Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6448/18.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Nº do Documento: RP202006156448/18.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.
II - A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: i) a existência de um enriquecimento; ii) que ele careça de causa justificativa; iii) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; iv) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.
III - Para que haja obrigação de restituir torna-se necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a que entre o património empobrecido e o património enriquecido não exista nenhum património intermédio.
IV- No caso de o devedor efectuar a prestação a um terceiro que não represente o credor e não se verifique qualquer das exceções contempladas no artigo 770º do Código Civil, o titular do direito à restituição desse (indevido) enriquecimento não é o credor mas antes o próprio solvens.
Reclamações: B - Guimarães & Guimarães - Arquitectura e Planeamento, Lda; C - Ernestina Helena de Fátima Ribeiro; D - NB - Novo Banco, SA; E - Hotelcar - Combustíveis e Comercialização, Lda; F - Guilherme Guimarães; G - Banco Pinto & Sotto Mayor, SA
Decisão Texto Integral: Processo nº 6448/18.7T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto,
Porto – Juízo Local Cível, Juiz 9
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
B…, Ldª. intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C… e D…, S.A., na qual conclui pedindo:
. a condenação da 1ª ré a devolver-lhe o valor do cheque depositado na sua (dela, 1ª ré) conta no valor de €16.269,13, acrescido de juros à taxa legal comercial, desde a data do depósito (novembro de 2000) até integral e definitivo pagamento;
. a condenação da 1ª ré no pagamento de todos os custos que a autora teve com o procedimento de injunção, no valor global de 1.836,00;
. a condenação da 2ª ré no pagamento de indemnização à autora por todos os prejuízos a esta causados em valor nunca inferior ao valor do cheque, ou seja no valor de €16.269,13;
Caso assim se não entenda
. a condenação da 1ª ré, no âmbito do enriquecimento sem causa, a restituir o valor do cheque que depositou na sua própria conta no valor de €16.269,13, bem como ao pagamento de juros à taxa legal comercial, desde a data do seu pagamento (novembro de 2000) até integral e definitivo pagamento e ainda de todos os custos que a autora teve com o procedimento de injunção, no valor global de 1.836,00;
Caso assim se não entenda
. a condenação solidária das rés no pagamento do valor de €16.269,13, acrescido de juros à taxa legal comercial, desde a data do seu pagamento (novembro de 2000) até integral e definitivo pagamento e ainda de todos os custos que a autora teve com o procedimento de injunção, no valor global de 1.836,00;
Ainda sem prescindir, por fim e sempre subsidiariamente para o caso de se entender mais adequado
. a condenação solidária das rés no pagamento do valor de €16.269,13 e ainda nos custos que a autora teve com o procedimento de injunção, no valor global de 1.836,00 e ainda condenadas em juros de mora, nos termos dos arts. 483º e 562º e seguintes do CC e do artº 805 nº 2 al. b) do CC, contados desde a data do seu pagamento (novembro de 2000), até efectivo e integral pagamento.
Para substanciar tais pretensões alegou que, para pagamento de quantia devida à autora a E…, Ldª emitiu cheque que veio a ser apresentado a pagamento, sendo depositado em conta bancária apenas titulada pela ré C….
As rés apresentaram contestação, pugnando pela total improcedência das pretensões aduzidas pela autora.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, definindo-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu “julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
- Condenar a ré C… a pagar à autora a quantia de €16.230,25 (dezasseis mil duzentos e trinta euros e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a sua citação até integral pagamento, contabilizados à taxa legal dos juros que, na presente data, se situa em 4%.
- No mais, vai a ré C… absolvida do pedido.
- Absolver a ré D…, SA de todos os pedidos contra si formulados”.
Não se conformando com o assim decidido, veio a ré C… interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
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A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. da (in)verificação dos requisitos do instituto do enriquecimento sem causa;
. do abuso de direito por banda da autora.
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2. FUNDAMENTOS DE FACTO
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à prestação de serviços de arquitetura, com um capital social de 5.000,00 euros.
