Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
358/21.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: ERRO IN PROCEDENDO E ERRO IN JUDICANDO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS E FORMAS DE PROCESSO DIFERENTES (COMUM E ESPECIAL)
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP20220621358/21.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O error in procedendo determina a invalidade ou anulação do ato. O error in judicando conduz à revogação da decisão e ao efeito substitutivo do tribunal de recurso.
II- A razão de ser desta distinção aplica-se também aos atos das partes, havendo uma similitude nos conceitos e desvalor definidores.
III- A petição inicial marca o inicio do processo e pode comprometer logo todo o seu desenvolvimento.
IV- A nulidade principal traduzida na ineptidão da petição inicial é uma insuficiência estrutural
desta peça que implica que, por ausência absoluta ou ininteligibilidade de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir e do pedido, ou por contradição entre esta e o pedido, ou ainda por cumulação de pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o processo careça de um objeto entendível.
V – A par do direito de ação existe um direito a um processo adequado à tutela do direito material invocado. Nesta medida, emerge o princípio da adequação como conceito estruturante do devido processo legal.
VI- O processo especial de tutela da personalidade corresponde a uma ação declarativa que não se afasta significativamente da forma comum. Não existe obstáculo à cumulação dos pedidos referentes à anulação da venda e à indemnização por responsabilidade civil extracontratual a que corresponde a forma comum do processo, com os pedidos de tutela da personalidade, a que corresponde a forma de processo especial, havendo interesse relevante para a justa composição do litígio e inexistindo inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 358/21.8T8VNGP1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 4

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos autos supra epigrafados, depois de realizada a audiência prévia onde se consignou ter sido tentada a conciliação das partes e se determinou a abertura de conclusão para eventual conhecimento das excepções invocadas pelas partes: ilegitimidade passiva e cumulação incompatível da causa de pedir, foi proferido o seguinte despacho:
AA intentou acção declarativa comum de condenação contra BB e CC, C..., Lda., e o Condomínio ..., sito na Rua ..., ..., em ..., Vila Nova de Gaia, representado por L..., Lda., peticionando que seja:
“a) Declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido;
b) Ordenado o cancelamento de todos registos relativos a tal prédio;
c) A 3ª R. condenada no pagamento de 1.500,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;
d) O 1º R. marido condenado no pagamento de 10.000,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;
e) O 1º R. marido condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence;
f) O 1º R. marido condenado no pagamento de quantia nunca inferior a 300,00€ por cada dia de atraso na referida remoção ou reposicionamento, bem como no pagamento de quantia nunca inferior a 2.000,00€ por cada nova infracção (instalação de câmara nos moldes descritos), ao abrigo do artigo 829º-A do CC;
g) Os RR. condenados nas custas e demais encargos com o processo.”

Salvo melhor opinião, a pretensão do autor não deve prosseguir para além deste momento em que se procede ao saneamento do processo.
Nos termos do disposto no artigo 186.º, 2, do CPC, a petição é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
Deriva da simples leitura do artigo 552.º, 1, d), do CPC, que, como antecedente lógico da pretensão formulada, o autor deve expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Assim, não basta a invocação de um determinado direito subjectivo e a formulação da vontade de obter do Tribunal determinada forma de tutela jurisdicional. Tão importante quanto isso é a alegação da relação material de onde o autor faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, a alegação dos factos constitutivos do direito.
Funcionando no sistema jurídico o princípio do dispositivo e de acordo com as regras gerais da repartição do ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil) é sobre o autor, que invoca a titularidade de um direito, que cabe fazer a alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito (artigo 5.º, 1 do CPC), sem prejuízo do Tribunal poder conhecer de factos instrumentais, complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa e de factos notórios (artigo 5.º, 2, do CPC).
Nos artigos 552.º, 1, d) e 582.º, 4, do CPC, o legislador fez uma opção entre dois sistemas possíveis: o da individualização ou o da substanciação da causa de pedir.
Segundo o primeiro sistema bastaria a indicação do pedido, com o que todas as possíveis causas de pedir podiam ser consideradas no processo, de tal modo que ao responder à pretensão formulada, a sentença decidia em absoluto sobre a existência ou inexistência da situação jurídica afirmada pelo autor, impedindo-se que após a sentença houvesse alegação de factos anteriores e que porventura não tivessem sido alegados ou apreciados.
Já a teoria da substanciação implica para o autor a necessidade de fundar em factos a afirmação da situação jurídica, que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito de conformação do objecto da causa.
Foi esta última a opção a que aderiu o legislador e, assim, o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, supõe a alegação do conjunto de factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil (cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma Do Processo Civil, I Volume, 2.ª Edição, Almedina, 1999, p. 192 e ss. e Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais, Coimbra Editora, 1996, p. 54 e ss.).
Na indicação da causa de pedir exige-se, pois, que o autor, mais do que meramente individualizar a relação controvertida, substancie a sua pretensão ou o seu direito pela indicação do facto constitutivo do mesmo (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição-reimpressão, Coimbra Editora, p. 351 e seguintes e Antunes Varela, M. Bezerra, S. Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição-revista e actualizada, Coimbra Editora, p. 245).
Por outro lado, a necessidade de invocação da materialidade não pode deixar de escorar-se igualmente no respeito do princípio do contraditório, como condição do efectivo exercício do direito de defesa, impondo-se que ao réu seja dado conhecimento dos factos fundamentadores da pretensão.
Estas são algumas das razões que justificam e creditam a imposição ao autor do ónus de invocar na petição os factos integradores/essenciais da causa de pedir.
Não sendo inocente a exposição aqui destas considerações, entende-se que o autor não cumpre essa obrigação porquanto não especifica devidamente os fundamentos de facto em que pode assentar os pedidos que formula.
Vejamos.
Resultando da leitura do pedido constante da alínea a) que o autor pretende que seja declarada a nulidade da “compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido”, verifica-se que o autor não descreve o dito contrato de compra e venda.
