Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8512/17.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RECURSO AUTÓNOMO
RECURSO SUBORDINADO
AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Nº do Documento: RP20210428512/17.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação pelo Tribunal da Relação da decisão de facto impugnada vem a traduzir-se, por um lado, na análise da motivação que conduziu o Tribunal de 1ª instância a julgar o facto como provado ou não provado e, por outro, na averiguação, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na construção dessa motivação evidenciada pelo Tribunal de 1ª instância ocorreu uma violação das regras da experiência, da lógica ou da ciência aplicáveis ao caso.
II - Como assim, a alteração daquela decisão de facto deve ter lugar apenas quando, em termos de convicção autónoma do Tribunal ad quem, se impuser uma decisão distinta da acolhida pelo Tribunal a quo.
III - Assumindo-se as conclusões do recurso como o meio de delimitação do âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal ad quem tem, obrigatoriamente, o recorrente que impugna a decisão de facto que fazer constar das conclusões, em termos sintéticos, cada um dos pontos de facto de cujo julgamento discorda, sendo certo que a nossa lei processual civil não contempla, nesta sede, a existência de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da peça de recurso.
IV - A demonstração de determinado facto não é alcançável, por princípio, apenas a partir da sua estrita confirmação por parte do depoente ou declarante, antes resultando de uma análise lógica e crítica de toda a prova produzida e, em particular, do grau de rigor, objectividade e imparcialidade inculcada por esses meios de prova e que confere aos mesmos, aos olhos do juiz, a indispensável credibilidade.
V - A parte vencida na sentença (ainda que apenas parcialmente) apenas pode obter a alteração da sentença na parte em que a mesma lhe é desfavorável através da interposição de recurso (autónomo ou subordinado) e não através do expediente de ampliação do objecto do recurso, sendo que essa ampliação, tal como configurada no artigo 636º, n.ºs 1 e 2 do CPC, não se destina ao atingimento daquele resultado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 8512/17.0T8VNG.P1 – Apelação
Origem: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – J5.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto: Desembargador Pedro Damião da Cunha
2º Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1.B…, Lda.” instaurou a presente acção, sob a forma do processo declarativo comum, contra “C…, Lda.”, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 23 629,90, somatório do capital, juros e demais quantias em dívida à data de 19.09.2017, bem como juros à taxa legal comercial que venham a ser devidos até efectivo e integral pagamento.
Alegou que, no exercício da sua actividade comercial, forneceu à Ré, por encomenda desta, uma máquina destinada à instalação num circuito de embalagem da sociedade E…, mediante o pagamento do preço de € 17.527,50, que devia ser pago até 10.03.2016.
Já depois de entregue a máquina, realizou intervenções na mesma, para reparação de avarias provocadas por erro da Ré, não abrangidas pela garantia, mais concretamente: em 8.10.2015, um serviço no valor de € 1472,80; em 13.04.2016, um serviço no valor de € 1785,40; em 22.05.2016, um serviço no valor de € 1218,80.
Concluiu, assim, que está em dívida, a título de capital, um total de € 22.004,50, correspondente à soma do preço da máquina e do custo dos referidos serviços, bem como juros de mora vencidos, no montante de € 1582,40.
Acresce a quantia de € 40,00, por factura não paga, a título de indemnização por custos de recuperação, nos termos do disposto no artigo 7.º do DL n.º 62/2013, de 10.05.

2. Citada, a Ré contestou alegando, também em síntese, que o preço da máquina, acordado com a Autora, era de € 28.500,00, acrescido de IVA à taxa legal, a ser pago do seguinte modo: - 30% com a confirmação da encomenda; 20% com a entrega do equipamento; - o restante, com a colocação da máquina em marcha.
Foi convencionado que a máquina seria entregue na linha de embalamento que a Ré, juntamente com a sociedade D…, estava a montar para um seu cliente, numa fábrica sita em …, ….
Depois de a Ré ter feito o pagamento da primeira fracção do preço, a Autora entregou uma máquina que não correspondia ao solicitado, tendo sido trocada por uma outra.
Aquando da entrega desta, a Ré procedeu ao pagamento da segunda fracção do preço.
Essa entrega não ocorreu no local convencionado, mas nas instalações da Autora, em Vila Nova de Gaia, o que implicou que tivesse de despender € 398,00 com o transporte da máquina até ao local onde seria instalada.
Acontece que a máquina apresentou inúmeros problemas de funcionamento, que a Autora, apesar das tentativas, nunca conseguiu resolver totalmente.
Na sequência da recusa, por parte da Autora, em proceder a novas reparações na máquina, a Ré solicitou a eliminação dos problemas de funcionamento que subsistiam à referida D…, o que implicou um custo de € 15.947,57.
Devendo esse custo ser imputado à Autora, tal como o custo com o transporte da máquina, a Ré comunicou-lhe que procedia à compensação de ambos com o remanescente do preço.
Concluiu, assim, que em dívida se cifra apenas na quantia de € 1090,39, não havendo mora uma vez que emitiu um cheque destinado ao pagamento, que foi recusado pela Autora.
Concluiu pedindo, ademais da improcedência da acção, que a título reconvencional seja julgada procedente a compensação invocada, condenando-se a Ré a proceder ao pagamento, à Autora, da referida quantia de € 1090,39, acrescida dos juros que se vencerem após o trânsito em julgado da sentença.

3. A Autora replicou, insistindo que os problemas de funcionamento da máquina foram causados por uso indevido da mesma e impugnando a alegada intervenção de terceiro na sua reparação.

4. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença em que se decidiu:
“1) Julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência, reconhecer que a Autora, B…, Lda., é titular de um crédito sobre a Ré, C…, Lda., no montante de € 17.527,50 (dezassete mil quinhentos e vinte e sete euros e cinquenta cêntimos);
2) Julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, reconhecer que a Ré, C…, Lda., é titular de um crédito sobre a Autora, B…, Lda., no montante de € 440,00 (quatrocentos e quarenta euros);
3) Operar a compensação entre os dois referidos créditos e, em consequência,
4) Condenar a Ré, C…, Lda., a pagar à Autora, B…, Lda., a quantia de € 17.087,50 (dezassete mil e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos), acrescida de (i)) juros de mora, à taxa legal prevista no art. 102, § 3.º, do Código Comercial, vencidos desde 5 de Março de 2016 e vincendos até integral e efectivo pagamento, e (ii)) da quantia de € 40,00 (quarenta euros), prevista no art. 7.º do DL n.º 62/2013, de 10.05;
5) Absolver a Ré, C…, Lda., do demais peticionado pela Autora B…, Lda. “
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6. Inconformada, veio a Ré interpor recurso de apelação, aduzindo alegações e deduzindo, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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7. A Autora apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela manutenção da sentença, com as (sic) “alterações requeridas nas alegações 4ª, 5ª e 9ª.”
Neste âmbito, formulou as seguintes
CONCLUSÕES
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Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Destarte, as questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões do recurso e da ampliação do seu objecto por parte da recorrida nas suas contra-alegações (artigo 636º, n.º 2, do CPC), são as seguintes:
i) Impugnação da decisão de facto;
ii) Reapreciação do mérito da sentença, em função da eventual alteração da factualidade julgada como provada.
iii) Ampliação do objecto do recurso.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provada a seguinte factualidade:
1º A Autora é uma sociedade que se dedica à comercialização de máquinas de embalagem, prestando ainda serviços de instalação e manutenção das mesmas.
2º A Ré é uma sociedade que se dedica à instalação e integração de equipamentos como os fornecidos pela Autora nos clientes finais, que necessitam desse tipo de recursos, instalando linhas de montagem que integram várias máquinas.
3º A Ré contactou a Autora, em Junho de 2014, para que esta lhe fornecesse uma máquina, destinada à incorporação numa linha de montagem, que recebesse caixas provenientes da linha, que fechasse as abas superiores e colocasse fita-cola para fecho / encerramento, quer para fecho das abas superiores, quer na parte inferior da caixa, para reforçar a sua estrutura e solidez.
