Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9455/09.7TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO USADO DEFEITUOSO
DEFESA DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RP201503029455/09.7TBMAI.P1
Data do Acordão: 03/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A existência de um contrato de compra e venda de um automóvel usado celebrado entre um profissional (o réu vendedor) e um consumidor ou comprador não profissional (o autor comprador), ou seja, uma pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional (artº, 2 nº 1, da Lei nº 24/96, de 31/07 (Lei de Defesa do Consumidor - LDC), configura um contrato de compra e venda de bem de consumo e só para esse caso é que vale o regime jurídico específico da venda de bens de consumo (artºs 1 nº 1, 1-A do Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção do artº 1 do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio);
II - A manifesta “desconformidade face ao contrato de compra e venda” celebrado pelas partes, resultante da discrepância entre a comprovada real quilometragem da viatura muito antes da data em que foi vendida ao apelante, confere ao autor (comprador consumidor) o direito de resolução contratual previsto no aludido artº 4º do DL nº 67/2003;
III - A regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artº 434º, do CC), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra;
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
IV - Não sendo, no caso, possível ao autor restituir ao demandado o automóvel ZN no estado em lhe foi entregue, deverá ser deduzido do preço a restituir a desvalorização da viatura decorrente da utilização desta durante cerca de um ano, cuja determinação se remete para liquidação (incidente regulado no artº 358º e seguintes do CPC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 9455/09.7TBMAI.P1 - APELAÇÃO

Relator: Desem. Caimoto Jácome(1514)
Adjuntos: Desem. Macedo Domingues
Desem. Oliveira Abreu
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1-RELATÓRIO

B…, com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum sumário, contra C…, com os sinais dos autos, pedindo:
a) Seja resolvido o contrato nos termos do artigo 12º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96 de 31 de Julho) e artigo 4º do Regime da venda de bens de consumo (DL 67/2003 de 8 de Abril), devendo o Réu ser condenado a restituir ao Autor o preço pago por este e a pagar uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar em execução de sentença, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a € 3.000,00, custas e condigna procuradoria;
b) Ou, subsidiariamente, e caso assim não se entenda, ser substituída a viatura objecto dos presentes autos nos termos do disposto no artigo 12º da lei de Defesa do Consumidor, por outra de iguais características, com quilometragem nunca superior a 115.000 kms e a pagar uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar em execução de sentença, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a €3000,00, custas e condigna procuradoria;
c) Em alternativa, ser anulado o contrato nos termos do artigo 913º do Código Civil, devendo o Réu ser condenado a restituir ao Autor o preço pago por este e a pagar uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar em execução de sentença, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a €3000,00, custas e condigna procuradoria;
d) Em alternativa, ser anulado o contrato por dolo nos termos do artigo 253º, nº1 do Código Civil, devendo o Réu ser condenado a restituir ao Autor o preço pago por este e a pagar uma indemnização por “culpa in contraendo” a liquidar em execução de sentença, por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa fé, desde os preliminares até à conclusão do negócio, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a €3000,00, custas e condigna procuradoria;
e) Em alternativa, ser anulado o contrato por erro-vício nos termos do artigo 252º do Código Civil, devendo o Réu ser condenado a restituir ao Autor o preço pago por este e a pagar uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar em execução de sentença, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a € 3.000,00, custas e condigna procuradoria;
f) Ser declarado nulo o contrato por abuso de direito nos termos do artigo 334º do Código Civil, devendo o Réu ser condenado a restituir ao Autor o preço pago por este e a pagar uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar em execução de sentença, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a €3000,00, custas e condigna procuradoria.
Alegou, em síntese, que comprou ao Réu, no seu stand, um veículo de marca Audi, pelo valor de € 18.750,00, veículo esse que não tinha as qualidades e características asseguradas pelo vendedor, designadamente tinha mais quilómetros do que aqueles que marcava. Se o Autor tivesse conhecimento da real quilometragem do veículo não o teria comprado. O veículo padece ainda de diversas anomalias que o impedem de funcionar. Para o seu pagamento o Autor contraiu um empréstimo que continua a pagar.
Citado, o Réu contestou, alegando que correspondente à verdade que vendeu o veículo ao Autor mas que tudo o resto alegado por este é falso.
Mais alegou que o veículo vendido ao Autor tinha sido comprado na Alemanha, já usado e que antes do Autor o adquirir já havia sido adquirido por outros compradores, não apresentando quaisquer problemas ou anomalias, sendo aliás, objecto de diversas inspecções periódicas que não detectaram nenhum problema.
**
Saneado, condensado e instruído o processo, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento.
Após julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu (dispositivo):
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolve-se o Réu dos pedidos contra si formulados.
Custas pelo autor.”.
**
Inconformado, o autor apelou, tendo, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
A- DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
I. Sra. Dra. Juiz decidiu de forma imotivada, arbitraria, injusta, sem qualquer suporte probatório para além das declarações do autor em depoimento de parte, sendo certo que não se verifiquem também os requisitos dos artigos 251 ou 254 do C.CIV., como resulta dos seus artigos 905 e 913.”
Existem os dados objetivos que se apontam na motivação violando os princípios para a aquisição desses dados objetivos.
II. Houve manifesto erro de valoração do depoimento de parte do autor, e por conseguinte ERRO DE JULGAMENTO QUANTO Á MATERIA DE FACTO, uma vez que:
1. Os quesitos 19º a 27º da base instrutória, dizem respeito a factos alegados pelo réu, que não eram do conhecimento do autor não tendo este obrigação de os conhecer, e como tal não passíveis de confissão por parte do mesmo, sendo certo que cabia ao réu o ónus de prova.
Pelo que, o depoimento realizado nestes termos, traduz-se num uso indevido desse meio de prova, por falta de correspondência funcional e teleológica entre o meio processual e o objeto do meio de prova fixado na lei;
2. Acresce, que, extravasando o objeto do depoimento de parte a Exma. Sra. Dra. Juíza, à revelia daquilo que a lei lhe impunha, considerou as declarações do autor em depoimento de parte, para de forma singela e infundada, dar como não provados nomeadamente os quesitos 9º a 15º da base instrutória, quando se impunha a sua não valoração por, na verdade, ser absolutamente vazio de qualquer força probatória, na ausência de quaisquer outros meios de prova que o corrobore, considerando-se a livre apreciação nos termos do art.º 361º do CC.
3. Mais se demonstra como pouco imparcial, insuficiente a fundamentação do Tribunal recorrido - respeitante à valoração das declarações do A. quanto aos factos que lhe são desfavoráveis e à não valoração dos que lhe são favoráveis.
III. Acresce que o princípio da livre apreciação da prova está sujeito a limites, nomeadamente quanto a presunções legais stricto sensu (artº 350º do C.C.).
IV. Ora, o artº 3º nº 1 da Diretiva 1994/44/CE, de 25/5 (reproduzido no Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), estabelece uma presunção legal a favor do autor/consumidor de responsabilidade do vendedor independentemente de culpa por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
V. Pelo que não poderia o Tribunal “a quo” nortear-se “pelo principio da livre apreciação da prova”, pois este principio cede perante a existência de uma presunção legal.
VI. Pelo que não poderia o tribunal considerar – como o fez – com base no depoimento de parte do autor que “… é possível concluir que no momento da celebração do contrato, o veículo foi examinado pelo autor não apresentando qualquer deficiência ou defeito, que permita a responsabilização do réu nos termos peticionados pelo autor, tanto mais que nem sequer se provou que o réu tinha efetivo conhecimento da diferença da quilometragem verificada”.