Neste sentido, o autor começa no artigo 3) da petição inicial a expor que os primeiros réus descarregaram materiais de construção no logradouro afecto à fracção autónoma D do prédio onde reside (sito em ..., Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial sob o nº .../.... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...), para dar um salto e enunciar no artigo 5) que a venda do logradouro careceria do consentimento de todos os condóminos e que por isso é nula.
Até este momento o autor não mencionou qualquer venda e, em bom rigor, não a descreve posteriormente, parecendo que caberá a quem lê a sua petição inicial deduzir que aquele logradouro é que terá sido vendido.
Acrescenta o autor, sem grande compreensão, que “presumivelmente teve lugar uma segunda inscrição na matriz e uma segunda descrição na Conservatória de Registo Predial – confrontem-se os documentos 3 e 4 da presente com os documentos 6 e 7 ora juntos, respectivamente certidão do prédio descrito sob o nº ... e caderneta predial rústica do prédio inscrito sob o artigo rústico ... da União das Freguesias ... e ...; (Doc. 6 e 7)”.
Não sendo o autor assertivo, tanto quanto é possível perceber, defende que terá sido vendido o logradouro afecto a uma das fracções (que não a sua) do prédio constituído em regime de propriedade horizontal onde reside, existindo uma duplicação de descrições prediais e de inscrições matriciais quando na realidade apenas existe um prédio.
Podendo estar em causa, de acordo com a parca narração, uma venda de coisa alheia, o autor em seguida, sem razão lógica que o justifique, formula um pedido de condenação do 3.º réu, o condomínio do prédio onde reside, no pagamento de 1.500€ pelos danos relacionados com a frustração, saturação e cansaço que lhe diminuem a qualidade de vida, sendo de tal forma omissa a descrição de factos que sustentem este pedido que na sua contestação este réu defende que, se for como o autor alega, não deveria estar a ser demandado, mas deveria demandar por ser lesado, o que, de facto, parece ter mais sentido.
Aqui chegados, ao não alegar com um mínimo de precisão os factos constitutivos da situação jurídica material que quer fazer valer em juízo o autor apresenta uma petição inicial sem causa de pedir, sendo por isso inepta, não sendo esta uma situação que possa ser remediada com um convite ao aperfeiçoamento.
A ineptidão da petição equivale a uma inexistência do objecto do processo e constitui uma nulidade insanável, conduzindo a que se abstenha de conhecer do pedido e se absolvam os réus da instância.
Conjuntamente com esta causa de pedir e pedido, o autor cumula segunda pretensão relacionada com a colocação pelo primeiro réu de umas câmaras de vigilância (em número que não sabe com rigor precisar) no seu prédio que permitem filmar o logradouro afecto à fracção D (que não é a do autor), o parque de estacionamento do condomínio, o portão de acesso ao logradouro, a zona de saída dos veículos do condomínio e a via pública, para daí afirmar que se tratam de captação de imagens ilícitas, que o 1.º réu tem controlado os horários, hábitos e rotinas do autor e da sua família e que os condóminos só têm privacidade quando se encontram no interior das habitações, com as janelas fechadas e as cortinas corridas, agindo assim o réu em violação gritante dos direitos de personalidade do autor.
Nesse seguimento, formula mais um pedido, que o 1º réu marido seja “condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence”.
Neste ponto, o pedido do autor insere-se na categoria de um processo especial relativo à tutela de personalidade, conforme prevê o artigo 878.º, do CPC, o qual dispõe que pode ser requerido o decretamento das providências concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física e moral de ser humano ou a atenuar, ou fazer cessar, os efeitos de ofensa já cometida.
Ora, tratando-se este último de um processo especial, com tramitação processual específica substancialmente diferente da prevista para a acção declarativa comum, que até este momento foi seguida, conforme resulta de forma clara dos artigos 879.º e 880.º, do CPC, os pedidos que o autor formula não são compatíveis entre si.
Neste sentido, existe uma incompatibilidade processual de pedidos, por lhes corresponderem formas de processo diferentes e incompatíveis, não sendo possível ao autor formulá-los conjuntamente (artigos 37.º, 2 e 555.º, 1, do CPC),
Em face do exposto, decide-se:
a) nos termos do disposto nos artigos 186.º, 2, a), 196.º, 200.º, 2, 278.º, 1, b) e 595.º, 1, a), todos do CPC, declarar que a petição inicial é inepta por falta de causa de pedir e, em consequência, absolvem-se os réus da instância quanto aos pedidos das alíneas a) a c).
b) nos termos dos artigos 37.º, 2 e 555.º, 1, do CPC, declarar que existe uma incompatibilidade processual de pedidos, por lhes corresponderem formas de processo diferentes e incompatíveis e, em consequência, absolvem-se os réus da instância quanto aos pedidos das alíneas d) a f).
As custas correm pelo autor. Notifique e registe.”

