Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | LEGITIMIDADE PASSIVA MANDATO FORENSE SOCIEDADE DE ADVOGADOS ADVOGADO | ||
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Nº do Documento: | RP2023061513470/20.1T8PRT-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/15/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Numa acção instaurada pelo mandante para exigir do seu mandatário forense responsabilidade pelos danos que a actuação negligente deste no exercício do mandato lhe causou, a sociedade de advogados que o mandatário integra e no âmbito da qual exerce a profissão de advogado é parte legítima como ré. II - Nas sociedades civis de advogados, as dívidas geradas por acções ou omissões imputadas a sócios, associados e estagiários, no exercício da profissão são qualificadas como dívidas sociais, e por elas também responde a sociedade, sendo que nas sociedades de responsabilidade limitada, por essas dívidas apenas responde a sociedade. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2023:13470.20.1T8PRT.B.P1 * Sumário: ………………….. …………………… …………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: AA, contribuinte fiscal n.º ..., e mulher BB, contribuinte fiscal n.º ..., casados, residentes em ..., Vila do Conde, instauraram acção judicial com processo comum contra CC, Advogada, titular da cédula n.º ..., com domicílio profissional no Porto, e A..., Sociedade de Advogados, RL, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede no Porto, pedindo a condenação das rés a pagarem-lhes as quantias de 203.102,64€, correspondente ao valor que os autores deixaram de auferir com uma venda justa da casa, valor que é liquidado a título provisório, e de 30.000,00€ de indemnização por danos não patrimoniais. Para fundamentar o seu pedido alegaram, em súmula, que constituíram a Dra. CC, aqui ré, sua mandatária para que a mesma assegurasse a sua defesa no processo executivo n.º 3419/12.0TBVCD, mas na execução desse mandato a ré não actuou com o grau de diligência e conhecimento que lhe era exigível, omitindo actos que acabaram por causar danos aos autores, dos quais estes pretendem ser ressarcidos, sendo que a mandatária em causa exerce em prática societária na sociedade de advogados demandada. Na contestação e para o que importa para este recurso, as rés não arguiram a ilegitimidade passiva, designadamente da ré sociedade de advogados. No despacho saneador foi decidido o seguinte: «Em ordem a fundar a sua demanda contra a ré sociedade, os autores alegam que “a segunda ré violou, igualmente, os deveres de zelo, competência e diligência perante os autores” (art. 185.º da petição). Quanto ao direito, limitam-se a dizer: “Uma vez que a mesma exerce em prática societária, a Segunda Ré constitui-se na obrigação de indemnizar os Autores pelos comportamentos assumidos pela Primeira Ré, em conformidade com o artigo 15.º do DL n.º 53/2015 de 11 de Agosto” (art. 190.º da petição). Da leitura do art. 15.º invocado pelos autores, conjugado com a norma presente no n.º 3 do art. 4.º mesmo diploma, apenas resulta que “são aplicáveis às sociedades de profissionais as normas da lei civil ou da lei comercial, consoante se trate de uma sociedade de profissionais sob a forma civil ou de uma sociedade de profissionais sob a forma comercial, respectivamente”. Vigora entre nós o princípio da natureza não mercantil das sociedades de advogados, embora lhes seja aplicável o regime fiscal previsto para as sociedades constituídas sob a forma comercial. Assim, não sendo a ré sociedade contraparte no contrato de mandato invocado pelos autores, é a mesma parte ilegítima. Pelo exposto, julgo a ré A..., Sociedade de Advogados, RL parte ilegítima, absolvendo a mesma da instância.» Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: I) O presente recurso vem interposto do despacho saneador dos presentes autos a fls …, datado de 14 de Março de 2023, com a Ref.ª. Citius n.