VII. Ao decidir desta forma, o tribunal “A Quo” apreciou a prova de forma arbitrária violando o disposto no artigo 350º e o principio da livre apreciação da prova (artº 396º do C.C.) e bem assim o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
VIII. De igual forma, houve do artigo 1º do protocolo nº1 da CEDH uma vez que estão em causa bens ou direitos, tendo sido violada a propriedade do autor.
IX. Na formação da convicção da Exma. Sra. Juíza, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam estar subjacentes, pois houve desvios às regras de experiência comum e manifestos erros de julgamento.
X. Houve erro na apreciação da matéria de facto, em especial quanto aos números 4, 5, 9 a 15 e 27 da Base Instrutória e 24, 26 a 30, 33, 36, 37 e 42 da Petição Inicial.
XI. Tendo em conta os depoimentos do autor e das testemunhas D…, de E…, de F… e de G…, cujos depoimentos convergiram sobre o mesmo problema, o tribunal deveria ter dado como PROVADO, pelo menos, que o veículo automóvel do autor “padece de vários problemas mecânicos”, na medida em que esse facto é complementar aos factos essenciais alegados pela parte, e de que deveria ter tido conhecimento (quesito 4º da base instrutória).
XII. De igual forma, quanto ao quesito 5º da base instrutória, tendo em conta os depoimentos do autor e das testemunhas, F…, de E… e de G…, deveria o Tribunal “A Quo” ter dado como PROVADO pelo menos, “veículo esteve parado por motivo de reparação, pelo menos, mais do que uma vez”, porquanto estamos diante de um facto complementar que merece ser valorado.
XIII. Quanto ao quesito 9º da base instrutória, tendo em conta o depoimento do autor e os depoimentos de F… e de E…, deveria o Tribunal “A Quo” dar como PROVADA a “interpelação por parte do Recorrente, para a reparação do veículo” com base nos problemas reportados.
XIV. Acresce que, descurou a Meritíssima Juíza do Tribunal “A Quo” que a citação da ação declarativa aqui em apreço configura, ipso facto, a interpelação para a resolução do negócio, conforme o pedido formulado.
XV. Quanto aos quesitos 10º e 11º da base instrutória, deveria ter-se dado como PROVADO que “o réu nada fez para averiguar da real quilometragem do veículo”, e bem assim, “que o réu conhecia, ou pelo menos, não devia ignorar a essencialidade para o autor de uma das qualidades do veículo, a saber, a quilometragem”, tendo em conta os depoimentos de parte do Réu, C…, e da Testemunha do Réu, H… e até pelas regras da experiência tendo em conta a imposição da prática comercial do seu negócio.
XVI. Acresce que, comprovados os defeitos, cabia ao réu ilidir a presunção de culpa que a onerava, nos termos do art.º 799º, n.º 1, do CC, (presume-se a culpa do devedor se a coisa entregue padecer de defeito - art.º 799.º, n.º 1, do CC-, competindo ao comprador a prova deste - art.º 342, n.º 1, do CC) o que não fez, pelo que, também por aqui, deveria o tribunal ter dado como provados os referidos quesitos.
XVII. Quesito 12º e 13º da base instrutória (…)
XVIII. Quanto ao artigo 24º da petição inicial não quesitado, mas com intima ligação ao quesito 9º da base instrutória, deveria no entanto ter sido considerado na sentença - uma vez que resulta da instrução da causa, tendo em conta o disposto no art.º 5º nº2 alínea a) e b) e 607º nº 4º do NCPC - e tendo em conta os depoimentos das testemunhas F…, D… e G…, deveria ter-se dado como PROVADO que “houve incessante recusa por parte do Réu em assumir responsabilidades na reparação da viatura”.
XIX. Quanto aos quesitos 14º e 15º da base instrutória, tendo em conta o depoimento de parte do autor e das testemunhas C…, deveria ter-se dado como PROVADO que “uma das principais motivações do autor para a compra do veículo foi a quilometragem de 115.000 que marcava na data da compra” e que a “alteração da mesma, prejudicou o autor e prejudicaria qualquer comprador”.
B- DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO:
XX. Houve erro na INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI DO CONSUMIDOR E REGIME DE VENDA DE BENS AO CONSUMO E ARTºS 252º, 913º E 334º DO CÓDIGO CIVIL.
XXI. Porquanto de acordo com o artº 3º nº 1 da Diretiva 1994/44/CE, de 25/5 (reproduzido no Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), o vendedor responde independentemente da culpa perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
XXII. A Exma. Senhora Dra. Juíza, apesar de ter identificado o regime a aplicar (artº 2º nº1 do Regime de Venda dos Bens de Consumo), focou a sua atenção nas focando a sua atenção para as alíneas c) e d), descurando de forma incompreensível a alínea a) que estabelece uma presunção de desconformidade sempre que “os bens vendidos não sejam conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo”.
XXIII. Entendimento corroborado também pelo artº 12º da Lei 24/96 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor).
XXIV. Ao não entender dessa forma, o tribunal “A Quo” violou a aplicação do artº 2º nº2 alinea a) do regime de venda de bens de consumo e bem assim, o artº 12º da Lei 24/96 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor).
XXV. De igual forma, houve erro na INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO REGIME DO ERRO-VICIO E REGIME GERAL DO CÓDIGO CIVEL DA VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS porquanto no caso dos autos, tendo presente os factos que se considera provados, nomeadamente o descrito em 8) e 13) não pode deixar de concluir-se pela essencialidade para o Autor (comprador/declarante) do objeto (quilometragem) sobre que incidiu o erro determinante da vontade, sendo certo que, o Réu (declaratário) conhecia ou, ao menos, não devia ignorar a essencialidade para o Autor de uma das qualidades do veículo, a saber a respetiva quilometragem, tendo em conta que se trata de comerciante de veículos automóveis usados.
XXVI. Sendo certo que, provados os defeitos, caberia ao réu, ilidir a presunção de culpa que a onerava, nos termos do art.º 799º, n.º 1, do CC, o que não fez!...
XXVII. Assim, da matéria que se tem como provada, resulta que a quilometragem apresentada no quadrante respetivo aquando do negócio foi essencial para o A. tomar a decisão de lhe adquirir o veículo em causa.
XXVIII. Mais acresce que, tendo sido dado como provado que o réu/vendedor garantiu que aqueles quilómetros marcados eram os reais, dentro daquela mesma lógica, a exigibilidade desse acordo releva principalmente por mostrar-se necessário que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que recaiu o erro determinante da vontade,
XXIX. Pelo que se entende que houve incorreta apreciação do art.º 251º e do art.º 249º, ambos do C. Civil.
XXX. Assim, impõe-se a revogação da sentença e a sua substituição por outra que:
1- Aplicando do art.º 2º, n.º 2, alínea a) do Regime de Venda de Bens ao Consumo e artº 12º da Lei de Defesa do Consumidor, declare a presunção de desconformidade entre o contrato e o veículo que foi vendido, ou,
2- Aplique o art.º 251º no sentido de que os “pressupostos aí exigidos que se reportam ao art.º 249, nomeadamente a essencialidade para o recorrente, e o dever do Recorrido conhecer dessa essencialidade por parte, encontram-se verificados, colmatando assim a exigência de que houve acordo e reconhecimento tácito sobre a essencialidade do elemento “quilometragem”, ou;
3- Aplique o artº 905º do C.C. no entendimento de que se o direito transmitido não possuir as qualidades asseguradas pelo vendedor, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência, declarar-se a ação provada por procedente a ação, condenando-se o réu nos pedidos formulados pelo autor o que deverá ser determinado por esta Relação nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 662.° n.º 1, alínea a), do CPC.

Na resposta à alegação, o apelado defende o decidido.
**
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2, do C.P.Civil (actualmente arts. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2).