O autor, AA, veio interpor recurso, concluindo:
1 – O recorrente descreveu o contrato de compra e venda com os elementos de que dispunha, identificando o objecto nos artigos 2º, 7º e 8º da PI e identificando as partes no artigo 12º da PI;
2 – Os restantes elementos eram desconhecidos para o recorrente, tendo este requerido a junção do contrato no final da PI, nos termos do argo 429º do CPC, suprindo qualquer imprecisão ou insuficiência factual;
3 – Os artigos 2º e 7º a 9º da PI não deixam margem de erro quanto ao objecto do contrato;
4 – Além de apelar ao confronto do teor dos documentos juntos e referidos nos artigos
2º e 7º da PI, o recorrente é explicito no artigo 8º da PI onde se lê: “são a mesma realidade”;
5 – O teor dos documentos 3, 4, 6 e 7 da PI, nomeadamente quanto a áreas e posicionamento, permitiram deduzir a duplicação do prédio em causa, de forma a evitar os obstáculos indicados nos artigos 5º e 6º da PI – o que deve ser conjugado com a cronologia dos factos, conforme exposta nos artigos 10º a 12º da PI e documentos neles referidos;
6 – O recorrente não tinha, nem tem, em seu poder os documentos necessários para fazer prova da duplicação do prédio em causa, tendo, portanto, requerido a sua junção
no final da PI, ao abrigo do artigo 436º do CPC, suprindo qualquer imprecisão ou insuficiência fatual;
7 – Os factos que configuram a causa de pedir do pedido c) são os vertidos nos artigos 2º a 4º e 14º a 17º da PI;
8 – A PI não é inepta e todos os pedidos são consequência lógica da respectiva causa
de pedir, sendo estas configuradas pelos factos expostos na PI e teor dos documentos
que a acompanham, conforme explicado ao longo das alegações e sintetizado nas conclusões ora apresentadas;
9 – Qualquer insuficiência ou imprecisão factual seria suprida na sequência dos requerimentos apresentados no final da PI ao abrigo dos artigos 429º e 436º do CPC – os quais não foram atendidos implicando a violação dos artigos 6º, 7º e 436º do CPC;
10 – Quanto aos pedidos a), b) e c), a sentença recorrida aplica incorrectamente o artigo 186º nº2 a) do CPC que, por seu turno, importou a incorrecta aplicação dos artigos 196º, 200º nº2, 278º nº1 b) e 595º nº1 a), mais violando os artigos 6º, 7º e 436º, todos do CPC;
11 – Apenas se poderia aferir a inepdão da PI por falta de causa de pedir uma vez deferidos os requerimentos apresentados no final daquela ao abrigo dos artigos 429º e 436º do CPC – deferimento esse que deveria ter lugar atento o disposto nos artigos 6º, 7º e 436º do CPC;
12 – A sentença recorrida engloba e subssume os pedidos d) a f) nos artigos 878º e seguintes do CPC, contudo ao pedido d) corresponde a forma de processo comum;
13 – Termos em que a sentença recorrida viola os artigos 36º e 555º mais aplicando incorrectamente o artigo 37º, todos do CPC;
14 – Atenta a prejudicialidade, o pedido d) é cumulável com os restantes, à luz dos artigos 36º e 555º nº1 do CPC;
15 – Ainda que aos pedidos e) e f) corresponda forma de processo especial, estes devem ser cumulados com os restantes pelo interesse relevante decorrente da prejudicialidade dos pedidos;
16 – Acrescendo que, pela fase processual atingida, as maiores dificuldades conciliatórias da tramitação estão ultrapassadas;
17 – Pelo que a observância do disposto no artigo 6º do CPC imporia a cumulação ao abrigo do artigo 37º nº2 do CPC.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente sendo, em consequência, revogada a sentença recorrida e ordenado o prosseguimento da acção, com o que V/ Exªs praticarão um acto de acostumada JUSTIÇA!

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consistem em apurar se se verifica ou não a ineptidão da petição inicial; e se existe uma incompatibilidade processual de pedidos, por lhes corresponderem formas de processo diferentes e incompatíveis.

II - Ocorrências processuais relevantes
Para além das referidas no relatório supra, reproduz-se a petição inicial.

“AA, com o NIF ..., residente na Rua ..., ..., 1º frente direito, corpo direito, ... ... – V.N.Gaia, vem instaurar
ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO SOB A FORMA COMUM CONTRA
1 - BB, com o NIF ..., e esposa CC, com o NIF ..., ambos residentes na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia;
2 - C..., Lda., com o NIPC ... e sede na Rua ..., ..., ... V.N.Gaia; e
3 - Condomínio ..., sito na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia, representado por L..., Lda., com o NIPC ... e sede na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia, o que faz nos termos e seguintes fundamentos:
1º O A. é, desde 2010, proprietário e legítimo possuidor da fracção autónoma “AB” do prédio sito na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia, descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...; (Doc. 1 e 2)
2º Sucede que à fracção “D” do prédio supra id. está afecta a “utilização efectiva do logradouro instalado no lado esquerdo e nas traseiras do prédio com oito mil quatrocentos e sete metros quadrados de superfície”, sem prejuízo da natureza de zona comum, nos termos do artigo 1421º nº2 a) e nº 3 do Código Civil (CC), em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal e certidão da Conservatória de Registo Predial; (Doc. 3 e 4)
3º Em Setembro de 2016, os 1ºs RR. descarregaram materiais de construção no logradouro supra referido, usando-o abusivamente desde então;
4º O A. deu imediatamente conhecimento de tais factos ao condomínio (3º R.) – conforme documento ora junto – contando apenas com a sua inércia; (Doc. 5)
5º A venda do aludido logradouro, ou parte do mesmo, careceria do consentimento de todos os condóminos por importar uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 1419º nº1 e 2 do CC;
