Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
31/14.3T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL DO TRABALHO
Nº do Documento: RP2016050231/14.3T8PNF.P1
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º239, FLS.100-104)
Área Temática: .
Sumário: É competente para conhecer do litígio sobre um acidente sofrido por uma trabalhadora com contrato de trabalho em funções públicas ao serviço dum Centro Hospitalar com a natureza de entidade pública empresarial, o Tribunal do Trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 31/14.3T8PNF.P1
Apelação

Relator: Eduardo Petersen Silva (reg. nº 501)
Adjunto: Desembargadora Paula Maria Roberto
Adjunto: Desembargadora Fernanda Soares
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho em que é sinistrada B…, residente em …, Penafiel, e participado o Centro Hospitalar C…, E.P.E., entidade patronal, com sede em …, Penafiel, frustrada que foi a tentativa de conciliação – uma vez que a participada, aceitando embora o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões sofridas, a retribuição da sinistrada bem como o grau de desvalorização que lhe foi atribuído pelo perito médico do tribunal, não aceitou reparar o acidente, por entender que a responsabilidade é da Caixa Geral de Aposentações – veio a sinistrada, representada por mandatário judicial, apresentar petição inicial contra o referido Centro Hospitalar, peticionando a final a condenação deste a pagar-lhe €409.208,00 a título de indemnização pelo acidente de trabalho, €11.649,00 a título de prestação por pessoa a cargo, €160.447,03 a título de subsídio por situação de alta incapacidade permanente, €187.222,84 a título de subsídio por assistência a terceira pessoa, €57.600,00 por força do pagamento do acompanhamento médico psiquiátrico, e €120.960,00 por força do pagamento do programa de reabilitação neuropsicológico diário.
Alegou a Autora, em síntese, que sofreu um acidente de viação em 29.11.2010, quando se deslocava do local de trabalho para casa, e que, à data, exercia as funções de enfermeira especialista no serviço de bloco de partos, em regime de contrato de trabalho em funções públicas, mediante a retribuição anual de €2.236,98 x 14 + €7.662,32 x 1 (total anual de €38.980,04). Em consequência do acidente ficou afectada de incapacidade de 100% com IPA e foi fixada a data da alta em 29.11.2013.

Citado o Réu, contestou, para o que aqui releva, excepcionando a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, invocando que é uma pessoa colectiva pública integrada na administração indirecta do Estado, estando os trabalhadores que nela exercem funções públicas sujeitos à disciplina do DL 503/99, de 20 de Novembro, pelo que o tribunal competente para julgar uma acção administrativa interposta por um trabalhador com contrato de trabalho em funções públicas contra o Centro Hospitalar, por virtude de incapacidade resultante de acidente sofrido no exercício de funções, é o tribunal administrativo.

Respondeu a Autora, invocando jurisprudência no sentido da competência dos Tribunais do Trabalho.

Foi proferido despacho saneador que, começando pela excepção de incompetência material, a julgou procedente, e em consequência, absolveu o Réu da instância.

Inconformada, interpôs a sinistrada o presente recurso, apresentando a final as seguintes conclusões:
I – O C… é uma entidade pública empresarial, como decorre do DL 326/2007 que criou aquele entidade e aprovou os respectivos estatutos;
II – Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho;
III – Quanto às entidades públicas empresarias, é indiferente que os seus trabalhadores exerçam ou não funções públicas, pois em quaisquer dos casos, é-lhe de aplicar o regime de acidentes de trabalho previstos no Código do Trabalho;
IV – Tal decorre do legislador no n.º 4 do artigo 2.º do DL 503/99, de 20/11, na redacção do artigo 9.º da Lei 59/2008, de 11/09 não ter caracterizado as funções como “públicas”, significando que todas as funções, isto é, seja ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas, seja ao abrigo de contrato individual de trabalho, se encontram abrangidas e que, portanto, todos os trabalhadores das entidades publicas empresariais têm um regime comum no tocante a acidentes de trabalho;
V – Face ao regime jurídico das entidades públicas empresariais aprovado pelo DL 133/2013, de 3 de Outubro e como decorre do regime especial estatuído para as unidades de saúde sob o regime jurídico das entidades públicas empresarias - DL 233/2005, de 29 de Dezembro - e no que ao caso concreto do C… respeita, com a sua passagem para o regime de entidade pública empresarial, por força do DL 326/2007, quis o legislador que àquela instituição se aplicassem regras idênticas às que regem as empresas privadas;
VI – O que torna justificada a conclusão de que no caso sub judice não está em causa um litígio emergente das relações administrativas e/ou uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, mas, tão só, um litígio no âmbito do regime de acidentes de trabalho, previsto no Código do Trabalho;
VII – Pelo que é de considerar que cabe ao tribunal do trabalho a competência material para os ulteriores termos deste processo.