*
2.1- OS FACTOS

O autor/apelante insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, integrada na sentença.
Na sua perspectiva, houve erro na apreciação da matéria de facto, em especial quanto aos números 4, 5, 9 a 15 e 27, da base instrutória, e 24, 26 a 30, 33, 36, 37 e 42, da petição inicial.
Entende o recorrente que:
- Tendo em conta os depoimentos do autor e das testemunhas D…, de E…, de F… e de G…, cujos depoimentos convergiram sobre o mesmo problema, o tribunal deveria ter dado como PROVADO, pelo menos, que o veículo automóvel do autor “padece de vários problemas mecânicos”, na medida em que esse facto é complementar aos factos essenciais alegados pela parte, e de que deveria ter tido conhecimento (quesito 4º da base instrutória).
- De igual forma, quanto ao quesito 5º da base instrutória, tendo em conta os depoimentos do autor e das testemunhas, F…, de E… e de G…, deveria o Tribunal “A Quo” ter dado como PROVADO pelo menos, “veículo esteve parado por motivo de reparação, pelo menos, mais do que uma vez”, porquanto estamos diante de um facto complementar que merece ser valorado.
- Quanto ao quesito 9º da base instrutória, tendo em conta o depoimento do autor e os depoimentos de F… e de E…, deveria o Tribunal “A Quo” dar como PROVADA a “interpelação por parte do Recorrente, para a reparação do veículo” com base nos problemas reportados.
- Acresce que, descurou a Meritíssima Juíza do Tribunal “A quo” que a citação da ação declarativa aqui em apreço configura, ipso facto, a interpelação para a resolução do negócio, conforme o pedido formulado.
- Quanto aos quesitos 10º e 11º da base instrutória, deveria ter-se dado como PROVADO que “o réu nada fez para averiguar da real quilometragem do veículo”, e bem assim, “que o réu conhecia, ou pelo menos, não devia ignorar a essencialidade para o autor de uma das qualidades do veículo, a saber, a quilometragem”, tendo em conta os depoimentos de parte do Réu, C…, e da Testemunha do Réu, H… e até pelas regras da experiência tendo em conta a imposição da prática comercial do seu negócio.
- Acresce que, comprovados os defeitos, cabia ao réu ilidir a presunção de culpa que a onerava, nos termos do art.º 799º, n.º 1, do CC, (presume-se a culpa do devedor se a coisa entregue padecer de defeito - art.º 799.º, n.º 1, do CC-, competindo ao comprador a prova deste - art.º 342, n.º 1, do CC) o que não fez, pelo que, também por aqui, deveria o tribunal ter dado como provados os referidos quesitos.
- Quanto ao artigo 24º da petição inicial não quesitado, mas com intima ligação ao quesito 9º da base instrutória, deveria no entanto ter sido considerado na sentença - uma vez que resulta da instrução da causa, tendo em conta o disposto no art.º 5º nº2 alínea a) e b) e 607º nº 4º do NCPC - e tendo em conta os depoimentos das testemunhas F…, D… e G…, deveria ter-se dado como PROVADO que “houve incessante recusa por parte do Réu em assumir responsabilidades na reparação da viatura”.
- Quanto aos quesitos 14º e 15º da base instrutória, tendo em conta o depoimento de parte do autor e das testemunhas C…, deveria ter-se dado como PROVADO que “uma das principais motivações do autor para a compra do veículo foi a quilometragem de 115.000 que marcava na data da compra” e que a “alteração da mesma, prejudicou o autor e prejudicaria qualquer comprador”.
Vejamos.
Fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas, consagrada no artº 607º, nº 5, do CPC (anterior artº 655º, nº 1), em princípio essa matéria é inalterável.
A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode/deve, no entanto, ser alterada pela Relação nas situações previstas no artº 662º, do CPC (anterior artº 712º).
Dispõe o normativo (n.º 1) que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Com efeito, a Relação, enquanto Tribunal de 2ª instância, possui a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à reapreciação da prova ali produzida, fazendo incidir as regras da experiência e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, de modo a formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnada.
Importa considerar que a Relação deve, por regra, reapreciar toda a prova produzida e não apenas a indicada pelo recorrente e que, porventura, lhe seja favorável.
Deve ter-se presente o disposto no CPC (actual artº 662º, nºs 2, als. a) e b), e 3) no concernente à possibilidade de renovação da produção da prova, o que, no caso, achamos desnecessário.
O recorrente cumpriu, no essencial, o ónus imposto nos nºs 1 e 2, al. a), do artº 640º, do CPC (“quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes)”.
No caso, não ocorreu a junção superveniente de qualquer documento e do processo constam todos os elementos em que se baseou a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto, documentos, depoimentos de parte e das testemunhas, registados num CD gravado.
Como se ponderou no acórdão proferido, em 17/12/2014, no processo nº 186/06.0TBVLG.P1, desta Relação e secção, “Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto, consubstanciado na reapreciação dos meios de prova, foram aumentados no âmbito do actual código de processo civil, cfr. se verifica do art. 662º e do comentário tecido por Teixeira de Sousa ao Ac. do STJ de 24.9.2013 in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs.29 e ss.
Como refere Abrantes Geraldes, ob. supra cit., pág. 233, a respeito da reapreciação dos meios de prova, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), (do actual art. 662º) fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.”.
Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas de que resultou a nova decisão, especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para “…formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto…”, novamente, Abrantes Geraldes, na mesma obra, pág. 247.
Resulta do exposto, que se mostra definitivamente afastada a defesa de que, apenas, se devia proceder à alteração da decisão da matéria de facto em casos de manifestos erros de reapreciação.
Acrescendo que, cumpre ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Tudo, sem esquecer, em particular, quando se procede à reapreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º, nº5, 1ª parte.
Lembrando, a este propósito, os ensinamentos deixados pelo Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol IV, pág. 569, onde refere, “…prova…livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei.”. Impondo-se, por isso, ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto, seja dos factos provados, seja dos factos não provados, cfr. resulta do nº4 daquele art. 607º.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
Sendo através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que a Relação vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
No entanto, nesta apreciação, não pode o Tribunal da Relação ignorar que, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que, em princípio, no sistema da gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados, não podem ser importados para a gravação, como sejam aqueles elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo exterior do depoente que influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo, assim, actos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador, cfr. Ac. do STJ 28.5.2009 in www.dgsi.pt.
Perante o exposto e tendo nós concluído que devemos conhecer do recurso acerca da decisão proferida sobre a matéria de facto, importa, no entanto, que o façamos, tal como já antes defendíamos, com a minúcia devida.
Pois, como era entendimento generalizado e que não se mostra contrariado, no âmbito do novo código, a consagração de um segundo grau de jurisdição sobre a matéria de facto não significa que se proceda a um novo julgamento da causa no Tribunal da Relação.
Este tribunal de recurso apenas reapreciará os pontos da matéria de facto em relação aos quais existe desacordo.
Nessa tarefa, este tribunal de 2ª instância, depois de realizar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas, formará a sua convicção. No entanto, reconhece-se uma substancial inferioridade do tribunal de recurso em relação ao tribunal da 1ª instância quanto à apreensão absoluta do conteúdo da prova produzida em julgamento.
Na verdade, o contacto directo com os depoentes em audiência permite colher impressões do comportamento de cada um deles que habilitam o Juiz a concluir pela veracidade ou não dos respectivos depoimentos, o que é impossível de transmitir através da reprodução dos registos sonoros. Mesmo relativamente ao registo vídeo, a sua reprodução não possibilita a interacção da pergunta - resposta, típica do diálogo da audiência, ficando os Juízes numa posição passiva ou estática, tendo de se conformar com o material que lhes é dado, pois não podem pedir esclarecimentos, por exemplo. E, sendo os nossos registos apenas sonoros, a sua falibilidade é muito maior.