6º O A., condómino desde 2010, nunca consentiu qualquer alteração ao título constitutivo;
TODAVIA
7º Presumivelmente, teve lugar uma segunda inscrição na matriz e uma segunda descrição na Conservatória de Registo Predial – confrontem-se os documentos 3 e 4 da presente com os documentos 6 e 7 ora juntos, respectivamente certidão do prédio descrito sob o nº ... e caderneta predial rústica do prédio inscrito sob o artigo rústico ... da União das Freguesias ... e ...; (Doc. 6 e 7)
8º Note-se que a área do logradouro referido no artigo 2º da presente e do prédio descrito sob o nº ... e inscrito sob o artigo ... - que são a mesma realidade – é precisamente a mesma: 8407 metros quadrados;
9º Ora, in loco, a olho nu qualquer pessoa percebe que não existem no local 16814 metros quadrados (8407 metros quadrados x 2) – acrescendo que nos documentos 3 e 4 da presente pode lêr-se: “logradouro no lado esquerdo e nas traseiras do prédio” (sublinhado nosso);
10º Nas observações da caderneta predial rústica (doc. 7 da presente) pode lêr-se: “prédio inscrito na matriz conforme requerimento c/ entrada ... de 06.07.2012” (sublinhado nosso);
11º O prédio duplicado foi participado na Conservatória de Registo Predial em 12/11/2012 e registado a favor dos 1ºs RR. em 06/12/2012, conforme documento 6 da presente;
12ºTal registo teve origem em contrato de compra e venda – ferido de nulidade – celebrado entre o 1º R. marido e a 2ª R. em que foram, respectivamente, comprador e vendedora; (Doc. 8)
13º Fica exposta a prática sucessiva de actos dolosos, funcionalmente interligados, com vista à aquisição ilegítima por parte dos 1ºs RR.;
ASSIM
14º Renovando-se o teor dos artigos 5º e 6º da presente, conclui-se que o negócio em causa é nulo mais se constatando que, por omissão, o 3º R. devidamente representado violou o disposto no artigo 1436º f) do CC;
15º Sem prejuízo da legitimidade do A. na qualidade de condómino – já que em causa está uma zona comum – verifica-se que este é que está, de facto, a exercer a função prevista no artigo 1436º f) do CC – suportando os encargos e transtornos inerentes, atente-se no documento ora junto a título de exemplo; (Doc. 9)
16º É certo que os referidos encargos são, eventualmente, compensados em sede de custas de parte, contudo a frustração, saturação e cansaço do A. são danos não patrimoniais efectivos e merecedores da tutela do Direito, nos termos do artigo 496º nº1 do CC;
17º Danos esses que o A. avalia em quantia nunca inferior a 1.500,00€, considerando a qualidade de vida que tem vindo a perder, devendo ser indemnizado ao abrigo dos artigos 483º nº1, 486º, 562º e 563º do CC;
18º Aqui chegados, importa referir que no documento 9 da presente pode lêr-se: “esse entendimento foi transmitido, pelo ofício ... de 27.02.2015, à empresa administradora do condomínio do prédio, tendo esta respondido que a «C..., Lda», terá, entretanto, obtido o destaque da parcela em causa, estando essa área, presentemente, hipotecada à Banco 1....”;
19º Mais uma vez se renova o teor dos artigos 5º e 6º da presente, sem prejuízo de que: se tal informação se reportasse verdadeira, a operação de destaque teria reflexo nas certidões de registo predial juntas pelo A. – o que não tem observância;
ACRESCE QUE
20º No dia 30 de Julho de 2019, o 1º R. marido instalou na sua habitação duas câmaras de videovigilância com infra-vermelho – uma junto ao vértice do telhado e outra junto à chaminé, conforme deixam perceber os documentos ora juntos; (Doc. 10 e 11)
21º A câmara instalada junto à chaminé aponta directamente para o acesso ao parque de estacionamento do condomínio, ao passo que a câmara instalada junto ao vértice do telhado aponta para o logradouro referido no artigo 2º da presente – que é uma zona comum;
22º No dia 5 de Outubro de 2019, o 1º R. marido procedeu à instalação de mais uma câmara de videovigilância, que permitiu filmar o parque de estacionamento do condomínio, conforme documentos ora juntos; (Doc. 12 e 13)
23º No dia 21 de Outubro de 2019, o mesmo instalou outra câmara de videovigilância junto ao portão de acesso ao logradouro – zona comum do condomínio – conforme documentos ora juntos; (Doc. 14 e 15)
24º No dia 14 de Março de 2020, o 1º R. marido instalou mais uma câmara de videovigilância que permitiu filmar a zona de saída dos veículos no condomínio bem como a via pública (Rua ..., ... ... – V.N.Gaia), conforme documentos ora juntos; (Doc. 16 e 17)
25ºNão satisfeito, no dia 16 de Dezembro de 2020, instalou outra câmara de videovigilância, rotativa, junto ao seu portão, sensivelmente à altura dos postes de iluminação, permitindo-lhe filmar a via pública, a entrada do condomínio e o logradouro – consoante a posição da câmara – conforme documentos ora juntos; (Doc. 18 e 19)
26º Surpreendentemente, as câmaras supra elencadas não são as únicas existentes no local – várias são rotativas – contudo, a actividade do 1º R. marido, nomeadamente instalação e reposicionamento de câmaras, é de tal forma frequente e exaustiva que o A. até fica impossibilitado de concretizar as restantes;
27º Posto isto, desde Julho de 2019, por via das filmagens e captação de imagens ilícitas, o 1º R. marido tem vindo a controlar os horários, hábitos e rotinas do A. e respectiva família;
28º Antes de aquele filmar também a parte da frente do prédio, por sua conta e risco, o A. até chegou a estacionar o seu veículo no exterior de forma à sua imagem não ser ilicitamente captada/filmada nem ver a sua vida privada devassada;
29º Os condóminos só têm o mínimo de privacidade quando permanecem no interior das suas habitações – com janelas fechadas e cortinas corridas;
30º Quem desejar preservar a intimidade da vida privada é forçado a prescindir de luz natural!