º 446386226 que decidiu que a Recorrida A..., Sociedade de Advogados, RL era parte ilegítima da presente acção, absolvendo-a da instância, o que motiva as presentes alegações. II) Assim, o presente recurso visa demonstrar que a Ré A..., Sociedade de Advogados, RL, aqui Recorrida, é parte legítima da presente acção, portanto, irá sindicar matéria de facto – análise da prova que já consta nos presentes autos e que impunha uma decisão diferente do Tribunal a quo – e de direito – indicação e estudo do regime jurídico aplicável a uma sociedade de advogados quando um dos seus sócios pratica factos susceptíveis de accionar a sua responsabilidade civil. III) Ora, conforme se retira da petição inicial e do que já alegado pelas partes nos presentes autos, os aqui Recorrentes contrataram os serviços da Recorrida A..., Sociedade de Advogados, RL para os assessorarem em diversos assuntos relacionados com uma pequena empresa de construção civil que tinham na altura, B..., Construção, Lda. IV) Retira-se do requerimento apresentado pela Recorrida, Ref.ª. Citius n.º 33647876, que foi contratada para, além do processo executivo objecto dos presentes autos, para outros processos judiciais. V) Nesses processos judiciais, nem sempre foi a aqui Ré Dra. CC a mandatária dos mesmos. VI) Os Recorrentes contratavam os serviços da Recorrida Sociedade e, entre os advogados que compunham a sua estrutura, era destinado um deles para estar adstrito ao referido processo judicial. VII) Quando o Recorrente foi citado do processo executivo n.º 3419/12.0TBVCD procurou os serviços da Recorrida sociedade ficando a Dra. CC adstrita ao mencionado. VIII) Tal factualidade está vertida em documentação junta já aos autos. IX) Desde logo, na Procuração forense junta aos autos no mencionado processo executivo, e que consta nestes no requerimento datado de 3 de Setembro de 2020, oferecido pelos Recorrentes a fls…, com a Ref.ª. n.º 26632495. X) Do teor da presente procuração forense é possível constatar que os Recorrentes contrataram os serviços da Recorrida sociedade, apesar de saberem que o mencionado processo judicial ficou adstrito a uma das suas sócias, a Ré Dra. CC. XI) Portanto, quando se deram conta que as aqui Recorridas executaram o seu mandato de forma defeituosa provocando-lhes um dano patrimonial e extrapatrimonial imensurável, o Recorrente renunciou à mencionada procuração frisando especificamente a aqui Recorrida sociedade (vide documento n.º 19 junto com a petição inicial a fls.., com a Ref.ª Citius n.º 26553365). XII) Assim, atendendo à prova junta aos autos, é notório que a Recorrida sociedade é parte legítima da presente acção. XIII) Salvo melhor entendimento, numa fase tão embrionária dos autos, andou mal o Tribunal a quo quando a considerou parte ilegítima visto que a intenção dos Recorrentes sempre foi contratar os serviços da mencionada sociedade de advogados, estando o mencionado processo executivo a cargo de uma sócia da mesma, exercendo dentro da estrutura organizacional da Recorrida. XIV) Não obstante, com a petição inicial os Autores “desenham” a relação controvertida que a acção vai julgar. XV) Para que alguém litigue em determinada acção judicial – independentemente da procedência da mesma – terá que estar relacionado com o seu objecto, tendo interesse em agir. XVI) Ora, conforme disposto no artigo 30 n.º 1: “O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.” O seu n.º 2 esclarece que: “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.” XVII) In casu, extrai-se da petição inicial que a Ré Dra. CC trabalha em prática societária, sendo inclusive, sócia da Recorrida. XVIII) Os Recorrentes contrataram os serviços da Recorrida sociedade, tanto assim é, que a Recorrida contestou a presente acção, reconhecendo, a própria, ter interesse em defender-se da mesma. XIX) Não obstante, o direito aplicado ao caso em concreto é fixado e decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, por sua vez, o próprio regime a que a Recorrida sociedade está sujeita implica que a mesma tenha interesse em agir na presente acção. XX) O DL n.º 229/2004 de 10 de Dezembro – lei aplicável ao caso em questão - que regula o Regime Jurídico das Sociedades de Advogados estipula, em conjugação com os seus artigos 35.º e 37.º que no caso de a mesma ter responsabilidade limitada (que parece ser o caso), uma sociedade de advogados responde pelas dividas sociais, entre as quais, as geradas pelo exercício da advocacia dos seus sócios e associados que desencadeia factos susceptíveis de geral responsabilidade civil dos mesmos. XXI) No limite, no âmbito da audiência de discussão e julgamento dos presentes autos, pode entender-se que entre as Recorridas existe uma relação comitente- comissario, regulada no artigo 500.