É uma realidade que já no preâmbulo do Dec. nº 12 353, de 22.9.1926, se assinalava, com toda a pertinência, que “a psicologia judiciária ensina que um dos elementos a que deve atender-se para apreciar o valor de um depoimento é a atitude da testemunha, o modo como ela se apresenta, a forma por que depõe, o tom de firmeza ou de embaraço que imprime às suas declarações. Não é exagerado afirmar-se que mais do que aquilo que a testemunha diz vale o modo por que o diz”, anotação 322, a pág. 243, dos Recursos no Novo Código de Processo Civil de Abrantes Geraldes, supra citada.”
Dito isto, atentemos na motivação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença:
“O juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis.
Num primeiro aspecto tem em conta a credibilidade da prova e depende substancialmente da imediação, onde intervêm elementos não racionais explicáveis.
Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir de factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.
Dir-se-á, ainda, que a credibilidade que o julgador atribuiu ao depoimento de cada testemunha assenta no contacto directo que estabelece dialecticamente com as testemunhas em que, para além da razão da ciência e da expressão verbalizada, traduzida nas respostas dadas a cada pergunta, intervêm um conjunto de outros elementos físicos e psicológicos inerentes à postura mantida em audiência por cada testemunha ao longo do seu depoimento e que no seu conjunto integram o que se designa por “linguagem silenciosa do comportamento”.
Partindo de tais premissas, dir-se-á que no caso dos autos a convicção do tribunal ao dar as respostas que antecedem fundou-se na análise crítica e conjugada dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, com os documentos juntos aos autos, análise essa feita à luz das regras da experiência comum e norteada pelo princípio da livre apreciação da prova (artigo 396º do Código Civil).
Assim, o tribunal atendeu ao depoimento de parte do Autor que, embora nada tendo confessado, transmitiu ao tribunal alguns factos que se mostraram relevantes para a formação da convicção.
Desde logo, resultou claro para o tribunal que o veículo em causa (Audi ..) era o veículo dos sonhos do Autor, era o carro que o mesmo queria e até a cor (cinzento) correspondia aos desejos do Autor; tanto é assim, que o autor referiu que comprou o veículo sem o experimentar e que se o mesmo tivesse mais quilómetros pensaria e se calhar também o compraria; aliás, o Autor referiu claramente que o veículo aparentemente estava impecável e que o factor determinante para a decisão de o comprar foi precisamente a aparência do veículo.
Diga-se que estas declarações do Autor foram prestadas espontaneamente pelo mesmo aquando da inquirição do tribunal, sendo certo que em momento posterior e quando reinquirido pelo seu Ilustre Mandatário, veio o mesmo alterar tal depoimento, dando o dito pelo não dito, numa tentativa de criar dúvidas ao tribunal. Mas na verdade, dos depoimentos das próprias testemunhas indicadas pelo Autor, resultou claro que o Autor estava todo contente com a aquisição do veículo por ser o veículo que sempre quis.
O tribunal atendeu ainda à análise crítica e conjugada dos depoimentos das seguintes testemunhas:
- as testemunhas do Autor D…, G…, e E…, todos amigos do Autor e F…, irmão do Autor, cujos depoimentos forma marcados sobretudo pelo relato dos factos que lhe foi transmitido pelo próprio Autor, não relevando particular conhecimento directo dos mesmos; com efeito, sobretudo as três primeiras testemunhas depuseram essencialmente com base nas queixas que o Autor lhes transmitia, referindo, contudo, que inicialmente o autor se mostrou muito satisfeito e contente com o veículo que aparentava estar como novo (conforme referiu expressamente a testemunha E…).
Também a testemunha F… depôs essencialmente com base naquilo que o Autor lhe transmitiu e no que viu em relação ao aspecto do veículo, referindo que a primeira vez que o viu lhe pareceu que estava aparentemente impecável, vindo a constatar mais tarde que afinal apresentava desgaste ao nível dos interiores. Referiu ainda que se o Autor soubesse quais os quilómetros reais e se conhecesse os problemas do veículo, nunca o teria comprado, mas na verdade não foi isso que o próprio Autor disse, sendo ainda certo que o autor andou com o veículo cerca de meio ano até começar a manifestar-se desagradado com o mesmo.
- as testemunhas do Réu I…, mecânico da oficina que trabalha para o stand do Réu e que procedeu ao alinhamento da direcção d veículo, referindo que o mesmo aparentava estar estimado e em boas condições; H…, que acompanhou o Réu à Alemanha para adquirir o veículo e que foi proprietário do mesmo tendo andado com ele durante cerca de seis meses, tendo referido que o veículo estava aparentemente novo, por fora e por dentro e que durante o tempo em que o veículo esteve consigo nunca lhe deu problemas; J…, K…, e L…, inspectores que procederam à inspecção periódica do veículo de acordo com o referido, respectivamente, nos documentos nºs 5, 6 e 2 juntos com a contestação, que forma exibidos e confirmados em audiência e a testemunha N… que comprou o veículo em causa, antes do Autor o ter adquirido e que o comprou em nome do irmão, M…, para facilitar o acesso ao crédito, referindo que enquanto o veículo esteve em seu poder nunca teve problemas mecânicos e tinha uma aparência impecável.”.
Recorde-se, desde logo, que a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 191).
Dispõem os arts. 452º, 453º e 454º, do CPC, sobre a prova por confissão e declarações das partes.
No mencionado artº 452º, estatui-se sobre o depoimento de parte: quem pode prestá-lo, de quem pode ser exigido e sobre que factos pode recair do ponto de vista da sua relação com a pessoa do depoente.
O depoimento de parte é o meio processual destinado a provocar e obter a prova por confissão judicial (arts. 352º e 356º do Código Civil (CC)).
Esse depoimento, apenas, tem valor confessório se tiver por objecto o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, caso em que faz prova plena em relação aos factos admitidos a favor da parte contrária.
No caso de esse reconhecimento dos factos desfavoráveis não poder valer como confissão, como por exemplo por falta de capacidade ou de legitimação do depoente, o tribunal avaliará livremente o depoimento como elemento probatório (artº 361º, do CC).
A confissão constitui prova, não a favor de quem a emite, mas a favor da parte contrária; portanto recai necessariamente sobre factos desfavoráveis ao confitente e favoráveis ao seu adversário (Alberto dos Reis, Código Processo Civil, Anotado, Vol. IV, pág. 70).
Apesar de o depoimento de parte ser um meio processual destinado a provocar a confissão judicial, mostra-se ultrapassada a concepção restrita de tal depoimento vocacionada exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto.
Como, entre outros, se refere no Ac. do STJ de 16/03/2011 (proc. 237/04.3TCGMR.S1, acessível em www.dgsi.pt.), o juiz no depoimento de parte não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher alguns elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”.
A lei processual civil tem feito florescer cada vez mais os poderes inquisitórios, em detrimento do princípio do dispositivo, com vista à maior aproximação do juiz à verdade material, sendo disso afloramento os art.s 6º, 7º, 411º e 452º, nº 1, do NCPC (correspondentes aos art.s 265º nº3, 266º, nº 2 e 552º, nº1, do CPC revogado).
Permite-se que o Tribunal, em qualquer altura do processo, possa determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento sobre factos que interessem à decisão da causa (arts. 452, nº 1 e 607º, nº 1).
Acrescendo que do art. 463º, nº 1, “a contrario”, resulta que quando a parte presta o seu depoimento não se visa exclusivamente a confissão.