Contra-alegou o recorrido, formulando a final as seguintes conclusões:
1. O Centro Hospitalar C…, E.P.E., criado pelo Decreto-Lei nº 326/2007 de 28 de Setembro, é uma Entidade Pública Empresarial, isto é, uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa e patrimonial, nos termos do regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas.
2. Por tal razão, ter-se-á de concluir que o Centro Hospitalar C… é uma pessoa colectiva pública integrada na administração indirecta do Estado e que, por isso, os trabalhadores que nele exercem funções públicas, como é o caso da Recorrente, no que tange às relações laborais estabelecidas entre as partes é aplicável a Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, e o DL nº 503/99, de 20/11.
3. Deste modo serão competentes para conhecer das acções emergentes de acidente em serviço os Tribunais Administrativos e Fiscais.
4. Isto é, a jurisdição administrativa é a materialmente competente para conhecer do pedido formulado pela Recorrente, respeitante à ocorrência de um acidente em serviço.
5. Acresce que, o DL nº 503/99, de 20/11, em nenhuma das suas disposições legais atribui competência ao Tribunal do Trabalho pelo simples facto de a entidade empregadora, uma pessoa de direito público, ter celebrado um contrato de seguro relativamente a acidentes de trabalho.
6. Aliás, não será esta a premissa já que a competência material não se define pelo facto de a entidade pública ter transferido a sua responsabilidade para uma entidade privada, uma seguradora.
7. Por isso, a competência do Tribunal do Trabalho, em razão da matéria, há-de resultar do estabelecido na LOFTJ, mais precisamente do disposto no art.º 85º al. c) da Lei nº 3/99, de 13/01.
8. Ora, a citada disposição legal refere que os Tribunais do Trabalho são competentes para conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nada referindo quanto aos acidentes de serviço.
9. O legislador da Lei nº 3/99 não podia desconhecer que o acidente ocorrido com trabalhadores da Administração Pública, para além de ser um acidente de trabalho – art. 3º nº 1 al. b) do DL 503/99 – é mais do que isso: é um acidente de serviço sujeito às regras específicas do referido diploma que não coincidem com as regras da Lei nº 98/2009, de 04/09.
10. Assim, sendo o acidente em discussão nos presentes autos um acidente em serviço e não cabendo ele na situação prevista na al. c) do art. 85º da Lei nº 3/99 de 13/01, o Tribunal do Trabalho é incompetente em razão da matéria para dele conhecer.
11. Por outro lado, veja-se o acórdão 00626/14.5BECBR, do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 24/04/2015, o qual em situação similar entendeu que “… para apreciar este pedido, ou seja, para referir se é aplicável ao recorrente o disposto no Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, sendo a outra parte na relação material controvertida a CGA, são competentes os Tribunais Administrativos”.

O Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, a única questão a decidir é a de saber se o Tribunal do Trabalho tem competência material para o conhecimento da causa.

III. Matéria de facto
A constante do relatório que antecede.
Mais consta dos autos, a fls. 119 e na fase conciliatória, declaração do Serviço de Gestão de Recursos Humanos do Réu, sobre a inexistência de transferência de responsabilidade infortunística do Réu para seguradora, à data do acidente da Autora.
A participação de acidente foi autuada em 18.9.2014 e a petição inicial deu entrada em 24.11.2015.