º do Código Civil. XXII) Com o devido respeito, que é muito, só assistia razão ao Tribunal de 1.º instância no caso de a Ré, Dra. CC exercesse em prática individual. XXIII) Face ao exposto, o Tribunal a quo não tinha qualquer fundamento fáctico ou jurídico para decidir no seu despacho saneador pela ilegitimidade passiva da Recorrida A..., Sociedade de Advogados, RL, atendendo à relação contravertida indicada pelos Recorrentes na sua petição inicial, à prova indicada e à própria legislação em vigor à altura dos factos. XXIV) Logo, torna-se evidente que é necessário apurar as responsabilidades e o modo de actuação de ambas as Rés na presente acção. XXV) Nesta senda, requer-se aos Venerandos Desembargadores a revogação da decisão do Tribunal a quo, e concomitantemente, que a Recorrida A..., Sociedade de Advogados, RL seja declarada como parte legítima da presente acção. Nestes termos e melhores de direito que V. Exas mui doutamente suprirão deverá o presente Recurso ser admitido e julgado procedente por provado, e em consequência revogar-se a decisão recorrida que considere a Recorrida A..., Sociedade de Advogados, RL como parte legítima da presente acção. A recorrida sociedade respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a ré sociedade de advogados é parte legítima na acção. A título de questão prévia deverá ser decidido se os recorrentes podiam juntar com as alegações de recurso o documento que apresentaram. III. Questão Prévia – Junção de documento com as alegações de recurso: Com as alegações de recurso, os recorrentes juntaram cópias de dois cheques sacados pelo recorrente à ordem da sociedade de advogados demandada que na decisão recorrida foi julgada parte ilegítima. A recorrida sustenta que esta junção é ilegal e deve ser negada. A junção de documentos com as alegações de recurso está regulada nos artigos 425.º e 651.º do Código de Processo Civil, os quais fixam os casos em que essa junção é permitida às partes, pelo que estas não gozam de um direito potestativo de natureza processual de apresentarem documentos livremente. Nos termos da primeira destas disposições legais, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Nos termos da segunda, as partes apenas podem juntar documentos às alegações naquela situação e ainda o caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. A primeira situação que torna admissível a junção reporta-se aos documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes. São supervenientes os documentos produzidos depois do encerramento da discussão na primeira instância e, bem assim, aqueles cuja existência, apenas foi conhecida pelo apresentante depois desse momento, apesar de terem sido produzidos anteriormente. No caso estamos perante o recurso de uma decisão interlocutória, proferida no despacho saneador, antes do início da audiência de discussão e julgamento, pelo que não coloca a questão de estarmos perante uma junção ocorrida «após o encerramento da discussão em primeira instância» e, consequentemente, a possibilidade de a junção ser recusada com esse fundamento. Quanto à segunda situação que poderia permitir a junção, a solução depende do que se deve entender por junção tornada necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Esta disposição já existia no antigo Código de Processo Civil estando prevista no artigo 693.º-B, ditado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e antes deste no artigo 706.º, n.º 1, mantendo sempre a mesma redacção. A jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado (por todos, Antunes Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115,º, pág. 95 e segs., e Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517; os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.1999 e de 26.09.2012, da Relação do Porto de 29.05.2014, e da Relação de Guimarães de Guimarães de 27.02.2014, todos in www.dgsi.pt). O que releva, portanto, é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência. Ora, no caso, estamos precisamente perante uma dessas situações. Na contestação a ré não arguiu a sua ilegitimidade passiva e contestou mesmo a acção no pressuposto de ter um interesse directo em o fazer. Por outro lado, o tribunal a quo antes de decidir, não ouviu os autores sobre a possibilidade, não de conhecer da ilegitimidade, o que era sua obrigação visto tratar-se de uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, mas de decretar essa ilegitimidade apesar da posição da ré, razão pela qual os recorrentes não tinham como prever antecipadamente que o tribunal, ao contrário da própria parte interessada, consideraria insuficiente para ancorar a legitimidade da sociedade o alegado na petição inicial e demonstrado nos documentos já juntos. Nessa medida e de acordo com esta avaliação, está verificada a situação excepcional da segunda parte do n.