e da qual um dos sócios é a mãe de AA.
Alegou também que da análise da IES, referente ao ano de 2017, verificou que a insolvente dispunha de bens que integravam as rúbricas de edifícios e outras construções, equipamento básico, equipamento de transporte, equipamento administrativo, outros ativos fixos tangíveis e ativos fixos tangíveis em curso.
No entanto, nas buscas realizadas junto da Conservatória de Registo Predial não foram localizados quaisquer bens imóveis registados em nome da insolvente e nas buscas realizadas junto da Conservatória do Registo Automóvel foi possível apurar existirem registados apenas os veículos e reboques que identificou.
O administrador da insolvência alegou igualmente que alguns dos bens que identificou e integravam a rubrica de ativos fixos tangíveis foram transmitidos a terceiros, entre os meses de Setembro de 2018 e Janeiro de 2019, tendo alguns deles sido transmitidos para a sociedade “E..., Lda.”, da qual BB foi também sócio e gerente até 14.12.2016 e na qual é gerente a sua irmã.
Tal sociedade veio declarar ter adquirido tais veículos por contrato de dação em pagamento, por conta de uma divida no valor de 73.500,00€.
Sustentou ainda que, tendo em conta a ausência de elementos, não foi possível apurar qual a constituição da rúbrica contabilística referente a inventário, sem prejuízo de não deixar de estranhar o avultado valor registado na rúbrica contabilística em causa, no ano de 2017, uma vez que a devedora tem como objeto a comercialização de bens perecíveis.
Mais alegou que o gerente BB sempre teve um comportamento omissivo e não colaborante, o que o impediu de conseguir fazer uma análise mais precisa, de compreender e apurar as causas para a insolvência e, bem assim, de localizar os bens que nos últimos anos se encontravam na esfera patrimonial da devedora.
O gerente BB violou assim o dever de colaboração que lhe incumbia, omitindo a prestação de qualquer informação sobre a vida da empresa e a sua situação patrimonial, com preenchimento da presunção a que alude a al. i) do nº 2 do art. 186º do CIRE.
Alegou também que, por seu lado, AA, pese embora tardiamente, veio prestar os esclarecimentos solicitados pelo administrador.
Por outro lado, sustentou mostrar-se preenchida a presunção ínsita na al. a) do nº 2 do art. 186º do CIRE, na medida em que BB fez desaparecer e/ou ocultou parte do património da devedora, transmitindo a terceiros bens que integravam o acervo patrimonial da sociedade e igualmente por não terem sido localizados alguns dos bens que fazem parte da rubrica contabilística denominada “ativos fixos tangíveis”.
Além de que emitiu dois cheques da sociedade, em seu próprio nome, no montante de 45.000,00€, procedendo ao levantamento desta quantia, mais tendo alegado que a contabilidade da devedora, na rubrica dívidas de terceiros/clientes, apresentava o avultado montante de 405.481,60€, cujo paradeiro se desconhece.
Ora, o desaparecimento do património que integrava os bens da sociedade, bem como a apropriação dos valores depositados na conta bancária da sociedade, não deixam margem para dúvidas de que tal foi efetuado, por forma a impedir a sua apreensão e liquidação, quer em eventual processo executivo intentado pelos credores, quer no âmbito de eventual processo de insolvência.
E ao ocultar esses bens e valores, a insolvente e o seu representante legal BB agravaram, propositadamente, a possibilidade dos seus credores poderem ser ressarcidos.
Por outro lado, o administrador da insolvência sustentou também encontrar-se preenchida a presunção prevista na al. h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, por não lhe terem sido facultados por BB quaisquer elementos contabilísticos que lhe permitissem apurar se a contabilidade da sociedade satisfaz os princípios de natureza comercial e fiscal e possibilitassem apurar a sua verdadeira posição financeira e realizar a análise da atividade da devedora.
Ao que acresce que as contas referentes ao ano de 2018 não foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial, conforme determinado por lei, violando o disposto na al. b) do nº 3 do art. 186º do CIRE, sendo que a não elaboração das contas anuais, a sua não submissão à devida fiscalização e a preterição do dever de as depositar na Conservatória do Registo Comercial, são qualificadas como graves, uma vez que a sua omissão permitiu esconder a situação da devedora perante os terceiros/credores, pelo que se verifica que tais comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, estando assim preenchido o nexo de causalidade entre esse incumprimento e a criação ou agravamento da situação de insolvência, para que esta possa ser qualificada como culposa.
O Min. Público aderiu ao parecer do administrador da insolvência, mas na sequência do alegado pela credora “A..., Unipessoal, Lda.” pugnou pela afetação não só de BB, mas também de AA.
A requerida AA deduziu oposição alegando, em síntese, que BB era o gerente da insolvente e foi este quem efetivamente delapidou o seu património em proveito próprio e/ou de terceiros, sem o seu conhecimento prévio, razão pela qual propôs providência cautelar e procedeu à apresentação de queixas-crime contra o mesmo.
Mais alegou que nunca recebeu as cartas remetidas pelo administrador da insolvência por não residir na morada para onde foram remetidas e a ela não ter acesso, sem prejuízo de ter prestado toda a colaboração quando lhe foi solicitada.
A requerida alegou ainda não ser verdade que o contabilista certificado não tivesse acesso, quer às instalações, quer aos documentos contabilísticos.
Tal como referiu que um dos sócios/gerentes da sociedade “D..., Lda.” é sua mãe, sem que daí advenha mal, já que qualquer pessoa pode exercer e trabalhar livremente, desde que não contrarie as normas legais, sendo falso que existam bens da sociedade insolvente ou funcionários seus afetos a essa empresa.
Por outro lado, também alegou desconhecer a existência de qualquer dívida da sociedade insolvente à sociedade “E..., Lda.”, dado que, a existir, seria entre o seu ex-marido BB e a dita sociedade, que por sinal, não é mais do que a sociedade da irmã daquele, sendo certo que a sociedade insolvente foi representada no contrato de dação em cumprimento apenas por BB, tendo o mesmo agido em desconformidade com o objeto social da sociedade, sem prejuízo de tal negócio ter sido simulado, por forma a fazer retirar património da insolvente de forma gratuita fazendo-o ingressar noutra sociedade, na qual não se sabe se o sócio BB não é também gerente de facto, dado o grau de parentesco existente.
A requerida alegou ainda que o requerido BB, no dia 12.9.2018, se dirigiu às instalações da sociedade insolvente, retirando do escritório todos os documentos relativos aos veículos pesados e respetivos reboques pertencentes à sociedade, impedindo que os mesmos se pudessem deslocar para prosseguir os fins societários.
Procedeu ainda o BB ao levantamento das quantias de 25.000,00€ e 20.000,00€ depositadas na conta da sociedade, sendo que a requerida, quando se apercebeu disso, transferiu a quantia de 50.000,00€ da conta da sociedade para uma conta pessoal sua, destinando então tal dinheiro exclusivamente ao pagamento de salários de trabalhadores, de fornecedores, de pequenos fornecedores locais e da Lourinhã e de outros mais, conforme extratos bancários que juntou.