Donde, há que concluir que nada obsta, a que o tribunal na sequência dos poderes que tem de ouvir qualquer pessoa, incluindo as partes, por sua iniciativa, na busca da verdade material, tome em consideração, para fins probatórios, as declarações não confessórias da parte, as quais serão livremente apreciadas, nos termos do art. 607º, nº 5, do CPC.
A confissão e o depoimento de parte são, pois, realidades jurídicas distintas, sendo este mais abrangente do que aquela, por ser um meio de prova admissível mesmo relativamente a factos que não sejam desfavoráveis aos depoentes, caso em que ficará sujeito à livre apreciação do tribunal. No sentido de que os simples esclarecimentos ou afirmações que não possam valer como confissão, podem valer como elementos probatórios sujeitos à livre apreciação do Tribunal (Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 573, F. Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, pág. 387, Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 248, Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, pág. 211 e os Acs. do STJ, de 02.10.2003, no proc. 03B1909, de 5.11.2008, procº 1902/2008, de 21.01.2009, procº 3966/2008, 10.12.2009, e de 20.01.2004, procº03S3474, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Concordamos, pois, com o entendimento, que as declarações, prestadas pelas partes, sob juramento (art. 459º, do CPC) podem ser valoradas pelo tribunal a quo para fundar a sua convicção acerca da veracidade de factos controvertidos favoráveis a qualquer delas.
Aliás, no novo CPC prevê-se a prova por declarações de parte (artº 466º).
Pois bem.
Ouvimos o registo fonográfico (CD) com os depoimentos de parte e testemunhais, transcritos, em parte, pelo recorrente.
Ora, analisados esses relatos (todos, incluindo o depoimento do réu) e ponderada a prova documental junta com os articulados, segundo critérios de valoração racional e lógica, com recurso aos conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no meio social dos intervenientes processuais e as regras da experiência comum, afigura-se-nos razoável a convicção negativa da julgadora da 1ª no tocante à matéria vertida nos quesitos 4, 5, 10 a 15 e 26, da base instrutória, bem como relativamente à matéria alegada nos artigos 24, 26 a 30, 33, 36, 37 e 42, da petição inicial, e que contêm, na maior parte, juízos conclusivos.
As testemunhas, arroladas pelo autor, D… (motorista), G… (desempregado), E… (reformado por invalidez) e F… (motorista de pesados e irmão do autor) apenas relataram factos que lhes foram transmitidos pelo autor, não assistindo a qualquer conversa entre o demandante e o demandado, nem sabendo dizer, de modo consistente e credível, qual ou quais os defeitos do automóvel em causa (Audi .. de matrícula ..-..-ZN), a não ser o alinhamento da direcção e a saída de fumo escuro do escape.
Afirmaram que, durante o primeiro ano (praticamente em 2009) em que o autor utilizou o veículo, o autor B… teve de mudar por três vezes os pneus ao carro, o que, embora possível, não deixa de ser altamente improvável.
Apenas a testemunha F… referiu ter levado o irmão B…, duas ou três vezes, a uma oficina onde estava o veículo em causa, durante o período da garantia prestada pelo réu.
Não se mostra junto aos autos o comprovativo da(s) alegada(s) reparação(ões) e respectivo custo do automóvel Audi ...
No que concerne à quilometragem do automóvel, a prova produzida não evidencia, com a segurança exigível, ter sido o réu a alterar, para menos, a numeração da mesma quando o adquiriu, em 2005, na Alemanha, ou posteriormente, estando acompanhado pela testemunha H… (técnico industrial), que veio a comprar o veículo Audi ...
Essa testemunha (H…) depôs de modo sereno, conhecedor dos factos relatados, mostrando-se bastante credível. Referiu que a quilometragem (85.333 Kms) do Audi .., no dia e local em foi adquirido, na Alemanha, constava do respectivo livro das revisões e estava afixada no vidro da frente da viatura.
Disse, ainda, que o carro estava com bastante bom aspecto, tendo-o utilizado durante cerca de seis meses, sem qualquer problema mecânico ou outro.
Também a testemunha N… (cortador de carnes, a quem o réu vendeu o veículo, em Outubro de 2006, sendo intermediário o seu irmão M…) afirmou ter utilizado o Audi .., durante cerca de dois anos, sem necessidade de qualquer reparação mecânica ou outra.
Compreende-se e apoia-se, por isso, o concluído na motivação da decisão sobre a matéria de facto, considerando-se que não existe fundamento para alterar o decidido sobre a factualidade em causa, com ressalva da matéria contida no quesito 9º, da base instrutória, adiante analisada.
A prova testemunhal e documental mencionada na motivação da julgadora da 1ª instância, suporta a convicção negativa no respeitante àquela realidade factual.
O resumo do essencial desses depoimentos, feito pela julgadora da 1ª instância, na descrita motivação, corresponde à nossa percepção do relatado, no que concerne à credibilidade e consistência conferida aos depoimentos das referidas testemunhas e da relevância da documentação junta.
Significa isto que, apesar das naturais limitações (respeito pelo princípio da imediação) na análise dos registos gravados dos depoimentos de parte e das testemunhas, ponderada a descrita motivação da decisão sobre a matéria de facto, os juízes desta Relação consideram não existirem razões para alterarem o decidido na 1ª instância, concordando, assim, com o julgamento da matéria de facto proferido no tribunal recorrido. Não existem, pois, razões para infirmar a convicção da julgadora a quo.
Não se vislumbra, qualquer desconsideração da prova testemunhal e documental produzida, mas sim uma correcta apreciação dessa prova, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.
Acresce que importa ter sempre presente o princípio a observar em casos de dúvida, resolvendo-se a mesma contra quem os factos aproveitavam (autor/apelante), nos termos do art. 346º, do CC, e 516º, do CPC (actual artº 414º).
A decisão recorrida observou, por isso, as enunciadas regras que devem orientar o julgador, apreciou criticamente, orientado pelos enunciados princípios, todos os meios de prova produzidos em audiência, concluindo pela sua suficiência ou insuficiência para demonstrarem os factos que acabou por considerar, neste raciocínio lógico, provados e não provados.
Aceita-se, pois, a aludida convicção (negativa) da julgadora da 1ª instância, a que aderimos porque coincidente com a nossa, que serviu de base à decisão sobre a matéria de facto em referência, sendo a mesma consonante com as regras da experiência e da lógica, com excepção da matéria contida no quesito 9º, da base instrutória.
Com efeito, no respeitante ao vertido no quesito 9º, da base instrutória, a prova testemunhal ouvida, concretamente a arrolada pelo autor e, em parte, o declarado pelo réu, permite que se considere provado o seguinte:
Quesito 9º: Provado apenas que o autor, conhecedor dos factos descritos nos quesitos 7º e 8º, confrontou, de imediato, o réu com a situação.
Por fim, impõe-se uma correcção da data indicada no nº 9 dos factos provados (correspondente ao quesitado em 2º da base instrutória).
Há um manifesto lapso, aliás já salientado pelo Sr. perito (ver fls. 146), na leitura do documento de fls. 46 (inspecção técnica periódica de 11/09/2008).
Na verdade, em 16/10/2001, o veículo em causa (modelo de 2002) tinha acabado de ser produzido e saído da fábrica (ver doc. de fls. 43).
A leitura correcta do aludido documento de fls. 46 é a de que na inspecção técnica periódica, realizada em 11/09/2008, já se mencionava que o veículo tinha 108.061 Km.
Assim, considera-se provado que de acordo com os dados da inspecção técnica periódica, realizada em 11/09//2008, já se mencionava que o veículo tinha 108.061 Km.
Deste modo, considera-se provada a seguinte matéria de facto:
1 - O réu exerce a actividade de compra e venda de veículos automóveis, num “stand” que detém na estrada nacional …, em ….