º 1 do artigo 651.º do Código de Processo Civil que consente a junção de documentos com as alegações de recurso, razão pela qual se admite essa junção. IV. Da legitimidade passiva da Sociedade de Advogados A legitimidade das partes numa acção judicial é, entre nós, um mero pressuposto processual (cf. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, pág. 180), ou seja, um dos pressupostos adjectivos necessários para que a lide se possa desenvolver e surtir uma decisão útil. A legitimidade é o pressuposto processual que contende com a determinação de quem deve estar na acção, servindo como critério de afirmação da legitimidade o interesse directo em demandar ou contradizer, proveniente da qualidade de titular da relação material controvertida. Através desse pressuposto procura-se assegurar que a lide se trave entre os verdadeiros titulares do interesse que nela vai se decidido, isto é, que esteja na acção precisamente quem nela deve estar. Trata-se de garantir que a condução do processo será feita por quem tem o poder jurídico de dirigir a pretensão ou a defesa deduzida em juízo, por serem quem pode dispor do direito ou ser juridicamente afectado pelo seu reconhecimento. A relação material controvertida que releva para o efeito não é a que devesse ser, mas aquela que o é efectivamente. Por outras palavras, a relação em função da qual pode ser afirmado o interesse em contradizer é a relação configurada pelo autor, a relação tal como o autor a caracteriza, define e apresenta como causa de pedir. Tal resulta do artigo 30.º do Código de Processo Civil, cujo n.º 1 estabelece que «o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer», cujo n.º 2 concretiza que «o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção, e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha», e cujo n.º 3 precisa que «na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor». Já Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 84, assinalava que «a legitimidade não é (...) uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada. Ela corresponde, grosso modo, ao conceito civilista de poder de disposição, ampliado, porém, de forma a abarcar, v.g., a faculdade de constituir uma dada relação jurídica, e não apenas a de modificar ou extinguir. É o poder de dispor do processo - de o conduzir ou gestionar no papel de parte...». A legitimidade processual é por isso aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse directo daquelas nesta. Não podem, no entanto, ser confundidas a legitimidade processual com a legitimidade material ou substantiva. Como referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 51, «a legitimidade é, no campo do direito material, um conceito de relação – relação entre o sujeito e o objecto do acto jurídico. Encarada essa relação na perspectiva do sujeito, exprime a posição pessoal deste nessa relação, justificativa de que se ocupe juridicamente do objecto (Castro Mendes, Teoria geral do direito civil, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1979, páginas 72-73) e postulando, em regra, a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o interesse por ele posto em jogo (Isabel Magalhães Colaço, in Da legitimidade do acto jurídico, BMJ 10, páginas 38 e 78)”. Também Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 132, escreveram que «não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo (...). Para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, importa ainda saber quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção». Temos, portanto, que o réu é parte legítima quando a procedência da acção lhe diz respeito, segundo o critério do seu interesse directo. Se a procedência ou improcedência da acção não releva no âmbito do seu interesse directo, ainda que o autor indique um prejuízo colateral de um dos réus em caso de procedência da acção, ele não tem interesse directo em contradizer e, por isso, não é parte legítima. A legitimidade pode ser singular, quando cabe a uma pessoa única, ou plural, quando exige a intervenção de mais que uma pessoa (litisconsórcio). A isso refere-se o artigo 33º do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte: «1- Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. 