Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1057/13.0TTMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PARTICIPAÇÃO
SINISTRADO
PODER-DEVER
CADUCIDADE
CONTAGEM DO PRAZO
Nº do Documento: RP201809241057/13.0TTMTS.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º282, FLS.177-184)
Área Temática: .
Sumário: I - Nos casos em que não é participado à seguradora o acidente de trabalho, impende sobre o sinistrado um poder/dever de participação do acidente ao Tribunal.
II - Nestes casos em que à seguradora não foi participado o acidente e em que, por isso, a mesma não conferiu ao sinistrado qualquer tipo de assistência médica, nem alta clínica, o termo inicial do prazo de caducidade deve fazer-se coincidir com o dia do próprio acidente de trabalho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1057/13.0TTMTS.P1
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B…, residente na Rua …, …, …, …, em Matosinhos, com patrocínio por mandatário judicial, litigando com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, após infrutífera tentativa de conciliação, veio intentar a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra C… – Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua …, .., Lisboa, e D…, S.A., com sede na Avenida …, .., …, Sintra.
Pede a condenação da ré seguradora: “a) a pagar ao Autor a quota parte da pensão anual e vitalícia, que se vier a liquidar depois do resultado do exame médico a realizar por junta médica; b) a pagar ao Autor a quantia de €28.278,22 pelas diferenças nas incapacidades temporárias de sua responsabilidade; c) a pagar ao Autor a quantia de €25,00 pelas deslocações ao Tribunal e ao I.M.L., tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos até integral pagamento;” a ré entidade patronal: “a) a pagar ao Autor a quota parte da pensão anual e vitalícia, que se vier a liquidar depois do resultado do exame médico a realizar por junta médica; b) a pagar ao Autor a quantia de €891,45 pelas diferenças nas incapacidades temporárias de sua responsabilidade, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos até integral pagamento.”
Alega para o efeito e resumidamente que: O Autor foi contratado pela 2ª Ré em 2 de Outubro de 2006, para exercer as funções de Soldador nas obras adjudicadas à Ré, auferia um salário anual de €17.527,50; No dia 5 de Maio de 2011, enquanto trabalhava sob as ordens e direcção da 2ª Ré, o Autor sofreu um acidente de trabalho, porquanto, durante o seu período de trabalho, ao manipular um tubo sentiu dor lombar que lhe prendeu a perna esquerda; Como estava a trabalhar na obra de …, por indicação do responsável da obra deslocou-se ao Centro de Saúde E..; Foi medicado naquela data e, como as dores se vinham a agravar de dia para dia, acaba por dar entrada nos Serviços de Urgência do Hospital F…; Durante o ano de 2012 foi o Autor acompanhado pelos serviços clínicos do Hospital F… e pelo médico de família; O Acidente foi participado à 2ª Ré, que nunca comunicou aquele acidente de trabalho à 1ª Ré; O Autor participou o Acidente de trabalho aos Serviços do Ministério Público a 13 de Dezembro de 2013; O Gabinete médico-legal do Porto determinou que o Autor se encontra com incapacidade de 8%; A 2ª Ré transferiu a responsabilidade pelos riscos emergentes de um acidente de trabalho para a 1ª Ré através da apólice nº ………….; A 2ª Ré apenas transferiu para a 1ª Ré a sua responsabilidade pelo risco de um acidente de trabalho pelo montante de €16.989,98; O Autor esteve com um período de Incapacidade temporária Absoluta entre 5-5- 2011 a 31-12-2015.
A ré D…, S.A., veio contestar, negando a existência de qualquer acidente de trabalho, motivo pelo qual não participou à seguradora, tendo transferido para esta a responsabilidade com base na totalidade do salário pago.
A ré C… S.P.A., contestou, invocando a caducidade do direito invocado pelo autor, alegando em resumo que o alegado acidente nunca lhe participado, pelo que o desconhece, nunca tendo prestado qualquer assistência ao autor, da lesão por ele invocada o autor teve alta do SNS, aonde obteve tratamento, em 13.05.2011 e sempre em data muito anterior a 12.12.2012.
O autor respondeu alegando que continuou a ser seguido, pelo Serviço Nacional de Saúde, até finais de 2015, tendo o gabinete médico legal estipulado como data da alta o dia 31 de Dezembro de 2015, e até hoje ainda não foi entregue ao sinistrado qualquer boletim de alta onde constem as suas lesões e qual o grau de incapacidade de que ficou a padecer.
Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu “declaro procedente a excepção de caducidade arguida pela ré e, em consequência, absolvo a mesma do pedido formulado nos autos.”