Foi esta a única forma que teve de travar a apropriação indevida de tal quantia e poder garantir os pagamentos aos funcionários e outros fornecedores que não podiam ser lesados com os comportamentos que estavam a ocorrer.
A requerida alegou ainda que os computadores, impressoras e outros bens pertencentes à sociedade (incluindo os veículos e reboques) foram retirados, no dia 12.9.2018, pelo sócio BB, sendo que, no dia 17.9.2018, o BB também trancou os portões de acesso às instalações da empresa, impedindo o acesso aos clientes e informando que a empresa era para encerrar e que fossem comprar batatas à empresa da sua irmã, “E..., Lda.”.
A requerida sustentou que, muito antes da declaração de insolvência, tudo fez para salvar e salvaguardar os direitos quer da sociedade insolvente, quer dos funcionários, quer dos fornecedores e clientes e mesmo depois continuou a colaborar com o Tribunal e com o administrador da insolvência.
Pugnou pela qualificação da insolvência como culposa, mas apenas com a afetação do sócio gerente BB.
Por ser desconhecido o paradeiro do requerido BB determinou-se a citação edital deste.
O requerido não deduziu oposição, nem constituiu mandatário na sequência da sua citação edital, razão pela qual lhe foi nomeado defensor oficioso.
O defensor oficioso foi citado e no prazo legal não apresentou oposição.
No decurso do processo o requerido BB viria a constituir mandatário.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Seguidamente proferiu-se sentença que qualificou a insolvência da sociedade “C..., Lda.” como culposa, declarando os requeridos BB e AA por ela afetados e em consequência:
1) Decretou a inibição de BB para administrar patrimónios de terceiros, por um período de quatro anos;
2) Declarou BB inibido para o exercício do comércio durante um período de quatro anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo mesmo período de tempo;
3) Decretou a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros, por um período de três anos;
4) Declarou AA inibida para o exercício do comércio durante um período de três anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo mesmo período de tempo;
5) Condenou os requeridos a pagar as custas do incidente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC para cada um.
Inconformada com o decidido, interpôs recurso a requerente “A..., Unipessoal, Lda.”, tendo esta finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
a. No âmbito do incidente limitado de qualificação de insolvência, foi proferida sentença que qualificou a insolvência como culposa e que considerou afectados pela mesma os Requeridos BB e AA.
b. No entanto, ao contrário do que seria esperado, a sentença não observou o preceituado no artigo 189.º n.º2 do CIRE
c. da sentença não consta a condenação dos Requeridos a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, o que viola o artigo 191.º 1, alínea c) do CIRE, em conjugação com o artigo 189.º n.º2, alínea e), igualmente do CIRE.
d. a não condenação dos Requeridos nos termos da alínea e) do n.º2 do artigo 189.º do CIRE resulta de uma opção consciente do julgador, que considerou não deverem os Requeridos serem condenados ao pagamento da referida indemnização.
e. ainda que com carácter limitado, a sentença que qualifique a insolvência consta a menção da alínea e) do n.º2 do artigo 189º do CIRE.
f. O artigo 9.º do Código Civil estabelece as regras gerais de interpretação da lei no ordenamento jurídico português.
g. Neste caso, é claro e indubitável que o artigo 191º n.1, alínea e) deva ser interpretado no sentido de a sentença que qualifica a insolvência como culposa, ainda que em incidente com carácter limitado, deve conter a referida menção.
h. Admitir o contrário [é] aceitar uma interpretação contra legem, o que, salvo melhor opinião, não deve ser aceite
i. Sem prejuízo de aceitarmos que a unidade do sistema jurídico constitui um dos elementos da hermenêutica jurídica, não podemos deixar de assinalar que é esse mesmo cânone que deve determinar que o artigo 191.º e o artigo 189.º n.º2, ambos do CIRE, sejam lidos em conjunto e não de forma autónoma.
j. Analisados os artigos 189 n.º2, alínea e) e 191º n.º1, alínea c), conclui-se, tal como do cotejo do elemento literal, que a sentença que qualifica uma insolvência como culposa, ainda que no âmbito de incidente com carácter limitado, deve conter a menção estipulada na alínea e) do n.º2 do artigo 189.º do CIRE.
k. Doutro modo, o tribunal a quo considera que poderá estar em causa a violação do princípio de igualdade entre os credores, ínsito no artigo 604º do Código Civil.
l. O tribunal a quo sustenta que, na medida em que só alguns credores veriam o respectivo crédito satisfeito em detrimento de outros por força do esgotamento do património dos devedores, seria violado o referido princípio.
m. Não podemos aderir a este entendimento, na medida em que o mesmo significaria que em caso algum um credor veria o respectivo crédito satisfeito – no incidente com carácter limitado – na medida em que o volume total dos créditos excedesse o património do devedor afectado pela qualificação de insolvência
n. o que fará sentido, neste âmbito é a abertura de incidente de liquidação de sentença de qualificação de insolvência.
o. De facto, somente mediante a liquidação de sentença será possível aquilatar a medida em que os créditos poderão, e em que medida, ser satisfeitos.
p. Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou as disposições previstas nos artigos 189º/1 e) 191º/1 c) do C.I.R.E. e 358 e SS do C.P.C.
A requerida AA apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Formulou as seguintes conclusões:
1 - A Recorrida AA foi afetada na qualificação.
2 – A condenação baseou-se na falta de prova de que todo o dinheiro transferido foi para pagamento exclusivo de dívidas da Insolvente C..., Lda.
3 - A sentença considerou que a Recorrida AA teve um grau de culpa menos gravoso que o Recorrido BB.
4 - O único levantamento realizado em espécie pela Recorrida AA, foram €4.005,20.
5 - E que desses foram retirados para a Segurança Social devido à Reversão feita contra si por ter sido gerente, o valor de €1.207,04, restando apenas €2.798,16.
6 - Foi a recorrida afetada na qualificação devido exclusivamente ao facto de não ter logrado entregar toda a documentação necessária para excluir a sua responsabilidade.
7 - A Recorrida AA apenas transferiu para uma conta sua o valor total de €49.000,00, para evitar que o Recorrido BB levantasse e desencaminhasse também essa quantia, conforme o fez ao levantar €45.000,00.
8 - A quantia levantada pela Recorrida AA de €49.000,00 encontra-se quase na sua totalidade justificada.
9 - O valor de €45.000,00 levantados pelo Recorrido BB, não justificou o mesmo, o destino que lhe deu.
10 - A Recorrida AA conformou-se com a sentença do tribunal a quo.
11 – Discorda a Recorrida da fundamentação do Recorrente para a aplicação do art. 189.º n.º 2 al. e), em consequência do artigo 191º nº 1 alínea c) ambos do CIRE.
12 – Não existe qualquer reparo a fazer à sentença do tribunal a quo.
