Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1431/20.5T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: OMISSÃO DE CONTRADITÓRIO
NULIDADE
PRESCRIÇÃO
AMPLIAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL
Nº do Documento: RP202106221431/20.5T8PVZ.P1
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A realização da audiência prévia é – por via de regra – uma diligência processual obrigatória, designadamente sempre que o juiz tenha intenção de conhecer, em sede de saneador-sentença, de uma excepção peremptória.
II - Estando o tribunal recorrido convencido de que os Autores pretenderam, de forma voluntária, antecipar a sua tomada de posição quanto a uma previsível invocação de excepção de prescrição, teria sempre que ter consultado as partes, em conformidade com o disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CP Civil, garantindo-lhes o contraditório quanto ao acto gestão processual consistente na dispensa da audiência prévia.
III - A nulidade processual cometida por falta de contraditório fica consumida pela nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CP Civil.
IV – Estando os factos relevantes para apreciação desta excepção peremptória plenamente provados nos autos e tendo os Recorrentes, em sustentação supletiva no presente recurso, invocado os argumentos jurídicos que entenderam como pertinentes para revogação da decisão proferida, o Tribunal da Relação pode, por aplicação do disposto no art.º 665.º, n.º 1, do CP Civil, conhecer do mérito da decisão.
V - A prescrição extintiva é o instituto de ordem pública por via do qual os direitos subjectivos se tornam inexigíveis, transformando-se em meras obrigações naturais, quando não são exercidos durante o lapso de tempo fixado na lei (cf. art.º 298.º, n.º 1, e 304.º do C Civil). Em termos processuais, a prescrição traduz-se numa excepção peremptória de direito material, de tipo modificativo, por eliminação de um dos elementos do vínculo obrigacional: a exigibilidade da prestação.
VI - A ampliação do prazo prescricional prevista no art.º 498.º, n.º 3, do C Civil fica somente dependente da alegação e posterior prova dos factos que preencham em abstracto os elementos objectivos e subjectivos do crime que contenha o prazo de prescrição superior ao prazo geral do art.º 498.º, n.º 1, do C Civil.
VII - O arquivamento do Inquérito Crime não impede os Autores de virem a fazer prova de que o acidente ocorreu, não pela forma como foi descrito neste despacho de arquivamento, mas antes pela forma como o descrevem na Petição Inicial, aplicando-se, neste caso, o prazo de prescrição mais alargado do direito penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1431/20.5T8PVZ.P1
Comarca: [Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim (J5); Comarca do Porto]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Fernando Vilares Ferreira
*
SUMÁRIO
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

B… e C…, residentes na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Guimarães, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “D… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, sociedade com sede na Avenida …, n.º .., 4.º, Lisboa, pedindo que a Ré seja condenada a:
a) Pagar-lhes a quantia de € 75.000,00, a título de indemnização pelo dano “morte” do E…;
b) Pagar-lhes a quantia de € 25.000,00, a título de danos patrimoniais da própria vítima, causados pela dor e sofrimento que passou até à hora da sua morte;
c) Pagar a cada um a quantia de € 25.000,00, a título de danos morais próprios, no valor global de € 50.000,00, todas estas quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, calculados a partir da data da citação e até efectivo e integral pagamento.
Alegam – em síntese – que ocorreu um acidente de viação no dia 30/06/15, pelas 13h., na Avenida …, em Vila do Conde, o qual se traduziu no atropelamento mortal do peão E…, seu filho, pelo veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula n.º ..-BL-.., conduzido pela respectiva proprietária, F…, que havia transferido para a Ré a sua responsabilidade civil decorrente dos danos que o referido veículo causasse a terceiros.
Defendem que este acidente teve como causa principal e directa a velocidade excessiva e a falta de cuidado na condução pela condutora do veículo de matrícula n.º ..-BL-...
Dizem que o respectivo Processo de Inquérito-Crime n.º 1428/15.7T9VCD foi arquivado, por despacho de 07/12/16, que lhes foi notificado em 15/12/16.
Declaram que a presente acção é tempestiva, por, estando em causa um crime de homicídio por negligência, o prazo de prescrição dever contar-se desde a notificação do despacho de arquivamento do processo-crime.
Em sede de danos, alegam que, em consequência da violação dos deveres impostos pelas normas estradais, este seu filho menor veio a falecer, tendo padecido de sofrimento atroz e graves dores infligidas pelas várias manobras de reanimação e tendo eles próprios entrado em grande depressão e forte desequilíbrio social e psicológico por virtude de tal óbito.
A Ré veio contestar, excepcionando a prescrição do direito invocado, alegando que o acidente alegado ocorreu em 30/06/15 e que a sua citação foi efectuada em 23/11/20, ocasião em que o direito dos Autores já estava prescrito.
Aceita a ocorrência do invocado acidente e a validade do contrato se seguro indicado e contrapõe que tal acidente foi provocado pelo próprio menor, que correu para a via por onde circulava o veículo automóvel sem nada que o fizesse prever, motivado pela violação do dever de vigilância dos seus pais, aqui Autores.
Conclui pedindo a sua absolvição dos pedidos.
Acto contínuo, foi proferido despacho, que começou por justificar e decidir que “Mostrando-se finda a fase dos articulados e não se afigurando haver fundamento para prolação de despacho pré-saneador ao abrigo do artigo 590.º n.º 2 a 4 do Código de Processo Civil, importa chamar à colação o artigo 591.º n.º 1 que prevê a convocação de audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes (…). No entanto, decorre do artigo 593.º n.º 1 que nas acções que hajam de prosseguir, o Juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 da norma citada no anterior parágrafo e de acordo com o artigo 592.º n.º 1 alínea b), quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados. Nos presentes autos, afigura-se que não se justifica realização da audiência prévia porquanto: em face das posições assumidas nos articulados não se vislumbra que haja possibilidade de as partes alcançarem uma solução que ponha termo ao litígio; antecipando a invocação da prescrição, na petição inicial, os Autores apresentaram argumentos quanto ao início da contagem do prazo de exercício do direito; os termos do objecto do litígio encontra-se delimitados nos articulados; não se vislumbra necessidade de praticar actos de adequação formal; sem prejuízo da decisão a proferir relativamente à excepção de prescrição, atenta a simplicidade da causa, não se verifica necessidade de debate para selecção dos temas da prova, sendo que tão pouco a programação dos actos da audiência final assume especial complexidade, por poder ser levada a cabo de acordo com as regras da experiência. Pelo exposto e tendo em vista agilizar a tramitação, que seria retardada com o agendamento de audiência prévia, designadamente pela necessidade de conciliação de agendas e de adequação logística, dispensa-se a respectiva realização.”
No mesmo despacho proferiu-se despacho saneador e apreciou-se a invocada excepção de prescrição do direito de indemnização concluindo da seguinte forma: “Pelo exposto, na sequência da exposição que antecede, o Tribunal, julgando procedente e provada a excepção de prescrição, absolve a Ré D… – Companhia de Seguros, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores B… e mulher C…. Custas a cargo dos Autores.”
Inconformados com esta decisão, os Autores interpuseram o presente recurso, pedindo a revogação da sentença recorrida, com a sua substituição por acórdão que determine a sua notificação para exercerem o contraditório quanto à excepção peremptória invocada pela Ré ou que ordene a convocação da audiência prévia para nela se pronunciarem ou, supletivamente, que seja revogada a sentença recorrida, julgando-se improcedente a excepção de prescrição e ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos dos autos, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I. A sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos dos artigos 3.º, nºs 3 e 4, 195º, 591º, nº1, e 593º, nº 1, todos do C.P.C., por ter dispensado a convocação e realização da audiência prévia, uma vez que a mesma se destinaria não apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f) do nº 1 do art. 591º CPC, mas teria também como fim permitir o exercício do contraditório aos Autores, ora recorrentes, relativamente à excepção arguida na contestação;
II. Mesmo que o tribunal “a quo” entendesse dispensar a realização da audiência prévia, vedado lhe estava decidir uma excepção peremptória sem que aos Autores tivesse sido dada oportunidade de sobre a mesma se pronunciar;
III. Nos temos do nº 4 do artigo 3º do CPC às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
IV. Independentemente de os Autores terem aflorado na sua petição a questão da tempestividade da acção, aos mesmos deveria ter sido assegurado o contraditório relativamente à excepção de prescrição invocada pela Ré nos artigos 1º a 6º da contestação, em obediência ao princípio do contraditório a que alude o nº 3 do artigo 3º do C.P.C.;
V. Consubstancia uma nulidade a falta de audiência prévia seguida de decisão sobre uma excepção peremptória, quando o contraditório não foi assegurado por despacho proferido pelo juiz ao abrigo do dever de gestão processual e adequação formal – cfr. artigo 195º do C.P.C.;
VI. Só após ter sido dado cumprimento ao nº 3 do artigo 3º do C.P.C., tendo em vista a pronúncia pelos Autores quanto à excepção deduzida pela Ré, é que haveria a partir daí o efeito quer cominatório previsto no nº 2 do artigo 574º, ex-vide artigo 587º, nº 1, do C.P.C., quer preclusivo, impedindo que sobre ela a parte se possa pronunciar mais tarde;
VII. Tratando-se de matéria de excepção, só após a determinação do cumprimento do contraditório pelo juiz, é que determinaria a admissão por acordo dos novos factos que consubstanciariam e enformariam a excepção deduzida pela Ré;
VIII. Tal omissão do contraditório impediu que os Autores levantassem todas as questões de facto e de direito quanto à não verificação da ora julgada procedente excepção de prescrição, o que não sucedeu;
IX. A douta sentença recorrida julgou erradamente ao dar como provada a excepção de prescrição, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos;
X. A contagem do prazo de prescrição deve fazer-se desde a notificação do despacho de arquivamento ou do seu trânsito em julgado;
XI. Contrariamente ao decidido ma sentença recorrida, os Autores teriam 5 anos e não 3 para propor a presente acção, por aplicação do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, e não por aplicação do seu nº 1 (3 anos);
XII. Os Recorrentes tinham o direito de intentar a acção declarativa de condenação, o que fizeram em devido tempo, no prazo mais alargado de cinco anos previsto no art.º 118.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, a contar daquela data de trânsito em julgado do despacho de arquivamento do processo-crime (24.01.2017);
XIII. O direito dos recorrentes a uma eventual indemnização só é estabelecido com o despacho de arquivamento daqueles autos de processo-crime nº 1428/15.7T9VCD que pôs fim ao processo-crime, reiniciando-se desde o seu trânsito em julgado a contagem do prazo de prescrição de 5 anos para o exercício do referido direito;
XIV. O procedimento criminal pelo crime de homicídio por negligência não depende de queixa (art. 137º CP) e extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática tenham decorrido cinco anos - art. 118º, al. c), do C.P.;
XV. Os Recorrentes têm o direito de exercer o seu direito só no fim do processo penal, e, mesmo não assumindo responsabilidades (esperando, como é óbvio, pela sentença que tanto podia condenar como absolver), interrompendo o prazo de prescrição para o exercício desse direito;
XVI. A Jurisprudência tem afirmado a natureza facultativa que assiste ao lesado, ocorridas as condições previstas na lei (artigo 72.º do Código de Processo Penal), de se afastar da força centrípeta da acção penal, deduzindo pedido cível em separado;
XVII. Assistia aos Autores, que não quiseram recorrer de imediato à acção cível em separado, o direito de aguardar pelo desfecho do procedimento criminal, não se podendo considerar que o direito à indemnização tinha de ser exercido apenas porque se lhe abriu a faculdade de accionar civilmente em separado;
XVIII. A não ser assim, converter-se-ia uma faculdade num ónus, impondo-se, por via interpretativa, uma sanção que a lei não quis impor, não se vislumbrando na lei que o efeito interruptivo decorrente do procedimento criminal instaurado cesse logo que ocorra a possibilidade de ser demandado o responsável civil em separado;
XIX. É o corolário do princípio da adesão consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal;
XX. O aproveitamento do prazo de 5 anos nos termos do n.º 3 do artigo 498º do Código Civil não exige sequer a pendência de processo-crime e nem condenação, mas apenas que os factos em causa integrem determinado crime cujo prazo de prescrição seja superior;
XXI. Mal andou a sentença recorrida ao defender que com o despacho de arquivamento do processo-crime, ficou arredada a qualificação dos factos como ilícito penal, daí que se aplicaria, como sustenta a sentença recorrida, o prazo de 3 anos fixado pelo nº 1 do artigo 498º do C.C., contados a partir do trânsito em julgado de tal despacho de arquivamento, ocorrido em 24.01.2017;
XXII. Mesmo que tendo transitado em julgado o despacho de arquivamento do processo-crime, tal facto não impede que os Autores venham a fazer prova de que o acidente ocorreu não pela forma como foi descrito no despacho de arquivamento, transitado em julgado, mas antes pela forma como o descrevem na sua petição inicial, pois a presunção de não culpa, prevista no n.º 1 do artigo 624º do CPC, é ilidível por prova em contrário;
XXIII. Se, efectivamente, se vier a verificar que os factos descritos na petição inicial dos AA. quanto ao modo como ocorreu o acidente são susceptíveis de, em abstracto, constituir crime de homicídio por negligência, caso os Autores logrem ilidir a presunção de não culpa do artigo 624º, n.º 1, do CPC, e que o acidente ocorreu pela forma como o descrevem no seu articulado, o prazo prescricional que iniciou a sua contagem na sequência da interrupção ocorrida com o inicio do processo-crime é de cinco anos, e não de três anos;
XXIV. O lesado pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de três anos, previsto no art. 498.º, n.º 1, do CC, desde que alegue e prove, naquela acção, que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição seja superior;
XXV. A aplicação do alargamento do prazo prescricional, prevista no n.º 3 do art. 498.º do CC, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado ou amnistiado;
XXVI. O prazo durante o qual esteve pendente o processo-crime, não deve contar-se para o cômputo da prescrição, dado o princípio geral da adesão obrigatória da acção cível à acção penal;
XXVII. A douta sentença recorrida violou, entre outras, as disposições dos artigos 3º, nºs 3 e 4, 195º, 591, nº 1, 593º, nº 1, 624, nº 1, todos do C.P.C., do artigo 498º, nºs 1 e 3, do Código Civil, do artigo 118º, nº 1, al. c) do Código Penal, e dos artigos 71º e 72º do Código de Processo Penal.
A Ré veio apresentar contra-alegações pedindo que seja mantida, na íntegra, a decisão recorrida, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1. Não se verifica nulidade do despacho saneador/sentença.
2. Porquanto os Autores, na Petição Inicial, apresentaram argumentos quanto ao início da contagem do prazo do exercício do direito e pronunciaram-se quanto à prescrição.
3. Tendo, para além disso, sido notificados da Contestação apresentada pela Ré, pelo que, também aqui, tiveram oportunidade de se pronunciarem quanto à mesma.
4. Sem prescindir, igualmente deverá manter-se a decisão que julgou procedente e provada a excepção de prescrição do direito dos Autores.
5. De facto, os factos em causa nos presentes autos ocorreram em 30/06/2015.
6. A acção foi instaurada em 18/11/2020 e a Ré citada em 23/11/2020.
7. O processo-crime que versou sobre tais factos foi arquivado por despacho de 07/12/2016, o qual foi notificado aos Autores em 21/12/2016.
8. Uma vez que se considerou que os factos denunciados não integram a prática de qualquer ilícito penal.
9. Desta forma, iniciou-se o prazo de prescrição com o arquivamento de tais autos.
10. Sendo que o prazo de prescrição aplicável, atento tal arquivamento, será aquele que resulta do número 1 do artigo 498.º do Código Civil, ou seja, três anos.
11. Pelo que, uma vez na data da instauração da presente acção já haviam decorrido mais de três anos sobre a data do acidente em causa, sempre se deverá considerar que o direito dos Autores se encontra prescrito.
12. Como tal, deverá ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Proferiu-se despacho a admitir o recurso, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
• Nulidade da decisão recorrida por ter dispensado a convocação da audiência prévia;
• Verificação da excepção peremptória de prescrição do direito invocado pelos Autores.
*
III – NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR TER DISPENSADO A AUDIÊNCIA PRÉVIA

Os Recorrentes sustentam que a sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos dos artigos 3.º, nºs 3 e 4, 195º, 591º, nº 1, e 593º, nº 1, todos do CP Civil, por ter dispensado a convocação e realização da audiência prévia, uma vez que a mesma se destinaria não apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f) do nº 1 do art.º 591º do CP Civil, mas teria também como fim permitir o exercício do contraditório relativamente à excepção arguida na contestação.
Entendem que, mesmo que o tribunal “a quo” entendesse dispensar a realização da audiência prévia, lhe estava vedado decidir uma excepção peremptória sem que lhes tivesse sido dada oportunidade de sobre a mesma se pronunciar.
Defendem que, independentemente de terem aflorado na Petição a questão da tempestividade da acção, deveria ter-lhes sido assegurado o contraditório relativamente à excepção de prescrição invocada pela Ré nos artigos 1º a 6º da contestação, em obediência ao princípio do contraditório a que alude o nº 3 do artigo 3º do CP Civil.
Acrescentam que, só após ter sido dado cumprimento ao nº 3 do artigo 3º do CP Civil, tendo em vista sua a pronúncia quanto à excepção deduzida pela Ré, é que haveria a partir daí o efeito quer cominatório previsto no nº 2 do artigo 574º, ex vi artigo 587º, nº 1, do CP Civil, quer preclusivo, impedindo que sobre ela a parte se pudesse pronunciar mais tarde.
Bem como que tal omissão do contraditório os impediu de levantarem todas as questões de facto e de direito quanto à não verificação da ora julgada procedente excepção de prescrição.
A Recorrida veio contrapor, nas respectivas contra-alegações, que não se verifica a suscitada nulidade, porquanto os Autores, na Petição Inicial, apresentaram argumentos quanto ao início da contagem do prazo do exercício do direito e pronunciaram-se quanto à prescrição. Tendo, para além disso, sido notificados da Contestação apresentada pela Ré, pelo que, também aqui, tiveram oportunidade de se pronunciarem quanto à mesma.
Vejamos:
O princípio da contradição ou do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade.
Tem como corolário principal a obrigatoriedade de citação do Réu para contestar, consagrada no art.º 569.º, n.º 1, do CP Civil, sendo, depois, replicado ao longo de todo o processo civil, com as devidas adaptações.
Interpretando este princípio geral de forma actualista, refere Lebre de Freitas[2] que existe hoje uma noção ampla de contraditoriedade “com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Precisando este princípio geral à luz das atuais regras processuais do Código de Processo Civil, que vieram ampliar o âmbito do princípio do contraditório, Ferreira de Almeida[3] explica que "O princípio só em casos excepcionais pode ser (legalmente) postergado (cf. o n.º 2 do citado art.º 3.º), devendo ser observado e feito cumprir, não só em cada questão concretamente suscitada, como também em qualquer das diversas fases do processo, não devendo (e não podendo), por isso, o juiz decidir qualquer questão (de direito ou de facto), ainda que de conhecimento oficioso, sem que as partes hajam tido ensejo de sobre elas se pronunciarem (conf. n.º 3 do art.º 3.º)."
Ou seja, e sintetizando, diremos que o Juiz não pode decidir nenhuma "questão nova", de facto ou de direito, sem previamente dar a possibilidade às partes de sobre ela se pronunciarem.
Esta forma de agir tem vantagens quer para o Tribunal, quer para as partes: para o tribunal porque lhe faculta a possibilidade de decidir após ponderação dos elementos factuais e argumentos jurídicos trazidos pelas partes e para as partes por terem a possibilidade de esgrimir os seus argumentos de facto e de direito antes da prolação das decisões finais do tribunal[4].
A jurisprudência tem vindo paulatinamente a definir as situações típicas e as consequências da não observância deste princípio geral. Tem vindo, designadamente, a entender que a falta de cumprimento do contraditório não é relevante nos casos em que as partes, pelas vicissitudes processuais, já tenham tido possibilidade de se pronunciar sobre a questão concreta ou em que, pelos contornos da causa, a apreciação jurisdicional de certa questão é uma situação jurídico-processual típica[5]. Por contraponto, tem defendido, de forma reiterada, que o tribunal não pode proferir “decisões surpresa”[6], sem previamente dar cumprimento nos autos ao princípio do contraditório.
Exactamente no mesmo sentido, a doutrina defende a proibição das “decisões surpresa”, enquanto proibição de decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente trazido pelas partes ou que não fosse previsível a sua apreciação jurisdicional[7].
Deixando esta análise geral, temos que no caso em apreciação o tribunal recorrido decidiu dispensar a realização da audiência prévia, proferindo saneador-sentença em que julgou procedente excepção de prescrição suscitada na contestação.
Justificou que, em face das posições assumidas nos articulados, não se vislumbra que haja possibilidade de as partes alcançarem uma solução que ponha termo ao litígio; que, antecipando a invocação da prescrição, na Petição Inicial, os Autores apresentaram argumentos quanto ao início da contagem do prazo de exercício do direito; que os termos do objecto do litígio se encontram delimitados nos articulados e que não se vislumbra necessidade de praticar actos de adequação formal[8].
Nos termos prescritos no art.º 591.º do CP Civil, a realização da audiência prévia é – por via de regra – uma diligência processual obrigatório[9].
Esta norma tem o seu fundamento nos princípios da cooperação e do contraditório, tal como explica Paulo Pimenta[10]: “A audiência prévia contém virtualidades que a tornam um palco privilegiado onde, simultaneamente, actuam todos os intervenientes processuais, numa verdadeira comunidade de trabalho, sendo tal audiência um dos expoentes máximos da oralidade e da cooperação que caracterizam o processo civil moderno.”
A dispensa da audiência prévia apenas pode ocorrer nas situações tipificadas nos art.º 592.º ou 593.º do CP Civil, sendo que no caso em apreciação apenas poderia ocorrer se o processo houvesse de findar pela procedência de uma excepção dilatório ou se a acção tivesse de prosseguir e a audiência se destinasse apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do art.º 591.º do CP Civil.
Diversamente, uma vez que estávamos perante a apreciação, em sede de despacho saneador-sentença, de uma excepção peremptória, o tribunal recorrido estava obrigado a convocar audiência prévia destinada a “Facultar às partes a discussão de facto e de direito (…)” (cf. art.º 591.º, n.º 1, alínea b) do CP Civil).
Apenas poderia considerar-se viável a não realização da mesma caso, em cotejo da acima citada disposição legal do art.º 591.º do CP Civil com a do art.º 3.º, n.º 3 do CP Civil, em caso de “manifesta desnecessidade”.
Não é seguramente o caso dos presentes autos.
Os Autores invocaram a ocorrência de um acidente de viação causado por uma segurada na Ré e a ocorrência de consequentes danos quer no seu falecido filho, quer neles próprios.
A Ré, em sede de Contestação, veio excepcionar a prescrição do direito invocado, alegando que o acidente alegado ocorreu em 30/06/15 e que a sua citação foi efectuada em 23/11/20, ocasião em que o direito dos Autores já estava prescrito.
Tendo a Ré suscitado uma excepção peremptória[11], e não sendo admissível articulado de réplica (cf. art.º 584.º do CP Civil), a resposta a esta excepção teria que ser feita em sede de audiência prévia, nos termos decorrentes dos art.º 3.º, n.º 4, e 591.º do CP Civil[12].
Esta possibilidade de resposta não lhes podia ser coarctada, na medida em que a lei comina com efeito cominatório a falta de impugnação dos factos respectivos (cf. art.º 574.º, n.º 2, ex vi artigo 587º, nº 1, ambos do CP Civil).
É certo que os Autores, na Petição Inicial, alegaram – entre o mais – que a presente acção é tempestiva, por, estando em causa um crime de homicídio por negligência, o prazo de prescrição dever contar-se desde a notificação do despacho de arquivamento do processo-crime.
No entanto, esta alegação por antecipação não pode prejudicar ou substituir o exercício do contraditório quanto a esta defesa por excepção peremptória.
Obviamente que em sede de audiência prévia os Autores tinham o direito de – em sua defesa – acrescentar um conjunto de factos e/ou argumentos de direito.
Como eles próprios referem, a omissão do contraditório impediu-os de levantarem todas as questões de facto e de direito quanto à não verificação da ora julgada procedente excepção de prescrição.
Aliás, nas presentes alegações de recurso, os Autores vieram aprofundar bastante as razões que optaram por produzir logo na Petição Inicial.
Por inerência, não se pode considerar – como fez o tribunal recorrido – que os termos do objecto do litígio se encontram delimitados nos articulados, designadamente por os Autores terem antecipado a invocação da prescrição na Petição Inicial.
Estando o tribunal recorrido convencido de que os Autores pretenderam, de forma voluntária, antecipar a sua tomada de posição quanto a uma previsível invocação de excepção de prescrição, teria sempre que ter consultado as partes, em conformidade com o disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CP Civil, garantindo-lhes o contraditório quanto ao acto gestão processual consistente na dispensa da audiência prévia.
Como refere Delgado de Carvalho[13], ainda que se entenda que, ao abrigo do princípio da gestão processual, é facultado ao juiz a possibilidade de dispensar a audiência prévia, esta dispensa está sempre dependente do prévio prevenir das partes de “forma fundamentada, sobre a solução do litígio, o que implica a enunciação das questões a solucionar e a sua comunicação às partes”.
A violação do princípio do contraditório gera nulidade processual, sujeita ao regime geral do art.º 195.º do CP Civil. Ou seja, a violação do princípio do contraditório é geradora de nulidade processual quando seja passível de influir no exame e/ou na decisão de causa e/ou de incidente.
Como se sabe, em tese geral, as nulidades devem ser objecto de reclamação e não de recurso.
No entanto, e como já salientava Alberto dos Reis[14], “a reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos.”[15]
Recentemente, Teixeira de Sousa[16] explicou que, ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, esta “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.”
No mesmo sentido e versando precisamente sobre uma situação idêntica à dos presentes autos, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/16, tendo como Relator Abrantes Geraldes[17] que “Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do CPC.”
Conclui-se, portanto, que a nulidade processual cometida por falta de contraditório ficou consumida pela nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CP Civil.
Esta nulidade, por ter influído no exame e na decisão da causa (cf. art.º 195.º do CP Civil) deveria, em consequência directa, determinar a revogação da decisão recorrida, com a descida dos autos à 1.ª Instância para realização da omitida Audiência Prévia.
Verifica-se, contudo, que os factos relevantes para apreciação desta excepção peremptória estão plenamente provados nos autos. Bem como que os Recorrentes, em sustentação supletiva no presente recurso, invocaram os argumentos jurídicos que entenderam como pertinentes para revogação da decisão proferida.
Assim sendo, por aplicação do disposto no art.º 665.º, n.º 1, do CP Civil, nada obsta a que se conheça neste Acórdão do mérito da excepção de prescrição apreciada na decisão recorrida.
Tal como explica António Geraldes[18]: “(…) a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objecto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.