2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.» O litisconsórcio pode ser voluntário ou necessário. O necessário tem carácter excepcional e verifica-se se a lei ou o contrato o exigirem, ou quando for imposto pela própria natureza da relação jurídica controvertida, ou seja, desde que, de outro modo, a decisão não produzisse qualquer efeito útil ou, pelo menos, o seu efeito útil normal. Este efeito é produzido quando a decisão define uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda é de modo a poder subsistir inalterada, não obstante ser ineficaz em confronto dos outros co-interessados e como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos. Só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo a que a relação jurídica subsista, ainda que ineficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio. Centremos agora a atenção no que consta da petição inicial para justificar a demanda das rés: […] 1. Os Autores constituíram, por procuração forense, como sua mandatária, a Dra. CC, aqui Ré, para que a mesma assegurasse a sua defesa no âmbito do processo executivo n.º 3419/12.0TBVCD, … Cfr. documento n.º 1 que protesta juntar no prazo máximo de 5 dias. 2. A Primeira Ré exerce em prática societária na A... Sociedade de Advogados, RL, Segunda Ré. […] 5. (…) os Autores procuraram a Sra. Dra. CC, advogada, e, uma vez que, já mantinham uma relação de confiança com a mesma por a mesma por os ter patrocinado em outras causas, contrataram os seus serviços. 6. Seguindo as orientações da Primeira Ré, o Autor outorgou uma procuração forense para constituir a mesma como sua mandatária. […] 10. (…) a única preocupação dos Autores na pendência da mencionada acção, foi manter o contacto regular com a Advogada, aqui Ré, deslocando-se por diversas vezes ao seu escritório. […] 185. A segunda Ré violou, igualmente, os deveres de zelo, competência e diligência perante os Autores. 186. Significa isto que, as Rés deveriam ter sido mais interventivas no processo executivo e respondido às notificações tanto da Agente de Execução como do próprio Tribunal tentando sustar a mencionada venda, o que não o fizeram. […] 189. Nesta senda, as Rés constituem-se na obrigação de indemnizar os Autores pelos danos causados devido ao exercício defeituoso do seu mandato, nos termos do artigo 562.º do CC. 190. Uma vez que a mesma exerce em prática societária, a Segunda Ré constitui-se na obrigação de indemnizar os Autores pelos comportamentos assumidos pela Primeira Ré, em conformidade com o artigo 15.º do DL n.º 53/2015 de 11 de Agosto. […].» Resulta assim cristalino da petição inicial que a acção tem como causa de pedir o contrato de mandato forense celebrado entre os autores e a ré advogada e o incumprimento por parte desta dos deveres de diligência e decorrentes desse contrato. Aliás, a procuração forense com base na qual a ré advogada executou o mandato no decurso do qual terão sido cometidas as falhas alegadas pelos autores não foi, ao contrário do que sustentam os autos, passada a favor da sociedade, foi passada apenas a favor da advogada ré, embora conferindo a esta «poderes para substabelecer em qualquer dos seus Colegas Dr. DD, Dr. EE, Dra. CC, Dra. FF, Dra. GG, Dr. HH, sócios ou associados da Sociedade de Advogados sob a firma A... - Sociedade de Advogados, RL, e, bem assim, no Dr. II e no Dr. JJ, Advogados-Estagiários.» Em lado algum da petição inicial os autores alegaram que celebraram o contrato de mandato forense com a sociedade de advogados ré ou também com ela. A sua demanda é justificada somente pelo facto de a ré advogada integrar essa sociedade e de o artigo 15.º do DL n.