2 - Em data compreendida entre inícios de Setembro de 2008, o réu colocou em exposição para venda, no referido “Stand”, o veículo de Marca AUDI, modelo .., do ano de 2005, com a matrícula ..-..-ZN.
3 - O réu anunciou o veículo supra identificado como usado, pelo preço de €18.750,00 (Dezoito Mil Setecentos e Cinquenta Euros).
4 - Em 15 de Dezembro de 2008, o réu vendeu ao autor o veículo supra indicado, pelo valor de 18.750,00 (Dezoito Mil Setecentos e Cinquenta Euros), dando a título de garantia 12 meses.
5 - A quantia referida em C), foi entregue ao réu para pagamento do preço do veículo Contratado.
6 - Em 15 de Dezembro de 2008, o conta-quilómetros do referido veículo apresentava cerca de 115.000 quilómetros, tendo sido assegurado pelo réu que estes eram os quilómetros reais percorridos.
7 - Por não dispor de todo o dinheiro, o autor contraiu um empréstimo bancário no montante de €16.500,00 (Dezasseis Mil e Quinhentos Euros), para financiar a aquisição do referido veículo à “O…, S.A.”.
8 - A quilometragem do ZN registada nos sistemas de fábrica da AUDI era, já em 16/12/2004, de 183.572 Km.
9 – E, de acordo com os dados da inspecção técnica periódica, realizada em 11/09//2008, já se mencionava que o veículo tinha 108.061 Km.
10 – Actualmente, o conta-quilómetros do veículo indica que o veículo tem 160.000 Kms quilómetros percorridos.
11 - O autor foi alertado pelo mecânico, em finais de Outubro de 2009, da suspeita que este tinha sobre a real quilometragem do veículo, e que o aconselhava a fazer um teste na AUDI.
12 - E efectuado tal teste, em 4/12/2009, constatou o autor que a última quilometragem registada no sistema da fábrica foi efectuada em 16/12/2004.
13 - E já na altura apresentava 183.572 quilómetros.
14- O autor, conhecedor dos factos descritos em 11. e 12., confrontou, de imediato, o réu com a situação.
15 - O veículo ZN tinha sido importado e adquirido pelo Réu para um seu cliente de nome H….
16 - E na altura da sua aquisição pelo Réu para este seu cliente, o veículo apresentava no respectivo certificado de inspecção 85.333 Km.
17 - Em 8.11.2005, o respectivo cliente do Réu efectuou inspecção técnica obrigatória à viatura, tendo a mesma 88.531 Km.
18- Em Outubro de 2006, o referido H… voltou ao stand do Réu e trocou o veículo ZN por um veículo de marca BMW …, do ano de 2004.
19 - Sendo que, nessa altura, o veículo ZN marcava 91.000 Km.
20 - Em 26.10. 2006, o Réu vendeu o veículo ZN a M….
21 - Em 7.12.2007, o referido M… trocou o referido ZN por uma viatura de marca Ford, modelo ….
22 - Sendo que nessa altura o veículo ZN marca a 107.000 Km.
23 - Tendo o Réu efectuado em 11.09.2008 a inspecção técnica obrigatória ao veículo ZN, marcando, então, 108.061 Km.

2.2- O DIREITO

Assente a matéria de facto, apreciemos o mérito do recurso e da acção.
Contrato bilateral ou sinalagmático é o que gera obrigações recíprocas a cargo de ambos os contraentes. Essas obrigações encontram-se numa relação de correspectividade e interdependência.

Exemplo de contrato bilateral ou sinalagmático é o contrato de compra venda – ver arts 874º (noção) e 879º (efeitos), do Código Civil (CC).
Como contrato que é, esse negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido, ou seja, o cumprimento deve coincidir ponto por ponto com a prestação a que o devedor se encontra adstrito (art. 406º, nº 1, do CC).
Decorre do artº 762º, nº 1, do CC, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza integralmente a prestação a que está vinculado.
Atendendo ao efeito ou resultado, existem três formas de não cumprimento: a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora ou atraso no cumprimento e o cumprimento defeituoso (A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., II, págs. 62 e segs., e M.J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., págs. 927 e segs., I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 299 e segs.).
A falta de cumprimento ocorre quando a prestação deixou de ser executada no devido tempo e já não pode ser cumprida e/ou por se tornar impossível (arts. 801º e 802º, do CC).
O cumprimento defeituoso traduz-se numa forma de violação da obrigação (violação contratual positiva). O cumprimento efectuado não corresponde à conduta devida. Constitui uma das espécies da figura genérica do cumprimento inexacto, ou seja, aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos (v.g. qualitativos ou quantitativos) a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e boa fé (A. Varela, ob. cit., p. 126-131 e, também, M. J. Almeida Costa, ob. cit., p. 947-952).
A consequência mais importante do cumprimento defeituoso é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor (artº 798º, do CC).
Quanto à causa da falta de cumprimento existem duas modalidades de não cumprimento: inimputável ao devedor e imputável ao devedor.
Só nos casos de não cumprimento imputável ao devedor se pode rigorosamente falar em falta de cumprimento.
À compra e venda de coisa defeituosa aplica-se o estatuído nos arts. 905º, e segs., e 913º e segs., do CC, e, bem assim, na perspectiva do incumprimento ou cumprimento defeituoso, o estatuído nos arts. 798º e segs. e 918º, do CC (ver, a propósito, o proficiente Ac. do STJ, de 25/10/2012 e a doutrina aí citada, acessível em www.dgsi.pt).
A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado (falta de qualidades asseguradas pelo vendedor).
Daqueles normativos pode concluir-se que a lei concede ao comprador de coisa defeituosa os seguintes direitos:
- Anulação do contrato por erro ou dolo, verificados os respetivos requisitos de relevância exigidos pelo art. 251.º do Cód. Civil (erro sobre o objeto) e pelo art. 254.º do Cód. Civil (dolo);
– Redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por um preço inferior (art. 911.º do Cód. Civil);
– Indemnização do interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato, cumulável com a anulação do contrato ou redução do preço (arts. 908.º, 909.º e 911.º, por força do art. 913.º, todos do Cód. Civil)
– Reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição (art. 914.º, 1.ª parte), independentemente de culpa do vendedor, se este tiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (art. 921.º, n.º 1, Cód. Civil).
- Independentemente disso, o comprador pode escolher exercer autonomamente a ação de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso ou inexato, presumidamente imputável ao devedor (arts. 798.º, 799.º e 801.º, n.º 1, todos do Cód. Civil), sem fazer valer outros remédios, ou seja, sem pedir a resolução do contrato, a redução do preço, a reparação ou a substituição da coisa defeituosa.
Observa Luís Menezes Leitão, (Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, pág. 120), “(…) A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual.
Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato.
Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”
Da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº 1, a 915.º do C. Civil, decorre que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação ou substituição da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Sendo a execução defeituosa da prestação um acto ilícito, tem o credor lesado que alegar e demonstrar os restantes requisitos da responsabilidade civil, desde logo, e presumida que está a culpa do devedor, os factos que integram esse incumprimento, ou seja, o defeito. Como a existência do defeito é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao comprador, cabe a este a respectiva prova (art. 342º, nº 1, do CC).
O comprador tem de alegar e provar a desconformidade em causa, quer para os casos, em que a mesma se refere à prestação primeiramente efectuada, quer para aqueles em que a coisa foi reparada mas em que o defeito permanece.
Não bastando a prova do defeito, mas, de igual modo, a demonstração da sua gravidade, de molde a afectar o uso da coisa.