Procede, pois, este fundamento de recurso, ainda que se entenda poder conhecer-se, de seguida, do mérito da decisão de procedência da excepção de prescrição.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

São os seguintes os factos relevantes considerados assentes para apreciação da excepção de prescrição:
1) No dia 30 de Junho de 2015, pelas 13.00 horas, ocorreu um acidente de viação na Avenida …, junto ao número de polícia …, da freguesia e concelho de Vila do Conde, que consistiu no atropelamento do filho dos Autores, E…, pelo veículo automóvel com a matrícula n.º ..-BL-.., propriedade da então condutora F….
2) Em consequência deste atropelamento, este E…, com 03 anos de idade, sofreu lesões traumáticas, meningo-encefálicas, vertebro-meningo-medulares cervicais e tóraco-abdominais, que constituíram a causa da sua morte no Centro Hospitalar …, na …, no Porto, no mesmo dia 30 de Junho de 2015.
3) À data deste acidente, a proprietária do veículo de matrícula n.º ..-BL-.. mantinha transferido para a Ré a sua responsabilidade civil decorrente dos danos que o referido veículo causasse a terceiros, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……….
4) Foi levantado Auto de Participação de Acidente de Viação, elaborado pela Esquadra de Trânsito da Polícia de Segurança Pública de Vila do Conde, a qual deu origem ao Processo de Inquérito-Crime n.º 1428/15.7T9CVD.
5) Este Inquérito foi encerrado com despacho de arquivamento em 07 de Dezembro de 2016, transitado em 24 de Janeiro de 2017.
6) Os Autores foram notificados deste despacho de arquivamento no dia 21 de Dezembro de 2016.
7) A presente acção foi instaurada no dia 18 de Novembro de 2020 e a Ré foi citada no dia 23 de Novembro de 2020.
*
V – EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA DE PRESCRIÇÃO DO DIREITO INVOCADO PELOS AUTORES

O tribunal recorrido julgou procedente a invocada excepção de prescrição, com fundamento em que, tendo o Ministério Público arredado a qualificação dos factos como ilícito penal, o novo prazo de prescrição que começou a correr com o trânsito em julgado do despacho de arquivamento, a 24 de Janeiro de 2017, ficou reduzido a três anos, por aplicação do disposto no art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil[19].
Os Recorrentes entendem que este julgamento está errado, na medida em que tinham 05 anos (e não 03) para propor a presente acção, por aplicação do n.º 3 do art.º 498.º do C Civil, a contar daquela data de trânsito do despacho de arquivamento.
Sustentam que o aproveitamento do prazo de 5 anos nos termos do n.º 3 do artigo 498º do C Civil não exige sequer a pendência de processo-crime e nem condenação, mas apenas que os factos em causa integrem determinado crime cujo prazo de prescrição seja superior.
Advogam que, mesmo tendo transitado em julgado o despacho de arquivamento do processo-crime, tal facto não os impede de fazer prova de que o acidente ocorreu não pela forma como foi descrito no despacho de arquivamento, transitado em julgado, mas antes pela forma como o descrevem na sua petição inicial, pois a presunção de não culpa, prevista no n.º 1 do artigo 624º do CP Civil, é ilidível por prova em contrário.
Defendem que a aplicação do alargamento do prazo prescricional, prevista no n.º 3 do art. 498.º do C Civil, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado ou amnistiado.
A Recorrida, nas respectivas contra-alegações, veio pugnar pela manutenção da decisão recorrida, com base nos argumentos jurídicos nela explanados.
Cumpre decidir.
A prescrição extintiva é o instituto de ordem pública por via do qual os direitos subjectivos se tornam inexigíveis, transformando-se em meras obrigações naturais, quando não são exercidos durante o lapso de tempo fixado na lei (cf. art.º 298.º, n.º 1, e 304.º do C Civil).
Em termos processuais, traduz-se numa excepção peremptória de direito material, de tipo modificativo, por eliminação de um dos elementos do vínculo obrigacional: a exigibilidade da prestação[20].
Como já expunha Manuel de Andrade[21], o fundamento específico da prescrição “reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo”, negligência que “faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica”.
Tal como a decisão recorrida explica, no domínio da responsabilidade extracontratual o início do prazo prescricional coincide com o momento em que o lesado tenha conhecimento dos elementos de facto em que radica a sua pretensão indemnizatória, fundamentalmente a violação ilícita do direito e a produção de danos[22].
Cita-se, de forma exemplificativa, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2002, tendo como Relator Araújo de Barros[23], onde se refere “Quando se determina que tal prazo se conta do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, quer significar-se, apenas, que se conta a partir da data em que conhecendo, a verificação dos pressupostos, que condicionam a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu e não, da consciência, da possibilidade legal, do ressarcimento.”
Deve, portanto, entender-se que o prazo de prescrição se inicia quando o lesado tem conhecimento dos factos constitutivos do direito indemnizatório, independentemente do conhecimento do efectivo enquadramento jurídico da questão.
No caso em apreço, não está controvertido que os prazos de prescrição a atender são os constantes do art.º 498.ºdo C Civil.
O art.º 498.º, n.º 1, do C Civil fixa como prazo geral de prescrição da responsabilidade por factos ilícitos o de 03 anos.
Porém, de acordo com o n.º 3 do mesmo preceito legal, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, será este o prazo aplicável.
Nesta última situação, e estando pendente Processo-Crime, interrompe-se o prazo prescricional.
A interrupção tem como efeito a inutilização de todo o tempo decorrido anteriormente e o começo de novo prazo prescricional a partir do trânsito em julgado do despacho de arquivamento ou de acusação ou de pronúncia/não pronúncia (cf. art.º 326.º, n.º 1, do C Civil).
A questão a decidir prende-se com o prazo prescricional a aplicar ao caso vertente, na sequência do arquivamento do Inquérito.
Os Autores intentaram a presente acção alegando - em síntese – que ocorreu um acidente de viação no dia 30/06/15, pelas 13h., na Avenida …, em Vila do Conde, o qual se traduziu no atropelamento mortal do peão E…, seu filho, pelo veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula n.º ..-BL-.., conduzido pela respectiva proprietária, F…, que havia transferido para a Ré a sua responsabilidade civil decorrente dos danos que o referido veículo causasse a terceiros.
Defendem que este acidente teve como causa principal e directa a velocidade excessiva e a falta de cuidado na condução pela condutora do BL.
Isto é, os Autores apresentam uma situação fáctica subsumível, em abstracto, ao tipo legal de crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, com uma pena de prisão até 03 anos ou com pena de multa, e a que corresponde um prazo de prescrição do procedimento criminal de 05 anos (cf. art.º 118.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código).
É quanto basta para determinar a potencial aplicação da acima citada estatuição do art.º 498.º, n.º 3, do C Civil.
A teleologia da diferenciação dos dois referidos prazos de prescrição tem a ver com o princípio da unidade do sistema jurídico: sempre que o direito penal consagre um prazo mais longo do que o prazo geral do Código Civil, deve, por questões de igualdade, conceder-se igual prazo aos lesados civis, independentemente de terem apresentado Participação-crime ou queixa criminal ou de, tendo-o feito (ou não), o procedimento criminal ter sido extinto ou o arguido absolvido do crime respectivo.
Assim sendo, a ampliação do prazo prescricional prevista no art.º 498.º, n.º 3, do C Civil fica somente dependente da alegação e posterior prova dos factos que preencham em abstracto os elementos objectivos e subjectivos do crime que contenha o prazo de prescrição superior ao prazo geral do art.º 498.º, n.º 1, do C Civil.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/12, tendo como Relator Moreira Alves[24]: “Para o exercício do direito de indemnização, resultante de responsabilidade extracontratual, o lesado pode sempre intentar a acção cível para além do prazo normal de três anos, previsto no art.º 498.º, n.º 1, do CC, desde e alegue e prove, naquela acção que a conduta do lesante constitui, no caso concreto, determinado crime, cujo prazo de prescrição seja superior. A aplicação do alargamento do prazo prescricional, prevista no n.º 3 do art.º 498.º do CC, não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime ou da existência de condenação penal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado ou amnistiado.”[25]
A doutrina tem-se vindo a pronunciar no mesmo sentido, designadamente na sequência da opinião de Antunes Varela[26]: “Não é, pois, necessário que haja ou tenha havido acção crime na qual os factos determinantes da responsabilidade civil tenham de vir à barra do tribunal, ainda que observados sob prisma diferente, Basta que haja, em princípio, a possibilidade de instauração do processo criminal, ainda que, por qualquer circunstância (v.g. por falta de acusação particular ou de queixa ou por amnistia entretanto decretada, esse não seja ou não possa ser efectivamente decretada), esse não seja ou não possa ser efectivamente instaurado.
Por inerência, o arquivamento do Processo de Inquérito com o fundamento de que “(…) dada a imprevisibilidade da invasão da via pelo pequeno E… e de todas as condicionantes inerentes à sua idade e estatura, independentemente da velocidade a que a viatura arguida circulasse o acidente era inevitável. (…) Em boa verdade, dos elementos de prova coligidos para os autos, resulta pois que a vítima atravessou a estrada inadvertidamente e em local desadequado para o fazer.” não assume qualquer relevância na definição do prazo de prescrição nem determina a alteração do mesmo.
Tal como decorre do disposto no art.º 624.º do CP Civil, a decisão penal absolutória constitui, em qualquer acção de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
Não chegando a ocorrer acusação penal – como se verifica no caso dos autos – não vigora sequer esta presunção ilidível.
Assim sendo, independentemente deste arquivamento do Inquérito Crime, assiste inteira razão aos Recorrentes ao defenderem que tal facto não os impede de virem a fazer prova de que o acidente ocorreu não pela forma como foi descrito no despacho de arquivamento, mas antes pela forma como o descrevem na Petição Inicial.
Se, efectivamente, se vier a verificar que os factos descritos na Petição Inicial quanto ao modo como ocorreu o acidente são susceptíveis de, em abstracto, constituir crime de homicídio por negligência, o prazo prescricional que iniciou a sua contagem na sequência da interrupção é o prazo mais alargado no direito penal.
Assim sendo, e uma vez que na data da citação da Ré (23/11/20) ainda não tinha decorrido o prazo de 05 anos (por aplicação do disposto no art.º 498.º, n.º 3, do C Civil e do art.º 118.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) a contar da data de trânsito em julgado do despacho de arquivamento (24/01/17), a conclusão necessária é a de que ainda não se pode considerar prescrito o direito que os Autores pretendem fazer valer na presente acção, devendo ser concedida a estes a possibilidade de, em sede de instrução e julgamento da causa, provarem a verificação dos elementos fácticos constitutivo do tipo criminal de homicídio por negligência.
Somente em sede de decisão final é que julgador deverá, em face das provas produzidas, proceder à integração dos factos, para além das disposições legais civis, igualmente no tipo legal de crime respectivo, com vista a apurar da aplicação do prazo prescricional mais alargado, por aplicação do art.º 498.º, n.º 3, do C Civil.
Procede, pois, o presente recurso.
*
VI - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em declarar a decisão recorrida nula por excesso de pronúncia, mas, em obediência aos poderes que lhe são conferidos pelo art.º 665.º, n.º 1, do CP Civil, conhecer do objecto do recurso, revogando a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, relegando para a decisão final a apreciação da verificação da excepção de prescrição, integrando os factos, para além das disposições legais civis, igualmente no tipo legal de crime respectivo, com vista a apurar da aplicação do prazo prescricional mais alargado, por aplicação do art.º 498.º, n.º 3, do C Civil.
*
Custas do presente recurso a serem pagas pela parte vencida a final - art.º 527.º do CP Civil.
*
Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto, 22 de Junho de 2021
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
__________________
[1] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Introdução do Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 2013, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 124-125.
[3] In Direito Processual Civil, Volume I, 2010, Almedina, pág. 248.
[4] Veja-se, neste sentido, Fernando Pereira Rodrigues in Noções Fundamentais de Processo Civil, 2017, Almedina, pág. 37.
[5] Veja-se como exemplo deste tipo de situações designadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/03/2017, tendo como Relatora Fernanda Isabel Pereira, proferido no Processo n.º 6131/12.7TBMTS-A.P1.S1 e o Acórdão do mesmo Tribunal de 17/06/2014, tendo como Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no Processo n.º 233/2000.C2.S1, e o Acórdão desta Relação de 24/10/2016, tendo como Relator Miguel Baldaia Morais, proferido no Processo n.º 5699/15.0T8OAZ-A.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[6] Quanto à noção de “decisões surpresa” veja-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/09/2011, tendo como Relator Gabriel Catarino: “Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correta e atinada decisão do litígio.” (proferido no Processo n.º 2005/03.0TVLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão).
[7] Veja-se, neste sentido, Lebre de Freitas in ob. cit., pág. 133. Também Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil Volume I, 2004, 2ª Edição, Almedina, pág. 33.
[8] Assim, a questão em apreciação não diz respeito ao saneador-sentença propriamente dito, reportando-se mais precisamente a este despacho antecedente que determinou a dispensa de realização da audiência prévia. Contudo, os seus efeitos repercutiram-se na tramitação posterior do processo e, designadamente, na decisão final.
[9] Veja-se neste sentido designadamente o Acórdão da Relação de Évora de 10/05/18, tendo como Relator Mara Ribeiro (proferido no Processo n.º 2239/15.5T8ENT-A.E1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão).
[10] In Processo Civil Declarativo, 2.ª Edição, 2017, Almedina, pág. 256.
[11] Explica, a este propósito Miguel Mesquita (in Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Colecção Teses, Almedina, 2009, pág. 28) que “Ao contrário das excepções dilatórias, as excepções peremptórias assentam em factos relativos ao mérito da acção ou, se se quiser, numa factualidade regulada pelo direito substantivo, sendo, por esta razão, legítimo considera-las excepções materiais, de mérito ou substantivas.”
[12] Não assiste, portanto, razão à Recorrida, ao defender que os Recorrentes poderiam ter vindo responder à matéria de excepção na sequência da notificação da Contestação.
[13] In A dispensa da audiência prévia como medida de gestão processual: para lá dos receios do legislador”, disponível em https://blogippc.blogspot.pt na data do presente Acórdão.
[14] In Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 1984, Coimbra Editora, pág. 424.
[15] Veja-se, no mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 11/06/2015, tendo como Relator Correia Pinto, proferido no Processo n.º 440/07.4TVPRT-B.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[16] Em http://blogippc.blogspot.pt introduzido em 10/05/14.
[17] Proferido no Processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[18] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, pág. 322.
[19] Doravante apenas designado por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[20] Veja-se, neste sentido, Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2015, 2.ª Edição, pág. 207 e ss., Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12.ª Edição, 2016, pág. 1121 e ss., Luís Carvalho Fernandes in Teoria Geral do Direito Civil-II, 2010, 5.ª Edição, Universidade Católica Editora, pág. 693, Pedro Pais de Vasconcelos in Teoria Geral do Direito Civil, 2012, 7.ª Edição, Almedina, pág. 327, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão in Direito das Obrigações, Volume II, 2018, 12.ª Edição, Almedina, pág. 117, e Ana Filipa Morais Antunes in Prescrição e Caducidade, 2008, Coimbra Editora, pág. 16 e ss. Em sentido diverso, veja-se designadamente Rita Canas da Silva in Código Civil Anotado com coordenação de Ana Prata, 2017, pág. 378, onde se defende que “Nesta medida, a prescrição não constitui forma de extinção, nem de modificação de direitos – os direitos prescritos subsistem, sem alteração de natureza; com o decurso do prazo apenas se concede ao devedor um meio de defesa; ou, noutra perspectiva, o titular assiste ao enfraquecimento do seu direito, admitindo-se a recusa do cumprimento.”
[21] In Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1974, Almedina, pág. 445/446.
[22] A regra geral do art.º 306.º, n.º 1, do C Civil tem implícito um regime objectivo, mas em várias outras disposições legais especiais optou-se pela consagração de um regime subjectivo, designadamente no enriquecimento sem causa (cf. art.º 482.º do C Civil) e na responsabilidade civil (cf. art.º 498.º do C Civil).
[23] Proferido no Processo n.º 02B950 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[24] Proferido no Processo n.º 198/06.4TBFAL.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[25] Vejam-se, no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 16/06/20, tendo como Relatora Cristina Silva Maximiano (proferido no Processo n.º 1662/19.0T8PDL-L1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 28/06/18, tendo como Relator José Alberto Moreira Dias (proferido no Processo n.º 4077/17.1T8GMR.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão).
[26] In RLJ n.º 123, pág. 45.