31º O 1º R. marido viola reiteradamente e de forma gritante os direitos de personalidade do A., preceitos constitucionais (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa), os artigos 70º, 79º e 80º do CC, inclusivamente praticando, por exemplo, o crime previsto e punido pelo artigo 199º nº2 a) do Código Penal;
32º O 1º R. marido nem sequer é condómino e ainda que fosse não ficaria legitimada a sua conduta porquanto capta imagens de zonas comuns e de vias públicas que os condóminos têm necessariamente que utilizar para aceder às suas habitações – o que dificilmente alguém terá consentido, garantidamente o A. não consentiu, tendo aliás manifestado o seu desagrado;
33º Admitindo, por mera hipótese académica, que as câmaras não se encontrem efectivamente a filmar, sempre se dirá que os danos invocados são efectivos porquanto aquelas criam no A. a convicção de estar a ser filmado – como criariam em qualquer pessoa normal;
34º Pela sua gravidade e continuidade, os factos supra descritos têm provocado no A. um enorme desgaste, uma enorme angústia e saturação;
35º Vive perturbado e revoltado, as suas rotinas foram sofrendo alterações até ao ponto de nenhuma rotina salvaguardar os seus direitos;
36º O seu ambiente familiar degradou-se e a cada dia que passa o A. perde qualidade de vida;
37º Os danos supra invocados são graves e efectivos, merecendo a tutela do Direito, nos termos do artigo 496º nº1 do CC;
38º Devendo o A. ser indemnizado em quantia nunca inferior a 10.000,00€, ao abrigo dos artigos 483º nº1, 562º e 563º do CC;
39º Atente-se ainda no Acordão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 04/11/2019, no âmbito do proc. nº 24733/17.3T8PRT.P1:
“I - Para efeito de se estabelecer o limite da condenação, a que se refere o artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o valor do pedido global a considerar é aquele que, decorrendo da mesma causa de pedir, se apresenta como a soma do valor de várias parcelas, em que o mesmo se desdobra ou decompõe.
II - Os limites da condenação, ditados pelo princípio do dispositivo, reportam-se ao pedido global e não às parcelas em que, para determinação do quantum indemnizatório, há que desdobrar o cálculo do dano.
III - O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental de personalidade, caracteriza-se juridicamente como inato, inalienável, irrenunciável e absoluto, no sentido de que se impõe, por definição, ao respeito de todas as pessoas.
IV - A esta luz, a reserva juscivilística envolverá, designadamente, a proibição de introdução não autorizada em casa alheia, a proibição de observação às ocultas do domicílio de outrem e das pessoas que nele se encontrem, bem como a proibição de captação fotográfica ou por qualquer outro meio de imagens da residência de cada qual, e na área, privada, que a circunda (logradouro, jardim, parque, etc.).
V - Consequentemente, sempre que terceiro capte, sem o consentimento dos respectivos proprietários, imagens da sua residência através de um drone que a sobrevoou, passando essas imagens a fazer parte de um vídeo que divulgou nas redes sociais (sendo aí alvo de várias visualizações e partilhas), pratica aquele um facto ilícito (na primeira variante de ilicitude prevista no nº 1 do art. 483º do Código Civil), porque violador do mencionado direito absoluto.
VI - Os danos não patrimoniais consequentes a lesões a direitos de personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves, justificando a atribuição de uma compensação.”
Nestes termos e nos mais de Direito, deve a presente acção ser julgada provada e procedente sendo, em consequência:
a) Declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido;
b) Ordenado o cancelamento de todos registos relativos a tal prédio;
c) A 3ª R. condenada no pagamento de 1.500,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;
d) O 1º R. marido condenado no pagamento de 10.000,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;
e) O 1º R. marido condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence;
f) O 1º R. marido condenado no pagamento de quantia nunca inferior a 300,00€ por cada dia de atraso na referida remoção ou reposicionamento, bem como no pagamento de quantia nunca inferior a 2.000,00€ por cada nova infracção (instalação de câmara nos moldes descritos), ao abrigo do artigo 829º-A do CC;
g) Os RR. condenados nas custas e demais encargos com o processo.
Para tanto, D. e A., requer a citação dos RR. para, querendo, contestarem no prazo e sob a cominação legal.
Requer que V/ Exª se digne oficiar a Conservatória de Registo Predial para juntar aos autos informação e cópia dos documentos que serviram de base ao registo inicial do prédio .../2012/11/12.
Requer que V/ Exª se digne oficiar a Autoridade Tributária e Aduaneira para juntar aos autos cópia do requerimento ... de 06.07.2012, referido no documento 7 da presente, bem como dos documentos que o hajam instruído/acompanhado.
Mais requer que V/ exª se digne ordenar, por parte do 1º R. marido, a junção aos autos do título de aquisição do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ....
PROVA:
a) Requer a inspecção ao local, nos termos do artigo 490º e ss. do CPC, para: percepção do posicionamento do logradouro relativamente ao prédio; apreciação e percepção do vertido no artigo 9º da presente bem como verificação dos factos vertidos nos artigos 20º a 26º da presente;
b) Requer as declarações de parte do A. sobre a matéria dos artigos 3º, 4º, 6º, 15º a 17º, 20º a 30º e 32º a 36º da presente, nos termos do artigo 466º do CPC;
c) Requer o depoimento de parte do 1º R. marido sobre a matéria dos artigos 3º, 20º a 27º e 32º da presente, nos termos do artigo 452º do CPC;
d) Testemunhas a notificar:
- DD, residente na Rua ..., ..., 1º frente direito, corpo direito, ... ... – V.N.Gaia;
- EE, residente na ... ... – V.N.Gaia;
- FF, residente na Trav. ..., ..., ... ... – V.N.Gaia.
JUNTA: 19 documentos, procuração, DUC e comprovativo de liquidação.
VALOR: 14.728,32€ (catorze mil setecentos e vinte e oito euros e trinta e dois cêntimos).”

III – Do mérito do recurso
A propósito dos actos praticados por magistrados judiciais, mormente, a sentença é central a distinção entre o error in procedendo e o error in judicando.
O error in procedendo é um erro do juiz no andamento do processo. Trata-se de um erro ao proceder, erro de actividade que consiste na inobservância dos requisitos formais necessários para a prática do acto, donde se possa falar de vício formal, de defeitos de estrutura formal da decisão.
Por seu turno, o error in judicando respeita ao julgamento das questões de direito material. Ou se erra na interpretação da lei, ou na apreensão da realidade fáctica, ou ainda na subsunção dos factos ao plano abstracto da norma.
Como recai sobre o próprio conteúdo que compõe o litígio denomina-se de erro material ou substancial.
O error in procedendo determina a invalidade ou anulação do acto.
O error in judicando conduz à revogação da decisão e ao efeito substitutivo do tribunal de recurso.
Em qualquer dos casos, o que se pretende é que a decisão seja clara, justificada e congruente quer na sua estrutura formal, quer na análise do mérito.
A razão de ser desta distinção aplica-se também aos actos das partes, havendo uma similitude nos conceitos e desvalor definidores.
Quanto às peças das partes exige-se igualmente que sejam inteligíveis, concisas, e objectivas, tanto na sua formulação de procedimento como na sua aptidão de mérito. A propósito costuma citar-se Friedrich Hegel “Quem exagera o argumento, prejudica a causa.”
A petição inicial peça inaugural do processo merece, neste ponto, especial atenção pois marca o inicio do processo e pode comprometer logo todo o seu desenvolvimento.
É o acto declaratório e primordial do processo pelo qual alguém exerce seu direito de acção.
É imprescindível que seja marcada por uma estrutura sólida, por uma exposição clara lógica e cronológica dos factos. Que se assuma como um silogismo, em que os factos são considerados premissas e o pedido a conclusão lógica.
Com efeito, o objecto do processo é constituído por dois elementos sobre os quais as partes possuem completa disponibilidade: o pedido e a causa de pedir.
Pode definir-se a causa de pedir como sendo o acto ou facto jurídico de que deriva o direito que se invoca. (artigo. 581º, nº 4 do Cód. Proc. Civil). É a fatispécie normativa produtora do efeito pretendido pelo autor.
O pedido é a forma de tutela jurisdicional requerida para uma situação jurídica de direito material.
Nessa fatispécie relevam os factos principais (“essenciais”, na terminologia da lei) que, como condições de procedência da acção ou da excepção têm de ser alegados nos articulados, sem prejuízo de, não sendo observada esta exigência, poderem ser introduzidos no processo pelo mecanismo do artigo 5.º, nº 2 al. b) do CPC.
A doutrina não utiliza o conceito de facto essencial sempre no mesmo sentido. Facto essencial, ou principal, é, para alguns (v.g. Lebre de Feitas) todo o facto que, integrando a fatispécie normativa produtora do efeito pretendido (pelo autor, ao deduzir o pedido; pelo réu, ao deduzir uma excepção), é indispensável à produção desse efeito; mas, para outros (v.g. Teixeira de Sousa), é apenas, entre os factos integradores duma fatispécie, aquele que permite a sua individualização. – Cfr. José Lebre de Freitas, SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL in http://www.oa.pt/upl/%7Ba3edae75-10cb-46bc-a975-aa5effbc446d%7D.pdf.
Importa agora atentar no artigo 590º do CPC, o qual regula duas situações distintas:
- a contemplada no nº 1 em que a petição inicial submetida a despacho liminar – antes de ordenada a citação do réu – pode ser indeferida quando o pedido for manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis, das quais o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º, ou seja, podendo o autor apresentar nova petição;
- outra abarcada pelos restantes números do artigo em que, superada essa fase preliminar e a citação do réu, se entra numa outra fase correspondente a um despacho pré-saneador para suprimento de eventuais excepções dilatórias ou aperfeiçoamento dos articulados. - Cfr. Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, pág. 805.
Assim, não é de convidar à correcção da petição inicial nos termos deste artigo 590º, nºs 2, 3 e 4 do CPC, quando a petição seja inepta nos termos do artigo 186º do mesmo Código visto que só um articulado que não padeça dos vícios da ineptidão pode ser objecto de um convite a aperfeiçoamento. Um convite pressupõe que a parte o possa declinar sem obstáculo a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência da ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.
A ausência do aperfeiçoamento o que pode é dificultar o êxito da acção pelo que o objecto deste aperfeiçoamento são apenas as pequenas deficiências processuais ou as imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
O suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto não pode subverter o princípio do dispositivo, ou seja, as anomalias verificadas não podem ser de molde a prejudicar, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito. O que se pretende é tão só facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz.
E, nos termos dos artigos 5º, nº1 e 552º, nº1, al. d) do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as excepções.
Quer dizer, o princípio da cooperação tem de ser equacionado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes.
Não pode o Tribunal ex oficio tornar um articulado inepto num articulado apto mediante um convite ao aperfeiçoamento do mesmo; também não pode viabilizar uma pretensão manifestamente inviável, ou seja, não pode o tribunal convidar a alegar de outro modo ou a retirar factos para que uma acção inviável passe a poder proceder.
Dispõe o artigo 186º do CPC que:
1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo”.
A nulidade principal traduzida na ineptidão da petição inicial é uma insuficiência estrutural desta peça que implica que, por ausência absoluta ou ininteligibilidade de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir e do pedido, ou por contradição entre esta e o pedido, ou ainda por cumulação de pedidos ou causas de pedir incompatíveis, o processo careça de um objecto entendível.
A ineptidão da petição inicial é uma excepção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos réus da instância e tal excepção é de conhecimento oficioso do tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Alberto dos Reis, em Comentários ao Código de Processo Civil, 2º, págs. 364 e ss., explica que se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, se se serviu da linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretende obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Que podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou factos, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir. Que importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga.
Se se formula um pedido com fundamento em facto aduzido e inteligível mas que não pode ser subsumido no normativo invocado, o caso será de improcedência e não de ineptidão da petição.
O que interessa do ponto de vista da apreciação da causa de pedir é que o acto ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.
No caso, o autor diz ser proprietário e legítimo possuidor da fracção autónoma “AB” do prédio sito na Rua ..., ..., ... ... – V.N.Gaia. Que fracção “D” do prédio está afecta a “utilização efectiva do logradouro instalado no lado esquerdo e nas traseiras do prédio com oito mil quatrocentos e sete metros quadrados de superfície”, sendo zona comum, nos termos do artigo 1421º nº2 a) e nº 3 do Código Civil (CC), em conformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal e certidão da Conservatória de Registo Predial; (Doc. 3 e 4). Que em Setembro de 2016, os 1ºs RR. descarregaram materiais de construção no logradouro supra referido, usando-o abusivamente desde então, tendo dado imediatamente conhecimento de tais factos ao condomínio (3º R.) – conforme documento ora junto – contando apenas com a sua inércia. Que, presumivelmente, teve lugar uma segunda inscrição na matriz e uma segunda descrição na Conservatória de Registo Predial – confrontem-se os documentos 3 e 4 com os documentos 6 e 7 ora juntos, respectivamente certidão do prédio descrito sob o nº ... e caderneta predial rústica do prédio inscrito sob o artigo rústico ... da União das Freguesias ... e ... (Doc. 6 e 7). Que a área do logradouro referido no artigo 2º e do prédio descrito sob o nº ... e inscrito sob o artigo ... são a mesma realidade: 8407 metros quadrados. Que o prédio duplicado foi participado na Conservatória de Registo Predial em 12/11/2012 e registado a favor dos 1ºs RR. em 06/12/2012, conforme documento 6 e teve origem em contrato de compra e venda – ferido de nulidade – celebrado entre o 1º R. marido e a 2ª R. em que foram, respectivamente, comprador e vendedora; (Doc.8). Que a venda do aludido logradouro, ou parte do mesmo careceria do consentimento de todos os condóminos por importar uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 1419º nº1 e 2 do CC e o A., condómino desde 2010, nunca consentiu qualquer alteração ao título constitutivo. Que sem prejuízo da sua legitimidade, na qualidade de condómino – já que em causa está uma zona comum – verifica-se que está, de facto, a exercer a função prevista no artigo 1436º f) do CC – suportando os encargos e transtornos inerentes, atente-se no documento ora junto a título de exemplo, (Doc. 9). Que é certo que os referidos encargos são, eventualmente, compensados em sede de custas de parte, contudo a sua frustração, saturação e cansaço são danos não patrimoniais efectivos e merecedores da tutela do Direito, nos termos do artigo 496º nº1 do CC que avalia em quantia nunca inferior a 1.500,00€, considerando a qualidade de vida que tem vindo a perder, devendo ser indemnizado, ao abrigo dos artigos 483º nº1, 486º, 562º e 563º do CC.
Pede que seja:
Declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo ..., em que foi vendedora a 2ª R. e comprador o 1º R. marido;
Ordenado o cancelamento de todos registos relativos a tal prédio;
A 3ª R. condenada no pagamento de 1.500,00€ ao A, quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Desta formulação fáctica colhe-se, sem dificuldade, que o autor pretende defender a posse titulada da zona comum identificada e ser ressarcido pelos danos que o condomínio lhe causou por não ter assumido, em primeira linha, a preservação dessa zona comum, formulando pedidos compatíveis com tal factualidade.
Donde não se terem por verificadas as situações acima elencadas no nº 2 do artigo 186º do CPC que determinam o vício estrutural da ineptidão da petição inicial, a qual é, repete-se, perfeitamente inteligível quanto às causas de pedir e aos pedidos, havendo congruência entre aquelas e estes.
Mais alega o autor na petição inicial que no dia 30 de Julho de 2019, o 1º R. marido instalou na sua habitação duas câmaras de videovigilância com infra-vermelho – uma junto ao vértice do telhado e outra junto à chaminé, conforme deixam perceber os documentos ora juntos (Doc. 10 e 11). Que a câmara instalada junto à chaminé aponta directamente para o acesso ao parque de estacionamento do condomínio, ao passo que a câmara instalada junto ao vértice do telhado aponta para o logradouro referido no artigo 2º – que é uma zona comum. Que no dia 5 de Outubro de 2019, o 1º R. marido procedeu à instalação de mais uma câmara de videovigilância que permitiu filmar o parque de estacionamento do condomínio, conforme documentos ora juntos (Doc. 12 e 13). Que no dia 21 de Outubro de 2019, o mesmo instalou outra câmara de videovigilância junto ao portão de acesso ao logradouro – zona comum do condomínio – conforme documentos ora juntos; (Doc. 14 e 15). Que no dia 14 de Março de 2020, o 1º R. marido instalou mais uma câmara de videovigilância que permitiu filmar a zona de saída dos veículos no condomínio bem como a via pública (Rua ..., ... ... – V.N.Gaia), conforme documentos ora juntos (Doc. 16 e 17). Que no dia 16 de Dezembro de 2020, instalou outra câmara de videovigilância, rotativa, junto ao seu portão, sensivelmente à altura dos postes de iluminação, permitindo-lhe filmar a via pública, a entrada do condomínio e o logradouro – consoante a posição da câmara – conforme documentos ora juntos (Doc. 18 e 19). Que as câmaras supra elencadas não são as únicas existentes no local. Que desde Julho de 2019, por via das filmagens e captação de imagens ilícitas, o 1º R. marido tem vindo a controlar os horários, hábitos e rotinas do A. e respectiva família. Que o 1º R. marido viola reiteradamente e de forma gritante os direitos de personalidade do A., preceitos constitucionais (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa), os artigos 70º, 79º e 80º do CC, inclusivamente praticando, por exemplo, o crime previsto e punido pelo artigo 199º nº2 a) do Código Penal. Que, pela sua gravidade e continuidade, os factos supra descritos têm provocado no A. um enorme desgaste, uma enorme angústia e saturação Que os danos invocados são graves e efectivos, merecendo a tutela do Direito, nos termos do artigo 496º nº1 do CC, devendo o A. ser indemnizado em quantia nunca inferior a 10.000,00€, ao abrigo dos artigos 483º nº1, 562º e 563º do CC.