4º A referida máquina destinava-se a fazer parte de um segmento de uma linha de produção da fábrica E…, cuja montagem fora adjudicada à sociedade D…; esta elaborou o projecto, coordenou e forneceu os serviços (estudo, projecto e todos os trabalhos de instalação, montagem e assistência) e encarregou a Ré de fornecer as máquinas e os equipamentos.
5º A Ré enviou à Autora uma lista das caixas, com as respectivas dimensões, que seriam colocadas na máquina para fechamento das abas superiores e colocação da fita-adesiva.
6º Numa reunião entre o gerente da Ré e o comercial da Autora, entregou a este amostras das caixas de cartão.
7º A Autora propôs à Ré a máquina de fecho Cxs S-Aut DIM AUT SM-446-HD + AS 24 700, pelo preço de € 28 500,00, acrescido de IVA à taxa legal.
8º A Ré aceitou o fornecimento daquela máquina e o preço proposto em Março de 2015.
9º Entre Autora e Ré foi acordado que o pagamento preço seria feito nos seguintes termos: 30% com a encomenda; 20% com a entrega da máquina; 50% com a máquina posta em marcha.
10º A Ré procedeu ao pagamento da primeira das referidas fracções do preço.
11º Ficou acordado que a máquina seria entregue até 90 dias.
12º A Autora sabia que a máquina se destinava a ser integrada numa linha de produção da fábrica da E….
13º A máquina foi entregue, pela Autora, na fábrica da E…, no dia 23 de Julho de 2015.
14º Nessa data, a Autora emitiu a factura n.º FCA-CA15/……, conforme documento n.º 3 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
15º Após a entrega e instalação da máquina na linha de produção da E…, os técnicos da Autora procederam ao arranque da mesma.
16º A máquina vinha equipada com dispensadores de fita adesiva de 50 mm quando na fábrica da E… era utilizada fita adesiva com 70 mm de largura.
17º A Autora substituiu os dispensadores da máquina, por novos dispensadores, adequados a fita de 70 mm, que foram adquiridos pela Ré.
18º A referida máquina não permitia uma cadência de fecho de dez caixas de diferentes dimensões por minuto, não correspondendo, por essa razão, às exigências da linha de produção da E….
19º A Ré solicitou à Autora a substituição da máquina.
20º Após contactar o fabricante da máquina, a Autora aceitou substituí-la por uma outra, que garantisse uma cadência de dez caixas de diferentes dimensões por minuto.
21º A Autora propôs a substituição da referida máquina pela máquina de fecho Cxs S-Aut DIM SM-446-HS+AS26DX, que permitia uma cadência de pelo menos dez caixas por minuto.
22º A Autora manteve o preço acordado com a Ré.
23º A Ré aceitou a proposta da Autora.
24º A Autora comunicou à Ré que a máquina apenas seria entregue após o pagamento da fracção de 20% do preço.
25º No dia 3 de Março de 2016, a Ré efectuou o pagamento à Autora da quantia de € 7011,00, correspondente a 20% do preço.
26º No dia 5 de Março de 2016, a Autora fez a entrega à Ré da máquina de substituição nas suas instalações, em Vila Nova de Gaia, e não na fábrica da E…, conforme tinha sido acordado.
27º A Ré teve de suportar o custo do transporte da máquina até à fábrica da E…, no valor de € 398,00.
28º Com a entrega da máquina, a Autora emitiu, em 10.03.2016, uma nova factura, com o n.º FCA-CA16/……, no valor de € 28 500,00, acrescido de IVA à taxa de 23%, agora referente à máquina de fecho Cxs S-Aut DIM SM-446-HS+AS26DX.
29º No dia 11.03.2016, a Autora emitiu a nota de crédito n.º NCC-CA16/….., para saldar a factura relativa à máquina inicialmente fornecida.
30º Ao longo da laboração, a máquina de fecho Cxs S-Aut DIM SM-446-HS+AS26DX entrava com frequência em situação de alarme, tendo de ser intervencionada por um operador para voltar a funcionar.
31º Essas situações foram comunicadas à Autora, para que procedesse às necessárias correcções e reparações.
32º Designadamente à reparação da correia partida na unidade de medição da altura da caixa, avaria que impedia que a máquina funcionasse.
33º A máquina não veio acompanhada do manual e esquema em português e o terminal/consola HMI não estava em língua portuguesa.
34º Para evitar que ficasse comprometido o normal funcionamento da linha de produção da fábrica, a D… substituiu a correia, a pedido da Ré.
35º A linha de produção conduzia para a máquina, para além de caixas abertas, que ali seriam fechadas, também caixas já fechadas.
36º Dias depois, a correia veio novamente a partir e a Ré solicitou novamente à Autora que procedesse à verificação e reparação da máquina.
37º A Ré recusou-se a pagar o remanescente do preço da máquina enquanto esta não estivesse em normais condições de marcha.
38º Em 13.04.2016, a Autora foi verificar a máquina e procedeu à substituição da correia e montagem do cilindro onde aquela trabalhava, a ajustes nos sensores e à tradução do terminal/consola.
39º Nessa data, alterou a programação da máquina para que, em caso de quebra da correia, a máquina não parasse, deixando passar as caixas sem as fechar, evitando assim a paragem da linha de produção.
40º Dias depois, a correia partiu novamente, tendo a Ré solicitado nova intervenção da Autora.
41º A correia foi substituída pela D….
42º A Ré insistiu com a Autora para que verificasse o software da máquina e corrigisse eventuais erros existentes.
43º No dia 13.05.2016, a Autora informou que ira fazer deslocar um técnico de Itália, da marca produtora da máquina (SIAT), para verificar o motivo da quebra da correia que provocava a paragem da máquina.
44º No dia 22.05.2016, a máquina foi verificada por um técnico italiano da marca produtora, o qual constatou, assim que a colocou em funcionamento, uma nova quebra da correia.
45º O referido técnico, para além da substituição da correia que quebrou, fez alterações à programação da máquina.
46º A D… exigiu da Ré o custo das correias que substituiu, cada uma delas no valor de € 14,00.
47º A Ré reclamou da Autora o custo de reparações feitas na máquina pela D… depois do referido sob o artigo 44º, que computou em € 15 947,57, e o custo do transporte da máquina desde as instalações da Autora até à fábrica da E…, que computou em € 489, 54.
48º A Ré comunicou à Autora a compensação entre o remanescente do preço da máquina e os referidos custos, tendo enviado a esta, para pagamento da diferença, um cheque no montante de € 1 090,36.
49º No dia 7.07.2016, a Autora devolveu esse cheque à Ré, alegando que nunca aceitou qualquer intervenção dela ou de terceiros na máquina, nem qualquer intervenção lhe foi comunicada, nem se justificava.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Recurso interposto pela Ré:
IV.I.I. Impugnação da decisão de facto.
A primeira questão que importa dirimir refere-se à impugnação da decisão de facto deduzida pela Ré/Apelante, pois que, segundo a mesma, a factualidade constante dos artigos 69º, 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação deveria, à luz dos meios de prova que convoca, ter sido julgada como provada, ao invés de não provada.
Vejamos.
Como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a realização de um segundo julgamento e a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova disponibilizados pelo processo ou pela gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, na sua perspectiva, se impõe para os pontos de facto objecto da impugnação, deduzindo a sua (própria) apreciação crítica da prova.
Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o artigo 640º, n.º 1, do CPC que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “(…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.”
Deve, assim, o recorrente, sob cominação de imediata rejeição do recurso, definir com toda a precisão os pontos de facto que pretende questionar, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, motivar o recurso através da indicação dos meios de prova constantes dos autos ou que neles tenham sido registados/gravados que imponham decisão diversa e, ainda, relativamente aos pontos da decisão de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, cumpre-lhe, ainda, indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes, sem prejuízo da transcrição de tais excertos.