º 53/2015, de 11 de Agosto, a tornar responsável pelos danos causados pela advogada ré aos clientes no exercício do mandato forense. Esse preceito tem a seguinte redacção: «A responsabilidade civil das sociedades de profissionais e das organizações associativas referidas no artigo 27.º rege-se pela legislação referida no n.º 3 do artigo 4.º.» Este n.º 3 do artigo 4.º. por sua vez estabelece que «no que a presente lei não dispuser, são aplicáveis às sociedades de profissionais as normas da lei civil ou da lei comercial, consoante se trate de uma sociedade de profissionais sob a forma civil ou de uma sociedade de profissionais sob a forma comercial, respectivamente.» Logo não resulta do preceito qualquer atribuição de responsabilidade por actos praticados no exercício do mandato por advogados que integrem a sociedade. Essa responsabilidade, a existir, terá de se encontrar noutra sede. Vejamos se ela existe. O regime jurídico das sociedades de advogados é actualmente regido pelos seguintes diploma: a) O Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, alterado pela Lei n.º 23/2020, de 6 de Julho, em especial os artigos 213.º a 222.º; b) A Lei n.º 53/2015, de 11 de Junho, que estabelece o regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais; c) A Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais; d) Código Civil; e) Regulamento das Quotas das Sociedades de Advogados – Regulamento n.º 512/2018, de 6 de Agosto. É na Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados, que se encontra hoje a regulamentação das Sociedades de Advogados. O artigo 213.º da referida Lei estabelece, na parte que para aqui interessa, o seguinte: «1 - Os advogados podem exercer a profissão constituindo ou ingressando em sociedades de advogados, como sócios ou associados. (…) 5 - As sociedades de advogados gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres aplicáveis aos advogados que sejam compatíveis com a sua natureza, estando nomeadamente sujeitas aos princípios e regras deontológicos constantes do presente Estatuto, bem como ao poder disciplinar da Ordem dos Advogados. (…) 8 - A constituição e funcionamento das sociedades de advogados consta do regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas ao regime das associações públicas profissionais. 9 - As relações entre os advogados que integram as sociedades, designadamente entre os sócios, os associados e os estagiários, bem como as relações contratuais com os demais advogados que prestem serviços a essas sociedades, são objecto de regulamento próprio. 10 - As sociedades devem optar, no momento da sua constituição, por um dos dois tipos seguintes, consoante o regime de responsabilidade por dívidas sociais a adoptar, devendo a firma conter a menção ao regime adoptado: a) sociedades de responsabilidade ilimitada, RI; b) sociedades de responsabilidade limitada, RL. 11 - A responsabilidade por dívidas sociais inclui as geradas por acções ou omissões imputadas a sócios, associados e estagiários, no exercício da profissão. 12 - Nas sociedades de responsabilidade ilimitada, os sócios respondem pessoal, ilimitada e solidariamente pelas dívidas sociais, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 13 - Os credores da sociedade de responsabilidade ilimitada só podem exigir aos sócios o pagamento de dívidas sociais após a prévia excussão dos bens da sociedade. 14 - Nas sociedades de responsabilidade limitada, apenas a sociedade responde pelas dívidas sociais, até ao limite do seguro de responsabilidade civil obrigatório.» Conforme escreveu Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Das Sociedades, Vol. II., 4.ª Edição, Almeida, 2011, página 44, «são civis as sociedades com objecto civil ou não comercial, as sociedades que não tenham por objecto a prática de actos de comércio, o exercício de uma actividade mercantil. Por exemplo, são civis as sociedades agrícolas, as sociedades de artesãos que (no quadro societário) exercem actividades artesanais, as sociedades de profissionais liberais para o exercício das respectivas actividades. Para que sejam civis, as sociedades hão-de ter exclusivamente por objecto uma actividade não comercial.» As sociedades de advogados são sociedades de profissionais que estão sujeitas a uma associação pública profissional (a Ordem dos Advogados), tendo a natureza de sociedades civis uma vez que a sua actividade não é uma actividade mercantil, mas sim o exercício de uma profissão liberal. O seu regime jurídico é por isso o das sociedades civis constante dos artigos 980.