O erro que recaia nos motivos determinantes da vontade quando se refira ao objecto mediato (qualidades) do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que incidiu o erro determinante da vontade (arts. 251º e 247º, nº 2, do CC). Trata-se de erro enquanto "representação inexacta de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio" de modo que, "se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou" (MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., 505).
O erro sobre o objecto material (in corpore) pode recair sobre a identidade do objecto ou sobre as suas qualidades. A qualidade dum objecto reporta-se a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida (Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, pág. 235 e 248, P. Lima-A. Varela, C. Civil Anotado, I, 2ª ed., p. 218º, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, 1999, I, p. 538 e segs., e Heinrich E. Forster, Parte Geral do C. Civil, 1992, p. 547).
Assim, além da essencialidade, requisito geral da relevância do erro, no erro sobre a pessoa do declaratário ou sobre o objecto, para o negócio ser anulável, tem de verificar-se, em alternativa, o seguinte circunstancialismo (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2º ed., pág. 136):
a) O declaratário conhecer a essencialidade, para o declarante, do motivo sobre que recaiu o erro;
b) O declaratário, não conhecendo essa essencialidade, não a dever, contudo, ignorar.
Assinala-se que este conhecimento ou cognoscibilidade respeita à essencialidade e não ao erro.
Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste. A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro (Ac. STJ, BMJ, 213º/188).
Feitas estas prévias, genéricas e porventura extensas, embora necessárias, considerações de natureza normativa e doutrinal, a propósito do regime geral constante da lei substantiva (Código Civil) sobre a compra e venda de coisa defeituosa e do incumprimento ou cumprimento defeituoso, atendendo ao pedido principal formulado pelo autor, importa, agora, ponderar a aplicação, no caso, de legislação específica, concretamente Lei nº 24/96, de 31/07 (Lei de Defesa do Consumidor (LDC)) bem como do regime jurídico específico da venda de bens de consumo (Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio).
Com efeito, evidencia-se, no caso, a existência de um contrato de compra e venda de um automóvel usado celebrado entre um profissional (o réu vendedor) e um consumidor ou comprador não profissional (o autor comprador), ou seja, uma pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional (artº, 2 nº 1, da LDC).
Quer dizer, para que o contrato seja de compra e venda de bem de consumo, há-de tratar-se de compra e venda celebrada entre vendedor profissional e comprador consumidor ou comprador não profissional, e só para esse caso é que vale o regime jurídico específico da venda de bens de consumo (artºs 1 nº 1, 1-A do Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção do artº 1 do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio).
O consumidor tem direito, entre outros, à qualidade dos bens e serviços, e os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor (arts 3º, nº 1, al. a), e 4º, da LDC).
Tem, ainda, direito à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo que o produtor desses bens é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei (artº 12º, da LDC).
Por outro lado, o vendedor é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem. E, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (arts 3º e 4º, nº 1, do DL n.º 67/2003).
Relativamente à aparente alternativa de direitos estabelecida no nº 1 do artº 4º, observa J. Calvão da Silva (Venda de Bens de Consumo, 2º ed., págs. 82 e 83) que “o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida (pela reparação ou substituição da coisa) sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato”.
Ponderou-se, a propósito, no Ac. do STJ de 30/09/2010 “(…) por outro, os nºs 1 e 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 admitem expressamente que o consumidor possa exercer, quer o direito de exigir a reparação, quer o de resolver o contrato, sem estabelecer qualquer precedência entre eles.
Com efeito, a lei portuguesa optou por consagrar no Decreto-Lei nº 67/2003, que a transpôs, um regime de princípio mais favorável ao consumidor do que o que lhe era imposto pela directiva nº 1999/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, cujo artigo 3º define uma hierarquia entre o direito à reparação e à substituição, por um lado, e o direito à redução do preço ou à rescisão (resolução) do contrato, por outro.
No entanto, há que não esquecer que a opção do consumidor está sempre limitada, no que ao direito de resolução se refere, quer pelo abuso de direito – artigos 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 67/2003 e 334º do Código Civil –, quer pelas exigências gerais relativas ao exercício deste direito (nomeadamente, pelo nº 2 do artigo 432º, pelo nº 2 do artigo 793º e pelo nº 2 do artigo 802º); neste sentido, expressamente, João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, comentário, 3ª edição, Coimbra, 2006, pág.79 e segs.)” –Ver, também, o Ac. do mesmo Supremo Tribunal, de 21/10/2010, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Visa o referido diploma legal a proteção do consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda.
Haverá, presuntivamente, desconformidade com o contrato nas seguintes situações:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem (artº 2º, nºs 1 e 2, que não diverge, no essencial, do conceito reflectido no artº 913º, do CC - ver Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo-Comentário, 2ª ed., pág. 95).
No caso em apreço, ficou, além do mais, provado que:
- Em 15 de Dezembro de 2008, o réu vendeu ao autor o veículo supra indicado, pelo valor de 18.750,00 (Dezoito Mil Setecentos e Cinquenta Euros), dando a título de garantia 12 meses.
- Em 15 de Dezembro de 2008, o conta-quilómetros do referido veículo apresentava cerca de 115.000 quilómetros, tendo sido assegurado pelo réu que estes eram os quilómetros reais percorridos.
- A quilometragem do ZN registada nos sistemas de fábrica da AUDI era, já em 16/12/2004, de 183.572 Km.
– E, de acordo com os dados da inspecção técnica periódica, realizada em 11/09//2008, já se mencionava que o veículo tinha 108.061 Km.
– Actualmente, o conta-quilómetros do veículo indica que o veículo tem 160.000 Kms quilómetros percorridos.
- O autor foi alertado pelo mecânico, em finais de Outubro de 2009, da suspeita que este tinha sobre a real quilometragem do veículo, e que o aconselhava a fazer um teste na AUDI.
- E efectuado tal teste, em 4/12/2009, constatou o autor que a última quilometragem registada no sistema da fábrica foi efectuada em 16/12/2004.
- E já na altura apresentava 183.572 quilómetros.
- O autor, conhecedor dos factos antes descritos, confrontou, de imediato, o réu com a situação.
Não sabemos quem executou a viciação ou a alteração da quilometragem do veículo Audi .. (aparentemente terá sido ainda na Alemanha), embora não seja relevante, pois que não se mostra necessária imputação dessa alteração à acção do réu/apelado para legitimar o pedido de resolução contratual, com base no estatuído no artº 4º, nº 1, do DL nº 67/2003.
Com efeito, o que justifica a resolução do contrato, por parte do autor, é a falta de conformidade do bem vendido com o contrato, ou seja, a discrepância entre a comprovada real quilometragem da viatura muito antes da data em que foi vendida ao apelante, sendo certo que o réu assegurou ao demandante, em 15/12/2008, que o automóvel ZN tinha percorrido apenas 115.000 quilómetros.
Obviamente, não se pode pretender que um veículo automóvel usado tenha idênticas características, caso tenha 115.000 Km ou antes cerca de 200.000 Km. No mercado de automóveis usados, trata-se de um item que assume especial importância, uma vez que se espera um desempenho e uma durabilidade diferentes num e noutro caso, com implicações óbvias na determinação e aceitação do preço.
Dada a manifesta “desconformidade face ao contrato de compra e venda” celebrado pelas partes, assiste ao autor (comprador consumidor) o direito de resolução contratual previsto no aludido artº 4º do DL nº 67/2003 (ver, entre outros, os Acs. das Relações do Porto, de 09/04/2013, Lisboa, de 01/03/2012 e de Coimbra, de 25/10/2011, acessíveis em www.dgsi.pt).
A resolução consiste no acto de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, e que tende a colocar as partes na situação que teriam se o contrato não se houvesse celebrado (M.J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 268).