Pede que seja:
O 1º R. marido condenado no pagamento de 10.000,00€ ao A., quantia acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento;
O 1º R. marido condenado à remoção ou reposicionamento de todas as câmaras de videovigilância, de forma a filmar/captar imagens apenas do que lhe pertence;
O 1º R. marido condenado no pagamento de quantia nunca inferior a 300,00€ por cada dia de atraso na referida remoção ou reposicionamento, bem como no pagamento de quantia nunca inferior a 2.000,00€ por cada nova infracção (instalação de câmara nos moldes descritos), ao abrigo do artigo 829º-A do CC.
Entendeu-se no despacho recorrido que esta matéria se enquadra no processo especial relativo à tutela de personalidade, conforme prevê o artigo 878.º, do CPC, com tramitação processual específica substancialmente diferente da prevista para a acção declarativa comum, que até ao momento foi seguida, existindo uma incompatibilidade processual de pedidos e não sendo possível ao autor formulá-los conjuntamente.
Atentemos.
O processo judicial seve para o exercício da jurisdição, do que decorre a sua vocação instrumental.
Neste sentido considera-se que existe não só um direito de acção, mas também um direito a um processo adequado à tutela do direito material invocado.
Importa a aptidão dos instrumentos para a tutela efectiva do direito material, surgindo o princípio da adequação a determinar uma imposição sistemática de construção de modelos procedimentais competentes para tutelar plena e tempestivamente os direitos.
Esta demanda dirige-se prioritariamente ao legislador mas não deixa de vincular o juiz e as partes na busca concertada do procedimento que no caso concreto se revele o mais apto à solução da causa de modo justo e célere dentro da maleabilidade que a legalidade permite. Só desta forma o processo pode ser considerado verdadeiramente equitativo.
Nesta medida, emerge o princípio da adequação como conceito estruturante do devido processo legal.
O nosso ordenamento jurídico prevê desde a reforma do CPC de 1995 uma cláusula de adequação formal legal genérica.
No actual CPC essa estipulação está no artigo 547º: “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.” e circunscreve-se também na ideia do dever de gestão processual consagrada no artigo 6º do CPC.
Lopes do Rego em ”Os princípios orientadores da reforma do processo civil em curso”, Revista Julgar nº 16, pág. 1, explicita a “quebra do dogma da tipicidade e da legalidade das formas processuais que resulta de uma aplicação combinada dos princípios da gestão e da adequação processuais, referindo ser susceptível de determinar ganhos substanciais de eficácia e racionalidade, permitindo que – com respeito das garantias fundamentais das partes – se evitem os cursos de um inconveniente arrastamento na tramitação da causa, com a prática de actos inúteis, ou pelo menos pouco adequados ao fim do processo, decorrente de mecânica e tabelarmente se seguir rigidamente uma via procedimental só porque ela estava abstractamente prevista na lei, apesar de se revelar manifestamente inadequada e imprestável para a resolução de um particular, concreto e especifico litigio”.
No caso os pedidos referentes à anulação da venda e à indemnização por responsabilidade civil extra contratual correspondem à forma comum do processo e os restantes pedidos referentes à tutela da personalidade correspondem a uma forma de processo especial previsto nos artigos 878.º a 880º do CPC.
A adequação processual compagina-se com o disposto no artigo 37º respeitante à coligação de pedidos.
Nos termos deste preceito se aos pedidos corresponderem formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. (nº2)
O juiz deve adaptar o processado à cumulação autorizada. (nº 3)
Mas o tribunal, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, pode verificar que, não obstante os requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, caso em que determina, fundamentadamente, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, qual o pedido ou os pedidos que continuam a ser apreciados no processo, sob cominação de, não o fazendo, ser o réu absolvido da instância quanto a todos eles. (nº4).
O processo especial de tutela da personalidade apresenta-se como corolário da exigência constitucional de que a lei deve assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo que lhes seja possível obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou mesmo violações dos direitos, liberdades e garantias pessoais. - nº 5 do artigo 20.º da CRP.
No Processo Civil de 1961 encontrava-se nos artigos. 1474.º e 1475º e assumia a natureza processo de jurisdição voluntária.
O novo código procurou conferir-lhe maior celeridade e eficácia através uma simplificação procedimental e conotando-o de processo urgente.
Como decorre do artigo 879º corresponde a uma acção declarativa que não se afasta significativamente da forma comum.
As especificidades prendem-se com a celeridade que demanda a redução dos prazos:
- “Apresentado o requerimento com o oferecimento das provas, se não houver motivo para o seu indeferimento liminar, o tribunal designa imediatamente dia e hora para a audiência, a realizar num dos 20 dias subsequentes”- nº 1.
- “A contestação é apresentada na própria audiência, na qual, se tal se mostrar compatível com o objeto do litígio, o tribunal procura conciliar as partes”- nº 2.
- “Na falta de alguma das partes ou se a tentativa de conciliação se frustrar, o tribunal ordena a produção de prova e, de seguida, decide, por sentença, sucintamente fundamentada.” – nº 3
Poderia pensar-se que a celeridade deste processo ficaria comprometida com o andamento do processo comum em tudo o que não fosse possível abreviar.
Porém, parece-nos perfeitamente possível proceder a todas as diligências que se impuserem no processo comum sem postergar a urgência do processo especial na medida em que, nos termos do nº 5 do citado artigo 879º, pode em qualquer altura ser proferida uma decisão provisória, irrecorrível e sujeita a posterior alteração ou confirmação no próprio processo.
Desta enunciação resulta que nenhum obstáculo existe à cumulação dos pedidos já que não seguem uma tramitação manifestamente incompatível (antes pelo contrário), havendo interesse relevante para a justa composição do litígio e inexistindo inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente procedente a apelação revogando-se o despacho recorrido que considerou inepta a petição inicial e declarou existir uma incompatibilidade processual de pedidos por lhes corresponderem formas de processo diferentes e incompatíveis.
Sem custas.

Porto, 21 de Junho de 2022
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires
João Ramos Lopes

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)