Apreciando:
Está em causa saber se é competente para conhecer do litígio o Tribunal do Trabalho ou, ao invés, se é competente o Tribunal Administrativo.
A Autora invoca a natureza jurídica do Réu, como entidade pública empresarial, sujeita a um regime, intencionado pelo legislador, como de natureza privada, com aplicação aos trabalhadores, independentemente de exercerem funções públicas ou não, da disciplina laboral e correspondente protecção infortunística, sustentando a inexistência de uma relação administrativa. Pelo contrário, o Réu defende que se integra na administração indirecta do Estado e que a competência se determina em função da não atribuição, ao Tribunal de Trabalho, do conhecimento de acidentes de serviço.
A decisão recorrida fez eco do Acórdão do Tribunal de Conflitos, datado de 6 de Fevereiro de 2014, proferido no processo nº 024/12, que entende que um Centro Hospitalar se integra na administração indirecta do Estado, pois que prossegue, sob a tutela deste e com capital exclusivo deste, a tarefa de promoção da saúde pública.
Vejamos:
Antes de mais, sendo a questão sob recurso sobre competência material dos tribunais, a mesma deve ser aferida em função do pedido deduzido pelo autor na sua petição inicial, devidamente enquadrado pela respectiva causa de pedir – v.g., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 91; acórdãos do Tribunal de Conflitos de 11/7/2000 (Conflito n.º 318[1], de 3/10/2000 (Conflito n.º 356[2], e de 5/2/2003 (Conflito n.º 6/02[3]); acórdãos do STJ de 16/11/2010 e de 30/3/2011, proferidos, respectivamente, no âmbito dos processos 981/07.3TTBRG.S1 e 492/09.2TTPRT.P1.S1.
Ora, desde logo, a Autora não interpôs a acção contra a Caixa Geral de Aposentações – que aliás declinou a sua responsabilidade em comunicação à Autora, reiterando a aplicação da lei laboral e a inerente responsabilidade do Réu – mas apenas contra o Réu, reclamando deste a protecção infortunística que a lei laboral concede para o acidente, que qualificou como de trabalho. Na petição inicial, a Autora invocou estar no regime de contrato de trabalho em funções públicas e invocou precisamente que era indiferente este regime para a definição da competência, pois o regime aplicável era o de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho (artigos 9º a 15º da petição inicial).
Seria assim clara a competência do Tribunal do Trabalho, pois que, nos termos do artigo 126º, nº 1, al. c) da Lei nº 62/2013, de 26.8 (LOSJ) compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Será assim?
O Réu foi criado pelo DL 326/2007 de 28 de Setembro, em cujo preâmbulo se lê:
“De acordo com o Programa do XVII Governo Constitucional, os Decretos-Leis n.ºs 233/2005, de 29 de Dezembro, e 50-A/2007, de 28 de Fevereiro, transformaram em entidades públicas empresariais 35 hospitais que até então detinham a natureza de sociedade anónima ou estavam integrados no sector público administrativo.
No mesmo sentido, o Programa de Estabilidade e Crescimento prevê a atribuição progressiva deste estatuto a todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, para que todos os estabelecimentos hospitalares do Estado fiquem sujeitos a um único regime jurídico.
Procede-se agora à criação de mais dois centros hospitalares com o estatuto jurídico de entidade pública empresarial, modelo mais adequado à gestão das unidades de cuidados de saúde diferenciados, na medida em que compatibiliza a autonomia de gestão com a sujeição à tutela governamental, conforme genericamente estabelecido no capítulo iii do Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro, para o sector empresarial do Estado.
(…)
Ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 18.º do regime jurídico da gestão hospitalar, aprovado pela Lei 27/2002, de 8 de Novembro, e no artigo 24.º do Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro, e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta (…)”.
A intenção de atribuição do estatuto de entidade pública empresarial a todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, sem dúvida, indicia que estas entidades públicas empresariais, e concretamente o Réu, prosseguem a atribuição constitucional da promoção da saúde a cargo do Estado, como refere o Acórdão do Tribunal de Conflitos acima referido.