Por outro lado, ainda, terá o apelante que deixar expressa a decisão que, na sua perspectiva, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas, como corolário da motivação do recurso e tendo em conta a sua apreciação crítica dos meios de prova produzidos nos autos.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e a Ré/Apelante impugna a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, dos meios de prova a reapreciar e da decisão alternativa que advoga quanto a cada um dos ditos factos impugnados.
Nesta sede, como decorre do preceituado no artigo 662º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que vem a significar que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham de forma inequívoca (em termos de autónoma convicção) uma decisão diversa da que foi dada pelo Tribunal de 1ª instância.
Ainda a respeito da gravação da prova e sua subsequente reapreciação, haverá que ter em consideração que, funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação mostra-se-lhe atribuída plena autonomia decisória, razão por que deve fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova e própria convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão de facto, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios constantes dos autos que se lhe afigurem relevantes à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no artigo 396º do Cód. Civil e do artigo 607º, n.º 5, 1ª parte, do CPC.
Daí que se imponha ao julgador o dever de fundamentação da factualidade que julgou provada e não provada, como preceitua o n.º 4 do mesmo artigo 607º, sendo certo que a exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial, não só para as partes, que dela discordando, a pretendam impugnar, como, ainda, em particular, para o Tribunal da Relação, nos casos em que há impugnação da decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
Com efeito, é à luz da motivação da decisão de determinado facto como provado ou não provado que o Tribunal superior deve aferir, através das regras da lógica e da experiência aplicáveis ao caso (juízo crítico da prova), da razoabilidade da convicção manifestada pelo juiz do Tribunal de 1ª instância, sendo certo que, como é pacífico, a prova, no sentido da demonstração positiva de determinado facto, não é uma certeza absoluta ou científica, mas tão só aquele alto grau de probabilidade que permite ao julgador formar a sua íntima convicção – alicerçada em elementos objectivos e na sua apreciação crítica, apreciação que há-de mostrar-se plasmada na motivação da decisão – no sentido de ter como bastante mais provável a verificação aquele facto do que o seu contrário.
Trata-se, portanto, no fundo, por um lado, de o Tribunal de 1ª instância deixar expresso na motivação da decisão de facto o fio lógico condutor que o levou, numa perspectiva crítica da prova perante si produzida - a julgar determinado facto como provado ou não provado e, por outro, de o Tribunal da Relação aferir da concordância ou não desse raciocínio com as regras da experiência e da lógica aplicáveis ao caso, introduzindo, pois, na decisão de facto proferida, na parte impugnada, as modificações que se imponham sempre que, na sua autónoma avaliação dos mesmos meios de prova, configure a existência de um erro ao nível da aplicação das ditas regras da análise crítica da prova.
Em suma, como salienta A. ABRANTES GERALDES “A Relação actua como tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de 1ª instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou de alteração da decisão recorrida.” [1]
Feitas estas considerações e uma vez que a Ré/Apelante deu genericamente cumprimento ao antes referido ónus de impugnação da decisão de facto, cumpre conhecer da impugnação por si deduzida.
Como já acima se referiu, a Ré/Apelante dissente do julgamento da matéria de facto constante dos artigos 69º, 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação, factualidade esta que, em seu ver, face ao depoimento da testemunha F… e às declarações de parte do seu gerente, G…, se impunha que tivesse sido julgada como provada, em sentido oposto, pois, à convicção negativa firmada pelo Tribunal de 1ª instância quanto a esta matéria.
Neste conspecto, importa, à partida, por razões de clareza e transparência da decisão, dar notar do seguinte ponto prévio.
Como resulta do teor das alegações recursivas, a discordância da Ré quanto à decisão de facto constante da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância não se cinge apenas aos supracitados artigos da contestação.
De facto, compulsadas as alegações, além da matéria de facto alegada nos citados artigos da contestação, a Ré impugna ainda a matéria de facto constante dos artigos 85º e 86º da mesma peça, cuja demonstração sustenta à luz dos meios de prova já referidos, em sentido contrário ao decidido pelo Tribunal de 1ª instância que julgou como não provada a factualidade constante destes dois últimos artigos.
Todavia, se assim é em sede de alegações, certo é também que nas conclusões do recurso (conclusão 4ª) a Ré/Apelante não faz a mínima alusão àqueles artigos da contestação e, pelo contrário, apenas e só faz referência à matéria de facto constante dos artigos 69º, 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação, sustentando, como se referiu, que os mesmos deveriam ter sido julgados provados.
Ora, sendo assim e tendo presente que, como é pacífico, não são as alegações que definem o objecto do recurso, mas as respectivas conclusões, que funcionam, nesta sede, como instrumento de delimitação objectiva das questões de facto e de direito que o Tribunal de recurso está adstrito a conhecer (salvo as questões de conhecimento oficioso), daí emerge que aquela outra matéria de facto contida nos artigos 85º e 86º da contestação, em razão da opção da Apelante, ao omitir totalmente qualquer referência, ainda que sintética, à mesma nas conclusões do recurso, se situa para além do círculo das questões de facto que este Tribunal pode/deve conhecer e decidir. [2]
Nesta perspectiva, como defende a doutrina e a jurisprudência, se o cumprimento dos ónus de impugnação da decisão de facto não deve ser aferido, em função dos princípios da proporcionalidade e da adequação, com excessivo rigor, mostra-se, no entanto, no mínimo, exigível, ao nível da delimitação do objecto do recurso, que, envolvendo este a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente indique “(…) sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.” [3]
Neste sentido, como também salienta F. AMÂNCIO FERREIRA, op. cit., pág. 151, “Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objecto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.
Aliás, note-se, que o cumprimento pelo recorrente deste ónus de delimitação do objecto do recurso no segmento da impugnação da decisão de facto se revela essencial, não apenas para efeitos de inequívoco conhecimento da actividade jurisdicional que é reclamada ao Tribunal de recurso, mas, ainda, para efeitos de cabal cumprimento pelo recorrido do contraditório quanto à matéria de facto impugnada pelo recorrente, não sendo de admitir em questão nuclear para o mérito do recurso, dúvidas ou tergiversações que de outro modo sempre se poderiam colocar, quer ao recorrido, quer ao próprio Tribunal ad quem na exacta delimitação dos pontos de facto impugnados pelo recorrente.
Destarte, incidindo as conclusões do recurso apenas sobre a matéria de facto constante dos artigos 69º, 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação e não tendo cabimento, como também é pacífico na jurisprudência, no segmento do recurso atinente à impugnação da decisão de facto, a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento [4], apenas a factualidade alegada pela Ré/Apelante naqueles artigos da contestação se considerará como impugnada pela mesma e, como tal, apenas sobre ela versará a devida reapreciação nesta instância.
Aqui chegados, a matéria de facto posta em causa é a seguinte:
Artigo 69º: Mas, como sempre, a A. não procedeu à reparação pelo que para minimizar os elevados prejuízos que para si decorreriam do incumprimento do contrato com a E… nos termos já supra expostos, a R. voltou a recorrer aos serviços da D….
Artigo 79.º: Mas os problemas e avarias da máquina e as consequentes e constantes paragens mantiveram-se, sendo comunicadas à A. pela R. e pela D…, esta a pedido da R.
Artigo 80.º: Continuando a verificar-se as constantes paragens da máquina.
Artigo 81.º: Porém, a A. nada fazia apenas pretendendo que a R. lhe pagasse a parte remanescente do preço, pese embora a máquina não cumprisse o seu funcionamento normal.
Artigo 83.º: Mas a A. manteve a a sua postura, não procedendo a qualquer reparação na máquina, que obviamente se encontrava em garantia.
Artigo 84.º: Pelo que a R., para evitar maiores prejuízos decorrentes de um incumprimento com a E… e o pagamento de pesadas multas pelo mesmo por via do contrato celebrado com aquela pela D… (que, se viesse a ter que pagar as multas por sua vez exigiria o respectivo reembolso à R. que foi quem formalmente lhe forneceu a máquina), viu-se obrigada a solicitar à D… que efectuasse todos os trabalhos de reparação da máquina que fossem necessários para que esta passasse a trabalhar de forma correcta.
Artigo 90.º: Porém, como se demonstrou a R. atempadamente comunicou à A. as diversas avarias e anomalias da máquina, dentro do seu período de garantia, recusando-se a A. a proceder à eliminação dos mesmos, sendo que a manutenção dessa situação causaria a R. prejuízos elevadíssimos, superiores aos que decorreriam da reparação da máquina, por via do incumprimento da obrigações assumidas com a E… pela D… e que se repercutiriam na R., quer por via do consórcio informal supra referido, quer por via da sua responsabilidade para com aquela D… decorrente da venda da dita máquina.
Para a demonstração da factualidade antes exposta, invoca a Ré/Apelante como meios probatórios relevantes para o efeito, as declarações de parte prestadas pelo gerente da Ré, G…, e o depoimento prestado pela testemunha F…, gerente da sociedade “D…”.
Decidindo.
Como ponto prévio em termos de definição do objecto do litígio entre as partes e com relevo para a reapreciação da matéria de facto acima referida, os presentes autos têm, do ponto de vista da pretensão da Autora, como tema central a cobrança da parte do preço em falta de uma máquina de fecho vendida pela Autora “B…, Lda.” à Ré “C…, Lda.”, máquina esta que se destinava a ser incorporada numa linha de produção da empresa “E… “ e onde era suposto vir a proceder ao fechamento e colocação de fita-cola nas caixas (abas superiores e inferiores) provenientes dessa linha de produção.
Por outro lado, a montagem dessa linha de produção na dita fábrica da “ E…” foi adjudicada por esta última à sociedade “D…”, cabendo a esta última, nesse contexto, proceder ao estudo, projecto, instalação, montagem e assistência da sobredita linha de produção, para o que encarregou a Ré de, por sua vez, fornecer as máquinas e os equipamentos necessários ao funcionamento da aludida linha de produção.
Neste enquadramento, segundo a Autora procedeu ela à entrega da máquina em apreço (entretanto substituída por outra com o mesmo preço inicial e por acordo das partes), mas a Ré, ao invés, não procedeu ao pagamento de parte do preço em falta, assim como não procedeu ao pagamento de outros serviços de reparação da máquina que teve que efectuar, a pedido da Ré, por força de «avarias» provocadas por «erro da Ré» e não contemplados na garantia.
Reclama, portanto, a Autora, através da presente acção, em termos essenciais, o remanescente do preço da máquina e o preço dos ditos serviços de reparação/assistência por si prestados, a solicitação da Ré.
A Ré, por seu turno, no que ora releva, sustenta que a máquina em causa sofreu de várias avarias e problemas de funcionamento (quebras de correias, accionamento do alarme, programação inicial inadequada) que provocaram a sua paragem e da linha de produção onde a mesma estava inserida.
Destarte, segundo alega, para evitar o incumprimento do contrato celebrado com a “E…” e a consequente aplicação de multas por parte desta última, teve a mesma, face à recusa da Autora em prestar assistência e reparação à máquina vendida (apesar da garantia), de mandar reparar e corrigir aqueles problemas, o que fez através da aludida “D…”, ascendendo os serviços prestados por esta última ao montante de € 15.947,57, valor que, sendo da responsabilidade da Autora (atentos os vícios existentes na máquina e que impediam o seu regular funcionamento), deverá ser compensado no valor ainda em débito a título de remanescente do preço.
Feita esta resenha dos termos essenciais do litígio, a factualidade ora posta em causa refere-se, precisamente, em primeiro lugar, às alegadas «avarias» ou «anomalias» evidenciadas pela máquina no período posterior à intervenção/reparação efectuada na mesma por um técnico italiano da própria marca (que a tinha vendido à Autora) e a pedido desta última, na sequência dos problemas anteriores e das reclamações apresentadas pela Ré junto da Autora.
Na verdade, como resulta da factualidade provada – e que não se mostra posta em crise -, antes daquela intervenção do técnico italiano (realizada a 22.05.2016) a máquina entrava com frequência em situação de alarme, a correia da mesma partiu por três vezes, procedendo a “D…” à substituição de duas dessas correias e a Autora à substituição de outra e, ainda, procedeu a Autora a ajustes nos sensores da máquina, à tradução para português do terminal/consola da mesma e à alteração da sua programação de forma que a mesma, em caso de quebra da correia, não parasse, evitando, assim, a paragem da linha de produção onde se encontrava inserida – vide factos provados em 30º, 32º, 34º, 36º, 38º, 40º e 41º.
Todavia, insiste-se, a matéria de facto de cujo julgamento a Recorrente discorda não contende com as anomalias ocorridas antes da aludida intervenção do técnico italiano e com os serviços efectuados até essa data pela dita “D…”, mas, em função da causa de pedir que sustenta a reconvenção deduzida pela Ré, com as alegadas «anomalias» ocorridas após a intervenção/reparação efectuada pelo aludido técnico italiano da marca e com os serviços de reparação que, neste outro contexto, foram efectuados pela aludida “D…” e que a mesma orçou em cerca de 16 mil euros.
Por conseguinte, em segundo lugar, a factualidade ora em causa refere-se à realização por parte da sociedade “D…” de serviços de reparação de tais «avarias» ocorridas após aquela intervenção do técnico italiano e a solicitação da aqui Ré, face à alegada recusa da Autora quanto à realização destas outras reparações e atenta a premência no funcionamento da linha de produção em causa, dada a possibilidade de a “E…“ aplicar multas de valor muito elevado em razão do não funcionamento da linha de produção, multas que a própria D… poderia fazer repercutir sobre a Ré, atenta a sua qualidade de fornecedora da máquina em causa.
Circunscritas, assim, as questões de facto ora em discussão – como resultam da factualidade provada e não impugnada e da sua conjugação com os artigos da contestação que constituem o objecto da impugnação da decisão de facto contida na sentença -, quanto às mesmas o Tribunal de 1ª instância aduziu a seguinte motivação da sua convicção:
Quanto à terceira questão [existência de problemas de funcionamento da máquina anteriores à intervenção do técnico italiano], é inequívoco que ocorreram problemas no funcionamento da máquina. Tal foi admitido pelo gerente da Autora, tanto assim que o mesmo providenciou pela vinda a Portugal de um técnico do fabricante italiano. Foi também referido pelo gerente da Ré e pelas testemunhas H…, engenheiro que trabalha no departamento de assistência técnica da Autora, I…, F…, gerente da D…, e J…, engenheiro electrotécnico que, enquanto trabalhador da D…, interveio no desenvolvimento do software da linha de produção da E….
Daquelas declarações e destes depoimentos ressaltou que, em três ocasiões, houve uma quebra da correia da unidade de medição da altura da caixa e que, noutras ocasiões, a máquina entrou em modo de segurança, parando a sua função.
Houve, todavia, divergências quanto ao que esteve na génese desses problemas de funcionamento.
Assim, as duas primeiras testemunhas, que estiveram na fábrica da E…, a observar o funcionamento da máquina na linha de produção, foram perentórias em dizer que os problemas não decorriam da máquina, mas do uso que dela estava a ser feito. Segundo disseram, a máquina vinha programada para fechar caixas de cartão que para ela seriam conduzidas com as suas abas levantadas. Para isso, depois do sensor medir a dimensão das caixas, era impulsionado o braço de fecho das abas. Acontece que, como constaram, à máquina tanto chegavam caixas aberta como caixas já fechadas, o que levava a que o braço, ao não encontrar a aba, batesse em falso, perturbando assim o funcionamento da máquina.
A terceira testemunha, afirmou que o problema estava em erros do software da máquina que levavam a que o motor desta não parasse quando o sensor de apalpamento das caixas subia.
Perante estas duas versões, quid inde?
A explicação dada pelas duas primeiras testemunhas, é plausível quando se considere que, como as mesmas disseram, a máquina apenas vinha programada para fechar caixas.
Contudo, este facto não ficou demonstrado – até porque ninguém conseguiu concretizar em que consistiu a intervenção do técnico italiano. Têm, assim, de admitir-se outras possíveis explicações para os problemas de funcionamento da máquina.
O depoimento da terceira testemunha, gerente da sociedade com quem a Ré estabeleceu a parceria para a montagem da linha de produção da E…, ao dar outra explicação (os referidos bugs de software), ainda que não suficientemente concretizada, fez com que a dúvida se adensasse.
Não se existe razão para dar mais crédito às primeiras que à última e vice-versa: as primeiras trabalham para a Autora; a terceira, evidenciou interesse na decisão da causa, pela relação comercial de parceria que tinha com a Ré, denotando colaboração com esta e animosidade para com a Autora.
O que antecede serve de mote para a motivação da convicção quanto aos factos relativos à quarta questão [problemas de funcionamento da máquina posteriores à intervenção do técnico italiano e serviços de reparação efectuados pela D…, serviços esses que ascenderam ao valor de € 15.947,57].
A testemunha F… afirmou que o referido técnico italiano corrigiu os bugs, mas logo acrescentou, contraditoriamente, que isso não resolveu os problemas, tendo sido necessária uma nova intervenção, esta já assegurada pela sociedade D…, que imputou o respectivo custo, num total de € 15.947,57, à Ré.
Contudo, para além de uma insuficiente descrição dos problemas que a máquina continuou a apresentar e daquilo que teve de ser feito para os resolver (definitivamente) depois da intervenção do técnico italiano, aspecto não suprido por qualquer outro meio de prova, a testemunha não referiu, em concreto, como foi alcançado o valor de € 15.947,57, que prima facie – e na falta de outros elementos de suporte – se afigura desproporcionado, tendo em conta o preço da máquina.
Estes aspectos também não foram esclarecidos pelo gerente da Ré, incapaz de explicar sequer o funcionamento da máquina.
Perante isto, no que à intervenção da D…, apenas foi possível formar uma convicção positiva quanto às correias que foram colocadas por esta sociedade antes da intervenção do técnico italiano, facto referido pela testemunha F… e confirmado pela testemunha J… e não colocado em causa por qualquer outra prova. Esta última testemunha referiu ainda que as referidas correias têm custos reduzidos, de cerca de € 14,00, sendo fácil a sua substituição.”
Perante a transcrita motivação, em sentido oposto invoca a Ré/Apelante as declarações de parte prestadas pelo seu sócio-gerente G… e o depoimento da testemunha F…, sócio-gerente da sociedade “D…”, empresa que, segundo o alegado pela Ré, terá realizado os serviços de reparação da máquina ora em causa no valor de € 15.947,57, valor cuja compensação (sobre o crédito da Autora) a Ré ora reclama, no implícito pressuposto de que a Ré terá, pois, que proceder ao pagamento daquele valor àquela “D…. “
Dito isto e entrando no cerne da reapreciação dos factos constantes dos artigos 69º, 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação da Ré/Apelante, em primeiro lugar, cumpre dizer que, em nosso julgamento, a alegação contida nos mesmos artigos se revela em grande parte completamente genérica e conclusiva, não se traduzindo, pois, em quaisquer factos concretos que devessem, como tal, figurar no elenco dos factos provados (ou não provados) da sentença.
Na verdade, como resulta do preceituado no artigo 607º, n.ºs 3 e 4, do CPC, do elenco da decisão de facto da sentença apenas devem constar factos e não afirmações genéricas, vagas, conclusivas ou meros conceitos de direito.
Ora, sendo assim, como temos por indiscutido, em termos de factos concretos o que resulta de relevante para o objecto do presente processo de tais artigos da contestação da Ré é apenas e só, como emerge, aliás, da nossa anterior exposição, o facto de a Ré, após a intervenção realizada na máquina por parte do técnico italiano, ter solicitado à sociedade “D…” várias reparações da mesma máquina, que, apesar daquela intervenção, continuou a apresentar, por várias vezes, paragens no seu funcionamento, reparações essas que a dita “ D…” efectuou – dada a recusa da Autora e atenta urgência da situação para o cliente “E…” - e que ascenderão, segundo o alegado, a um valor próximo dos € 16 mil euros (vide, ainda, em complemento, os artigos 85º e 86º da contestação da Ré).
Ora, neste contexto e antes ainda de analisar os meios de prova pessoal invocados pela Ré/Apelante em sustento da sua impugnação da decisão de facto, três observações prévias se nos impõem em sede de avaliação crítica da prova produzida nos autos pela Ré.
A primeira é a de que, apesar de a Ré/Apelante fazer no decurso das suas conclusões do recurso (conclusão 3ª) alusão à prova documental produzida nos autos e que, em seu ver, corroboraria a demonstração da factualidade ora em causa, certo é que a mesma não juntou em termos processualmente válidos e, portanto, aproveitáveis para a instrução da causa (vide requerimento de junção de documentos deduzido pela Ré nos autos a 30.09.2020 e o despacho judicial que indeferiu essa junção proferido na 1ª sessão de julgamento realizada a 1.10.2020) um único documento que corroborasse a sua alegação e, muito em particular, no que ora releva, um qualquer documento (v.g. e – mail ou outro) que confirmasse, por um lado, as suas reclamações junto da Autora por reparações na máquina após a intervenção realizada pelo técnico italiano, e, por outro, a alegada recusa da Autora na realização das mesmas.
Com efeito, no período posterior a tal intervenção realizada na máquina por parte do citado técnico italiano (período temporal em que se situam os factos ora em causa), não existe um único documento que confirme as alegadas reclamações da Ré à Autora por eventuais anomalias no funcionamento da máquina e, logicamente, qualquer resposta da Autora a tais indemonstradas solicitações ou insistências da Ré quanto à reparação da máquina.
Ora, tendo isto presente, com o devido respeito, não se nos afigura plausível à luz das regras da experiência comum, maxime estando em causa empresas com experiência nos respectivos ramos de actividade e que é suposto estarem dotadas de um nível médio de organização, que, mantendo a máquina em causa, mesmo após a realização daquela intervenção técnica, os mesmos vícios que já antes provocavam a sua paragem, de sorte, aliás, a justificar sucessivas reparações no valor de quase 16 mil euros (praticamente metade do preço da máquina), não exista notícia - ao contrário do que sucedia antes dessa intervenção técnica – de qualquer missiva de reclamação de tais «problemas» ou «avarias» por parte da Ré e dirigida à Autora ou da própria “D…” dirigida à Ré, pois que era esta D… quem tinha assumido perante a “E…”, enquanto dona da obra, a obrigação de instalação/funcionamento da linha de montagem e seria, por isso, pressionada pela “ E… “ a resolver de forma urgente os ainda subsistentes problemas da máquina em causa, nomeadamente sob ameaça de aplicação de multas ou outras sanções pecuniárias.
Como assim, a ausência de demonstração de qualquer reclamação por escrito junto da Autora com origem na Ré e/ou na “D…”, face à gravidade e reiteração dos problemas em causa (evidenciadas pelo custo particularmente elevado das reparações) e já depois de a máquina ter sido intervencionada por um técnico da própria marca, suscita-nos, desde logo, sérias dúvidas sobre a plausibilidade e credibilidade da versão alegada pela Ré.
Por outro lado, em segundo lugar, não deixa de causar alguma perplexidade que, existindo pressão por parte da “E…” no sentido da rápida resolução dos problemas evidenciados pela máquina e até a possibilidade séria de aquela “E…” vir a aplicar sanções avultadas pelas paragens da linha de produção (que a sociedade “D…” ameaçava fazer repercutir sobre a Ré e esta, por sua vez, sobre a Autora), o que explicaria, ainda segundo a Ré, que a mesma tenha, face à recusa da Autora em prestar essa assistência, atribuído a realização de tais reparações àquela “D…”, não tenha também a Ré providenciado pela junção aos autos do dito contrato celebrado entre a “E…” e a “D…” e onde constariam as cláusulas que previam a aplicação de tais multas por incumprimento do contrato e sob que exactas condições.
De facto, este outro elemento ou meio de prova revelar-se-ia essencial para comprovar a seriedade/credibilidade da versão alegada pela Ré quanto à urgência das reparações em causa e, ainda, para justificar a intervenção da “D…” em substituição da Autora na realização dessas reparações, sendo certo que é o valor de tais reparações que ora está em causa.
Aliás, ainda neste âmbito, não pode também deixar de se configurar como relevante em termos de consistência e credibilidade da versão alegada pela Ré que não tenha a mesma diligenciado também pela inquirição de alguma testemunha pertencente aos quadros daquela “ E…“ com intervenção directa nos factos ora em discussão, sendo certo que se mostra indiscutido, face às várias relações contratuais em presença, que a beneficiária última dos serviços de reparação da máquina em causa era, precisamente, aquela empresa e era ela quem, por isso mesmo, estava em melhores condições, em termos de equidistância e imparcialidade face aos interesses económicos em disputa nos presentes autos, para, de facto, esclarecer em termos cabais os problemas ocorridos ao nível do funcionamento da máquina em causa após a intervenção do técnico italiano, dos eventuais reflexos desses problemas no funcionamento da linha de produção em causa, das intervenções/reparações efectuadas na mesma e quem as realizou e, ainda, das alegadas multas ou outras sanções pecuniárias que, alegadamente, estiveram em vias de ser aplicadas e sob que circunstâncias.
Por último, ainda, releva, em termos essenciais, para exacta percepção dos interesses em causa no processo – e consequente avaliação da credibilidade da prova pessoal produzida pela Ré e que a mesma invoca em abono da impugnação da decisão de facto – que o valor das alegadas reparações efectuadas na máquina pela dita “ D…“ (de cerca de 16 mil euros) após a intervenção do técnico italiano corresponde, precisamente, ao valor que a Ré pretende ver compensado (abatido) no preço que a mesma, enquanto compradora da máquina, ainda deve à Autora, enquanto vendedora, com a explicitação, importante, em nosso ver, por um lado, que entre a Ré e dita “D…” existia (pelo menos neste negócio em concreto), nas palavras da própria Ré, uma espécie de “consórcio” – ou seja, uma comunhão de interesses entre ambas - e, por outro, que não foi produzida qualquer prova (pessoal ou documental) que a dita “D…” tenha efectivamente exigido o pagamento daquele valor da aqui Ré e/ou que esta última tenha, de facto, pago aquele valor à dita “ D…“.
Feitas estas considerações prévias, importa, no entanto, analisar as declarações de parte do sócio-gerente da Ré, G…, e o depoimento da testemunha F…, sócio-gerente da sociedade “D…”, tal qual eles resultam da gravação efectuada na sessão de julgamento e cuja audição integral efectuámos nesta instância, pois que, segundo a Ré/Apelante, de tais meios de prova resulta a prova “claríssima” dos factos ora em apreço.
Relativamente às declarações de parte prestadas pelo sócio-gerente da Ré o mesmo descreveu, ainda que em termos genéricos, o relacionamento que existia entre a sua empresa e a “D…”, os contornos do negócio que foi celebrado com a Autora para a aquisição da máquina em causa tendo em vista a sua integração numa linha de produção da “E…”, os problemas ocorridos ao nível do funcionamento da máquina (paragens no seu funcionamento com repercussão na linha de produção), ainda que sem explicitar com o mínimo de segurança e precisão as causas ou a origem de tais problemas, a realização de serviços de reparação da máquina por parte da “D…” (ainda que sem os concretizar ou especificar ou, ainda, os localizar no tempo e, em especial, se esses serviços ocorreram antes ou depois da intervenção do técnico da marca) e, ainda, a circunstância de a dita “D…” pretender fazer repercutir sobre a sua empresa (Ré) os custos dessa reparações, o que levou, segundo disse, a que sua própria empresa (Ré) tivesse decidido, por seu turno, fazer repercutir aqueles custos que lhe eram assacados pela “D…”, através do seu gerente K…, sobre a aqui Autora, enquanto vendedora da máquina.
Importa, no entanto, referir neste conspecto, como aliás se faz notar na motivação de facto constante da sentença recorrida, que o declarante não revelou conhecer, com o mínimo de rigor e precisão, os exactos serviços de reparação levados a cabo pela “D…”, as suas circunstâncias e as razões concretas para a prestação de tais serviços, limitando-se, pois, a dar por verificadas – sem as averiguar e confirmar com o mínimo de rigor - as reparações e as despesas que a “D…” reclamava, certo, pois, que, em última instância, quem teria que suportar esse custo seria a aqui Autora, através da dedução ao preço da máquina daquele valor.
Quer isto significar que, em nosso ver e acompanhando, nesta sede, as dúvidas salientadas pelo Sr. Juiz a quo quanto à consistência e credibilidade das declarações de parte do sócio-gerente da Ré, as mesmas não se revelam bastantes, de um ponto de vista crítico e à luz das regras da experiência e da lógica, para conduzir à demonstração da factualidade em causa, sendo certo, ainda, que tais declarações são manifestamente declarações comprometidas ou interessadas, pois que a Ré tem, naturalmente, interesse directo na procedência da compensação daquele valor, pois que daí resultará uma muito significativa redução do valor a pagar à aqui Autora.
Nesta perspectiva, se as declarações de parte constituem um meio de prova que o Tribunal não pode deixar de considerar e ponderar à luz do princípio da sua livre apreciação (salvo na parte em que constituírem confissão) – artigo 466º, n.º 3, do CPC -, importa não ignorar que as mesmas são, como é consabido, declarações interessadas, a exigirem, pois, particular cuidado e rigor na sua apreciação e, por isso, em nosso ver, que o seu teor se mostre dotado da imprescindível objectividade, consistência e credibilidade e, ainda, em regra, que as mesmas se vejam também confirmadas por outros meios de prova dotados da indispensável imparcialidade face aos interesses em disputa no litígio.
Dito isto, além destas declarações, avulta, ainda, o depoimento da testemunha F…, sócio-gerente da sociedade “D…”, empresa que terá realizado as reparações da máquina em causa já após a intervenção do técnico italiano e que orçaram, como já se referiu, em cerca de 16 mil euros.
Escutado o depoimento em causa prestado em audiência de julgamento e não obstante o mesmo ter corroborado nos seus termos essenciais a versão trazida aos autos pela Ré e, em particular, a matéria de facto ora em discussão, resultou, no entanto, do seu depoimento o evidente interesse directo da sociedade de que é sócio-gerente (a sociedade “D…”) na confirmação da versão da Ré; Com efeito, como já antes se cuidou de salientar, o valor ora em causa - que a Ré pretende ver compensado no preço ainda em falta da máquina por si adquirida à Autora – é, precisamente, o valor que a “D…” pretende reaver ou repercutir sobre a aqui Ré, por serviços de reparação que terá alegadamente efectuado a pedido desta última e atenta a recusa da Autora na prestação de tais serviços, não obstante a máquina se encontrar ainda no respectivo período de garantia.
Significa isto que, no fundo, a versão da Ré apenas colhe apoio, por um lado, na versão das declarações de parte do seu sócio-gerente e, por outro, na versão do depoimento da testemunha que é sócio-gerente da sociedade que prestou os serviços ora em causa e que, por sua vez, os reclama perante a Ré, sendo, pois, também ostensivo o interesse, ainda que reflexo, que a testemunha tem quanto à procedência da reconvenção aqui deduzida pela Ré e consequente confirmação da sua própria versão.