2. A ré C… é sócia da autora, possuindo uma quota social no valor nominal de 250,00 euros, sendo também sócios F…, o qual exerce a gerência, e G…, filho de ambos os sócios.
3. Em 22/11/2013 a autora instaurou contra E…, Lda um procedimento de injunção reclamando o pagamento da quantia de 16.269,13 euros, a título de capital, 21.105,42 euros, a título de juros, 201,00 euros referente a “outras quantias” e 153,00 euros correspondente a taxa de justiça, tendo suportado a sua pretensão numa prestação de serviços a que correspondia a emissão da fatura n.º 34, datada de 26/10/2000.
4. O procedimento de injunção foi remetido à distribuição por a ali requerida ter deduzido oposição, em 30/12/2013, defendendo-se por exceção e invocando, entre outros, o pagamento da quantia reclamada.
5. A autora foi notificada para responder à matéria de exceção invocada por despacho proferido em 1/4/2014, o que fez mediante articulado apresentado em 22/4/2014.
6. Na continuação da audiência de julgamento realizada no âmbito daquele processo, em 12/7/2017 a autora desistiu do pedido em relação à ali ré, desistência essa que foi homologada por sentença transitada em julgado.
7. Para pagamento da quantia devida à autora a E…, Lda emitiu o cheque n.º ………., datado de novembro de 2000, com o valor inscrito de 3.253.828$00, sacado sobre a conta por si titulada junto do Banco H….
8. Tal cheque foi apresentado a pagamento no Banco I…, SA, no dia 11/12/2000, sendo depositado na conta n.º …. …. …., à data apenas titulada pela ré C….
9. No verso de tal cheque não consta qualquer assinatura ou nome manuscrito, mostrando-se apenas manuscrito o número da conta bancária referida em 8.
10. A ré C…, à data da propositura desta ação ex-companheira do gerente da autora, não exercia na autora atos de administração, gestão ou representação.
11. A cópia da frente e do verso do cheque referido foi levada aos autos identificados no dia 22/6/2015, tendo nessa mesma data a autora sido notificada.
12. Mediante ofício datado de 15/9/2015, notificado às partes após 22/9/2015, o Banco J…, SA informou o processo identificado que o cheque em causa havia sido depositado no Banco I…, SA.
13. Por despacho proferido em 24/9/2015 no processo identificado foi determinada a notificação da ré D…, SA, por o I…, SA ter sido incorporado pelo K…, SA, para que informasse qual a conta em que havia sido depositado o seu cheque, bem como o seu titular, tendo a ré D…, SA respondido que dado o lapso de tempo decorrido dificilmente conseguiria localizar o cheque e prestar a informação pretendida.
14. Após várias insistências frustradas junto da ré D…, SA e do Banco de Portugal, mediante requerimento datado de 17/5/2016, a ali ré E…, Lda requereu que se insistisse novamente junto da ré D…, SA porquanto havia conseguido determinar quer o número da conta, quer que um dos seus titulares era um dos sócios da autora – G…, filho dos outros dois sócios -, tendo a ré D…, SA informado que, na data do depósito do cheque, esse sócio não era titular da conta.
15. Mediante requerimento datado de 9/7/2016 a autora deu conhecimento naquele processo que tinha na sua posse um cheque emitido pelo sócio G… sobre a conta identificada, datado de 12/12/2001, onde figurava como titular da conta a ré C… e que se tratava de uma conta solidária.
16. Mediante ofício datado de 27/12/2016, notificado às partes após 3/1/2017, a ré D…, SA informou o processo identificado que, entre novembro e dezembro de 2000, a conta bancária na qual foi depositado o cheque era titulada apenas pela ré C….
17. A quantia devida pelos serviços prestados pela autora à sociedade E…, Lda continua sem ter sido por aquela recebida.
18. A ré C… fez sua a quantia inscrita no cheque que foi depositada na sua conta bancária.
19. A ré D…, SA é uma instituição de crédito bancário e foi criada em 3/8/2014 pelo Banco de Portugal, no âmbito das deliberações do respetivo Conselho de Administração referentes à resolução do Banco K…, SA, datadas de 3/8/2014, 11/8/2014 e 29/12/2015.