º e seguintes do Código Civil do Estatuto da Ordem dos Advogados. O Código Civil possui um capítulo dedicado às sociedades civis e dentro deste uma secção relativa às relações da sociedade com terceiros. O Artigo 997.º, respeitante à responsabilidade pelas obrigações sociais, dispõe o seguinte: «1. Pelas dívidas sociais respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente, os sócios. 2. Porém, o sócio demandado para pagamento dos débitos da sociedade pode exigir a prévia excussão do património social. (…)» Tendo presentes estas normas legais, parece dever concluir-se que vindo alegado na petição inicial que a ré advogada «exerce em prática societária», ou seja, que a sua actividade de advogada é exercida no âmbito da sociedade de advogados que integra, a ré sociedade de advogados é parte legítima na acção. Na verdade, resultando do n.º 11 do artigo 213.º do Estatuto da Ordem dos Advogados que as dívidas geradas por acções ou omissões imputadas a sócios, associados e estagiários, no exercício da profissão são qualificadas como dívidas sociais, resultando do artigo 997.º do Código Civil para as sociedades civis em geral que pelas dívidas sociais a sociedade também responde (razão pela qual é obrigada a possuir seguro de responsabilidade civil profissional), e resultando mesmo do n.º 14 do referido artigo 213.º do Estatuto, em específico para as sociedades de advogados, que nas sociedades de responsabilidade limitada, como é o caso da demandada, por essas dívidas apenas responde a sociedade, parece forçoso que a ré sociedade tem interesse directo em contradizer a acção. É certo que está por esclarecer qual é exactamente a posição da ré advogada na ré sociedade de advogados. Todavia, isso pode ser necessário para o julgamento do mérito da acção e, como tal, terá de ser esclarecido, como porventura já devia ter sido, mas não é indispensável para a apreciação do pressuposto processual da legitimidade uma vez que como se disse para o efeito releva a relação material tal como ela foi configurada pelo autor e nessa medida a alegação de que a ré advogada exerce a sua actividade em prática societária parece ser bastante para a qualificar como sócia ou associada da sociedade, o que será esclarecido com vista ao conhecimento do mérito da causa. Nas alegações de recurso, os recorrentes dizem agora que afinal foi a sociedade de advogados ré que procuraram e foi com ela com celebraram o contrato de mandato para a defesa judicial dos seus interesses, cabendo à sociedade a escolha e indicação do seu advogado que iria encarregar-se pessoalmente dessa defesa, sendo que no caso a defesa foi, nessas circunstâncias, desempenhada pela ré advogada. Esta alegação constitui uma modificação dos sujeitos da relação jurídica com base na qual a sociedade de advogados é demandada (antes um contrato de mandato entre os autores e a ré advogada; agora um contrato de mandato celebrado entre os autores e a sociedade demandada para cuja execução esta se serve dos serviços da advogada que a integra) e corresponde a uma verdadeira alteração da causa de pedir, até por permitir integrar a obrigação pecuniária peticionada na acção não no regime das normas legais antes citadas mas já directamente no disposto no artigo 998.º do Código Civil. Como verdadeira alteração da causa de pedir estamos não apenas perante uma questão nova insusceptível de ser apreciada neste recurso, como, sobretudo, perante uma alteração ilegal por não estar preenchido o requisito do n.º 1 do artigo 265.º do Código de Processo Civil que exige que tenha havido confissão do réu dos factos jurídicos que suportem a alteração, o que de modo algum ocorre no caso. De todo o modo, pelas razões antes assinaladas, o recurso procede porque a ré sociedade tem legitimidade para a acção. V. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando parte legítima na acção a ré A..., Sociedade de Advogados, RL. Custas do recurso pela recorrida. * Porto, 15 de Junho de 2023.* Os Juízes Desembargadores Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 756) António Carneiro da Silva Carlos Portela [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |