Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16/13.7TBMSF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
CASO JULGADO MATERIAL
CAUSA DE PEDIR
FACTOS COMPLEMENTARES OU CONCRETIZADORES
FACTOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RP2014070916/13.7TBMSF.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeito da verificação da excepção do caso julgado, se os factos aditados aos factos alegados na outra acção são apenas complementares ou concretizadores de uma causa de pedir que estava suficientemente individualizada, a causa de pedir é idêntica.
II - Isto é, “a alegação, numa das acções, de factos que completem a causa de pedir, sem atentar contra a sua individualidade, não impede a repetição da causa de pedir.”
III - A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer, mas só alguns destes factos – os essenciais – é que servem a função de individualização da causa de pedir, sendo esta que interessa à verificação da excepção de caso julgado.
IV - A falta de alegação de factos essenciais dá lugar à ineptidão da petição inicial por falta de identificação de uma causa de pedir, o que conduz à absolvição da instância, com caso julgado formal, enquanto que se a causa de pedir ficar incompleta, por não terem sido alegados todos os factos que constituem a causa de pedir (nem sequer depois de um convite ao aperfeiçoamento), o que acontece é a inconcludência do pedido, com absolvição deste, o que produz caso julgado material.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acção ordinária 16/13.7TBMSF.P1 da 2ª secção cível do TJ de Mesão Frio

Sumário:
I. Para efeito da verificação da excepção do caso julgado, se os factos aditados aos factos alegados na outra acção são apenas complementares ou concretizadores de uma causa de pedir que estava suficientemente individualizada, a causa de pedir é idêntica.
II. Isto é, “a alegação, numa das acções, de factos que completem a causa de pedir, sem atentar contra a sua individualidade, não impede a repetição da causa de pedir.”
III. A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer, mas só alguns destes factos – os essenciais – é que servem a função de individualização da causa de pedir, sendo esta que interessa à verificação da excepção de caso julgado.
IV. A falta de alegação de factos essenciais dá lugar à ineptidão da petição inicial por falta de identificação de uma causa de pedir, o que conduz à absolvição da instância, com caso julgado formal, enquanto que se a causa de pedir ficar incompleta, por não terem sido alegados todos os factos que constituem a causa de pedir (nem sequer depois de um convite ao aperfeiçoamento), o que acontece é a inconcludência do pedido, com absolvição deste, o que produz caso julgado material.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B… intentou uma acção - 49/10.5TBMSF do TJ de Mesão Frio (= 1ª acção) – contra C… e mulher, pedindo: o reconhecimento a constituição da servidão de vistas a favor da autora e, em consequência, a condenação dos réus a reconhecerem tal direito e a efectuarem a demolição do muro na parte em que excede o muro que já ali existe, num prazo razoável e a pagar à autora uma indemnização de valor não inferior a 2500€ por danos não patrimoniais e uma outra por cada dia de atraso na reposição da legalidade.
Alegou para tanto que é proprietária de uma casa de habitação que confronta com um prédio dos réus; que na parede da casa da autora mais próxima da dos réus existe, há mais de 20 anos, uma porta e um janela e, a separar os dois prédios, um muro comum; ora, os réus, em finais de 2008, construíram um muro colado àquele outro ao longo de todo o seu cumprimento e com mais de 2 m de altura na parte mais alta e, nesta parte, a milímetros da janela da casa da autora, tapando todas as vistas da casa desta e privando-a do sol e da luminosidade; vai invocando o disposto nos arts. 1362, 1371 e 334, todos do Código Civil; para os pedidos de indemnização alega danos que diz ter sofrido em consequência da conduta dos réus.
Os réus contestaram, excepcionando (i) a ineptidão da petição inicial, por falta da identificação dos prédios e por falta da alegação da aquisição originária do prédio da autora, e (ii) a falta de alegação dos factos necessário à demonstração ilegitimidade da autora; e impugnando os factos alegados.
A autora replicou, defendendo a improcedência da excepção da ineptidão e, depois de dizer que o prédio que dizia seu era também do marido, requereu a realização de diligências para compor a sua legitimidade.
Foi proferido despacho pré-saneador convidando os autores a aperfeiçoarem a petição inicial (suprindo as imprecisões na alegação de factos: as medidas da porta e da janela e a distância a que a janela se encontra do solo e o muro da janela – janela e porta do prédio da autora).
A autora veio dizer que não conseguia, por si ou através de terceiros, realizar as necessárias medições, requerendo a nomeação pelo tribunal de pessoa idónea para o efeito, o que veio a ser indeferido com fundamento no princípio do dispositivo, na vertente de auto-responsabilização das partes pela alegação dos factos que integram a causa de pedir.
Entretanto a autora juntou declaração do consentimento do marido para a propositura da acção.
Foi então proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial, mas se considerou que a petição inicial era inviável por razões de facto, o que, não tendo a autora corrigido a petição, levava à improcedência do pedido.
A autora recorreu desta decisão para este Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 02/02/2012, julgou improcedente o recurso; este acórdão transitou a 11/07/2012.
Seis meses depois a autora e o seu marido intentaram a presente acção (= 2ª acção) contra os réus fazendo os mesmos pedidos (embora agora falem no direito dos autores e não só da autora, concretizem o prazo – 30 dias – e aumentem o valor da indemnização pedida – 5000€) e alegando os mesmos factos com a seguinte excepção: concretizaram as medidas da porta (212 cm x 85cm) e da janela (60cm x 120cm) e a distância a que a janela se encontra do solo (152cm) e o muro da janela (4mm).
Os réus contestaram, excepcionando caso julgado decorrente da primeira acção (com o que pretendem a absolvição da instância), e impugnando, no essencial, os factos aduzidos pelos autores (com o que pretendem a improcedência da acção e a absolvição do pedido).
Os autores replicaram, pugnando pela improcedência da excepção aduzida.
Depois foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção dilatória do caso julgado, absolvendo os réus da instância.
Os autores interpõem recurso deste despacho terminando as suas alegações com as seguintes conclusões [com corte de algumas das muitas repetições]:
A) A sentença tem autoridade – faz lei - para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu comando.
B) Não pode, portanto, impedir que em novo processo se dirima e discuta aquilo que ela mesma não definiu.
C) Na prática, o que a lei quer significar é que uma sentença pode servir de fundamento da excepção do caso julgado quando o objecto da nova acção coincidindo no todo ou em parte com o do anterior, já está total ou parcialmente definida pela mesma sentença.
D) No entanto, na 1ª acção, a sentença proferida inicialmente não decidiu do mérito da causa, não proferiu decisão sobre a relação material controvertida.
E) Não obsta a que a parte que não cumpriu um prazo ou praticou determinado facto, o pedido se renove quando a condição se verifique ou o prazo se preenchia ou o facto se pratique.
F) Na 1ª acção não existiu uma decisão de mérito, porquanto os autores, apesar de notificados para aperfeiçoarem a petição inicial, não cumpriram com tal despacho pré-saneador.
G) Na prática, a improcedência do pedido formulado na primitiva acção foi motivada pela ausência de alegação dos factos necessários.
H) E como os autores não cumpriram com tal despacho de aperfeiçoamento, mostrou-se a petição inicial inviável, por razões de facto, uma vez, não terem corrigido as insuficiências e imprecisões da matéria de facto.
J) A sentença absolutória que julgou improcedente um pedido genérico, por total ausência da alegação dos factos consubstanciadores desse pedido, porque não conheceu do mérito, não faz caso julgado material impeditivo que numa posterior acção o autor deduza, contra os mesmos réus, um pedido, alegando concretamente os factos.
L) Dado que a improcedência do pedido se deveu à total omissão de alegação dos factos essenciais, a sentença não será contraditada por outra onde se aleguem esses factos, não impedindo que se discuta em nova acção os pedidos ora formulados.
Os réus contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso.
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Questão que importa decidir: se se verifica ou não a excepção do caso julgado.
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Verifica-se a excepção de caso julgado
A excepção do caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa depois de uma primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, e a causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (arts. 580/1 e 581/1 do CPC).
Como as partes, os pedidos e as causas de pedir são as mesmas na primeira e na segunda acção referidas acima, conclui-se que se verifica tal excepção nesta segunda acção.
Sendo isto evidente quanto à identidade a nível das partes (que são, na 1ª acção, a autora com o consentimento do marido e, na 2ª acção, autora e marido) e dos pedidos (que têm meras alterações semânticas impostas por aquela alteração formal do lado dos autores, para além de uma outra que tem a ver com o aumento do valor da indemnização), tanto que os autores nem sequer a discutem a esse nível, resta a necessidade de demonstração dessa identidade quanto às causas de pedir dos pedidos de reconhecimento da servidão de vistas (a única que foi posta em causa pelo autor), o que se passará a fazer mais à frente.
Antes disso veja-se ainda o seguinte.
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Dos efeitos preclusivos do caso julgado
Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto dizem: “Com o caso julgado absolutório precludem todas as razões de sustentação da pretensão deduzida, que não encontraram acolhimento na decisão proferida. Fala-se de efeito preclusivo do caso julgado para caracterizar esta inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (CPC anotado, vol. 2.º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 714; estes autores remetem, para além doutros, para Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1981, reimpressão, págs. 174/175, e Manual de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, págs. 302/303 = 324 na edição de 1979).
Ou seja, os autores, em relação a pretensões deduzidas suficientemente identificadas por uma causa de pedir (se o não estiverem a petição é inepta, como se verá à frente, e a questão não se põe), têm o ónus de alegar (mais cedo ou mais tarde - arts. 552/1d, 590, nºs. 4 a 6, e 5/2b, todos do CPC, este tendo em conta o que se diz já no ac. do TRP de 29/05/2014, 388436/10.0YIPRT.P1, seguindo-se Lebre de Freitas, aí citado) todos os factos necessários à procedência da pretensão, e se não o fizerem tal corre por sua conta. Não o tendo feito na primeira acção, não o podem fazer noutra acção, “em consequência do fenómeno da preclusão” (a frase entre aspas é de Alberto dos Reis, obra e local já referidos, pág. 175).
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Das consequências do não acatamento do despacho de aperfeiçoamento
Dizem Montalvão Machado e Paulo Pimenta (O novo PC - estão-se a referir à reforma de 1995/96 -, TSE, 1997, pág. 251): “Se as partes querem permanecer na imperfeição fáctica, se insistem (pela sua passividade) na insuficiência e na imprecisão da alegação […], isso poderá pôr em risco as respectivas pretensões. Trata-se de um risco a que as partes se sujeitam, não podendo o juiz contrariar tal atitude.”
Paula Costa e Silva (Saneamento e condensação no novo PC, em Aspectos do novo PC, Lex, 1997, pág. 234) diz: “Se a parte não corresponde ao convite, manter-se-ão as deficiências da exposição da matéria de facto. Pelo que a parte pode sofrer as consequências em sede de julgamento da acção.”
Lebre de Freitas diz: “convidada a aperfeiçoar os articulados, a parte corresponde ou não ao convite do juiz; em qualquer dos casos, a acção prossegue, correndo a parte o risco, quando não aperfeiçoa ou o aperfeiçoamento é insuficiente, de que a decisão de mérito lhe seja desfavorável, por inconcludência ou falta de concretização da causa de pedir […].” (A acção declarativa comum…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, pág. 157).