20. A ação foi proposta em 19/3/2018.
21. Ambas as rés foram citadas em 22/3/2018.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
1. Os factos alegados nos art.ºs 17.º, 20.º - no que respeita à ré ter-se apoderado do cheque e à existência de consentimento -, 21.º, 22.º, 24.º - a partir de “nem tinha, como nunca teve, autorização” até ao final -, 25.º, segundo 26.º, 28.º - no que respeita à autora - da petição inicial.
2. Os factos alegados no art.º 25.º da resposta às contestações.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Atentas as conclusões da alegação da apelante, a apreciação e decisão do presente recurso traduz-se, fundamentalmente, na análise e resolução da questão jurídica por ela colocada a este Tribunal e que consiste em determinar se estará (ou não) obrigada a restituir à autora a peticionada quantia de €16.230,25.
Na decisão recorrida entendeu-se que a ré C… estaria efectivamente constituída no dever de restituir a aludida importância ao abrigo do regime legal do enriquecimento sem causa.
A apelante rebela-se contra tal veredicto, argumentando que não se encontram preenchidos os requisitos desse instituto jurídico e, por consequência, pugna pela absolvição do pedido contra si direccionado tendo por base essa fonte das obrigações.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
É sabido que o enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e que assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia. Ou seja, na base desse instituto encontram-se situações de enriquecimento sem causa, de enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia.
Como resulta do artigo 473º, nº 1, do Cód. Civil (onde se enuncia um princípio em forma de norma), a obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento, à custa alheia, pressupõe, a verificação simultânea dos seguintes requisitos: a existência de um enriquecimento; obtenção deste à custa de outrem; e falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial[2].
Portanto, desde logo, torna-se mister que haja um enriquecimento, o qual representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética).
Em segundo lugar, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa (quer porque nunca a tenha tido, quer porque, tendo-a inicialmente, a haja entretanto perdido).
A noção de falta de causa do enriquecimento é, contudo, muito controvertida e difícil de definir, inexistindo uma fórmula unitária que sirva de critério para a determinação exaustiva das hipóteses em que o enriquecimento deve considerar-se privado de justa causa[3]. Perante tais dificuldades, a doutrina pátria[4] vem sublinhando a necessidade de saber, em cada caso concreto, se o ordenamento jurídico considera ou não justificado o enriquecimento e se, portanto, acha ou não legítimo que o beneficiado o conserve ou, então, se o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, ou se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
Pode, assim, dizer-se que o enriquecimento carece de causa, quando o Direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a realizada deslocação patrimonial, hipótese em que a lei obriga a restabelecer o equilíbrio patrimonial por ele rompido, por não desejar que essa vantagem perdure, constituindo o accipiens no dever de restituir o recebido. Deste modo, operando-se deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa.
Por fim, a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de outrem.
A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro.
O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido. Daí que se postule a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.
Haverá, no entanto, que registar que, entre nós[5], se vem discutindo se se torna ou não necessário que a vantagem económica do enriquecido deva ser obtida imediatamente à custa do empobrecido, dado que a deslocação patrimonial para o enriquecido tanto poder ocorrer ou ser conseguida por via directa como por via indirecta/reflexa.
A este propósito vem ganhando predominância a corrente doutrinal que amplia o referido requisito no sentido de exigir que, além de uma vantagem obtida à custa de outrem, se torna ainda indispensável, para que haja lugar à obrigação de restituição, que haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial directa – no sentido de que entre o acto gerador do prejuízo do empobrecido e a vantagem conseguida pela outra parte não deve existir qualquer outro acto jurídico[6]. Dito de outro modo, para que haja obrigação de restituir torna-se necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a que entre o património empobrecido e o património enriquecido não exista nenhum património intermédio (de terceiro).
Feito este excurso pelos pressupostos normativos de que depende o funcionamento do instituto em causa, haverá, outrossim, que atentar que a acção baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (cfr. art. 474º do Cód. Civil[7]), só podendo a ela recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reacção, o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à acção de restituição com base nesse instituto[8].