13 - A fundamentação transposta na sentença, quanto à não aplicação da alínea e) do artigo 189.º n.º 2 do CIRE, respeita todos os preceitos jurídicos e bem esclarecedor.
14 - O Julgador na sua sentença respeitou o artigo 9º do Código Civil, mantendo uma estreita ligação do pensamento legislativo e a letra da lei, e, tendo cautela na fixação do sentido e alcance da lei.
15 - A sentença de insolvência foi proferida com base no artigo 39º CIRE.
16 - O incidente de qualificação foi de caráter limitado.
17 – Os interessados não requereram nem foi deferido o complemento da sentença.
18 - Em consequência, o Administrador de Insolvência, desde que veja a sentença transitada nesses termos, é de imediato o processo de insolvência declarado findo e os poderes do mesmo limitados, podendo apenas o Administrador cingir-se à elaboração do parecer a que se refere o nº 6 do artigo 188º.
19 – Assim, não é fixado prazo para reclamação de créditos, não se aplica o artigo 128º e seguintes do CIRE, não se apresenta lista de credores, não há sentença de reconhecimento e graduação de créditos.
20 - Caso diferente seria, se ao invés da sentença se basear pelo art. 39.º CIRE, estivessem enquadrados nos casos previstos no nº 5 do artigo 232º do CIRE.
21 – Nesse enquadramento a sentença de declaração de insolvência seria enquadrável no artigo 36º CIRE.
22 – Se a Insolvência da Insolvente C..., lda., se enquadrasse nos casos previstos no nº 5 do artigo 232º do CIRE, teria de ser aplicado o artigo 36º CIRE com fixação de prazo para reclamação de créditos, lista de credores, prolação de sentença de reconhecimento e graduação de créditos, o que não foi o caso.
23 - A sentença do Tribunal a quo, discerniu corretamente a diferença interpretativa do art. 39.º com o art. 232.º, quando a declaração de insolvência é proferida segundo o art. 36.º todos do CIRE.
24 - Os casos previstos no artigo 39º nº 1 e 7 do CIRE, por não ter sido realizada a diferença entre o valor global do passivo e o ativo que compõe a massa insolvente, não se consegue lograr alcançar o prejuízo dos credores.
25 - Os factos a apurar do comportamento assacado como culposo, poderá ser considerado diminuto, e muito inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa, tendo de se saber qual a massa insolvente como referência base.
26 - No entanto tudo recai na base de ter existido a oportunidade de liquidar os bens e direitos do insolvente.
27 – Por não existir nem ter existido qualquer apreensão de bens e direitos para a massa insolvente (artigo 39º nº 1 e 7 do CIRE), é totalmente incompatível com o raciocínio que pudesse conduzir a aplicação de uma indemnização prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 189º do CIRE.
28 – Não olvidemos, que já no caso do artigo 232º do CIRE, o Administrador de Insolvência controla, por já ter poder e legitimidade da existência ou inexistência de bens ou direitos a apreender para a massa insolvente.
29 - Pelo que, se no momento da liquidação não existir elementos para fixar o objeto ou a quantidade, poderá posteriormente através do incidente de liquidação conf. art. 609º nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão dos artigos 17º e 189º nº 4 do CIRE.
30 – Se não for possível fixar indemnização, não se pode aplicar, sendo que a mesma estará sempre dependente, de se apurar a diferença entre o ativo e o passivo, de se apurar os concretos destinatários da condenação, de se apurar os montantes máximos a ressarcir, de se apurar concretamente o montante a ressarcir a cada um dos credores, implicará que exista uma sentença de reconhecimento de créditos que delimite a referida condenação.
31 – No processo de Insolvência da C..., Lda, não existiu nenhuma reclamação de créditos, pelo que não será possível estabelecer o quantum, os limites da mesma, nem tão pouco os destinatários da condenação.
32 - Não tendo existido reclamação de créditos no processo de insolvência, qualquer indemnização a que a Recorrida fosse condenada, seria fora da legalidade do CPC, nomeadamente dos artigos referidos, artigos 619º e 621º CPC, uma vez que a indemnização seria atribuída a terceiros indeterminados e indetermináveis.
33 – Depreende-se que só pode ser considerado credor, os que não viram satisfeitos os seus créditos após reclamação dos mesmos, devido à insuficiência da massa insolvente,
34 - Não podendo ser considerados credores os que após reclamação de créditos, ou por falta da mesma reclamação, não viram reconhecidos direitos creditórios sobre a massa insolvente.
35 - Não pode ser aceite, que na ausência de reclamação de créditos, que a condenação em causa recairá a favor de qualquer credor do declarado insolvente.
36 – De acordo com o Princípio de Igualdade entre credores, “Não existindo causas legítimas de preferência…”, artigo 604º do Código Civil, tendo a indemnização o limite máximo igual ao património do devedor, apenas um ou alguns seriam ressarcidos.
37 – Não pode ser aceite pelos inúmeros Princípios de Direito, pois seria contra legem, existir uma condenação em indemnização, sem existir o devido controlo, que apenas pode ser realizado através da sentença de reconhecimento de créditos, cumulativamente com sentenças de verificação ulterior de créditos reconhecidos no processo de insolvência.
38 – Só assim, e com base em sentença se poderia identificar em concreto, os destinatários da condenação, o montante máximo da condenação e calcular o valor que cada credor reconhecido receberia de forma rateada, impedindo os efeitos do "Prior in tempore potior in iure"
39 – Interpretou bem o julgador tendo transposto para a sua sentença que o artigo 191º nº 1 alínea c) do CIRE deverá ser objeto de interpretação e conciliação sistemáticas, por respeito à unidade do ordenamento jurídico, mostrando-se a hipótese da condenação prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 189º do mesmo código excluída nos casos previstos no artigo 39º nºs 1 e 7 do CIRE.
40 - Não se deverá condenar a Recorrida AA pela qualificação culposa no pagamento de qualquer indemnização.
41 - Face ao exposto, o recurso interposto não merece provimento, devendo a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se a sentença recorrida deveria ter condenado os requeridos afetados pela qualificação da insolvência a indemnizar os credores da insolvente nos termos do art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE.
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É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
1) A sociedade C..., Lda., pessoa colectiva nº ..., foi constituída em 11/02/2015, tendo o seguinte objecto: agricultura e silvicultura; produção, transformação e comercialização de produtos agrícolas; comercialização de sacos e embalagens; prestação de serviços para a agricultura e transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem.
2) BB e AA, em 01/08/1998, contraíram matrimónio entre si, tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio em 29/03/2019.
3) A partir de 23/12/2016, BB e AA passaram a ser os únicos sócios da sociedade C..., passando a sociedade a obrigar-se com a assinatura de apenas um gerente.
4) BB foi nomeado como gerente da C... na data da sua constituição.
5) AA foi nomeada gerente da C... em 14/12/2016, tendo tal nomeação sido levada a registo em 16/12/2016.
6) Em 07/01/2019, a sociedade B... Unipessoal Lda. requereu a declaração de insolvência da sociedade C... Lda.