Admite-se a resolução do contrato fundada na lei ou a convencional (artº 432º, nº 1, do CC), podendo aquela fazer-se, extrajudicialmente, mediante declaração à outra parte (artº 436º, nº 1, do C. Civil) ou judicialmente.
Na falta de disposição especial, a resolução do negócio equipara-se, relativamente aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, ou seja, dado o efeito retroactivo, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie, não for possível, o valor correspondente (artº 433º, do CC).
Estatui o nº 1, do artº 434º, do CC, que a resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
Havendo resolução do contrato, a restituição do que foi prestado unitariamente só tem lugar na medida em que exceda, na economia do contrato, o que foi objecto de contraprestação.
Dispõe o nº 1 do artigo 289º, do CC:
"Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente".
Considerou-se no citado Ac. do STJ, de 30/09/2010, “(…) E a verdade é que a regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artigo 434º), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; e, note-se, não impede que, sendo caso disso, a parte que a invoca tenha o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos (pelo menos, pelos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato).
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
Nestes termos, não havendo elementos que permitam considerar abusivo o exercício do direito de resolução (nº 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 e artigo 334º do Código Civil), e estando preenchidos os requisitos exigidos pelos artigos 2º (al. a) do nº 2), 3º e 4º do DL 67/2003, procede o pedido de resolução (…)”.
Apurou-se que o veículo Audi .. tem actualmente (data da propositura da acção) 160.000 Km, ou seja, o demandante percorreu com o mesmo, pelo menos, cerca de 45.000 km, até Setembro de 2009, data em que intentou a presente acção.
Naturalmente que, a nosso ver, a simples restituição da viatura ao réu contra o pagamento, pelo mesmo, do preço acordado e pago, pelo autor, em 2008, constituiria uma manifesta e inaceitável iniquidade, como o seria o pagamento do preço do veículo ZN avaliado à data do trânsito em julgado desta decisão ou mesmo da data da entrada da acção.
Quer dizer, não sendo, no caso, possível ao autor restituir ao demandado o automóvel ZN no estado em lhe foi entregue, deverá ser deduzido do preço a restituir a desvalorização da viatura decorrente da utilização desta durante cerca de um ano, cuja determinação se remete para liquidação (incidente regulado no artº 358º e seguintes do CPC).
Decidiu-se, e bem, em caso semelhante, no Acórdão do STJ de 24/03/2011 (acessível em www.dgsi.pt), que “(…) Ora, tendo em conta a impossibilidade de o autor devolver o carro no estado em que se encontrava à data da compra e venda, a forma de equilibrar as restituições a realizar por virtude da anulação traduz-se na dedução, no preço a restituir, do valor correspondente à utilização de uma viatura da marca e modelo da 00-00-00, com o ano de matrícula e a quilometragem real que a mesma tinha, entre a data da respectiva entrega e da propositura da acção, a fixar em liquidação (artigo 661º, nº 2 do Código de Processo Civil)”.
Pede, ainda, o demandante, em primeira linha, a condenação do réu no pagamento de uma indemnização por todos os danos patrimoniais causados a liquidar “em execução de sentença”, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior a € 3.000,00.
Os pressupostos da responsabilidade civil contratual, geradora da obrigação de indemnização, são: o facto (danoso) objectivo do não cumprimento (a falta de cumprimento/incumprimento definitivo, o cumprimento defeituoso ou a mora), a ilicitude (desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado), o prejuízo sofrido pelo credor/lesado e o nexo de causalidade entre aquele facto e o prejuízo - arts. 406º, n.º 1, 762º, n.º 1, 798º e 799º, do CC, e A. Varela, Das Obrigações em geral, 7ª ed., vol. II, pág. 94, M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 483 e segs., e I. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 331 e segs.).
A factualidade apurada não permite, a nosso ver, responsabilizar contratualmente o réu para além do que se deixou expendido (consequência da resolução contratual), porquanto não demonstrou o autor todos os aludidos pressupostos, concretamente os factos integradores dos invocados danos.
Ora, o juiz encontra-se limitado pelos pedidos das partes, pois que a decisão judicial não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (artº 609º, nº 1, do CPC)
No nº 2, desse normativo, estabelece-se que se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida (trata-se de um poder/dever do juiz e não de um poder discricionário).
A exacta compreensão do artº 609º, nº 2, do CPC, aponta no sentido de que só é permitido remeter para ulterior liquidação, quando não houver elementos para fixar a quantidade, mas entendida essa falta, não como consequência do fracasso da alegação ou da prova dos factos, mas sim como consequência de ainda não se terem revelado, com exactidão, ou estarem em evolução ainda, algumas ou todas as consequências.
De outro modo, a carência de elementos não se refere à inexistência de alegação e prova dos factos, porque estes ainda estavam em evolução aquando da propositura da acção.
Quer dizer, só é possível deixar para liquidação a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais não existam elementos para fixar o montante, nem sequer recorrendo à equidade (arts. 566º, nº 3, do CC, e 609º, nº 2, do CPC).
Quando se relega para liquidação o apuramento do valor a receber pelo credor, tal significa, desde logo, que o Tribunal reconheceu a existência de um direito de crédito, que só não foi quantificado, ou seja, liquidado em montante certo, por não haver elementos para determinar o respectivo “quantum”, ou porque o autor formulou pedido ilíquido, ou genérico.
Como predito, nesta acção o autor não demonstrou, além do mais (ilicitude), os factos reveladores dos alegados prejuízos patrimoniais e não patrimoniais.
Procede, assim, na medida do expendido, o concluído na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:
a)Julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida;
b) Julgar parcialmente procedente, por provada, a acção, declarando-se a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel com a matrícula ..-..-ZN, celebrado por autor e réu, em 15/12/2008, devendo o autor restituir ao réu a aludida viatura, condenando-se o réu a devolver ao autor o preço pago (€ 18.750,00), deduzido do montante correspondente à utilização de uma viatura da marca e modelo do ..-..-ZN, com o ano de matrícula e a quilometragem real que a mesma tinha, entre a data da respectiva entrega (15/12/2008) e da propositura da acção, a liquidar no incidente adequado.
Custas da apelação e da acção por apelante/réu e apelada/autora, na proporção do decaimento respectivo, sem prejuízo do resultado da liquidação a efectuar.
**
Anexa-se o sumário do acórdão.

Porto, 02/03/2015
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
Oliveira Abreu
________________
SUMÁRIO (artº 663º, nº 7, do CPC):
I-A existência de um contrato de compra e venda de um automóvel usado celebrado entre um profissional (o réu vendedor) e um consumidor ou comprador não profissional (o autor comprador), ou seja, uma pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional (artº, 2 nº 1, da Lei nº 24/96, de 31/07 (Lei de Defesa do Consumidor - LDC), configura um contrato de compra e venda de bem de consumo e só para esse caso é que vale o regime jurídico específico da venda de bens de consumo (artºs 1 nº 1, 1-A do Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção do artº 1 do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio);
II- A manifesta “desconformidade face ao contrato de compra e venda” celebrado pelas partes, resultante da discrepância entre a comprovada real quilometragem da viatura muito antes da data em que foi vendida ao apelante, confere ao autor (comprador consumidor) o direito de resolução contratual previsto no aludido artº 4º do DL nº 67/2003;
III- A regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artº 434º, do CC), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra;
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
IV- Não sendo, no caso, possível ao autor restituir ao demandado o automóvel ZN no estado em lhe foi entregue, deverá ser deduzido do preço a restituir a desvalorização da viatura decorrente da utilização desta durante cerca de um ano, cuja determinação se remete para liquidação (incidente regulado no artº 358º e seguintes do CPC).