Ora, neste contexto e como já o temos referido em outros acórdãos onde questões semelhantes se nos têm colocado, para a convicção positiva quanto à demonstração de determinada factualidade alegada nos autos não basta apenas a sua estrita confirmação por determinados meios de prova pessoal, meros excertos ou «pedaços» de alguma da prova produzida, antes é suposto, por um lado, a conjugação e ponderação crítica de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência e da lógica e, por outro, e sobretudo, que essa prova, pela sua objectividade, rigor, precisão e imparcialidade face ao objecto do litígio, seja dotada daquela credibilidade e consistência que é indispensável à sã e segura convicção do julgador; Não se exige, é certo, como também já se referiu, uma prova equivalente a uma certeza absoluta ou naturalística, própria apenas das ciências exactas, mas, ainda assim, a prova produzida, por força da sua credibilidade e plausibilidade, há-de lograr criar no julgador uma certeza relativa do facto que lhe permita, com a exigível segurança, objectividade e equidistância, tê-lo como altamente provável ou, pelo menos, como muio mais provável que o facto contrário.
Destarte, não obstante a distância que intercede entre a produção da prova e este Tribunal, em sede de autónoma convicção, não vemos razões bastantes para divergir da convicção manifestada pelo Tribunal a quo quanto ao julgamento da factualidade ora em causa como não provada, sendo certo que, em função da leitura que nós próprios, nesta instância, fazemos dos meios de prova produzidos nos autos e, em particular dos meios de prova convocados pela Ré/Apelante em sustento da sua divergência face ao decidido, não se detecta a ocorrência de algum erro ao nível da apreciação crítica da prova, ou seja, que a convicção evidenciada e exposta pelo julgador em 1ª instância na motivação da decisão de facto, na parte ora posta em crise, confronte as regras da lógica e da experiência, antes colhendo essa convicção pleno apoio na prova produzida e na sua análise crítica, sem prejuízo da sempre legítima discordância da Apelante.
E assim sendo, improcede na totalidade a impugnação da decisão de facto deduzida pela Ré/Apelante, sendo de manter como não provada a factualidade constante dos artigos 79º, 80º, 81º, 83º, 84º e 90º da contestação, assim como, ainda, a resposta restritiva ao artigo 69º da mesma peça, como consta do ponto 46º do elenco dos factos provados da sentença recorrida.
*
IV.I.II. Do mérito da sentença recorrida.
Relativamente ao mérito substantivo da sentença recorrida, atenta a antes decretada improcedência total da impugnação da decisão de facto deduzida pela Ré/Apelante, pouco haverá que dizer para além daquilo que já se mostra doutamente decidido na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Com efeito, a Ré/Apelante, nesta sede, nenhuma questão jurídica suscita em face do decidido, nem, aliás, nenhuma divergência evidencia quanto ao quadro normativo convocado na sentença e à subsunção jurídica nela levada a cabo, divergindo apenas quanto à procedência meramente parcial da compensação operada e em função do montante do crédito que no acto decisório lhe foi reconhecido contra a aqui Autora, crédito este no valor total de € 440,00, correspondente à soma do custo do transporte da máquina – de substituição – das instalações da Ré para a fábrica da “ E… (€ 398,00) e ao custo das correias da máquina que foram substituídas pela “D…” (3) e cujo pagamento a mesma exigiu da aqui Ré (14,00 x 3= 42,00 €) – vide ponto 2) do segmento decisório final da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância (e, ainda, em complemento, a fundamentação jurídica constante da sentença sob o seu ponto 2.3.)
De facto, a terminar o recurso, a Ré/Apelante, aceitando a fundamentação jurídica convocada na sentença, mas partindo do pressuposto da alteração da factualidade provada nos termos por si defendidos, concluiu pela procedência total da reconvenção, aceitando, por um lado, o reconhecimento do crédito da Autora no valor de € 17. 527, 50 (parte do preço ainda em falta), mas reclamando já a compensação/extinção parcial deste crédito com o seu contra crédito parcelar de € 15.947,57 (correspondente ao preço dos alegados, mas não demonstrados, serviços de reparação efectuados pela “D… na máquina em apreço, após a intervenção do técnico italiano) e de € 400,00 (correspondente ao custo das três correias substituídas na máquina). [5]
Como assim, não havendo, ao contrário do defendido pela Ré/Apelante, que decretar qualquer alteração do quadro factual fixado na sentença e, em particular, não lhe sendo reconhecido, por isso, o seu alegado contra crédito de € 15. 947, 57, nenhuma alteração se impõe decretar relativamente à sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, que é, ao invés, de manter na íntegra.
Improcede, assim, a apelação interposta pela Ré.
*
IV.II. Ampliação do objecto do recurso deduzida pela Autora/Apelada:
Conhecido do objecto da apelação e decretada a sua improcedência, cumpre, ainda, conhecer e decidir das questões suscitadas pela Autora/Apelada no âmbito da ampliação do objecto do recurso deduzida pela mesma em sede de contra-alegações ao dito recurso.
A Autora/Apelada concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma:
“ Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, concluindo (…) pela manutenção da douta sentença proferida (…), com as alterações requeridas nas alegações 4ª, 5ª e 9ª, seguindo-se os ulteriores termos legais até final. “
Nas alegações 4ª, 5ª e 9ª consta, respectivamente, o seguinte:
“4ª Deveriam ter sido considerados provados as alegações 4ª, 5ª e 11ª da petição inicial;”
“5ª Deverá ser corrigido o facto constante da narrativa factual do ponto 21 de modo a passar a constar o seguinte:
A Autora propôs a substituição da referida máquina pela máquina de fecho Cx S – Aut DIM SM-446-HS+AS26DX, que permitia uma cadência máxima de dez caixas por minuto.”
“9ª Deveria ter sido deferido na íntegra o pedido da Autora de pagamento do montante de 23. 629, 90 €, acrescido de juros vencidos e vincendos.”
Como assim, em síntese, na ampliação do objecto do recurso, a Apelada pugna, em primeiro lugar, pela alteração da decisão de facto quanto à factualidade alegada sob os artigos 4º, 5º, 11º da petição inicial, que entende deverem ser julgados provados, e quanto ao ponto 21º do elenco dos factos provados, que entende que dever ser corrigido nos termos por si propostos e, em segundo lugar, em função dessa alteração da factualidade provada, pela consequente alteração da decisão constante da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância que, ao invés do decidido, deveria ter julgado totalmente procedente a acção e condenando a Ré no pagamento do montante de € 23.629,90, acrescido de juros vencidos e vincendos.
Com o devido respeito, em nosso julgamento, a Autora/Apelada confunde a ampliação do âmbito do recurso e os fins a que o dito expediente processual está adstrito em função do previsto no artigo 636º, n.ºs 1 e 2, do CPC com os fins do recurso (autónomo ou subordinado) que a parte, tendo ficado (total ou parcialmente) vencida no acto decisório, tem, obrigatoriamente, que interpor para, como pretende, ainda que de forma ínvia, a Apelada, ver alterada a decisão proferida em 1ª instância, naturalmente apenas na parte em que a mesma lhe foi desfavorável e em que ficou vencida.
Com efeito, no caso dos presentes autos, sendo indiscutivelmente ambas as partes, no confronto com o conteúdo da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, partes vencidas (a Ré pois o Tribunal decretou a parcial procedência do pedido reconvencional por si deduzido; A Autora pois que o Tribunal decretou também apenas a parcial procedência do pedido por si deduzido), qualquer uma delas só pode reverter a parte daquela decisão que lhe é desfavorável interpondo tempestivamente recurso autónomo (ou subordinado) desse acto decisório, como, aliás, fez a Ré/Apelante.
De facto, em nosso ver, está vedado à parte vencida na decisão (vencimento que se colhe por comparação entre a pretensão deduzida e o resultado final expresso no acto decisório concreto) alcançar aquele fim (alteração/revogação da sentença na parte que lhe é desfavorável) através da ampliação do objecto do recurso formulado em sede de contra-alegações, pois que tal resultado só é viável através do tempestivo recurso a interpor por essa mesma parte.
De facto, se analisarmos com algum pormenor as hipóteses contempladas no artigo 636º do actual CPC (e que antes estavam previstas nos mesmos termos no artigo 684º-A, do anterior Código), facilmente se alcança que o objectivo da ampliação do objecto do recurso não pode ser aquele que a Autora/Apelada através dele pretende alcançar, qual seja a alteração do acto decisório na parte em que o mesmo se lhe apresenta como desfavorável, ou seja, em termos concretos, decretar-se agora nesta instância, em sentido oposto ao sentenciado em 1ª instância, a procedência total da acção por si instaurada contra a Ré.
Se não, vejamos.
Desde logo, na hipótese contemplada no n.º 1 do artigo 636º, do CPC o que está em equação é o conhecimento pelo Tribunal ad quem de um dos vários fundamentos invocados na acção, abrindo-se, neste restrito âmbito, à parte vencedora a possibilidade de nas suas alegações ao recurso do recorrente requerer àquele Tribunal, ainda que a título subsidiário, que conheça de algum daqueles fundamentos por si invocados e não conhecido pelo Tribunal de 1ª instância, prevenindo a necessidade da sua apreciação, ou seja, se o recurso interposto pela parte contrária dever vingar e, nesta outra hipótese, poder ainda a sua pretensão ser acolhida à luz daquele outro fundamento por si invocado e não conhecido.
Como assim, é evidente, segundo cremos, que a hipótese desta norma não tem qualquer aplicação ao caso dos autos, não só porque não está em causa o conhecimento de algum outro fundamento da acção invocado pela Apelada e de que o Tribunal de 1ª instância não tenha conhecido na sentença, como, ainda, a Autora não é sequer parte vencedora, mas antes, como já referimos, parte vencida na parte ou segmento da sentença que a mesma ora pretende questionar e alterar.
Por seu turno, a previsão do n.º 2 do mesmo artigo contempla duas sub-hipóteses distintas.
A primeira respeita (1ª parte do citado n.º 2) à faculdade concedida ao recorrido, parte vencedora na decisão proferida, de, na respectiva alegação e a título subsidiário (ou seja, se o recurso do recorrente colher provimento), arguir a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e solicitar, na procedência de tal vício, ao Tribunal ad quem a apreciação da questão ou questões por si suscitadas e que, não tendo sido conhecidas na sentença, podem, na sua perspectiva, face à revogação da sentença, vir a assumir-se como decisivas, ainda assim, à procedência da sua pretensão.
Esta hipótese, no caso, também não colhe qualquer aplicação, na estrita medida em que nenhuma nulidade da sentença se mostra invocada pela Autora/Apelada e, ademais, não está em causa a apreciação de qualquer questão por si suscitada e que não tenha sido conhecida pelo Tribunal de 1ª instância.
A segunda mostra-se prevista no mesmo n.º 2 (2ª parte) e traduz-se na possibilidade dada ao recorrido, parte vencedora na decisão de 1ª instância, de, na respectiva alegação e a título subsidiário (em caso de procedência do recurso interposto pelo recorrente), impugnar a decisão proferida sobre pontos da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a eventualidade de triunfar a questão suscitada por este último. [6]
De facto, como salienta a propósito deste normativo A. ABRANTES GERALDES, “Recursos …”, cit., pág. 99, pode, a parte que tenha conseguido vencimento na acção, “ter interesse em acautelar-se contra a eventual procedência das questões suscitadas pelo recorrente, mediante a modificação da decisão da matéria de facto no sentido pretendido, a fim de continuar a beneficiar do mesmo resultado favorável que na primeira decisão foi declarado, na eventualidade de serem acolhidos os argumentos apresentados pelo recorrente.”
Ora, sendo assim, como é bom de ver, não só a Autora/Apelante não obteve vencimento na acção, pois que, ainda que em parte, a acção por si interposta foi julgada improcedente, como, ainda, o seu objectivo não é apenas o de continuar a beneficiar do mesmo resultado que obteve na sentença de 1ª instância, mas antes, de forma diametralmente oposta, como se referiu ab initio, reverter/alterar esse resultado, passando de uma procedência parcial da acção para, através da deduzida ampliação do objecto do processo, uma procedência total da acção, resultado este que não lhe foi atribuído na sentença de 1ª instância e que a mesma não «atacou» por via de recurso – como devia, se dela discordava - nessa parte.
Digamos, pois, em síntese final, retomando a posição que antes deixámos exposta e aproveitando o escrito de A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 97, “Se o decaimento se reportar a um pedido principal ou subsidiário que tenha sido formulado, não é através da ampliação do âmbito do recurso que o interessado poderá promover a reapreciação da decisão no segmento em que saiu vencido, mas mediante impugnação autónoma ou recurso subordinado.” [7]
Por conseguinte, à luz das razões antes descritas, não colhendo qualquer aplicação ao caso dos autos o preceituado no artigo 636º, n.ºs 1 e 2 do CPC e não tendo, ademais, colhido provimento o recurso interposto pela Ré/Apelante, de tudo decorre em termos lineares que não é sequer de conhecer dos fundamentos da ampliação do objecto do recurso nos termos defendidos pela Autora/Apelada, seja quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pela mesma, seja, ainda, quanto ao resultado final da acção, antes se impondo a rejeição da ampliação do âmbito do recurso, o que se decide.
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V. DECISÃO:
Pelo antes exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação interposta pela Ré “C…, Lda.”, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
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Custas pela Ré/Apelante, pois que ficou vencida no recurso – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 26.04.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião da Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo CPC”, 2ª edição, pág. 254 (ou, ainda, págs. 232-233).
[2] Sobre as conclusões enquanto meio de delimitação do objecto da apelação, vide, por todos, A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, L. FILIPE PIRES de SOUSA, “CPC Anotado”, I volume, 2ª edição, pág. 788-789 e F. AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 150-151.
[3] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132, A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, L. FILIPE PIRES de SOUSA, “CPC Anotado”, I volume, 2ª edição, pág. 798 e, por todos, AC STJ de 23.02.2010, relator Sr. Juiz Conselheiro FONSECA RAMOS, AC STJ de 29.10.2015, relator Sr. Juiz Conselheiro LOPES do REGO, AC STJ de 7.07.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro GONÇALVES ROCHA, AC STJ de 13.11.2019, relator Sr. Juiz Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS, AC STJ de 17.11.2020, relator Sr. Juiz Conselheiro JORGE DIAS e AC STJ de 26.01.2021, relator Sr. Juiz Conselheiro PINTO de ALMEIDA, todos in www.dgsi.pt.
[4] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 134 e, ainda, AC STJ de 29.10.2015, antes citado, AC STJ de 24.05.2018, relator Sr.ª Juíza Conselheira FERNANDA ISABEL PEREIRA e AC STJ de 19.12.2018, relator Sr.ª Juíza Conselheira MARIA GRAÇA TRIGO, disponíveis no mesmo sítio oficial.
[5] A indicação do valor de € 400, 00 por parte da Ré/Apelante terá ficado a dever-se, segundo cremos, a um evidente lapso de escrita, pois que na sentença recorrida se reconhece um contra crédito da Ré de € 440,00 e não de € 400,00.
[6] Vide, neste sentido, sobre a interpretação e aplicação das várias hipóteses previstas no artigo 636º, do CPC (ou do correspondente artigo 684º-A, do anterior Código), por todos, F. AMÂNCIO FERREIRA, op. cit., pág. 153-155, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos …”, cit., pág. 96-103.
[7] Vide, neste sentido, ainda, por todos, AC RP de 16.09.2013, relator Sr. Juiz Desembargador MANUEL DOMINGOS FERNANDES e AC STJ de 29.05.2014, relator Sr. Juiz Conselheiro JOÃO BERNARDO, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.