Fixou-se à acção o valor de €5.000,01.
Inconformado, interpôs o sinistrado, recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
a) A atribuição de alta clínica ao Sinistrado, pelo INML, em data posterior à da participação impede o decurso do prazo de caducidade, na medida em que, é o único elemento que permite, com algum grau de certeza, percepcionar em que momento terá ocorrido a cura do Sinistrado;
b) A lei impõe, no artigo 179º da Lei 98/2009, para o decurso do prazo de caducidade da acção, a verificação cumulativa de três requisitos: não ter sido proposta no prazo de um ano; A contar da data da alta clínica; Alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.
c) o prazo de um ano só inicia a sua contagem a partir da alta clínica ao Sinistrado e desde que se observe o último requisito – o da comunicação formal da alta clínica, que se assume aqui como elemento crucial para contagem do prazo de caducidade, porquanto no âmbito do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das doenças profissionais apenas a alta clinica formalmente comunicada ao Sinistrado despoleta o início da contagem do prazo de caducidade, a falta da alta clínica impede qualquer juízo valorativo sobre tal matéria
d) não está caduco o direito de acção do recorrente.
A ré seguradora alegou concluindo pela improcedência do recurso.
O Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da procedência do recurso, parecer a que as partes não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, nos termos do art. 657º, nº 2, do CPC, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 3 e 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A única questão colocada pela recorrente prende-se com a verificação ou não da caducidade do direito que se invoca.
II. Factos provados
Na sentença recorrida foi considerada como relevante para a decisão a seguinte factualidade:
1. O autor participou o acidente de trabalho em Juízo, dando impulso à presente acção, por requerimento apresentado a 13/12/2013, onde reconhece que o mesmo não havia sido participado à seguradora pela empregadora.
2. A fls. 35 veio a então empregadora do autor afirmar desconhecer a ocorrência de qualquer acidente do autor na data por este referida.
3. Notificada a seguradora, veio esta afirmar não ter recebido qualquer participação do acidente invocado nos autos pelo autor (cfr. fls. 39, 40 e 43).
4. No dia 13 de Maio de 2011 o autor foi assistido em episódio de urgência no Hospital F…, onde foi posteriormente seguido.
5. O Instituto Nacional de Medicina Legal fixou a data de consolidação médico-legal das lesões do autor a 31/12/2015.
III. O Direito
É o seguinte o teor do despacho sob recurso:
“De acordo com o disposto no art. 179º, nº 1, da Lei nº 98/2009, “o direito de acção respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.”
“No presente caso o autor não foi assistido pelos serviços médicos da seguradora, pelo que não existe alta clínica atribuída ou considerada por esta.
“A propósito deste prazo de caducidade de um ano, e ainda ao abrigo da Lei nº 100/97, ponderou Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, 3ª ed., Almedina, pg. 862) que “a existência de prazos de caducidade e de prescrição em sede de responsabilidade por acidentes de trabalho não é, em si, criticável e não corresponde a uma contradição com o disposto no artigo 34º da LAT. De facto, a nulidade das estipulações que impliquem o afastamento das regras da responsabilidade por acidentes de trabalho não é contrariada por se admitir que os direitos emergentes dessa responsabilidade se extingam pelo decurso dos prazos de caducidade ou de prescrição. No artigo 34º da LAT proíbe-se a renúncia antecipada de direitos, o que não é contraditório com o facto de, por motivo de segurança jurídica, se estabelecerem prazos de exercício de direitos, até porque nada obsta a que o trabalhador recuse a reparação que lhe é devida. A única crítica justificável é a que respeita ao estabelecimento de prazos tão curtos, inferiores aos que decorrem do Direito Civil.”
“No entanto, é este o prazo que vigora em nosso ordenamento jurídico.
“Numa situação como a dos autos, escreveu-se no acórdão da Relação do Porto de 23/5/2016 (processo 235/15.1T8OAZ.P1, in www.dgsi.pt): “Situações existem, contudo, em que por lhe não ter sido participado o acidente de trabalho, a entidade responsável não conferiu ao sinistrado qualquer tipo de assistência médica e em que, consequentemente, nunca ao sinistrado foi conferida a alta clínica representativa do momento em que se considera terem consolidado as lesões determinantes daquela assistência.
“Nesses casos, o termo inicial daquele prazo de caducidade não pode corresponder à data da alta clínica, sabido que essa alta só é atribuída em boletim que deve ser emitido quando terminar o tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar, quer por qualquer outro motivo, devendo colocar-se nesse boletim a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões (art. 32º/2 do DL 143/99, de 30/4 – RLAT/99).