E, como chama a atenção este mesmo autor (A acção declarativa, pág. 183, nota 12), “tendo havido convite ao aperfeiçoamento em despacho pré-saneador ou audiência prévia, o juiz não tem de considerar a possibilidade de actuação do preceito do art. 5/2b do CPC (até porque, relativamente aos factos alegados, não há mais actos de instrução úteis a realizar).”
Repare-se que, em contraponto ao que os recorrentes defendem, Lebre de Freitas fala, como não podia deixar de ser, numa decisão de mérito. Ora, esta faz caso julgado material (art. 619/1 do CPC: fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele), impedindo que seja proposta nova acção com a mesma causa de pedir.
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A identidade dos objectos das duas acções
Independentemente do que se dirá abaixo sobre a identidade da causa de pedir, os objectos das duas acções são, no caso, absolutamente idênticos… se se tiverem em conta os factos que a parte pôde alegar na sequência do convite para o aperfeiçoamento e só não o fez por causa que lhe é unicamente imputável (os factos que a autora foi convidada a alegar na primeira acção, são factos que, tal como foram alegados na 2ª petição, dizem respeito a simples medições feitas no seu prédio ou a partir do seu prédio, apuráveis sem qualquer dificuldade prática; pelo que não tem qualquer razão de ser falar-se aqui em qualquer “justo impedimento” de apuramento de tais factos, ou da violação do princípio da cooperação).
Tal é uma outra perspectiva dos efeitos preclusivos já referidos.
E isto, só por si, seria suficiente para confirmar a decisão recorrida.
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Posto isto e retomando a questão da identidade da causa de pedir, veja-se agora:
A causa de pedir
– factos essenciais e factos não essenciais (por regra, factos complementares ou concretizadores)
A causa de pedir corresponde ao conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido: arts. 552/1d, 5/1, 574/1 e 581/4, todos do CPC).
Todos estes factos são factos principais e todos eles integram a causa de pedir; todos eles servem uma função fundamentadora do pedido; a falta de alegação de qualquer deles dá lugar à absolvição do pedido da parte contrária, por insuficiência da fundamentação de facto do pedido, isto é, por insuficiência duma causa de pedir que se deixou incompleta.
Mas alguns destes factos principais são factos essenciais, isto é, são factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido – Lebre de Freitas, A acção declarativa, págs. 41 e 70; Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 64/72). Se estes factos essenciais estiverem alegados, a causa de pedir está identificada e a petição não pode ser inepta por falta de causa de pedir, embora esta possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.
Se faltarem factos essenciais, a petição inicial é inepta (art. 186/2a do CPC) e os réus devem ser absolvidos da instância (art. 278/1b do CPC). Se faltarem outros factos, normalmente os complementares ou concretizadores, a petição inicial não é inepta, mas a causa de pedir é insuficiente ou está insuficientemente concretizada; neste caso ela pode e deve ser alvo de um despacho de aperfeiçoamento (art. 590, nºs. 2b e 4 do CPC) destinado a completar a causa de pedir, com a alegação desses factos complementares ou comcretizadores, ou pode a parte salvar a petição, completando a causa de pedir, por exemplo, manifestando a vontade de se aproveitar do aparecimento, durante a instrução do processo, desses factos (art. 5/2b do CPC)
Assim, em suma, como diz Lebre de Freitas (Introdução, 2013, págs. 70/71), a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da acção.
Um exemplo
Um exemplo dado por Lebre de Freitas é particularmente elucidativo (A acção declarativa, págs. 47, 144 nota 7, 183 nota 12, 308/309 nota 13, Introdução, págs. 69 nota 46):
O art. 1102/1 do Código Civil dá ao senhorio o direito de denúncia do arrendamento para habitação com dependência da verificação de dois requisitos: a) Ser o senhorio proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de dois anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão; b) Não ter o senhorio, há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respectivo concelho quanto ao resto do país casa própria que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1.º grau.
Se o senhorio autor denuncia o contrato de arrendamento e pede o despejo do réu, com fundamento na necessidade que tem da casa arrendada, mas omite alegar que não teve no último ano casa própria ou arrendada no concelho, a causa de pedir está suficientemente identificada (a sua função individualizadora foi cumprida) e a petição inicial não é inepta; mas a causa de pedir está incompleta (faltam elementos de facto necessários à completude da causa de pedir, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica invocada) e o articulado respectivo deve ser objecto de um despacho de aperfeiçoamento, porque a causa de pedir tal como foi alegada não pode cumprir a sua função fundamentadora da pretensão do senhorio. Se, no articulado aperfeiçoado, o autor alegar este facto, a causa de pedir foi complementada, não foi alterada ou modificada, nem implicou uma nova individualização, e o facto aditado, junto com os outros, vem permitir a integração da previsão normativa, possibilitando a procedência do pedido. Mas se o senhorio, apesar de convidado para o efeito, não alegar aquele facto principal (que no caso é um facto complementar da causa de pedir), deixando a causa de pedir incompleta, mantém-se o problema de inconcludência do pedido, que vai levar à improcedência da acção, e não perante um problema de individualização da pretensão do autor que levasse à ineptidão da petição.
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Assim sendo, se os factos aditados a uma petição, de modo a dar uma nova petição para uma nova acção, são, por exemplo, simples factos complementares ou concretizadores, estamos perante a mesma causa de pedir, agora completada ou concretizada e não perante uma nova causa de pedir; a nova acção é uma repetição da segunda, verifica-se a excepção do caso julgado.
Como diz Lebre de Freitas, a alegação, numa das acções, de factos que completem a causa de pedir, sem atentar contra a sua individualidade, não impede a repetição da causa de pedir (Introdução, p. 69, nota 47).
Mas se os factos aditados são factos essenciais, então estamos perante uma nova causa de pedir e a acção não é uma repetição da anterior que não tinha uma causa de pedir identificada (pois que faltavam factos essenciais para o efeito) e por isso não se verifica a excepção do caso julgado.
Assim, no caso dos autos trata-se apenas de saber se os factos aditados pelos autores são essenciais ou não.
Ora, o reconhecimento da servidão de vistas que os autores dizem ter sido constituído por usucapião, dependia, no entender da sentença do tribunal da 1ª instância e do acórdão do TRP que a confirmou, de uma série de factos, previstos nos arts. 1360/1, 1362/1, 1363/1 e 1371 do CC.
Mas, como aí se entendeu, os factos que já tinham sido alegados pela autora eram claramente identificadores da causa de pedir: a constituição por usucapião de uma servidão de vistas. As medidas da porta e da janela e outras pedidas pelo tribunal no despacho de aperfeiçoamento, correspondem a factos que foram considerados constitutivos do direito da autora e marido, por força das disposições conjugadas dos arts. 1362/1, 1360/1, 1362/1, 1363/1 e 1371, do CC, mas já não eram essenciais àquela identificação.
Assim, a falta da alegação destes factos deu origem a uma petição deficiente (incompleta) e não a uma petição inepta. Por isso é que a sua falta pôde ser objecto de um despacho de aperfeiçoamento. Se fossem factos essenciais, a sua falta dava lugar a uma petição inepta, a originar um eventual despacho de indeferimento liminar, ou um despacho saneador que absolvesse os réus da instância por ineptidão da petição inicial.
Por se estar perante uma petição deficiente, ela pôde ser objecto de um despacho de aperfeiçoamento que, não cumprido pela autora, levou à improcedência da acção por falta da alegação daqueles factos, com a consequente absolvição do pedido.
Sendo factos complementares, eles serviriam para complementar a causa de pedir, não para a individualizar. Por isso, a sua introdução em juízo não iria dar origem a uma nova causa de pedir. Ora, se isto é assim na primeira acção, não pode deixar de ser também assim na 2ª acção. Adicionados factos complementares à petição inicial da primeira acção para dar origem à 2ª petição inicial, tal não se traduz numa nova e diferente causa de pedir, mas a uma causa de pedir complementada.
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Note-se que é esta diferenciação entre petições ineptas e deficientes e entre factos essenciais e não essenciais (normalmente factos complementares ou concretizadores), que permite que se salvem petições deficientes com despachos de aperfeiçoamento, e a introdução dos factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa (desde que os autores manifestem a intenção de deles se aproveitar), sem que tal implique a modificação ou alteração da causa de pedir.
Se qualquer facto constitutivo de um direito fosse um facto essencial e elemento individualizador da causa de pedir, a falta de um qualquer deles daria sempre origem a uma petição inepta, que nunca poderia ser aperfeiçoada e teria de conduzir ao indeferimento liminar ou a uma absolvição da instância por anulação de todo o processado devido a essa ineptidão.
Só se poderia defender que os factos aditados pelos autores na nova petição tinham dado origem a uma nova causa de pedir e que portanto não havia caso julgado, se se considerasse que todo e qualquer facto constitutivo do direito dos autores é um elemento individualizador da causa de pedir, ou seja, um facto essencial. Mas, por um lado, não é claramente assim, já que os restantes factos alegados já identificavam suficientemente a causa de pedir. E, por outro, se assim fosse, negava-se a existência de factos complementares e concretizadores, de despachos de aperfeiçoamento, da possibilidade de consideração de factos constitutivos que decorressem da instrução da causa, etc. Ou seja, punha-se em causa a razão de ser de uma boa parte das regras jurídico-processuais vigentes.
Tudo isto era assim à data da decisão da 1ª acção e o tribunal que a decidiu demonstrou-o clara e abundantemente à luz do CPC antes da reforma de 2013, com base nos ensinamentos de Castro Mendes e Alberto dos Reis. Hoje as coisas mantém-se, no que importa, idênticas, como o disse também o despacho saneador recorrido, embora sejam outros os artigos e o lugar onde se encontram no CPC reformado em 2013, o que se tentou demonstrar com base nos ensinamentos de Lebre de Freitas já à luz desta reforma do CPC (A acção declarativa comum…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 41/44, 47/48, 143/146, 157, 173, 183, 189 e 308/309, e Introdução ao processo civil…, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 48/50, 56, 64/72, 165/169, l82/183).
Teixeira de Sousa considera que os factos complementares ou concretizadores não fazem parte da causa de pedir, pois que esta, para este autor, não é constituída por todos os factos de que pode depender a procedência da acção, mas apenas por aqueles que são necessários para individualizar a pretensão material que o autor quer defender em juízo (Ónus de alegação e de impugnação em processo civil, Scientia Ivridica, nº. 332, págs. 396/397). Se aplicarmos esta tese, a solução do caso seria ainda, se possível, mais nítida, pois que nem sequer se podia dizer que os factos introduzidos faziam parte da causa de pedir (mesmo que apenas na sua função de fundamentação da pretensão dos autores).
Mais ou menos no mesmo sentido do que antecede veja-se o ac. do STJ de 24/04/2013 7770/07.3TBVFR.P1.S1:
“Supomos que a actual distinção, operada pelo art. 264 do CPC [agora artigo 5/1 e 5/2b)], entre os factos essenciais - definidores e concretizadores de um núcleo essencial e individualizador da causa de pedir - e os factos complementares e concretizadores daqueles (susceptíveis de aquisição processual até um momento tardio, eventualmente no decurso da própria fase de julgamento, nos termos do nº 3 desse preceito legal [agora ≈> 5/2b]) poderá lançar, também nesta sede, alguma luz, fornecendo um critério operativo básico para as necessidades práticas de aplicação da figura da excepção de caso julgado: é que a simples inovação no âmbito da nova acção, intentada após definitivo julgamento da primeira, que se traduzir na alegação de factos que se devam qualificar como complementares ou concretizadores, mantendo-se intocado o referido núcleo essencial da causa de pedir, sujeita plenamente o demandante ao típico efeito da invocação da excepção de caso julgado, inibindo o tribunal de reapreciar a matéria litigiosa já julgada; ou seja, não é possível ao autor suprir o deficiente cumprimento do ónus de alegação que sobre ele recaía quanto a toda a factualidade constitutiva do seu direito (e que não conseguiu cumprir, apesar da actual e ampla flexibilização consentida pelo nº 3 do art. 264 do CPC) através de uma ampliação factual operada apenas em nova acção que continuasse a estar estruturada num núcleo fáctico essencial que permaneça imutável.” [os parênteses rectos foram colocados agora].
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos autores.

Porto, 09/07/2014
Pedro Martins (relator por vencimento)
Judite Pires
josé Manuel de Araújo Barros (vencido, conforme declaração de voto que anexo)
______________
Vencido.
Tentei, de balde, dar cumprimento ao nº 1 do artigo 663º do Código de Processo Civil, mencionando sucintamente as razões da minha discordância. A verdade é que, ao tentar sintetizar as considerações do projecto de acórdão que oportunamente redigi, vi-me sempre impelido a, pelo contrário, mais profusamente o justificar. Fico-me, pois, por aqui. Sob pena de desvirtuar a compreensão do seu sentido. Confessadamente assumindo não ter arte nem paciência para mais resumidamente apresentar os motivos pelos quais revogaria a decisão que absolveu os réus da instância, ordenando que os autos prosseguissem os seus demais termos.

José Manuel de Araújo Barros
__________________
Sumário (artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
I - Posto que uma mesma causa de pedir não pode gerar consequências jurídicas contrárias por referência a determinado pedido, a função negativa do caso julgado, sua vertente de excepção, impeditiva de que o mesmo feito seja novamente apreciado, só se justifica perante unicidade de critérios quanto à definição do alcance da factologia que integra essa causa de pedir.
II - Se, pela falta de alegação de factos, se julga inviável a acção, improcedendo o pedido formulado, uma nova acção na qual esses factos sejam aditados não tem, para efeitos de caso julgado, a mesma causa de pedir da primeira.
III – Só os factos essenciais à procedência do pedido caracterizam e definem o alcance da causa de pedir, que não também os factos instrumentais, complementares ou concretizadores daqueles.
IV - Não devem ser excluídos do âmbito da acção os factos que sejam complemento ou concretização de outros que os autores alegaram e resultem da instrução e discussão da causa, se estes manifestarem intenção de deles se aproveitarem e for assegurado o contraditório.
IV - Se, não obstante, forem excluídos e a sua falta for erigida em fundamento da inviabilidade da acção, não poderá uma tal sentença constituir caso julgado, impeditivo de segunda acção, na qual aos factos alegados na primeira aqueloutros sejam acrescentados.

1. A questão que é suscitada nos autos prende-se com o alcance do caso julgado resultante da sentença proferida no processo nº 49/10.5TBMSF, que absolveu os réus do pedido, idêntico ao formulado na presente acção.
O que se discute, em súmula, é se a causa de pedir em um e outro processo é a mesma.
Na verdade, quando os recorrentes sustentam que, tendo-se a improcedência do pedido devido à falta de alegação de factos julgados essenciais, nada obstará a que numa nova acção se formule o mesmo pedido suprindo essa omissão, mais não fazem do que defender que não há identidade entre a causa de pedir em uma e outra acção.
Concepção divergente da que subjaz à sentença recorrida. Transcrevem-se os pontos essenciais da argumentação que nesta é seguida, conducentes à conclusão de que existirá essa identidade.
“O simples acrescento dos factos vertidos no artigo 21º da petição inicial não afasta, por si só e sem mais, a conclusão de que a causa de pedir seja a mesma nos dois articulados, isto é, nas duas acções”. “Os autores configuraram uma relação material controvertida deficiente e sobre essa circunstância se conformaram (acção primitiva)”. “Sobre a mesma recaiu decisão de mérito”. “Cremos, desta feita, sempre respeitando melhor entendimento, que existe, de facto, identidade da causa de pedir”. “Com efeito, não podem os autores lançar mão de uma nova acção para alegar algo que, sendo do conhecimento e concedida a oportunidade, não alegaram”. “Sedimentou-se, assim, sobre a mesma causa de pedir a decisão de mérito já transitada em julgado”.
Sendo o seguinte o seu trecho axial.
“Assim, cumpria à autora alegar os factos que permitissem aferir das características da alegada abertura por forma a se concluir se a mesma era susceptível de originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial de vistas. Pois, uma vez constituída, o respectivo titular adquire o direito de manter essas aberturas em condições irregulares, o que implica que, em futura construção, o vizinho faça a sua edificação a, pelo menos, um metro e meio das mesmas. Faltando tal alegação, como já ficou dito, mostra-se a petição inviável por razões de facto. Perante uma petição inicial por razões de facto, esclarece o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.11.2006, in www.dgsi.pt: A petição deficiente, por não conter todos os factos de que depende a procedência da acção ou por se apresentar articulada de forma incorrecta ou defeituosa, poderá justificar, nos termos do artigo 508.º, números 2 e 3, despacho de aperfeiçoamento destinado a permitir a correcção das insuficiências ou das imprecisões na exposição ou na concretização da matéria de facto. Em caso de não acolhimento do convite, sujeita-se o autor à improcedência do pedido no despacho saneador ou na sentença final”.
Com o que definimos a questão em apreço, relativa ao alcance a dar à decisão de inviabilidade da acção por razões de facto. Figura que corresponde ao conceito de factualidade insuficiente para dela se extraírem as consequências de direito que subjazem ao pedido. A qual, não consubstanciando nem falta nem inintegibilidade do facto jurídico de que resulta a pretensão, diverge da ineptidão da petição inicial (cfr. os artigos 193º, nº 2, alínea a), e 494º, n º 4, do Código de Processo Civil). Conhecimento do mérito, portanto. Como anota Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Vol. 2º, pág. 372, “quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga”.
O que, revertendo para a questão inicialmente colocada, nos levará a perguntar se essa insuficiência na alegação de factos não implicará estarmos perante uma causa de pedir diferente daquela que se nos depararia se os mesmos tivessem sido alegados.
Ora, não deixa de ser curioso que o conceito de causa de pedir consagrado na nossa lei se vá buscar ao preceito que se lhe reporta como requisito do caso julgado. O aludido nº 4 do artigo 498º (actual artigo 581º) - «há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico». Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 1981, Vol. I, pág. 205, aprofundando aquela definição legal, que acolherá a teoria da substanciação, refere que “se entende que a causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer fattispecie jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda”. Nessa linha, o acórdão do STJ de 24.04.2013 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt, quando refere que “há identidade de causa de pedir quando o substrato factual de ambas as acções é precisamente idêntico, radicando a única diferença entre ambas no modo como – de um ponto de vista estritamente normativo, situado exclusivamente no plano da subsunção ou qualificação jurídica desses mesmos factos imutáveis – se procede ao respectivo enquadramento jurídico”. Ainda na mesma senda, Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 3ª Edição, pág. 121, citando Chiovenda, frisa que “para a determinação da causa de pedir não há que ter em conta qualquer facto; só se atende aos factos jurídicos, isto é, aos factos que podem ter influência na formação da vontade concreta da lei (factos relevantes)”. E, mais adiante, pág. 123, esclarece: “quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal”.
E aqui, acrescentaríamos nós, duas hipóteses se perfilam. Ou se enquadram, procedendo a pretensão. Ou não e a acção naufraga. Do que extrairemos a necessária consequência de que, por força do princípio do caso julgado, uma mesma causa de pedir não pode gerar consequências jurídicas potencialmente contrárias. Pois a função negativa do caso julgado, exercida através da sua vertente de excepção, impeditiva de que a mesma causa seja novamente apreciada, só se justifica perante uma unicidade de critérios quanto à virtualidade de determinada factologia determinar a consequência jurídica pretendida.
O que tudo tem a ver com a etiologia do princípio do caso julgado. Discorrendo sobre a razão de ser da excepção do caso julgado, refere Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 95, que ele se explica “pela conveniência de evitar que o tribunal seja colocado na triste e desairosa situação de se contradizer ou de se repetir”. Mais adiante acrescentando que “se a causa foi julgada definitivamente, se sobre o mérito dela se formou o caso julgado, tem de aceitar-se, como notámos, que a sentença obtida corresponde à verdade e à justiça”. Pelo que “sendo assim, já não pode admitir-se nova decisão sobre ela, sem pôr em cheque o prestígio dos tribunais”.
No reverso de tal ordem de razões, deveremos concluir que nunca será de convocar esse princípio quando essa contradição ou repetição se não perfile. Na verdade, a autoridade do caso julgado não será posta em causa se a nova pronúncia não entrar em contradição com o juízo de valor anteriormente emitido.
Do que será exemplo paradigmático a acção em que foi proferida sentença que absolveu o réu do pedido, com o fundamento de que os factos alegados, desacompanhados de outros, não têm a consequência pretendida, perante uma outra em que se aleguem todos os factos potencialmente necessários à procedência daquele.
Entender que a causa de pedir é a mesma, em um e outro caso, seria unificar duas realidades diferentes por referência à fattispecie pressuposta na lei. Desrespeitando o critério do nº 4 do artigo 498º (actual artigo 581º) do Código do Processo Civil relativo ao conceito de causa de pedir que, consagrando a teoria da substanciação, reporta esta ao acontecimento concreto, independentemente da valoração jurídica que sobre ele recaia. Aí sim, havendo, como já anotado, a verdadeira contradição lógica. Ao permitir que uma suposta mesma realidade (ou causa de pedir) possa ou não implicar a procedência da acção, tudo dependendo da forma mais ou menos completa como for apresentada.
Em suma. Atendendo ao conceito de causa de pedir consagrado na nossa lei processual e à etiologia do princípio do caso julgado, se da omissão de factos, que se reputam essenciais à procedência do pedido, se conclui que este improcede, nada obsta a que esse pedido seja novamente formulado em outra acção, na qual se incluam os factos omitidos.
2. Analisemos a questão que suscita sob o prisma interpretativo que no artigo 9º do Código Civil se elege como fulcral – a unidade do sistema jurídico.
Se compulsarmos os preceitos a que supra aludimos, deveremos surpreender a existência de uma certa complementaridade das soluções que a nossa lei processual civil encontrou. Assim, a distinção axial entre a nulidade da acção por ineptidão da petição inicial e a improcedência da acção assenta no facto de aquela visar a constatação de meros vícios formais e de esta incidir sobre o conhecimento do mérito. Sendo um dos seus pontos charneira o conceito de causa de pedir consagrado no nº 4 do artigo 581º do CPC (anterior artigo 498º). Que, como visto, foi centrado no facto concretamente alegado, que não no facto pressuposto na norma convocada.
O que só chamamos à colação para evidenciar que a noção de inviabilidade da acção, por os factos alegados não permitirem extrair a consequência jurídica expressa no pedido, tem como seu contraponto que a acção desse modo naufragada não possa ter a mesma causa de pedir de outra na qual os factos alegados já permitam essa consequência. Ainda em coerência com tal concepção, o só se considerar inepta a petição na falta (frise-se, total ausência) da causa de pedir, nos termos do artigo 186º, nº 2, a), do CPC (anterior artigo 193º). Como bem refere o professor Alberto dos Reis em trecho supra citado, se os factos foram invocados mas são insuficientes para o pedido, a acção não é inepta, mas sim inviável. Pelo que a acção naufraga.
E deveremos anotar que no artigo 590º, nº 6, (correspondente ao anterior artigo 508º, nº 5) se impõe como limite às alterações à matéria de facto alegada o não se poder modificar a causa de pedir.
Esta harmonia e complementaridade sofreu um certo abalo quando, na revisão do Código de Processo Civil operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, se introduziu o conceito de factos complementares ou concretizadores. No intuito confesso de temperar o princípio do dispositivo, privilegiando a busca da verdade material. Como se confessa no seu preâmbulo – “Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados. Assim, no que se refere à exacta definição da regra do dispositivo, estabelece-se que a sua vigência não preclude ao juiz a possibilidade de fundar a decisão não apenas nos factos alegados pelas partes mas também nos factos instrumentais que, mesmo por indagação oficiosa, lhes sirvam de base. E, muito em particular, consagra-se - em termos de claramente privilegiar a realização da verdade material - a atendibilidade na decisão de factos essenciais à procedência do pedido ou de excepção ou reconvenção que, embora insuficientemente alegados pela parte interessada, resultem da instrução e discussão da causa, desde que o interessado manifeste vontade de os aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o contraditório”.
Tenha-se no entanto em atenção que, na redacção do nº 3 do artigo 264º então introduzida, se foi um pouco além do que se pretendia, transferindo a adjectivação de essencialidade dos factos alegados para os factos complementares ou concretizadores. Em breve parênteses, lembre-se que o legislador exprimir o seu pensamento adequadamente não passa de uma simples presunção – nº 3 do artigo 9º do Código Civil. A qual facilmente se elide in casu, já que o referido trecho do preâmbulo se reporta claramente aos factos essenciais insuficientemente alegados e não à essencialidade dos factos que os concretizam ou complementam.
O que só foi corrigido pelo artigo 5º, nºs 1 e 2, do actual código, em que a qualidade de “essencial” é tão só imputada aos factos que caracterizam a causa de pedir (nº 1), que não também aos que sejam complemento ou concretização daqueles (nº 2, alínea b).
A verdade é que, naquele infeliz enunciado do referido nº 3, veio a entroncar e ganhar fôlego uma certa doutrina e jurisprudência que, ignorando a origem e o alcance do preceito, apenas destinado a colmatar o princípio do dispositivo, passou a dele retirar consequências a nível de caso julgado. Admitindo que, por via da errónea consideração desses factos concretizadores ou complementares como essenciais, mesmo na falta de factos essenciais a uma determinada solução jurídica, se admita como esgotada a causa de pedir nela pressuposta. O que, como visto, contraria frontalmente o princípio da substanciação, quanto a esta consagrado no nº 4º do artigo 581º (anterior artigo 484º). Face ao qual, todo o facto que seja essencial à pretensão deduzida é caracterizador da causa de pedir, introduzindo necessariamente uma alteração à mesma. Apenas não tendo essa virtualidade os factos instrumentais (ao que ora acrescem os factos complementares ou concretizadores), por não definirem a situação a que se pretende dar consequências jurídicas. Como refere Alberto dos Reis, ob. cit., Vol. V, pág. 74, sintetizando Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, págs 129 e 130, “a sentença que julga improcedente a acção preclude incontestavelmente ao autor a possibilidade de, em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões (argumentos de direito) não produzidas nem consideradas no processo anterior”. O que o caso julgado faz precludir é, pois, a possibilidade de o autor propor uma nova acção em que se limite a acrescentar factos instrumentais. Ou, actualmente, além destes, factos concretizadores ou complementares. Já que, concluímos nós, os factos essenciais, sendo definidores da causa de pedir, não coincidindo com os alegados em acção anterior, nunca poderão dar azo à excepção do caso julgado.
Tal confusão veio, nomeadamente, sugestionar uma interpretação demasiado ampla do artigo 621º (anterior artigo 673º), que ele não comporta. Pois este preceito não impõe que o caso julgado se aplique a factos invocados na segunda acção que já tivessem ocorrido aquando da propositura da acção onde foi proferida sentença anterior conexa. Tem um alcance muito mais modesto, apenas esclarecendo que a improcedência de uma acção pela não verificação de uma condição ou pelo não preenchimento de um prazo não obstam a que o pedido seja renovado quando o prazo se preencha ou a condição se verifique. E, curiosamente, se alguma regra mais genérica é permitido julgar imanente a esta norma, será de sentido contrário ao pretendido. Pois, tal como a não verificação da condição ou o não decurso do prazo, a não alegação de um facto essencial foi o motivo do não conhecimento do pedido. Pelo que o interesse que subjaz ao instituto do caso julgado não será lesado se este for renovado. Já que um juízo de abstenção limita a sua eficácia à valoração da situação que despoletou a não pronúncia. Nunca se lhe podendo assacar autoridade, que não detém, relativa a uma pretensão que nem sequer chegou a conhecer. Nenhuma contradição se antevendo, neste plano, que cumpra precaver.
3. Nem se diga, como na sentença recorrida, que uma tal leitura desvirtuará a segurança e estabilidade jurídicas que, com o caso julgado, se pretendem. Enfatizando não poderem os autores lançar mão de uma nova acção para alegar algo que, tendo-lhe sido concedida a oportunidade, não alegaram.
Na verdade, o que está em causa não é uma penalização dos autores por deficiência de alegação, fazendo precludir a possibilidade de a virem a colmatar em uma outra acção. Não sendo de atribuir ao instituto do caso julgado esse cariz sancionatório.
Aliás, e compulsando o disposto nos artigos 264º, nº 3, e 664º, 2ª parte, do Código de Processo Civil em vigor à data (correspondendo aos preceitos dos nºs 1 e 2, alínea b), do artigo 5º do Novo Código de Processo Civil), entendendo-se que os factos em falta na primeira acção eram complementares ou concretizadores dos factos alegados, deveriam ter sido incluídos no âmbito da acção, mesmo que não expressamente formulados pelos autores, apenas sendo necessário que os autores manifestassem, como manifestaram, vontade de deles se aproveitar. Pelo que essa factualidade não deveria ter sido retirada do objecto da acção. Já que a notificação efectuada nos termos do nº 3 do artigo 508º sempre teria as limitações do nº 5, que remete para o nº 1 do artigo 273º, não podendo alterar a causa de pedir, a não ser na sequência de confissão (artigos 590º, nºs 4 e 6, e 265º, nº 1, do actual código). Do que decorre que, sendo pressuposto de tal notificação o considerar-se tais factos complementares ou concretizadores de outros, o não cumprimento da notificação pelos autores nunca os excluiria da acção, por falta de alegação, devendo eles ser sempre conhecidos, como previsto no nº 3 do artigo 264º referido (ou 5º, nº 2, alínea b), do código actual). No mesmo sentido, se bem que reportado à não dedução de articulado superveniente, o acórdão do STJ de 23.01.2014 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt – “configurando-se tal elemento factual, substantivamente relevante, como complementar ou concretizador do núcleo essencial da causa de pedir invocada pelo trabalhador/reclamante, sempre seria admissível a sua ulterior aquisição processual, em função dos resultados da instrução do processo - apesar de não alegados no requerimento inicial - ao abrigo do regime constante do nº do artigo 264º do CPC, correspondente ao actual artigo 5º do Código, na versão emergente da Lei nº41/2013”.
O que não referimos para contrariar a primeira sentença proferida. A qual, tendo sido recorrida e confirmada, transitou em julgado, impondo-se-nos. Mas tão só para anotar que, compulsando os preceitos dos nºs 1 e 3 do artigo 264º do Código de Processo Civil (artigo 5º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do actual código) e constatando que a sentença conheceu imediatamente do pedido, terá esta abdicado implicitamente de eventual natureza complementar ou concretizadora desses factos, que obrigaria o tribunal a considerá-los oficiosamente. Pelo que, para efeitos de caso julgado, teremos necessariamente de os guindar a um outro plano, considerando-os como factos integradores da causa de pedir, já que essenciais à procedência da pretensão formulada.
Posto o que nunca se poderá validamente sustentar que o caso julgado formado por uma tal sentença impeça nova pronúncia em que aqueles sejam incluídos. Ou seja. A partir do momento em que esses factos foram excluídos do âmbito do processo para efeitos da sentença, que aliás se apoiou especificamente na sua falta, não se pode opor a excepção do caso julgado para impedir uma nova acção na qual se pede pronúncia que abarque os mesmos. A inviabilidade da primeira acção apenas faz precludir ao autor a possibilidade de nela alcançar a consequência que pretendia a nível de pedido. Que não numa outra acção em que altere os factos em que filia este.
É essa a conclusão necessária a retirar da razão fulcral do instituto do caso julgado que, como visto, nunca verá a sua autoridade posta em causa se a nova pronúncia não puder entrar em contradição com o juízo de valor anteriormente emitido.
Sendo necessário, para o efeito, perscrutar os fundamentos da sentença, para bem fixar o seu alcance. Razão pela qual se vem sustentando, como no acórdão do STJ de 12.07.2011 (Moreira Camilo), in dgsi.pt, que “a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado”. Ou no acórdão da Relação de Guimarães de 12.07.2011 (Helena Melo), ibidem – “tanto na excepção do caso julgado como na autoridade do caso julgado na determinação dos seus limites e eficácia deve atender-se não só à parte decisória mas também aos respectivos fundamentos”.
4. No caso em apreço, os autores voltaram a pedir, nesta segunda acção, o reconhecimento da constituição de uma servidão de vistas, onerando prédio dos réus. Aditaram, aos que tinham estribado esse seu pedido na primeira acção, outros factos, relativos às dimensões da janela e da porta da sua casa, bem como às distâncias entre elas e o muro erigido pelos réus.
Tais factos, sendo essenciais à procedência da consequência jurídica que os autores exoram, definem e, como tal, alteram o alcance da causa de pedir. Mesmo que o não fossem e não tivessem, portanto, uma tal virtualidade, acabaram como tal considerados na sentença que ora se não quer contrariar. Assim, já que julgados essenciais à procedência da primeira acção, têm necessariamente de integrar a causa de pedir da segunda, para efeitos de caso julgado. Diferenciando esta causa de pedir daquela que, por não os conter, fez com que a primitiva acção naufragasse.
Em suma. A causa de pedir em uma e outra acção não são idênticas. Já que os factos aditados, porque considerados como essenciais à procedência do pedido, não são complementares nem concretizadores dos que na primeira acção tinham sido alegados. Tendo sido precisamente a omissão de tais factos o fundamento com base no qual a primeira acção foi julgada improcedente, essa não consideração sempre afastará a força de caso julgado daquela em acção na qual eles venham a ser invocados.

José Manuel de Araújo Barros