7) Por sentença, proferida em 30/04/2019, foi declarada a insolvência da sociedade C... Lda., pessoa colectiva nº ..., nos termos e com os efeitos previstos no artigo 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
8) Na sentença fixou-se a residência de ambos os gerentes da insolvente, BB e AA, na Rua ..., Espinho.
9) Na referida sentença nomeou-se CC para exercer o cargo de administrador da insolvência.
10) Por decisão proferida em 10/07/2019, transitada em julgado, indeferiu-se o pedido de complemento da referida sentença.
11) Por carta registada remetida à sociedade em 09/01/2019, AA renunciou à gerência, tendo requerido o averbamento de renúncia no registo em 30/01/2019.
12) O administrador da insolvência, em 08/05/2019, remeteu à sociedade e aos requeridos BB e AA, para sede daquela e para a morada destes fixada na sentença, as cartas com o teor constante dos documentos juntos com o seu requerimento de 20/12/2019.
13) Tais cartas vieram devolvidas, sendo que as remetidas aos requeridos com as menções “desconhecido e endereço insuficiente”.
14) Em 23/05/2019, o administrador da insolvência remeteu aos requeridos BB e AA, para a morada destes fixada na sentença, as cartas com o teor constante dos documentos juntos com o seu requerimento de 20/12/2019.
15) Tais cartas vieram devolvidas com as menções “desconhecido e endereço insuficiente”.
16) Em 27/06/2019, o administrador da insolvência remeteu aos requeridos BB e AA, novas cartas com o teor constante dos documentos juntos com o seu requerimento de 20/12/2019, para a seguinte morada: Rua ..., ... ....
17) Tais cartas vieram devolvidas.
18) A requerida AA foi citada nestes autos na seguinte morada:
Rua ..., ... ....
19) O requerido BB foi citado editalmente nestes autos, por ser desconhecido o seu paradeiro.
20) Na sequência do email remetido ao advogado da requerida AA, com o teor que resulta do requerimento de 20/12/2019, esta, através do seu advogado, remeteu ao administrador da insolvência duas cartas com o teor que resulta do mesmo requerimento.
21) O contabilista certificado da insolvente facultou ao administrador da insolvência:
a) Balancete geral fecho 2018;
b) IES referente ao ano de 2018;
c) Modelo 22 de 2018;
d) Mapa de amortizações e depreciações – modelo 32.
22) A insolvente deixou de efectuar compras aos seus fornecedores e vendas a clientes a partir de finais de Setembro de 2018.
23) A sociedade D..., Lda., pessoa colectiva nº ..., foi constituída em 04/04/2019, com o seguinte objecto social: “Atividades de agricultura e silvicultura; produção, transformação e comercialização de batata, frutas e produtos agrícolas; comercialização de sacos e embalagens; prestação de serviços para a agricultura e transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem.”.
24) A sociedade D..., Lda. tem, desde a sua data de constituição, como seus únicos sócios gerentes, DD e EE.
25) EE é mãe da requerida AA.
26) DD é advogado e representa a requerida AA nestes autos, tendo elaborado a resposta referida em 20) e ainda apresentado queixa crime contra o requerido BB em representação daquela.
27) A requerida AA, após 04/04/2019, contactou antigos clientes da C... para que comprassem produtos à D..., Lda.
28) Em 16/12/2020, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade D..., Lda.
29) A sociedade F..., Unipessoal Lda., pessoa colectiva nº ..., foi constituída em 31/10/2018, com sede na Rua ..., ..., ... Coimbra, com o seguinte objecto social: “Transporte nacional e internacional de mercadorias por conta de outrem”.
30) A sociedade F..., Unipessoal Lda. tem como único sócio e gerente FF.
31) Por documento escrito, com data de 12/09/2018, denominado “DECLARAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE DÍVIDA, CONTRATO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO E ACORDO DE PAGAMENTO”, entre BB, que ali declarou agir em seu nome pessoal enquanto devedor solidário e na qualidade de gerente da C..., Lda. e GG, que ali declarou estar em representação da sociedade E... Lda. declararam o seguinte:
“É celebrado, dentro dos princípios da boa-fé, o presente contrato de dação em pagamento, o qual se rege nos termos e condições das cláusulas seguintes:
1ª A primeira outorgante pelo presente instrumento declara e assume ser devedora da segunda outorgante da quantia total de 231.970,82 € (duzentos e trinta e um mil novecentos e setenta euros e oitenta e dois cêntimos), tudo conforme facturas: 216/7531, 216/7532, 216/7533, 216'7599. 216/7602, 216/7604. 216/7605, 216/7607, 2167607, 2167608, 216/7609, 216/7610, 216/7611, 216/7612. 216/7613, 216/7615, 216/7617, 216/7625, 2167630, 216/7642, 216/7650, 216/7671, 216/7693, 216/7729, 216/7771, 216/7784, 216/7785, 216/7736, 216/7251, e bem assim conforme extracto de conta corrente de cliente, documento que se considera anexo ao presente contrato.
2ª Para efeito de acordo de pagamento do devido os declarantes obrigam-se nos seguintes termos:
a) A devedora na presente data liquidará parcialmente o devido mediante pagamento da quantia de 37539,39€ (trinta e sete mil quinhentos e trinta e nove euros e trinta e nove cêntimos).
b) A devedora na presente data faz a dação em pagamento à segunda outorgante mediante entrega e registo a favor daquela, bem como total transferência dos direitos inerentes e respectiva utilidade, dos veículos, a que é atribuído o valor global de 73500,00€ (setenta e três mil e quinhentos euros):
1- matrícula ..-CJ-.., a que é atribuído o valor de 6000€;
2- matrícula ..-QV-... a que é atribuído o valor de 8000€;
3- matrícula ..-RP-.., a que é atribuído o valor de 10000€;
4- matrícula ..-RP-.., a que é atribuído o valor de 9000€;
5- matrícula ..-LB-.., a que é atribuído o valor de 8000€;
6- matrícula ..-UJ-.., a que é atribuído o valor de 10000€;
7- matrícula C-...., a que é atribuído o valor dc 2500€;
8- matrícula L- ......, a que é atribuído o valor de 2500€;
9- matrícula L-......, a que é atribuído o valor de 2000€;
10- matrícula L-......, a que é atribuído o valor de 2000€;
11- matrícula L-......, a que é atribuído o valor de 2500€;
12- matrícula L-......, a que é atribuído o valor de 2000€;
13- matrícula AV-...., a que é atribuído o valor de 2000€;
14- matrícula SE-...., a que é atribuído o valor de 7000€,
c) A devedora na presente data faz a dação em pagamento à segunda outorgante mediante entrega a favor daquela, bem como total transferência dos direitos inerentes e respectiva utilidade, de maquinaria, a que é atribuído o valor global de 43500,00€ (quarenta e três mil e quinhentos euros):
1 - Empilhador Still & Saxby – nº de série ... - a que é atribuído o valor de 12500€;
2- Porta paletes Jungheinrich - ERE 225 KLPF – nº de série ... - a que é atribuído o valor de 1000€;
3- Máquina de embalar marca Calibrafruta, modelo – a que é atribuído o valor de 30000€.
d) A credora aceita a dação em pagamento referida na alínea precedente nos exactos termos porque em sua concordância e conformidade.
e) A credora emitirá respectivo recibo de quitação parcial da dívida no que concerne aos montantes ora havidos como pagos nos termos supra, sendo que, no que respeita aos identificados bens, apenas será dada quitação após efectiva entrega, recepção e verificação de funcionamento.
3ª A remanescente quantia de 77.431,43€ será paga em 4 prestações mensais, iguais e sucessivas, que se fixam no valor de 19.375,86€, vencendo-se a primeira no dia 30 de Setembro de 2018, a segunda em 31 de Outubro de 2018, a terceira em 30 de Novembro de 2018 e a última a 31 de Dezembro de 2018.
4ª Ao remanescente valor de capital em divida de 77.431,43€ acresce a título de juros vencidos até à data e vincendos, que as partes convencionam, a quantia total de 15.000,00€, a qual será paga em 31 de Janeiro de 2019,
5ª O não pagamento atempado de qualquer das prestações e juros implicará o imediato vencimento da totalidade do devido, acrescido dos juros de mora vincendos à taxa comercial.
6ª A que acrescerá ainda a quantia referente a despesas administrativas e de cobrança extrajudiciais e judiciais que as partes entendem fixar e convencionarem em 10.000,00€.
7ª A qualquer momento a devedora poderá antecipar o pagamento do devido ou proceder a amortizações parciais da dívida.
8ª De tudo assim a declarante e o seu representante pessoalmente enquanto devedor solidário com renúncia ao beneficio de excussão prévia se confessando devedores, ao que se procederá à respectiva autenticação do presente documento particular, bem como actos formais de registo tendentes a transferência de propriedade de viaturas, mais reconhecendo, deter este instrumento força executiva para todos os efeitos legais.
9ª Sem prejuízo da defesa de garantia da sua posição creditícia, a credora compromete-se a não promover acção executiva ou a requerer a insolvência da devedora até 30 de Setembro de 2018, e bem assim enquanto a devedora levar a cabo o estrito cumprimento do acordo de pagamento ora definido.
10ª Encontrando-se paga a totalidade do devido será entregue o presente titulo à devedora, ficando o mesmo sem efeito, bem como será emitida pela credora declaração de quitação integral.”.
32) GG e o requerido BB são irmãos.
33) A propriedade dos veículos e atrelados referidos no documento mencionado em 31), antes registados a favor da C..., foram registados, em 13/09/2018, a favor da sociedade E... Lda.
34) O veículo com a matrícula L-...., antes registado a favor da C..., foi registado, em 25/09/2018, a favor de HH.
35) O veículo com a matrícula L-......, antes registado a favor da C..., foi registado, em 31/01/2019, a favor de G..., Unipessoal, Lda.
36) O veículo com a matrícula ..-NM-.., antes registado a favor da C..., foi registado, em 11/09/2018, a favor de H..., Lda.
37) O veículo com a matrícula ..-DC-.., antes registado a favor da C..., foi registado, em 16/04/2018, a favor de II.
38) O veículo com a matrícula ..-NE-.., antes registado a favor da C..., foi registado, em 21/06/2018, a favor de I..., Lda.
39) Os veículos com as matrículas ..-NE-.. e ..-TN-.. foram dados em locação financeira à C....
40) A C... vendeu à Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ..., em 20/03/2018, o veículo com a matrícula ..-..-RA, pelo valor recebido de €15.375,00.
41) Em dia concretamente não apurado de Outubro de 2018, o requerido BB retirou das instalações da C..., as pastas onde se encontrava a contabilidade e os computadores onde se encontrava o programa de facturação da sociedade insolvente e se destinavam ao processamento da contabilidade, do que a requerida AA veio a ter conhecimento nesse mesmo mês.
42) Não existem bens imóveis registados em nome da insolvente.
43) O volume de negócios inscrito na contabilidade da C..., em 2015, 2016, 2017 e 2018, respectivamente, foi nos valores de €62.064,50, €259.331,59, €4.447.085,94 e €3.012.966,51.
44) Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, os valores de CMVMC inscritos na contabilidade da C... são de, respectivamente, €56.801,57, €188.280,12, €3.416.609,99 e €2.646.598,51.
45) Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, os valores de fornecimentos e serviços externos inscritos na contabilidade da C... são de, respectivamente, €21.504,51, €30.845,74, €820.390,85 e €681.621,00.
46) Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, os valores inscritos na contabilidade da C... correspondentes a gastos de pessoal são de, respectivamente, €14.126,39, €31.481,83, €200.720,79 e €275.389,94.
47) Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, os valores inscritos na contabilidade da C..., correspondentes a outros gastos e perdas são de, respectivamente, €4.188,48, €5.970,42, €64.133,41 e €45.783,16.
48) Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, os valores inscritos na contabilidade da C..., correspondentes à conta clientes são de, respectivamente, €4.569,69, €84.171,75, €728.470,92 e €405.481,60.
49) De acordo com os valores inscritos na contabilidade da C..., a sociedade apresentou, nos exercícios económicos de 2015, 2016, 2017 e 2018, respectivamente, os valores de -€7.128,22, €147,51, €19.970,57 e - €642.608,55.
50) No balancete geral de fecho das contas de 2018, junto com o requerimento apresentado pelo administrador da insolvência, em 20/12/2019, mostra-se anexo o mapa de amortizações e depreciações que aqui se dá por reproduzido.
51) O balancete geral referido em 50) apresenta as seguintes rubricas e valores:
a. conta 21 (clientes): €405.481,60;
b. conta 22 (fornecedores): €817.005,18;
c. conta 43 (activos fixos tangíveis): €581.176,05;
d. conta 63 (gastos com pessoal): €275.389,94;
e. conta 632 (remuneração do pessoal): €232.163,17;
f. conta 6321 (vencimentos mensais): €140.495,80;
g. conta 6322 (remunerações adicionais): €91.667,37;
h. Resultado liquido do período: €147,51;
i. Activos fixos tangíveis: €387.656,62;
j. Inventários: €67.331,18;
k. Clientes: €84.171,75;
l. Fornecedores: €367.887,51;
52) A insolvente apresentou as IES relativas aos anos de 2016 a 2018, nos termos que resultam do ofício junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira em 22/02/2022, que aqui se dá por reproduzido, delas resultando que:
a. Em 2016, foram declarados os seguintes valores:
i. Resultado líquido do período: €147,51;
ii. Activos fixos tangíveis: €387.656,62;
iii. Inventários: €67.331,18;
iv. Clientes: €84.171,75;
v. Fornecedores: €367.887,51;
vi. Total do activo: €609.872,75;
vii. Total do passivo: €491.853,46.
b. Em 2017, foram declarados os seguintes valores:
i. Resultado líquido do período: €19.970,57;
ii. Activos fixos tangíveis: €358.803,35;
iii. Inventários: €506.876,58;
iv. Clientes: €728.470,92;
v. Fornecedores: €1.163.932,12;
vi. Total do activo: €1.656.046,64;
vii. Resultados transitados: €- 6.980,71
viii. Total do passivo: €1.518.056,78.
c. Em 2018, foram declarados os seguintes valores:
i. Resultado líquido do período: €- 642.608,55;
ii. Activos fixos tangíveis: €618.299,32;
iii. Inventários: €25.051,83;
iv. Clientes: €405.481,60;
v. Fornecedores: €817.005,18;
vi. Total do activo: €1.066.796,08;
vii. Resultados transitados: €11.991,33;
viii. Total do passivo: €1.571.414,77.
53) Ainda em Setembro de 2018, os requeridos comunicaram aos funcionários da C... que pretendiam encerrar a empresa.
54) A última factura emitida pela C... foi emitida em 21/09/2018.
55) No dia a dia a requerida AA ficava nas instalações da sociedade tratando de assuntos administrativos e o requerido BB geria mais a parte de contacto com clientes e fornecedores e transportes.
56) O requerido BB, em Setembro, em dia concretamente não apurado, trancou as instalações da C....
57) A requerida AA apresentou contra o requerido BB uma queixa crime, com o teor constante dos documentos 1 e 2 juntos com a oposição, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
58) O requerido BB emitiu dois cheques de uma conta de que era titular a sociedade C..., com as datas de 12/09/2018, nos valores de €20.000,00 e €25.000,00, à sua ordem, tendo procedido ao levantamento de tais quantias em numerário.
59) A partir de Setembro de 2018, a sociedade insolvente ficou impedida de continuar a sua actividade, além do mais, atendendo ao facto de ter deixado de ter veículos que pudessem ser afectos ao transporte das mercadorias.
60) A requerida AA, em representação da sociedade C..., em 18/09/2018, instaurou contra o requerido BB um procedimento cautelar comum, com o teor constante do requerimento inicial junto com o requerimento de 27/02/2022, que aqui se dá por reproduzido.
61) A requerida AA, em 08/10/2018, transferiu de uma conta de que era titular a C... para uma conta pessoal de que é titular, as quantias de €25.000,00 e €24.000,00.
62) Através da conta referida em 61), a requerida fez os seguintes pagamentos a funcionários da C...:
a. Em 08/10/2018:
i. Pagamento a JJ, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €1.354,31;
ii. Pagamento a KK, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €580,00;
iii. Pagamento a LL, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €1.522,83;
iv. Pagamento a MM, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €799,44;
v. Pagamento a NN, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €799,44;
vi. Pagamento a OO, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €968,80;
vii. Pagamento a PP, funcionário da C..., a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €401,31;
viii. Pagamento a QQ, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €1.003,99;
ix. Pagamento a RR, a título de salário devido em Setembro de 2018, no valor de €610,14.
63) Em 08/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €3.936,00, apresentando como destinatário uma conta titulada por “ADV SS E TT” e como descritivo “FACTURAS PENDENTES”.
64) Em 08/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €8.000,00, para uma conta de que é titular A..., tendo como descritivo “...”.
65) A transferência referida em 64) destinou-se a pagar parte do valor que se encontrava em dívida pela insolvente à sociedade A..., Unipessoal, Lda.
66) Em 08/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €5.618,00, para uma conta de que é titular UU, para pagamento de uma factura emitida à sociedade C..., em 22/07/2018, nesse mesmo valor.
67) Em 12/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €5.000,00, para uma conta de que é titular a sociedade B..., Unipessoal, Lda., para pagamento parcial de uma factura emitida à sociedade C..., em 13/07/2018, no valor total de €21.906,25.
68) Em 12/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €710,00, para uma conta de que é titular VV, para pagamento de uma dívida da sociedade C....
69) Em 26/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €2.2000,00, para uma conta de que é titular DD, figurando no descritivo da transferência a menção “ADVOCACIA”.
70) Em 11/10/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €1.342,19.
71) Em 06/11/2022, a requerida AA fez ainda três transferências da mesma conta, nos valores de €806, €129,31 e €1.341,63, para pagamento de dívidas ao Estado da sociedade C....
72) Em 06/11/2022, a requerida AA fez ainda uma transferência da mesma conta, no valor de €4.114,92, para pagamento de contribuições da insolvente.
73) Em 06/11/2022, a requerida AA fez ainda duas transferências da mesma conta, nos valores de €1.810,64 e €1.603,14.
74) Em 28/11/2022, a requerida AA levantou da mesma conta, em numerário, a quantia de €4.005,20.
75) Antes das transferências referidas em 61), a conta titulada pela requerida AA, apresentava um saldo nulo e depois de tais transferências passou a apresentar um saldo de €49.000,00.
76) Em final de Novembro de 2022, essa mesma conta apresentava um saldo de €297,51.
77) No balancete geral de fecho das contas de 2018, a sociedade E... Lda. não consta da conta 22 (fornecedores) e nem se encontra inscrito qualquer pagamento a esta sociedade ou espelhada qualquer dação em pagamento.
78) As contas relativas ao exercício de 2018 não foram depositadas na conservatória do registo comercial.
*
Não se provou o seguinte:
a) Foi transferido património, clientela e trabalhadores da C... para as sociedades D..., Lda. e F..., Unipessoal Lda.
b) A requerida AA praticou os actos referidos em 27) em representação da sociedade D..., Lda.
c) O requerido BB praticou actos em representação da sociedade F..., Unipessoal Lda.
d) A requerida quando contactou clientes da C... disse-lhes que ia continuar tudo igual e que se fornecessem lhes pagaria o que estava em aberto nesta sociedade.
e) Os veículos com as matrículas L-......, ..-TN-.., ..-LB-.., ..-..-VN, ..-ZD-.. e ..-UQ-.. eram propriedade da C... e foram por esta transmitidos a terceiros.
f) O veículo de matrícula ..-..-RI foi adquirido pela sociedade “J..., Unipessoal, Lda.” em 19.12.2018.
g) O reboque de matrícula L-...... foi adquirido pela sociedade “G..., Unipessoal, Lda.” em 31.01.2019.
h) O reboque de matrícula C-....7 foi adquirido pela sociedade “G..., Unipessoal, Lda.” em 31.01.2019;
i) A requerida AA remeteu ao Banco 1... uma carta, com data de 12/09/2018, com o teor constante do documento pela mesma com o requerimento de 27/06/2022.
j) As dívidas referidas em 31) não existiam.
k) O requerido BB informou os clientes que fossem comprar batatas à empresa da sua irmã, E..., Lda.
l) As dívidas referidas em 31) existiam.
m) O requerido BB vendeu produtos da sociedade abaixo do seu valor de mercado ou de custo e sem facturar tais produtos, [fez] seu o respectivo preço.
n) As transferências elencadas em 63), 69), 70) e 73) e o levantamento em numerário referido em 74) destinaram-se a pagamentos de dívidas da C....
*
Passemos à apreciação do mérito do recurso.
1. A requerente “A..., Unipessoal, Lda.”, no recurso que interpôs, insurge-se contra a sentença recorrida apenas porque nesta os requeridos afetados pela qualificação da insolvência não foram condenados a indemnizar os credores da insolvente nos termos do art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE.
Nesta disposição legal, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.11., estatui-se que «na sentença que qualifique a insolvência como culposa…o juiz deve condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.»
E no nº 4 deste mesmo art. 189º diz-se que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas com fundamento naquela alínea e) ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.
Do art. 191º, nº 1, al. c) do CIRE decorre que a menção da alínea e) do nº 2 do art. 189º deve constar também da sentença que qualifique a insolvência como culposa, no âmbito do incidente limitado de qualificação da insolvência.
Este incidente limitado é aplicável apenas em dois casos regulados na lei: um caso, previsto, no art. 39º, nº 1, e o outro caso, previsto no art. 232º, nº 5, ambos do CIRE. Têm em comum a constatação da insuficiência da massa insolvente para o pagamento das custas processuais e das dívidas da massa. Mas entre estes dois casos existem diferenças importantes.
No art. 39º, nº 1 é o juiz que, na própria sentença de declaração da insolvência, constata tal insuficiência e declara aberto o incidente de qualificação com carácter limitado; já no art. 232º, nº 5 é o juiz, oficiosamente, ou o administrador da insolvência que constata essa insuficiência (depois da sentença declarativa da insolvência) e a comunica ao juiz para que dê início ao procedimento de encerramento por insuficiência da massa insolvente.
Como consequência, no art. 39º, nº 1 o incidente é imediatamente aberto como limitado; pelo contrário, no art. 232º, nº 5, o incidente foi aberto como pleno, podendo eventualmente ser convertido em incidente limitado, tudo dependendo do momento em que o administrador da insolvência se apercebe da insuficiência (podendo até acontecer que o incidente já estivesse findo) – cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., pág. 180.
Sucede que, no caso “sub judice”, a sentença que declarou a insolvência no processo principal foi proferida nos termos e com os efeitos previstos no art. 39º, nº 1 do CIRE, sem que tivesse sido completada e, por isso, o incidente de qualificação seguiu os seus trâmites como incidente limitado, sendo-lhe aplicável o disposto no art. 191º do mesmo diploma.
Conforme já se referiu, do art. 191º, al. c) do CIRE resultaria que, mesmo na hipótese em que não tenha existido complemento da sentença declaratória da insolvência e o incidente de qualificação corra com carácter limitado, haveria que condenar os afetados pela qualificação na indemnização prevista na alínea e) do nº 2 do art. 189º.
Mas poderá não ser assim, tal como se sustentou na sentença recorrida.
Vejamos.
2. Não tendo sido deferido ou sequer requerido o complemento da sentença, tal significa que não se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência e o processo é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência e com circunscrição da atividade do administrador da insolvência à elaboração do parecer a que se refere o nº 2 do art. 188º do CIRE – cfr. art. 39º, nº 7, als. a), b) e c) do CIRE.
Por conseguinte, nas situações a que se reporta o art. 39º, nº 1 do CIRE, não é fixado qualquer prazo para reclamação de créditos, nem há lugar ao incidente de verificação de créditos previsto nos arts. 128º e segs. também do CIRE, com a apresentação de lista de credores e a prolação de sentença de reconhecimento e graduação de créditos.
Já nos outros casos de incidente limitado de qualificação de insolvência, a que se refere o art. 232º, nº 5 do CIRE, a sentença declaratória da insolvência é proferida nos termos do art. 36º deste mesmo diploma, com fixação de prazo para a reclamação de créditos, sendo que o processo, por insuficiência da massa, poderá vir a ser encerrado antes de ser proferida sentença de graduação de créditos ou até mesmo antes da apresentação da lista de credores, o que determinará, inclusive, a extinção da instância dos processos de verificação de créditos que se encontrem pendentes – cfr. art. 233º, nº 2, al. b) do CIRE.
Porém, não será essa a situação mais corrente, uma vez que a decisão de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa ocorrerá, na maior parte das vezes, depois da apresentação da lista de credores e da prolação da sentença de graduação de créditos.
Conforme afirma o Mmº Juiz “a quo”, a destrinça que se faz entre as duas situações de aplicação do incidente limitado de qualificação de insolvência – a do art. 39º, nº 1 e a do art. 232º, nº 5 do CIRE – permitirá uma melhor contextualização do art. 191º, de forma a indagar se a indemnização prevista no art. 189º, nº 2, al. e) é de aplicar, por remissão, sempre a estas duas situações ou se se poderá reportar apenas a alguns casos abrangidos pela previsão do art. 232º, nº 5, atendendo à coerência e unidade do sistema.
3. A indemnização a atribuir aos credores do devedor declarado insolvente ao abrigo da referida alínea e) será até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, de acordo com a redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
Antes desta alteração legislativa, que se concretizou na substituição da expressão “no montante dos créditos não satisfeitos” pela expressão “até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos”, havia uma larga querela jurisprudencial a propósito de tal alínea, nela se divisando duas grandes correntes: uma, minoritária, defendendo que o quantum indemnizatório correspondia, automaticamente, ao montante dos créditos não satisfeitos; a outra, dominante, defendendo que deviam ser ponderadas certas circunstâncias como o grau de culpa, a gravidade da ilicitude, o nexo de causalidade entre a conduta e o dano ou a situação patrimonial do sujeito e invocando, em geral, como fundamento o princípio da proporcionalidade – cfr. CATARINA SERRA, “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Revista Julgar, nº 48, 2022, págs. 23/24[1].
Ou seja, para esta segunda corrente, a alínea e) teria de ser interpretada de forma restritiva, no sentido de não abarcar, sem qualquer limite, todos os créditos não satisfeitos no processo de insolvência, mas tendo, antes, sempre por limite um juízo de proporcionalidade.
Deste modo, com a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 9/2022, conforme escreve CATARINA SERRA (in ob. e loc. cit., págs. 26/27) “… já não é possível fazer prevalecer o critério do montante dos créditos não satisfeitos. Resulta agora, inequivocamente, do articulado que o montante dos créditos não satisfeitos é só o montante máximo da indemnização, nos termos da al. e) do nº 2 do art. 189º. A preposição “até” como qualquer outra preposição essencial, é uma unidade linguística dependente de outra e serve, justamente, para estabelecer, de forma explícita ou implícita, uma ligação entre dois termos.
O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (novo) critério, disponibilizado no art. 189º, nº 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.
Ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante.”
Em suma: a indemnização fundada na alínea e) do nº 2 do art. 189º terá sempre como limite máximo o montante dos créditos não satisfeitos, sendo que se ao tempo da decisão sobre o incidente da qualificação da insolvência não estiver ainda apurado o diferencial entre o ativo e o passivo – mas possa vir a sê-lo - o tribunal deverá determinar tão só os critérios para a ulterior fixação da indemnização, a efetuar em sede de liquidação, tal como prescreve o nº 4 do art. 189º.
4. A indemnização, tendencialmente, deverá corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, pois é essa diferença que representa o prejuízo dos credores. Só assim poderá não ser se acaso os factos provados revelarem que o comportamento culposo do afetado não foi causal de todo esse dano, antes se tendo limitado a ser apto a produzir um certo dano menor (dano inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa) – cfr. Ac. STJ de 6.9.2022, proc. 291/18.0T8PRG-C.G2.S1, relator JOSÉ RAINHO, disponível in www.dgsi.pt.[2]
Porém, este juízo relativamente à indemnização está sempre dependente de se ter tido oportunidade de liquidar os bens e direitos da insolvente, mesmo que posteriormente se viesse a constatar a sua insuficiência.
Ora, tal juízo não é possível nas situações em que não existiu, nem poderia ter existido sequer qualquer apreensão de bens e direitos para a massa insolvente, como sucede nos casos previstos no art. 39º, nºs 1 e 7 do CIRE.
Situações que são diversas das que ocorrem nos casos a que o art. 232º do CIRE se reporta, em que existirá um controlo mínimo por parte do administrador da insolvência quanto à existência ou inexistência de bens ou direitos a apreender para a massa insolvente.
Prosseguindo, assinalar-se-á que a liquidação a que alude o art. 189º, nº 4 do CIRE pressupõe que, não existindo elementos para fixar o objeto ou a quantidade, no momento da sentença, exista ainda uma real possibilidade de tal vir a ser alcançado posteriormente através de incidente de liquidação, nos termos do art. 609º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
Mas esse incidente de liquidação já não será viável nos casos em que não é possível fixar a indemnização, nem no momento da sentença, nem em momento posterior.
De qualquer modo, a indemnização, se está dependente do apuramento da diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, está também dependente do apuramento dos concretos destinatários da condenação.
Aliás, não pode deixar de se ter em atenção que a indemnização aqui em causa tem como beneficiários os credores cujos créditos ficaram por pagar na insolvência, sem qualquer distinção entre tais credores ou categorias dos respetivos créditos[3], o que implicará, todavia, que exista uma sentença de reconhecimento de créditos que delimite a indemnização ou que, pelo menos, exista uma lista de credores sem impugnação[4].
Assim, se não houve reclamação de créditos, como acontece no caso dos autos, não é possível delimitar nem a medida da indemnização, nem os seus destinatários.
5. Desta forma, tal como se considera na sentença recorrida, não cremos que seja possível condenar os afetados pela qualificação da insolvência a indemnizar terceiros indeterminados e indetermináveis que não reclamaram – porque não quiseram[5] ou não puderam – os seus créditos no processo de insolvência.
Tal como não será possível aceitar que, na ausência de reclamação de créditos, a eventual condenação aqui em causa se reportará a todo e qualquer credor do declarado insolvente, desde logo porque da alínea e) do nº 2 do art. 189º do CIRE decorre que as pessoas afetadas são condenadas a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos.
Consequentemente os credores em causa não são quaisquer uns, mas apenas aqueles que poderiam ter visto satisfeitos os seus créditos e não viram, porque a massa insolvente foi insuficiente, não se abrangendo assim quaisquer outros credores que não tiveram intervenção no processo de insolvência e nele não viram reconhecidos quaisquer direitos.
Por outro lado, continuando a seguir a sentença recorrida dir-se-á que “destinando-se a indemnização em causa a compensar uma generalidade de credores (os credores da insolvência que tenham visto os seus créditos reconhecidos) pelos prejuízos causados com a insolvência ou seu agravamento, tendo tal indemnização como limite máximo igualmente o património do devedor, não se nos afigura possível, sob pena de violação do principio de igualdade entre credores, ínsito no artigo 604º do Código Civil, que só um ou alguns possam ser ressarcidos, porque, entretanto, se esgotou o património que responde pela dívida.”
Nesta linha escreve CATARINA SERRA (in ob. e loc. cit., pág. 38): “É de toda a conveniência, pois - insiste-se - que a sentença condenatória seja, a partir de agora, o mais completa e precisa possível, especificando a parte da indemnização que cabe a cada credor.
Confirmando a necessidade de uma sentença completa e precisa, capaz de propiciar ao juiz da execução uma visão, simultaneamente, global e discriminada da indemnização, pense-se que, no caso de o(s) património(s) do(s) afectado(s) não chegar(em) para o pagamento integral, o exequente deve receber proporcionalmente, em conformidade com o art. 604° do Código Civil, sob pena de os sucessivos exequentes nada receberem a final”.
Acontece que este controlo só será possível de se fazer através da sentença de reconhecimento de créditos, cumulativamente com eventuais sentenças de verificação ulterior de créditos que venham a ser proferidas no processo de insolvência.
Só desta forma se poderá conhecer qual é o universo concreto de destinatários da condenação e o montante máximo da indemnização a ter em conta, bem como aferir o montante que caberá a cada um, de forma rateada, caso se verifique a insuficiência do património para dar pagamento a todos.
Conforme escreve CATARINA SERRA (in ob. e loc. cit., pág. 38, nota 81) “(…) na execução da sentença de qualificação da insolvência como culposa cumpre impedir que funcione a lógica do prior in tempore potior in iure e garantir - continuar a garantir, apesar de já não estar em curso o processo de insolvência - a observância do princípio par conditio creditorum.”.
E cremos que tal não será possível de ser alcançado fora do quadro próprio do incidente de reclamação de créditos e no confronto com todos os credores do devedor insolvente (pelo menos, com todos os que reclamaram os seus direitos, nos termos legalmente previstos).
Como tal, em sintonia com a sentença recorrida, cuja argumentação seguimos, entendemos que no caso “sub judice” não há fundamento para condenar os afetados pela qualificação da insolvência no pagamento da indemnização a que se refere o art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE.
Improcede assim o recurso interposto.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela requerente “A..., Unipessoal, Lda.” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas do recurso, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente.

Porto, 27.6.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Com numerosas indicações jurisprudências nas notas de rodapé 34 e 35.
[2] Citado na decisão recorrida.
[3] Cfr. Ac. Rel. Porto de 11.5.2020, p. 1205/16.8T8AMT-B.P2, relator MENDES COELHO, disponível in www.dgsi.pt (referenciado na decisão recorrida)
[4] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 27.4.2017, p. 1288/15.8T8CBR.1.C1, relator JAIME CARLOS FERREIRA, disponível in www.dgsi.pt. (referenciado na decisão recorrida).
[5] Em nota de rodapé, na sentença recorrida, escreveu-se o seguinte: “Sendo importante não perder de vista que qualquer credor, para além de se pronunciar quanto à qualificação da insolvência, poderá sempre requerer o complemento da sentença, com isso garantindo a possibilidade de apuramento dos bens e reconhecimentos dos seus créditos.”