“Nessas situações de ausência de tratamento médico por parte da entidade responsável decorrente do facto de lhe não ter sido participado o acidente, o termo inicial do prazo de caducidade deve fazer-se coincidir com o dia do próprio acidente de trabalho.
“Com efeito, o sinistrado ou beneficiários do direito devem de participar o acidente, nas 48 horas seguintes, à própria entidade empregadora ou à pessoa que o represente na direcção do trabalho “salvo se estas o presenciarem ou dele vierem a ter conhecimento no mesmo período” (art. 14º/1 do RLAT/99), equivalendo a participação ou o conhecimento do acidente à condição emergente para a empregadora, entre outros, do dever de participação obrigatória do acidente à entidade seguradora para quem tenha transferido a sua responsabilidade (art. 15º do RLAT/99) ou ao tribunal competente, no caso de ausência de transferência de responsabilidade (art. 16º do RLAT/99).
“Por sua vez, recebida pela seguradora a participação do acidente, incumbe-lhe o dever de proceder à sua participação ao tribunal nas condições estabelecidas no art. 18º do RLAT/99.
“A par dos casos de participação obrigatória a que acaba de aludir-se, existem os casos de participação facultativa previstos no art. 19º do RLAT/99, designadamente pelo sinistrado (alínea a).
“Ora, embora os sinistrados não estejam normalmente obrigados à participação do acidente de trabalho, não pode deixar de reconhecer-se que essa obrigação existe nos casos em que houve incumprimento do dever de participação por parte das pessoas e entidades sujeitas desse dever, sob pena de caducidade do respectivo direito de acção – João Monteiro, Fase Conciliatória do Processo para a Efectivação de Direitos Resultantes de Acidente de Trabalho – Enquadramento e Tramitação, p. 17 (...)
“No caso em apreço, alegadamente, a sinistrada comunicou o acidente à sua empregadora e esta omitiu a subsequente participação a que estava obrigada, razão pela qual jamais a empregadora ou a seguradora de acidentes de trabalho prestaram assistência médica à sinistrada.
“Apesar disso, a sinistrada não reagiu contra essa situação e não apresentou, até ao momento em que deduziu a que deu origem a estes autos, a participação facultativa que podia ter apresentado ao abrigo do art. 19º/a do RLAT/99, apesar de, como alega na participação de que emergiu este processo, ter carecido de assistência médica particular que procurou e cujos custos suportou e de ainda não se encontrar curada das lesões para si emergentes do aludido acidente.
“Por outro lado, face à ausência de qualquer assistência médica por parte da seguradora de acidentes de trabalho, considerando que nenhuma prestação infortunística devida por acidente de trabalho lhe estava a ser concedida e atendendo a que só a segurança social subsidiou e apenas parcialmente os períodos de incapacidade para o trabalho em que se encontrou, facilmente se poderia a sinistrada ter consciencializado de que algo de irregular se estaria a passar relativamente ao acidente que a vitimara, em função do que poderia ter interpelado a empregadora sobre as causas dessa situação irregular e assim ter- se apercebido da ausência de participação.
“Por isso, deveria a sinistrada ter apresentado a participação facultativa do acidente a que supra se aludiu, no ano subsequente à data em que o mesmo ocorreu.
“Não o tendo feito nesse prazo, caducou manifestamente o direito de acção emergente daquele acidente.
“É certo que terá sido omitida pela empregadora a participação desse acidente. Simplesmente, essa omissão não tem qualquer eficácia suspensiva ou interruptiva da prescrição.”
“O regime jurídico invocado nos autos mantém-se em tudo semelhante nos arts. 86º, 87º e 92º da Lei nº 98/2009 e a situação ali exposto é em tudo semelhante à destes autos.
“Em igual sentido se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa de 11/3/2015, processo 4765/12.9TTLSB.L1-4, in www.dgsi.pt.
“Assim, aderindo inteiramente aos fundamentos aduzidos no acórdão supra transcrito, sendo certo que nos autos não foi feita qualquer participação do acidente à seguradora, e que a comunicação ao tribunal ocorreu mais de dois anos após a ocorrência do acidente, por força do disposto no art. 179º, nº 1, da Lei nº 98/2009, declaro a caducidade do direito de acção da autora.”
O sinistrado sustenta que:
Antes do mais, cumpre referir que o Sinistrado foi sujeito a uma avaliação pelo INML, que considerou que a sua alta clinica ocorreu apenas a 31 de Dezembro de 2015, volvidos dois anos da participação do Recorrente.