De frisar, no entanto, que sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir (embora subsidiária), por mor da regra vertida no nº 1 do art. 342º do Cód. Civil (no qual, segundo entendimento dominante, se consagra o pensamento fundamental da teoria das normas), é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um dos requisitos supra enunciados. Daí que a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não seja suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efectivamente a causa falta[9].
Aqui chegados, analisemos então o caso em apreço tendo por referência o substrato factual que logrou demonstração, sendo que, para tanto, relevam fundamentalmente as seguintes proposições factuais:
. Para pagamento de quantia devida à autora a E…, Lda emitiu o cheque n.º ………., datado de novembro de 2000, com o valor inscrito de 3.253.828$00, sacado sobre a conta por si titulada junto do Banco H… (facto provado nº 7);
. Tal cheque foi apresentado a pagamento no Banco I…, SA, no dia 11/12/2000, sendo depositado na conta n.º …. …. …., à data apenas titulada pela ré C… (facto provado nº 8);
. No verso de tal cheque não consta qualquer assinatura ou nome manuscrito, mostrando-se apenas manuscrito o número da referida conta bancária n.º …. …. …. (facto provado nº 9);
. Entre novembro e dezembro de 2000, a conta bancária na qual foi depositado o cheque era titulada apenas pela ré C… (facto provado nº 16);
. A quantia devida pelos serviços prestados pela autora à sociedade E…, Lda continua sem ter sido por aquela recebida (facto provado nº 17);
. A ré C… fez sua a quantia inscrita no cheque que foi depositada na sua conta bancária (facto provado nº 18).
Será, pois, à luz da descrita materialidade que terá que ser encontrada a resposta para a questão acima colocada, e mais concretamente quanto a saber se estão ou não verificados os requisitos legais do instituto do enriquecimento injustificado, maxime se o enriquecimento se processou à custa de outrem.
Ora, estando-se, in casu, em presença de um enriquecimento por prestação, tal pressuposto normativo dissolve-se na própria autoria da prestação, sendo essa autoria que determina a legitimidade do credor da pretensão de enriquecimento.
Com efeito, nessa modalidade de enriquecimento, os sujeitos envolvidos, o objecto em jogo e o seu teor resultam de uma prestação, efectuada pelo empobrecido ao enriquecido, verificando-se, contudo, uma ausência de causa que permita a este último a receção ou a manutenção da prestação realizada.
Como assim, a autora não é, nas descritas circunstâncias, titular de uma pretensão restitutória contra a ré apelante, nem contra ela poderá exercitar a ação de enriquecimento sem causa, visto que não se registou qualquer (directo) empobrecimento do seu património, diminuição essa que se verificou antes no património da sociedade “E…, Ldª”.
Estamos, assim, em presença de uma situação reconduzível aos quadros do que se vem denominando de indevido subjectivo do lado do credor[10] posto que quem recebeu a prestação não foi o credor, mas sim um terceiro.
Portanto, na espécie, a relação de enriquecimento e empobrecimento respeita apenas à ora apelante e ao referido ente societário, a quem compete o (eventual) direito a uma pretensão restitutória tendo por base o pagamento indevido[11] nos termos definidos no nº 2 do art. 476º do Cód. Civil[12], já que a prestação foi efectuada a pessoa diferente do credor e sem legitimidade para a receber (por não ser representante da autora, não se verificando, outrossim, qualquer das exceções taxativamente previstas no art. 770º do Còd. Civil), tendo, enquanto solvens, a possibilidade de repeti-la, dado que nada devia à ré.
Consequentemente não pode acompanhar-se o ato decisório recorrido, no segmento em que faz derivar o direito à restituição da mera demonstração de uma deslocação patrimonial, desconsiderando os demais requisitos legalmente exigidos para a existência da obrigação de restituir, designadamente a prova da falta de causa justificativa do enriquecimento e do carácter imediato dessa deslocação patrimonial que, como se viu, postula que haja uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial direta.
Terão, assim, de proceder as conclusões 19ª a 23ª, ficando, nessa medida, prejudicada a apreciação da questão atinente ao invocado abuso de direito por banda da autora (cfr. art. 608º, nº 2).
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que, revogando a sentença recorrida, se absolve a ré C… dos pedidos contra si formulados.
Custas a cargo da autora/apelada (art. 527º, nºs 1 e 2).
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Porto, 15.06.2020
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr, sobre a questão e por todos, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 491, GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 195, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e seguintes e MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 381.
[3] No nº 2 do citado art. 473º prevêem-se, numa enumeração exemplificativa destinada a dar uma linha de rumo interpretativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto).
[4] Cfr., inter alia, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, págs. 454 e seguintes e DIOGO LEITE DE CAMPOS, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir e Enriquecimento, Almedina, 2003, págs. 317 e 412.
[5] Cfr., sobre a questão, na doutrina, ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 390 e seguintes, ALMEIDA COSTA, ob. citada, págs. 489 e seguintes, LEITE DE CAMPOS, ob. citada, pág. 327, JÚLIO GOMES, O Conceito de Enriquecimento sem Causa – O enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998, págs. 433 e seguintes e 675 e seguintes e MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português – Direito das Obrigações, tomo III, Almedina, 2010, págs. 232 e seguintes; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 6/10/2009 (processo nº 2217/07.8TBVCD.S1), de 14/7/2009 (processo nº 413/09.2YFLSB) e de 16/9/2008 (processo nº 08B1644), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Registe-se, contudo, que uma parte da doutrina (v.g. MENEZES LEITÃO, in O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Almedina, 2005, págs. 549 e seguintes) vem defendendo dever ter a jurisprudência os movimentes livres para atender a uma ou outra situação em que tal exigência de deslocação patrimonial directa se venha, em concreto, a mostrar excessiva, conduzindo, por via disso, a soluções que choquem com o comum sentimento de justiça
[7] No qual se dispõe que “[n]ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
[8] Refira-se, no entanto, que a doutrina vem recorrentemente sublinhando que a denominada regra da subsidiariedade não tem um alcance absoluto – cfr., inter alia, MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 249 e seguintes, MENEZES LEITÃO, O enriquecimento sem causa no Direito Civil, págs. 914 e seguintes e JÚLIO GOMES, ob. citada, págs. 415 e seguintes.
[9] Cfr., neste sentido, na doutrina, ANTUNES VARELA, ob. citada, págs. 482 e seguinte e ALMEIDA COSTA, ob. citada, pág. 501; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 28/10/1993 (processo nº 083871), de 22/06/2004 (processo nº 1688/04-1), de 25/11/2008 (processo nº 08A3501), de 02/02/2010 (processo nº 1761/06.97UPRT.S1), de 14/10/2010 (processo nº 5938/04.3TCLRS.L1.S1), de 19/02/2013 (processo nº 2777/10.6TBPTM.E1.S1), de 20/03/2014 (processo nº 2152/09.5TBBRG.G1.S1) e de 29/04/2014 (processo nº 246/12.9T2AND.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., sobre a questão, JÚLIO GOMES, in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações (Das Obrigações em Geral), Universidade Católica Editora, 2018, págs. 260-262 e MENEZES LEITÃO, O enriquecimento, págs. 494 e seguintes.
[11] Refira-se que na doutrina se vem discutindo se o pagamento do indevido mais não é do que um caso particular do enriquecimento sem causa (assim, GALVÃO TELLES, ob. citada., pág. 206 e LEITE DE CAMPOS, ob. citada, pág. 210 e seguinte), ou antes uma figura que, embora integrando o enriquecimento lato sensu, tem, contudo, um regime distinto do enriquecimento stricto sensu (v.g. MENEZES CORDEIRO, ob. citada, págs. 211 e seguintes, especialmente, págs. 257-259).
[12] No qual se preceitua que “[a] prestação feita a terceiro pode ser repetida pelo devedor enquanto não se tornar liberatória nos termos do artigo 770º”.