Sufraga-se assim, o entendimento deste Acórdão, citado na decisão recorrida: “O Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, criado pelo DL 233/2005, de 29/12, é uma Entidade Pública Empresarial, isto é, uma “pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa e patrimonial, nos termos do regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas, e do art.º 18.º do anexo da Lei 27/2012, de 8/11.” (art.º 5.º/1), cujo capital é detido pelo Estado (art.º 3.º/1), sujeito à superintendência do Ministro da Saúde a quem compete aprovar os seus objectivos e estratégias, dar orientações, recomendações e directivas e definir as suas normas de organização e de actuação hospitalar (art.º 6.º).
O que significa que aquele Réu é uma pessoa colectiva pública com a função de prosseguir a tarefa atribuída ao Estado de promoção e protecção da saúde pública (vd. seu art.º 64.º da CRP) e que no cumprimento dessa missão está sujeito à superintendência deste que detém o seu capital, nomeia as suas administrações, define os seus objectivos e estratégias e lhe dá orientações e directivas.
Ou seja, o Centro Hospitalar coadjuva e colabora com o Estado na tarefa de protecção e defesa da saúde pública, tarefa que aquele só não prossegue em exclusivo por ter entendido que a descentralização dessa missão conduziria a uma gestão mais ágil, mais eficiente, mais racional e mais económica dos meios que lhe estão afectos e que, portanto, dessa maneira melhor se alcançava a satisfação daquele interesse público”. (fim de citação)
Conclui o referido acórdão, em negação da conclusão da decisão nele recorrida de que o Centro Hospitalar demandado não fazia parte das entidades identificadas nos n.ºs 1, 2 e 3 do DL 503/99, de 20/11 (na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/2008, de 11/09), que “(…) aquele Centro Hospitalar (…) Oriental é uma pessoa colectiva pública integrada na administração indirecta do Estado e que, por isso, os trabalhadores que nele exercem funções públicas, como é o caso da Autora, estão sujeitos à disciplina do DL 503/99, de 20/11. Daí resultando que a competência para julgar esta acção caiba aos Tribunais Administrativos”.
Ora bem, a denominada administração indirecta do Estado é a que prossegue fins próprios do Estado, que visam a satisfação de necessidades essenciais suas, embora não directamente, porque a actividade não é exercida pelo próprio Estado, mas por outras entidades que ele próprio cria (por regra por via legislativa) para esse efeito e sob a sua dependência; é uma modalidade de administração pública em sentido objectivo, em que o Estado pode, em qualquer momento, chamar de novo a si essa actividade, e em que tem consideráveis poderes de intervenção, como os de poder nomear e demitir os dirigentes, dar instruções e directivas acerca do modo de exercício da actividade, de fiscalizar e controlar o exercício da mesma.
A administração indirecta integra: a) as pessoas colectivas de estatuto público, nas quais se integram os institutos públicos[4] [de prestação (v.g. hospitais públicos não empresariais, Instituto Nacional de Estatística), reguladores (v.g. INTF, I.P. - transportes ferroviários; InIR, I.P. – infra-estruturas rodoviárias; INAC, I.P. – aviação civil; IMOPPI, I.P. – mercados de obras públicas e particulares e do imobiliário; ERSAR, I.P. – serviços de águas e resíduos), fiscalizadores (v.g. Autoridade da Concorrência, Agência para a Qualidade e Segurança Alimentar) e de infra-estruturas (v.g. Instituto Marítimo-Portuário)], e as entidades públicas empresariais[5]; b) as pessoas colectivas de estatuto privado[6], nas quais se integram as empresas públicas sob a forma societária, as fundações e as associações - João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10ª edição, Editora Âncora, pp. 123 e ss.
Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, 3ª Edição, Vol I, Almedina, (págs. 363 e segs), após definir os estabelecimentos públicos como “institutos públicos de carácter cultural ou social, organizados como serviços abertos ao público, e destinados a efectuar prestações individuais à generalidade dos cidadãos que deles careçam”, dá como exemplo, justamente, os hospitais públicos.
Simplesmente, se é verdade que o artigo 2º do DL 503/99 de 20 de Novembro, estabelece a aplicação do regime de acidente de trabalho nele previsto aos trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas ao serviço da administração indirecta do Estado, como conciliar com o próprio diploma que criou o Réu?
O DL 326/2007 de 28 de Setembro estabelece, no seu artigo 5º: “1 - Às entidades públicas empresariais criadas pelo presente decreto-lei aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime jurídico, financeiro e de recursos humanos, constante dos capítulos ii, iii e iv do Decreto-Lei 233/2005, de 29 de Dezembro.
2 - A aplicação do capítulo iv do Decreto-Lei 233/2005, de 29 de Dezembro, ao pessoal de todos os hospitais E. P. E. com relação jurídica de emprego público não prejudica a aplicação das regras gerais de mobilidade e racionalização de efectivos em vigor para os funcionários e agentes da Administração, designadamente as constantes da Lei 53/2006, de 7 de Dezembro, e do Decreto-Lei 200/2006, de 25 de Outubro, com as necessárias adaptações”.
E o DL 233/2005, por sua vez, no capítulo IV – sem prejuízo do regime transitório previsto no artigo 15º, que nos autos não temos elementos sobre a data em que a A. iniciou a laboração para o Réu – prevê, como norma geral, no seu artigo 14º, que “Os trabalhadores dos hospitais E. P. E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, nos termos do Código do Trabalho, bem como ao regime disposto em diplomas que definam o regime legal de carreira de profissões da saúde, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos”.
Acresce que se o modelo de gestão mais adequado é visado com a criação das entidades públicas empresariais, se a aproximação é tendencial para todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, se a aproximação se faz a um modelo privado, um modelo de gestão privada, ainda que fortemente condicionado ou tutelado pelo interesse público, haverá então de conceder-se, dizíamos, que é insuficiente, para a questão da definição da competência material dos tribunais, afirmar que a integração na administração indirecta do Estado desloca essa competência para fora do domínio privado, sobre o qual rege o Direito do Trabalho. E haverá ainda de reforçar-se que este mesmo modelo de gestão, visando uma gestão racional e eficiente, não tem de resolver-se apenas no âmbito das relações entre o Centro Hospitalar e os utentes, mas compreensivelmente, tal gestão abarca todos os domínios, designadamente também o das relações com os recursos humanos dos Centros Hospitalares. Assim se justifica a referida menção legislativa expressa (acima citado artigo 14º do DL 233/2005) da regra da sujeição ao regime do contrato de trabalho.
A conciliação, que não é mais do que dizer que não nos podemos afastar do texto da lei, designadamente invocando a natureza integrada na administração indirecta do Estado, vamos buscá-la ao próprio DL 503/99 de 20 de Novembro, na versão aplicável ao tempo do acidente, isto é, com as alterações resultantes da Lei 59/2008 e da Lei 64-A/2008:
1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado.
2 (…)
3 (…)
4 - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.
(…)
Se o próprio DL 503/99 estabelece a distinção, expressamente, entre empregadores, digamos assim, integrados na administração indirecta do Estado e entidades públicas empresariais – confronto do nº 1 com o nº 4 do artigo 2º ora transcrito – se o objectivo da criação de entidades públicas empresariais, convertendo anteriores hospitais públicos, é a gestão racionalizada e se esta inclui ou envolve a aplicação do regime regra do contrato de trabalho, se é o próprio diploma que cria o Réu que estabelece a aplicação deste regime, então não é possível, salvo melhor opinião e com o devido respeito, sob pena de frustração dos intuitos do legislador, entender que os Centros Hospitalares integram a administração indirecta do Estado para o efeito de, no tocante à definição legal da protecção infortunística, se subsumirem ao nº 1 do citado artigo 2º do DL 503/99 e não ao nº 4 do mesmo preceito, que expressamente os prevê. Ou, melhor dizendo, ainda que teoricamente tais Centros integrem a administração indirecta do Estado, ainda que a relação seja de emprego público, a verdade é que, havendo previsão expressa – referido nº 4 – há-de obedecer-se a ela, e portanto entender que os acidentes sofridos por trabalhadores ao serviço de entidades públicas empresariais, estão sujeitos à protecção infortunística laboral.
Conclui-se pois, pela pertinência da invocação, pela Autora, da ocorrência de acidente de trabalho, e pela aplicação do artigo 126º nº 1 al. c) da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (LOSJ), segundo a qual compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, razão pela qual se impõe revogar a decisão recorrida e ordenar o normal prosseguimento dos autos no Tribunal do Trabalho recorrido.
Tendo decaído no recurso é o recorrido responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC.

IV. Decisão
Nos termos supra expostos acordam conceder provimento ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida, ordenando o normal prosseguimento dos autos no tribunal recorrido.
Custas pelo recorrido.

Porto, 2 de Maio de 2016
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
Fernanda Soares
_____
[1] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3e2a269de39b31fc8025713b003b5a53?OpenDocument.
[2] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/cf567db4e6d860028025713b003b5a44?OpenDocument.
[3] http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1676ba5eeb0106a88025713b003b5a5a?OpenDocument.
[4] Os institutos públicos podem revestir diferentes modalidades organizativas:
a) Serviços Personalizados (v.g. IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico; IVV - Instituto da Vinha e do Vinho; ISS - Instituto da Segurança Social; ACSS - Administração Central do Sistema de Saúde; Instituto dos Registos e do Notariado; ICNB –Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade; INFARMED (medicamentos); Turismo de Portugal; Instituto de Reinserção Social; Administrações das Regiões Hidrográficas; Autoridades Metropolitanas de Transportes (AMT/Lisboa e AMT /Porto); INA – Instituto Nacional de Administração; AMA - Agência de Modernização Administrativa);
b) Estabelecimentos Públicos (v.g. Universidades e Institutos Politécnicos públicos, Centros de Investigação Científica, Hospitais públicos não empresarializados);
c) Fundações Públicas – Fundação para a Ciência e Tecnologia, Centro Cultural de Belém, Fundação CEFA (formação autárquica).
Os Institutos públicos (I.P.) são actualmente objecto de regulação-quadro pela Lei 3/2004, de 15/1, alterada e republicada pelo DL 105/07, de 3/4, embora alguns estejam sujeitos a regimes específicos, nos termos do artigo 48.º da Lei, como as universidades e institutos politécnicos, as instituições públicas de solidariedade social, os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, as regiões de turismo, o Banco de Portugal e as entidades administrativas independentes.
[5] As entidades públicas empresariais (EPEs) são pessoas colectivas de direito público e de regime privado, que foram autonomizadas do conceito de institutos públicos. Embora sujeitas a regimes de direito privado, dispõem, em regra, de poderes públicos de autoridade e estão submetidas a superintendência e a tutela mais ou menos intensa. Exemplos: na área dos transportes [REFER, CP, API, NAV, Metropolitano de Lisboa]; na área da gestão de recursos públicos [GeRAP (Gestão Partilhada de Recursos na Administração Pública), ANCP (Agência Nacional de Compras Públicas), SPMS (Serviços Partilhados do Ministério da Saúde), Agência para o Investimento e Comércio Externo, Parque Escolar]; na área cultural [Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional de S. João, OPART (Organismo de Produção Artística – CNB e TNSC)]; na área da saúde [alguns Hospitais (CHUC, Curry Cabral, etc.), Centros Hospitalares (Barreiro Montijo, etc.) e Unidades Locais de Saúde (Alto Minho, Baixo Alentejo, Guarda)].
As Entidades Públicas Empresariais são reguladas por diplomas específicos, bem como pelo Capítulo III do Decreto-lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro (alterado pelo Decreto-lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto).
[6] Estão aqui incluídas a generalidade das empresas públicas, que são sociedades de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos, instituídas para finalidades públicas sob a forma de sociedades comerciais, como, entre muitas, a PARPÚBLICA, a SIEV- Sistema de Identificação Electrónica de Veículos, SA, etc.
Excepcionalmente, estas empresas podem ser detentoras de poderes públicos de autoridade, como é o caso das várias Administrações Portuárias.
O sector empresarial do Estado (que inclui, além das empresas públicas, as empresas participadas) é regulado pelo DL 558/99, de 17/12 (alterado pelo DL 300/07, de 23/8)
Há ainda as fundações (públicas) de direito privado que são objecto de criação estadual (Fundações universitárias, nos termos do RJIES: U. Porto, U. Aveiro, ISCTE), que tem de ser autorizada por diploma legal, nos termos do artigo 3º/4 da Lei 3/04.
______
Sumário a que se refere o artigo 663º, nº 7 do CPC:
É competente para conhecer do litígio sobre um acidente sofrido por uma trabalhadora com contrato de trabalho em funções públicas ao serviço dum Centro Hospitalar com a natureza de entidade pública empresarial, o Tribunal do Trabalho.

Eduardo Petersen Silva
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artigo 138º nº 5 do Código de Processo Civil)).