Pelo que, só este argumento terá de fazer soçobrar a alegação do Tribunal “a quo”, na medida em que a participação do acidente ocorreu em momento anterior à alta clinica e, como tal, o Recorrente acautelou a caducidade do seu direito de acção.
Existem elementos no processo – relatório médico legal – que impunham ao Tribunal julgar improcedente a excepção de caducidade deduzida pelas Recorridas.
Assim já decidiu, sabiamente, o Tribunal da Relação de Coimbra: “Não se verifica a caducidade de quaisquer direitos do Sinistrado se a participação do acidente a juízo ocorreu antes da sua cura clínica.” [Ac. Rc. de 26.5.2004: CJ, 2004, 3º - 56]. Ora, o acidente foi participado em Dezembro de 2013 e o Gabinete de Medicina Legal considerou a data da alta do Sinistrado em 31 de Dezembro de 2015, inexistiu qualquer decurso do prazo de caducidade.
A isto acresce,
A Lei 98/2009 no seu artigo 179º, estabelece que o prazo de caducidade de um ano inicia-se a partir da alta clínica formalmente comunicada ao Sinistrado. O Recorrente, por inércia da sua entidade patronal, foi sempre acompanhado pelo Serviço Nacional de Saúde que nunca comunicou qualquer alta clínica ao Sinistrado.
E, como tal, não decorreu qualquer prazo de caducidade do direito de acção. A falta do boletim de alta corresponde à inexistência de tal documento, nos termos do nº 2 do artigo 175º da Lei 98/2009 e, portanto, não pode o Sinistrado ser prejudicado pela inércia da sua entidade patronal.
A participação do acidente de Trabalho é uma possibilidade para o Trabalhador, mas é um dever para a entidade patronal.
A decisão do Tribunal “a quo” desvirtuou a intenção do legislador na proteção do trabalhador, concedendo-lhe um ano, após a alta clínica, para participar o acidente.
A lei impõe, no artigo 179º da Lei 98/2009, para o decurso do prazo de caducidade da acção, a verificação cumulativa de três requisitos: a) Não ter sido proposta no prazo de um ano; b) A contar da data da alta clínica; c) Alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado. Isto é, o prazo de um ano só inicia a sua contagem a partir da alta clínica ao Sinistrado e desde que se observe o último requisito – o da comunicação formal da alta clínica, que se assume aqui como elemento crucial para contagem do prazo de caducidade, porquanto no âmbito do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das doenças profissionais apenas a alta clinica formalmente comunicada ao Sinistrado despoleta o início da contagem do prazo de caducidade [Ac. do STJ, Secção Social, de 03/10/2000, proc. 941/08.7TTGMR.P1.S1, publicado in dgsi], a falta da alta clínica impede qualquer juízo valorativo sobre tal matéria.
Não podia por isso o Tribunal “a quo” considerar que o direito de acção do Autor caducou.
E, como tal, imponha-se decidir no sentido de julgar improcedente a exepção deduzida.
E, como tal, não caducou o direito de acção do Recorrente, porquanto:
a) Pelo facto de o INML considerou a sua a alta clínica em Dezembro de 2015 e o Sinistrado ter participado o Acidente no ano de 2013;
b) A inexistência de comunicação formal da alta clínica.
A seguradora defende a decisão alegando “o sinistro terá ocorrido em 05.05.2011, o apelante recebeu tratamento hospitalar a 13.05.2011, data em que teve alta, aquele sinistro não foi participado à apelada ou a tribunal antes de 13.12.2013, que só nesta data é que o apelante o participou a juízo e que, como tal, o apelante nunca foi assistido clinicamente pela apelada. Em face destes factos o prazo de caducidade de um ano previsto no art. 179º/1 da Lei 98/09 começa a contar-se a partir da data do sinistro, no caso a de 05.05.2011, pelo que quando o apelante participou o sinistro a juízo, em 13.12.2013 ele já há muito que se mostrava esgotado e, como tal, o direito de acção do autor precludido e caduco, como tudo, e muito bem, o considerou a sentença recorrida, que aqui, para esse efeito, se dá por reproduzida, e mais resulta, p. ex., do decidido no acórdão da Relação do Porto de 23.05.2016 (pº 235/15.1T8OAZ.P1) e ainda no acórdão da Relação de Lisboa de 11.03.2015 (pº 4765/12.9TTLSB.L1-4), ambos in www.dgsi.pt.”
No entender da Sra. Procuradora Geral Adjunta a apelação deve proceder, porquanto: “concorda-se com o entendimento do Exmo Desembargador Eduardo Petersen Silva, no citado acórdão que proferiu a seguinte: “Declaração de voto: Vencido. Daria provimento ao recurso. Considero que a expressa previsão legal do início da contagem do prazo de caducidade, a partir do dia seguinte ao do acidente, não só exclui a aplicação da lei geral, como não autoriza a interpretação restritiva aos casos em que tenha sido emitido boletim de alta pela seguradora, por lhe ter sido devídamente participado o acidente pelo empregador. Com efeito, não só o intérprete não está autorizado a distínguir onde a lei não distingue, como tal interpretação viola, em última análise, o direito constitucionalmente garantido da justa reparação infortunística laboral, como além do mais introduz uma aplicação casuística da lei. Por outro lado, ao retirar da faculdade de participação do próprio sinistrado o argumento de que este deve presumir, na passagem do tempo, que o empregador não cumpriu o seu dever de participar obrigatoriamente, e através dessa presunção onerar o sinistrado com as consequências do omissão do comportamento devido do empregador – ou seja, com a preclusão do seu direito à reparação das consequências do acidente sofrido – viola o equilíbrio de interesses plasmado pelo legislador ordinário e constitucional, acarretando um ónus injusto e excessivo sobre o sinistrado, pois a solução adoptada nem sequer obedece ao princípio geral da contagem do prazo de caducidade – exercício do direito a partir do momento em que ele é possível – e pelo contrário, acaba a redundar na criação de uma outra norma: contagem do prazo de caducidade a partir da data do acidente. Ora, como a caducidade não se suspende nem interrompe, a norma assim criada não acautela a posição dos sinistrados que hajam, a partir do dia do acidente, sofrido períodos, mais ou menos longos, de incapacidade temporária absoluta, onerando-os, mesmo nessa condição de impossibilidade, com o dever de participarem eles mesmos o acidente, quando, voltamos a repetir, a participação prevista na lei é meramente facultativa.” O referido acórdão foi revogado pelo ac STJ de 22.2.2017 Proc. 2325/15.1T80AZ.P1.S1 (...)”. Concluindo: “o prazo de um ano só começa a contar a partir da alta clínica e desde que esta observe o último requisito assinalado – o da comunicação formal dessa alta clínica ao sinistrado. A alta clínica, com a referida formalidade, assume aqui o elemento fulcral para que a contagem do prazo de um ano se inicie.”
Como se pode verificar, quer do despacho recorrido, quer das alegações das partes, quer ainda do parecer da Ilustre Magistrada do Ministério Público, a questão não se apresenta pacífica na jurisprudência, sendo certo que se desconhece posição doutrinária expressa sobre a mesma.
Prescreve o art. 179º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro ( que “Regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais”), na parte que aqui interessa, que o “direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ...”.
A propósito considerou-se no supra referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2015, processo 4765/12.9TTLSB.L1-4 (relatado pelo aqui primeiro adjunto), acessível em www.dgsi.pt, “A data “da cura clínica” é a atribuída pela seguradora e a o “boletim de alta”, é o documento que os serviços médicos da seguradora devem entregar aos sinistrados “Quando terminar o tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar, quer por qualquer outro motivo (..)”, nele declarando o médico assistente “a causa da cessação do tratamento ou o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem com as razões justificativas das suas conclusões”. Portanto, como parece claro, para que se configure uma situação em que seja relevante a data da alta clínica e a entrega do boletim de alta – para se saber quando se inicia a contagem do prazo de caducidade – é necessário que o sinistro tenha sido levado ao conhecimento da seguradora e que tenha havido acompanhamento do sinistrado por parte dos serviços médicos daquela. As situações típicas, em que o sinistrado se vê compelido a participar o sinistro em juízo, sob pena de ver caducado o direito de acção que pretenda exercer, prendem-se com situações em que não é obrigatória a participação do sinistro a juízo pela seguradora e o sinistrado não se conforma com o resultado da alta atribuída pelos serviços clínicos daquela, como acontece, frequentemente, nas situações em que são considerados curado «sem desvalorização».”
Concluindo que: “se porventura ocorreu o acidente de trabalho e desse facto foi feita comunicação à entidade empregadora ou esta dele teve conhecimento, como alegado na acção e aqui reafirmado, constatando a sinistrada que não era encaminhada para a seguradora e ocorrendo o quadro que descreveu e já referimos, deveria então ter participado o sinistro ao tribunal competente antes de decorrido um ano sobre a data do acidente. Como não o fez (...), manifestamente caducou o direito de acção por decurso do prazo de um ano.” Este o sentido seguido no citado acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 2016, processo 2325/15.1T8OAZ.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, citado na decisão sob recurso, na parte mais relevante.
Em sentido contrário, pronunciou-se Eduardo Petersen Silva em voto de vencido a este último acórdão, nos termos citados no parecer do Ministério Público, e argumenta-se no acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 2017, processo 2325/15.1T8OAZ.P1.S1, que revogou o mesmo acórdão, acessível em jurisprudencia.csm.org.pt:
“(...) a caducidade do direito de acção ocorre se a acção não for intentada observando a triplicidade cumulativa que se enuncia:
- não ter sido proposta no prazo de um ano;
- a contar da data da alta clínica;
- alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.
“Ou seja: o prazo de um ano só começa a contar a partir da alta clínica e desde que esta observe o último requisito assinalado – o da comunicação formal dessa alta clínica ao sinistrado.
“A alta clínica, com a referida formalidade, assume aqui o elemento fulcral para que a contagem do prazo de um ano se inicie.
“Esclarecendo o alcance desta exigência legal e o conceito de “alta clínica”, refere Carlos Alegre na anotação ao art. 32º da LAT/97: O conceito de alta clínica deve ser entendido como “alta clínica devidamente notificada às partes interessadas (especialmente ao sinistrado) através da entrega de duplicado do boletim de alta. Somente a partir de então fica o sinistrado habilitado a exercer os seus direitos se não concordar, quer com a situação de cura clínica, quer com o grau de incapacidade que lhe tenha sido atribuído.
“Neste sentido, o acto impeditivo da caducidade é a participação do acidente ao Tribunal de Trabalho competente (…). A referida participação a Tribunal implica o exercício oficioso do direito de acção, pondo cobro à contagem do prazo de caducidade que se vem fazendo desde a notificação da cura clínica”.
“Da análise da referida norma ressalta, em nosso entender, que no âmbito do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais apenas a alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado despoleta o início da contagem do prazo de caducidade estipulado no nº 1, do seu art. 32º (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro).”
Este entendimento tem sido acolhido pela Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, desta Secção Social, em diversos Acórdãos, onde se pode ler que a caducidade do direito à acção de acidente de trabalho – e o respectivo prazo de um ano aí previsto – conta-se a partir da data da morte ou da cura/alta clínica, iniciando-se o prazo, neste caso, com a entrega do boletim da alta ao sinistrado. (...)
Trata-se de Jurisprudência que, como se sabe, tem como pressuposto a existência de tratamento médico ministrado ao sinistrado e, por consequência, radica na suposição normal de que o alegado acidente de trabalho foi participado à respectiva seguradora e que esta, por sua vez, cumpriu os seus deveres contratuais de acordo com os termos estabelecidos na apólice do contrato de seguro celebrado com a entidade empregadora (que transferiu para aquela a sua responsabilidade), bem como os seus deveres legais em conformidade com a regulamentação dos acidentes de trabalho.
E, em tais circunstâncias, a Jurisprudência abundantemente firmada, deste Supremo e Secção, é clara no sentido de que não se verifica a caducidade do direito de acção se tal alta clínica não ocorreu ou se, tendo ocorrido, não foi formalmente comunicada ao sinistrado, mediante a entrega a este do duplicado do boletim de alta.
Porém, naquelas situações em que tal participação apenas tenha sido despoletada pelo sinistrado, ao abrigo da faculdade instituída pelo art. 19º, do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, já não encontramos arestos do Supremo Tribunal de Justiça que, em igual número, versem sobre esta matéria. (...)
E como consequência dessa falta estabeleceu que o sinistrado fica impedido de poder, depois, reclamar a atribuição do direito às prestações previstas na lei, relativamente às incapacidades judicialmente reconhecidas como consequência daquela falta e na medida em que dela tenham resultado.
Sendo embora certo que o sinistrado, pela falta de participação do acidente ao empregador não perde o direito a todas as prestações estabelecidas na lei.
Consequência que não pode deixar de se salientar e que é reveladora da específica natureza jurídica do processo especial emergente de acidente de trabalho, constituído por direitos indisponíveis e dominado por normas de interesse e ordem pública.
Concluindo-se: “a inexistência desse facto – da “alta clínica” – que a lei expressamente exige no nº 1, do citado art. 32º, da LAT/97 [com a mesma redacção do art. 179º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro], para a contabilização e início do prazo de um ano e a consequente caducidade do direito de acção, impede que o decurso do prazo opere. (...) Esse momento – o da alta clínica – porque não fixado, impede a produção de tais efeitos. E a falta desse pressuposto inviabiliza a contagem de qualquer prazo.”
Os fundamentos em ambos os arrestos são semelhantes, apenas se divergindo nas conclusões que deles se retiram. Assim, enquanto no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Março de 2015 se decidiu que não existindo “alta clinica”, por falta de participação do acidente à seguradora o prazo de caducidade começa a correr na data do acidente, por nesse momento o sinistrado passar a ter conhecimento do direito à reparação que lhe assiste, no acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 2017, conclui-se que nestes casos não existe caducidade, uma vez que a “alta clínica”, inerente à participação do sinistro à seguradora é requisito essencial da mesma.
Com todo o respeito pela doutrina expressa no acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 2017, continuamos a perfilhar o entendimento já expresso por esta Secção Social.
Refere-se no acórdão do STJ nº 4/2015, de 25 de Fevereiro de 2015, publicado no Diário da República, I Série, de 24 de Março de 2015:
“(...) resulta do art. 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
“Refere BAPTISTA MACHADO [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss],a propósito da posição do nosso Código Civil perante o problema da interpretação:
“I - O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador”, nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...]
“II - Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”. Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve – como não podia deixar de ser – procurar este a partir daquela.
“A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.
“III - Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9º, 3, o intérprete presumirá que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
“IV - Desde logo, o mesmo nº 3 destaca outra presunção: “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.
“Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais correctas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correcta. Este modelo reveste-se claramente de características objectivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorrecto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstracto: sábio, previdente, racional e justo. Só que não convém exagerar a tónica objectivista, pois já vimos ser ponto assente que a nossa lei não tomou partido entre as duas correntes (a subjectivista e a objectivista).
“Pode, porém, acontecer que a interpretação mais natural e directamente condizente com a fórmula verbal não corresponda à solução mais acertada. Nesta hipótese, as duas presunções entrarão em conflito. Por qual das interpretações optar?
“Manuel de ANDRADE propõe para esta hipótese a procura de um certo ponto de equilíbrio, nos seguintes termos: “Dentre os dois sentidos, cada um deles o mais razoável sob um dos aspectos considerados, deve preferir-se aquele que menos se distanciar da razoabilidade sob o outro aspecto”. É esta uma directriz equilibrada, sem dúvida; mas é óbvio que apenas será de observar se o “impasse” se mantiver depois de exauridos os outros elementos de interpretação mencionados pelo art. 9º e que ainda falta referir.
“V - O nº 1 do art. 9º refere mais três desses elementos de interpretação: a “unidade do sistema jurídico”, “as circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada”.
“Tomemos em primeiro lugar estes dois últimos elementos. Entre eles não existe qualquer hierarquia ou melhor, como diz A. VARELA, “nenhum significado especial possui a ordem por que são indicados esses dois factores”.
“O primeiro destes factores, “as circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os factores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa. Por vezes o conhecimento destes factores é mesmo indispensável para se poder atinar com o sentido e alcance da norma - sobretudo quando esta é já antiga e foi fortemente condicionada por factores de conjuntura.
“O segundo dos dois elementos, as circunstâncias vigentes ao tempo em que a lei é aplicada, tem decididamente uma conotação actualista e, talvez deva afirmar-se, a referência que o art. 9º lhe faz significa que o legislador aderiu ao actualismo. Com efeito, este não é de forma alguma incompatível com a utilização de elementos históricos como meios auxiliares da interpretação da lei. A posição historicista, essa é que seria incongraçável com a consideração das circunstâncias do tempo de aplicação da lei para efeitos de determinar o sentido decisivo com que esta deve valer.
“Não tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico", de que falaremos a seguir.
“Cumpre ainda anotar que, quanto mais uma lei esteja marcada, no seu conteúdo, pelo circunstancialismo da conjuntura em que foi elaborada, tanto maior poderá ser a necessidade da sua adaptação às circunstâncias, porventura muito alteradas, do tempo em que é aplicada. O que bem mostra que a consideração, para efeitos interpretativos, da occasio legis (circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada) tem em vista uma finalidade bem diversa da consideração, para os mesmos efeitos, das condições específicas do tempo em que é aplicada. Acolá trata-se muito especialmente de conferir à letra (ao texto) um sentido possível (quando o texto de per si seja totalmente equívoco) ou de identificar o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei; aqui trata-se, por um lado, de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor e, por outro lado, de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra.
“VI - Com isto abeiramo-nos de um último factor ou ponto de referência da interpretação: “a unidade do sistema jurídico”. Dos três factores interpretativos a que se refere o nº l do art. 9º, este é sem dúvida o mais importante. A sua consideração como factor decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica.
“Como diz LARENZ, “a lei vale na verdade para todas as épocas, mas em cada época da maneira como esta a compreende e desimplica, segundo a sua própria consciência jurídica". A isto há que acrescentar que, se o legislador actual insuflou de espírito novo o ordenamento jurídico ou o regime de uma dada matéria, se altera o termo de referência para a compreensão da fórmula verbal de uma norma antiga que se mantenha em vigor.
“[...] A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha. Mas uma incompletude relativamente a quê? Uma incompletude relativamente a algo que protende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma "incompletude contrária a um plano” [...].
Tratando-se de uma lacuna jurídica, dir-se-á, pois, que ela consiste numa incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global. Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica”.
“PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, Volume I (arts. 1º a 761º), 4ª edição revista e actualizada, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 58] anotam que “[...] o preceito não deixa de expressamente considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada (nota vincadamente actualista).
“O facto de o artigo afirmar que a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei (mens legis).
“Resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
“Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios, de carácter objectivo, como são os que constam do nº 3.”
Daqui se pode concluir que nada obsta à interpretação extensiva da norma do art. 179º, nº 1, da Lei 98/2009.
Conforme se acrescenta no acórdão do STJ nº 16/2014, de 20 de Novembro de 2014, publicado no Diário da República, I Série, de 6 de Janeiro de 2015: “só é legítima a utilização do argumento a contrario se assentar numa norma averiguadamente excepcional, sendo que norma excepcional é aquela que estabelece para determinado caso ou categoria de casos uma regulamentação que representa desvio ao regime geral. A norma consagra uma excepção para certos casos: então é legítimo concluir que para os outros vale a regra oposta, de que ela constitui precisamente um desvio. No mesmo sentido, de forma muito expressiva, se pronunciou Cabral Moncada [Lições de Direito Civil - Parte Geral (1954), I, 179], ao referir: «Este argumento é, na verdade, - notemos - duma aplicação muito delicada e limitada. De facto, em primeiro lugar, ele só pode aplicar-se às disposições e leis de carácter nitidamente excepcional, as únicas insusceptíveis de interpretação analógica - coisa que nunca deve esquecer-se. Só da excepção pode inferir-se a regra geral; não da regra geral a excepção. O argumento consiste, pois, em extrair duma norma ou disposição expressa, mas de índole excepcional, uma norma ou disposição contrária relativamente a casos não previstos nem na sua letra nem no seu espírito. Mas ainda isto não é tudo. Em segundo lugar, não basta também que se trate de normas ou disposições excepcionais num sentido vulgar, porque estas podem ainda ser, como já vimos, interpretadas extensivamente; é preciso, além do mais, que se trate duma disposição insusceptível tanto de extensão analógica como de interpretação extensiva, ao caso que se quer regular. Isto mostra-nos a delicadeza do argumento. Com efeito, só então poderá o intérprete estar seguro, ao formular a regra geral oposta, de que a está a formular para casos que não foram previstos nem na letra nem no espírito da disposição interpretada. Se a disposição pudesse ser interpretada extensivamente ou estendida por analogia a esses casos, o intérprete nunca poderia estar seguro de não atraiçoar a vontade e a intenção da lei, ao pretender estabelecer aquilo que julga ficar de fora dela, mas que poderá muito bem não estar.”
Conforme entendimento expresso nos acórdãos referidos a Lei foi redigida no pressuposto da tramitação normal do “processo”, com participação à seguradora do acidente, não se tendo previsto as situações anómalas, como a dos autos, mas isso não significa que o mesmo regime não se deva aplicar a estas.
Na nossa leitura resulta do acórdão do STJ de 11 de Outubro de 2005, processo 05S1695, acessível em bdjur.almedina.net, que a faculdade de participação do acidente ao Tribunal pelo sinistrado, ou familiares no caso de morte, não se trata de uma simples faculdade concedida ao sinistrado, mas um verdadeiro poder/dever, com consequências jurídicas pelo seu não exercício.
O incumprimento deste poder/dever de participação tem que ter, em nosso entender, consequências jurídicas, ao nível da caducidade do direito de intentar a acção, que se devem traduzir na aplicação do disposto no art. 179º, nº 1, da Lei 98/2009.
Efectivamente, não faz sentido que a seguradora, sem nada saber (por não lhe ter sido comunicado), tenha que permanecer, por tempo indefinido, sujeita a que o sinistrado venha a alegar a existência de um acidente de trabalho, com as inerente incerteza jurídica que isso representa, e impossibilitando, ou pelo menos dificultando seriamente, a possibilidade de análise e impugnação da ocorrência do acidente, face ao decurso do tempo, como ocorre na situação ora em análise.
Improcede, pois, a apelação.
IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.

Porto, 24 de Setembro de 2018
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes