Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
685/10.0TYVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
CONCEITO
Nº do Documento: RP20180711685/10.0TYVNG-B.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 678-A, FLS 133-146)
Área Temática: .
Sumário: I - Segundo a interpretação restritiva do art. 755º, n.º 1 al. f) do Código Civil que emerge do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, o credor de uma empresa insolvente com crédito derivado do incumprimento definitivo de contrato-promessa celebrado com a insolvente só pode beneficiar do direito de retenção se, além dos demais requisitos gerais, demonstrar ser consumidor.
II - A Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96 de 31.07) consagra um conceito restrito de consumidor, segundo o qual é assim considerado o adquirente de bens que não se destinem a uso profissional mas antes a um fim pessoal ou privado, isto é, não integrado no exercício de uma actividade comercial, industrial, artesanal.
III - Tendo por objecto o contrato-promessa de compra e venda a futura aquisição de uma fracção autónoma e constituindo objecto social da promitente adquirente a actividade profissional de compra e venda de imóveis quer para revenda, quer para construção e, ainda, a promoção imobiliária, a mesma não é de considerar como consumidora para efeitos de reconhecimento do direito de retenção e em conformidade com a doutrina firmada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014.
IV - Nesta hipótese, os fins sociais de protecção dos consumidores no mercado de habitação, enquanto parte mais fraca na contratação, que justificam o direito de retenção previsto no artigo 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil, não ocorrem, não havendo, pois, que reconhecer aquele direito real de garantia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 685/10.0TYVNG-B.P1 - Apelação
Origem: Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – J1.
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto: Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto: Des. Oliveira Abreu
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Sumário:
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
No presente apenso de verificação e graduação de créditos, em que é insolvente/reclamada “B..., Lda. “ veio a ser proferido com data de 16.03.2018 despacho saneador-sentença e em cujo dispositivo final foi decretado o seguinte (sic):
“I. Declaro verificado o crédito de “C..., Lda.”, no valor total de € 159.618,85 (cento e cinquenta e nove mil seiscentos e dezoito euros e oitenta e cinco cêntimos).
II. Julgo a impugnação de D... a fls. 8-26 procedente e, em consequência, declaro verificado o seu crédito no valor total de € 184.040,10 (cento e oitenta e quatro mil e quarenta euros e dez cêntimos) e qualifico-o, no montante global de 183. 638, 69 como crédito garantido.
III. Julgo a impugnação de D... a fls. 27-29 procedente e, em consequência, qualifico o crédito de C..., Lda. como comum.
IV. Procedo à graduação de todos os créditos, nos seguintes termos:
a) Quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1767/20021115-A:
1º O crédito garantido (com privilégio imobiliário especial) da Fazenda Nacional, atinente a IMI, respeitante a este imóvel;
2º O crédito garantido (por hipoteca) de D...;
3º O crédito privilegiado (com privilégio imobiliário geral) do Estado – Fazenda Nacional, relativo a IRC;
4º Os créditos comuns; e
5º Os créditos subordinados.
b) Quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 420/19910624:
1º O crédito garantido (com privilégio imobiliário especial) da Fazenda Nacional, atinente a IMI, respeitante a este imóvel;
2º O crédito garantido (por hipoteca) de D...;
3º O crédito privilegiado (com privilégio imobiliário geral) do Estado – Fazenda Nacional, relativo a IRC;
4º Os créditos comuns; e
5º Os créditos subordinados.
c)- Quanto ao prédio rústico sito no ..., freguesia ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 16º:
1º O crédito garantido (com privilégio imobiliário especial) da Fazenda Nacional, atinente a IMI, respeitante a este imóvel;
2º O crédito privilegiado (com privilégio imobiliário geral) do Estado – Fazenda Nacional, relativo a IRC;
3º Os créditos comuns; e
4º Os créditos subordinados.
d)- Quanto ao produto da venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1767/20021115-C:
1º O crédito garantido (com privilégio imobiliário especial) da Fazenda Nacional, atinente a IMI, respeitante a este imóvel;
2º O crédito garantido (por hipoteca) de D...;
3º O crédito privilegiado (com privilégio imobiliário geral) do Estado – Fazenda Nacional, relativo a IRC;
4º Os créditos comuns; e
5º Os créditos subordinados. “
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Inconformado com o dito acto decisório, veio o credor reclamante “C..., Lda. “ interpor recurso de apelação, em cujo âmbito ofereceu alegações e deduziu, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
i. A factualidade, salvo o devido respeito, provada e articulada não permite a procedência da impugnação da D..., antes pelo contrário, levam à sua inelutável improcedência.
ii. A aplicação do critério interpretativo correto leva à inelutável aplicação do direito de retenção e a qualificar o crédito da recorrente como garantido e privilegiado em face ao da D...;
iii. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/14, de 20.03.2014, não uniformizou o próprio conceito de consumidor;
iv. O conceito de consumidor não é unívoco;
v. No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/14 encontra-se elementos que permitem concluir que o próprio não adoptou a concepção de consumidor intermédio, mas antes a de consumidor final, excluindo do conceito aquele que compra ou promete comprar com o escopo de revenda.
vi. A recorrente nunca vendeu ou revendeu qualquer imóvel, muito menos o que está em causa nos presentes autos.
vii. Sempre utilizou o património que adquiriu para uso próprio e não com o escopo de revenda.
viii. Não se trata sequer da existência de utilização profissional marginal.
ix. Sendo que nos casos de utilização profissional marginal há lugar à protecção especial do consumidor (Direito da União Europeia, Tribunal de Justiça da União Europeia – Processo c-464/01, K... contra L...).
x. A recorrente não é comerciante de imóveis!
xi. A sentença recorrida viola o estatuído no artigo 607º, n.º 3 do CPC.
xii. A sentença recorrida viola a Lei 24/96 e o DL 24/2014.
xiii. A sentença recorrida viola o artigo 2º da Directiva n.º 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho de 25.10.2011.
xiv. A sentença recorrida viola o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20.03.2014.
Nestes termos e, nos demais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando a sentença recorrida, farão, como sempre, inteira e Sã Justiça.
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O credor E..., SA (habilitada, na qualidade de cessionária, na posição do credor D...), veio oferecer contra-alegações, nas quais pugnou pela improcedência do recurso.
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Foram dispensados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
Neste enquadramento, a única questão a dirimir consubstancia-se em saber:
- se a apelante beneficia, para efeitos de garantia e graduação do crédito por si reclamado (que não se mostra posto em crise), de direito de retenção e, logicamente, se esse seu crédito deve ser graduado com preferência ao crédito de D..., garantido por hipoteca.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. Na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº420/19910624, mediante a ap. 22, de 28.01.2002, encontra-se inscrita hipoteca voluntária a favor do credor D..., sobre o prédio rústico denominado “F...”, situado no ..., freguesia ..., concelho de Paredes – cf. doc. de fls. 15 v.º-17 do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1767/20021115, mediante a ap. 22, de 28.01.2002, encontra-se inscrita hipoteca voluntária a favor do credor D..., sobre o prédio urbano situado na Rua ..., nº ..., freguesia ..., concelho de Paredes, a qual foi cancelada, após constituição da propriedade horizontal, relativamente às fracções “B”, “E” e “D” em 2008 e à fracção “C” em 2013 – cf. doc. de fls. 13-14 do apenso A, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
3. Por escrito particular de 15.10.2001, denominado «contrato promessa de compra e venda», a Insolvente declarou prometer vender e G... e H... declararam prometer comprar, pelo preço de 159.615,33 € (32.000.000$00), a moradia unifamiliar com a tipologia T4-duplex, fracção designada pela letra A, a edificar no prédio identificado em 1) – cf. doc. de fls. 79 v.º84 v.º, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. No escrito referido em 3), consta, sob a cláusula Oitava: “A escritura será marcada pela primeira outorgante, com 15 (..) dias de antecedência e que os segundos se comprometem a respeitar” – cf. doc. de fls. 79 v.º- 84 v.º, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. No escrito referido em 3), consta, sob a cláusula Décima Quarta: “Os segundos outorgantes poderão ceder a sua posição contratual, caso em que terão que avisar o primeiro outorgante, por carta registada com aviso de recepção na qual mencionará o cessionário (…) ou em alternativa elaborar outro contrato directamente com o cessionário” – cf. doc. de fls. 79 v.º-84 v.º, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6. Por escrito particular de 15.06.2005, denominado «contrato de compra e venda e cedência de posição», H... declarou ceder a sua posição no acordo referido em 3), sem custos, a G... e este declarou aceitar tal cessão – cf. doc. de fls. 85, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Por escrito particular de 1.07.2008, denominado «contrato de cessão da posição contratual», G... declarou ceder à credora C..., Lda. a sua posição contratual de único promitente- comprador no acordo referido em 3), com todos os direitos e obrigações, e aquela declarou aceitar tal transmissão – cf. doc. de fls. 85 v.º- 86, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8. Por escrito particular de 4.07.2008, a Insolvente declarou ter tomado conhecimento dos acordos referidos em 6) e 7) – cf. – cf. doc. de fls. 86 v.º- 87, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. O preço indicado em 3) foi integralmente pago à Insolvente.
10. A escritura referida em 4) não foi outorgada.
11. Na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº1767/20021115-A, mediante a ap. 15, de 3.07.2008, foi efectuada a inscrição, provisória por natureza, da aquisição, por compra, da fracção autónoma “A” do prédio identificado em 2), a favor da credora C..., Lda. – cf. doc. de fls. 72-73 dos autos principais.
12. Após a data indicada em 7), a Insolvente entregou as chaves da fracção autónoma referida em 11) à credora C..., Lda.
13. Em Setembro de 2008, a credora C..., Lda. solicitou a baixada de contador para a fracção autónoma referida em 11).
14. Por escrito particular de 22.09.2008, C..., Lda. declarou dar de arrendamento a I... e mulher J... e estes declararam tomar de arrendamento a fracção autónoma referida em 11), para habitação, mediante a renda mensal inicial de 250 €, e com a duração de 5 anos, com início em 1.10.2008 e renovável automaticamente por períodos sucessivos de 3 anos, se não houver oposição à renovação por qualquer das partes – cf. doc. de fls. 89-90, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
15. Em Outubro de 2008, a credora C..., Lda. instalou, na fracção autónoma referida em 11), mobiliário de cozinha e de casa-de-banho.
16. C..., Lda., mediante petição inicial entrada em 1.09.2010, no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, requereu a declaração de insolvência de B..., Lda. – cf. petição inicial a fls. 2-18 dos autos principais.
17. Por sentença de 5.09.2014, transitada em julgado em 29.10.2014, foi declarada a insolvência de B..., Lda. – cf. fls. 400-408 dos autos principais.
18. O Sr. Administrador da Insolvência recusou cumprir o acordo referido em 3).
19. Foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens:
a) fracção autónoma “A” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº1767/20021115 (verba nº1);
b) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº420/19910624 (verba nº2);
c) prédio rústico, composto por mato, sito no ..., freguesia ..., concelho de Paredes, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 16.º (verba nº3); e
d) produto da venda à “D...” da fracção autónoma “C” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº1767/20021115, efectuada no processo de execução fiscal nº3565201101062603 (verba nº5) – cf. autos de apreensão a fls. 3-3v.º e 9 do apenso A e doc. de fls. 11 v.º.
20. “C..., Lda.” tem por objecto: a) a construção civil e empreitadas de obras públicas e particulares; b) a compra e venda de imóveis quer para revenda, quer para construção, quer para revenda dos adquiridos para esse fim; c) a promoção imobiliária e actividades da natureza urbanística, incluindo o loteamento de terrenos; d) a exploração de actividades comerciais turísticas em empreendimentos imobiliários a adquirir ou a reabilitar pela sociedade ou tomados de arrendamento ou mediante cessão de exploração; e) todas e quaisquer outras actividades não especificadamente previstas nas alíneas anteriores e conexas com o exercício de actividade de construção, decoração, fiscalização e representações – cf. doc. de fls. 33-34 dos autos principais. [1]
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Conforme resulta dos presentes autos de reclamação, verificação e graduação de créditos apensos à insolvência de “B..., Lda.”, nos mesmos formulou a ora apelante a pretensão de reconhecimento do seu crédito no montante de € 159.615,58 e, ainda, a qualificação desse seu crédito como garantido, em virtude de gozar, na qualidade de promitente-compradora, de direito de retenção sobre a fracção autónoma “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 1767/20021115.
A sentença recorrida reconheceu o montante do crédito reclamado pela apelante, mas, ao contrário do sustentado pela apelante e no seguimento da posição manifestada nos autos por parte do Sr. Administrador e pelo credor D..., negou-lhe a garantia real de direito de retenção, considerando, no essencial, que a ora apelante e promitente-compradora da dita fracção “A” não pode ser considerada como consumidora, para efeitos de reconhecimento daquele direito de retenção e em conformidade com a doutrina assinalada no Acórdão Uniformizador n.º 4/2014 de 20.03.2014.
É deste último segmento decisório que discorda a apelante, ou seja, do segmento decisório que afastou o seu arrogado direito de retenção, sustentando, ao invés, que a sentença recorrida fez errónea aplicação do regime jurídico aplicável, em particular quanto à noção juridicamente relevante de consumidor.
Delimitado, assim, o objecto do recurso – e tendo-se presente, como já antes se referiu, que o objecto do recurso delimita o âmbito da actividade jurisdicional do tribunal ad quem, afastando o conhecimento de outras eventuais questões, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso -, cumpre decidir da questão antes delineada, qual seja o arrogado direito de retenção invocado pela apelante.
Sobre esta precisa matéria, diga-se, por uma questão de transparência, que já antes tivemos oportunidade de dela conhecer em um outro recurso (apelação n.º 989/07.9TBMCN-Y.P1, datada de 8.05.2017), razão porque, não vendo razões substantivas para dela divergir, o presente aresto seguirá, no essencial, a posição que ali adoptámos, sem deixar de considerar as particularidades do presente caso.
Como é consabido, o direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele (artigo 754º do Cód. Civil). É um direito real de garantia que consiste na faculdade de uma pessoa reter ou não restituir uma coisa alheia que possui ou detém até ser paga do que lhe é devido por causa dessa coisa, pelo respectivo proprietário.
O artigo 755º do Cód. Civil prevê casos especiais de direito de retenção e nele se inclui o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º do mesmo Código – vide artigo 755º, n.º 1 al. f) do citado Código.
O devedor só se pode considerar constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada em devido tempo (artigo 804º, n.º 2 do Cód. Civil) e fica, como tal constituído, depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (artigo 805º, n.º 1 do mesmo Código) ou, ainda, não cumprindo a obrigação dentro do prazo estipulado para o efeito (artigo 805º, n.º 2 al. a) do mesmo).
A mora, enquanto mero retardamento ou dilação no cumprimento da obrigação – não constitui fundamento para a resolução do contrato, constituindo apenas o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
De acordo com o n.º 2 do artigo 442º do Cód. Civil, se o não cumprimento (definitivo) for devido ao promitente-vendedor, tem o promitente-comprador a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
Conforme é entendimento da maior parte da doutrina e da jurisprudência, para que o direito de retenção do promitente-comprador se constitua, não basta a situação de simples mora, antes sendo de exigir o incumprimento definitivo da promessa. [2]
Por outro lado, como é consabido, o incumprimento definitivo pode resultar (i) da impossibilidade da prestação, por destruição da coisa ou pela sua alienação a terceiro, sem qualquer reserva (artigo 801º do Cód. Civil), (ii) da perda do interesse do credor na prestação, em consequência da mora do devedor ou da inexecução da prestação dentro do prazo razoável que for fixado pelo credor (interpelação admonitória – artigo 808º do Cód. Civil), (iii) pelo decurso do prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que redunda na perda do interesse do credor ou, ainda, (iv) pela recusa inequívoca e peremptória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, não se justificando, nesse contexto, nova interpelação ou a fixação de um prazo suplementar. [3]
Em suma, como resulta do antes exposto, são pressupostos do direito de retenção do promitente adquirente, em termos gerais, a traditio do objecto mediato do contrato prometido, o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente da alienação e a existência contra este, por virtude daquele incumprimento, de um direito de crédito da titularidade do primeiro.
Verificados os ditos pressupostos e recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (artigo 759º, n.º 1 do Cód. Civil). Neste caso, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
Dito isto, no caso concreto ora em apreço, em função do objecto do recurso, delimitado pelas alegações da apelante e das contra-alegações da apelada, não se coloca qualquer questão ao nível do incumprimento (definitivo) da promessa, pois que a celebração do contrato prometido foi recusada pelo administrador de insolvência, nem, ainda, ao nível da tradição da fracção em apreço, pois que a apelante recebeu as chaves dessa mesma fracção da parte da insolvente (antes da sua declaração de insolvência), passando a deter a mesma e a dela fruir, sendo certo que foi pago na íntegra o preço que estava previamente convencionado pela posterior aquisição da fracção em causa através da celebração do prometido contrato de compra – vide factos provados sob os pontos 7, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 18.
A questão mostra-se, assim, circunscrita à interpretação do citado artigo 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil, à luz do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, pois que, como é consabido, decorre deste Acórdão uma interpretação restritiva do citado normativo do Código Civil.
De facto, o direito de retenção em favor do promitente-comprador fiel foi introduzido na nossa ordem jurídica na década de 80 (DL n.º 236/80 de 18.07) – vide artigo 442º, n.º 3 do Cód. Civil, na redacção deste diploma -, com o confesso fim de proteger o promitente adquirente de prédios urbanos ou de fracções autónomas destes perante o não cumprimento, por parte de promitentes menos sérios, da promessa correspondente, promitentes estes tentados pela evolução em alta do preço previamente convencionado. Este propósito manteve-se quando o legislador, através do DL n.º 379/86 de 11.11, passou o tratamento da questão do direito de retenção para o âmbito do citado art. 755º, n.º 1 al. f)-, cuja redacção foi introduzida por este último diploma.
Na verdade, como é pacífico, através da consagração do direito de retenção ao promitente-comprador de prédio urbano ou de fracção autónoma, mediante os citados diplomas legais, teve o legislador a intenção de proteger um particular credor, o consumidor, ou seja, o promitente-comprador, partindo do pressuposto básico de que é este último a parte mais débil, mais vulnerável, na relação contratual.
No entanto, perante a necessidade de harmonizar o direito de retenção assim reconhecido ao promitente adquirente fiel à promessa em caso de incumprimento definitivo da mesma pelo promitente alienante (e atenta a confiança no cumprimento decorrente da traditio) com o direito do credor hipotecário, cuja garantia, apesar de constituída e registada em data anterior à promessa, se via ultrapassada pelo direito de retenção, cedo se foram erguendo vozes, ao nível da doutrina e da jurisprudência, que pugnavam por uma interpretação restritiva do citado artigo 755º, n.º 1 al. f).
Esta posição veio a culminar, ainda que no estrito domínio do processo de insolvência do promitente alienante, como é o caso dos autos, com a prolação do citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014. [4]
Neste acórdão firmou-se, pois, no seu segmento uniformizador, que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, n.º 1 alínea f) do Código Civil.” [sublinhados nossos]
Em suma, no que ora releva, e ultrapassando as várias querelas doutrinais e jurisprudenciais sobre o tema – que nos escusamos aqui a repetir, remetendo para a sua recensão constante do acórdão uniformizador -, deste aresto resulta, por um lado, que, na hipótese ora em apreço (promessa obrigacional com tradição da coisa e com prestação de sinal) se reconhece ao promitente-comprador, em caso de não cumprimento do contrato promessa por parte do administrador da insolvência, o direito indemnizatório correspondente ao dobro do sinal passado e, por maioria de razão, à restituição do seu valor em singelo (art. 442º, n.º 2 do Cód. Civil), como, ainda, em especial, para o caso que ora nos ocupa, se reconhece apenas e só ao promitente-comprador consumidor o direito de retenção, previsto no art. 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil, enquanto garantia real do crédito emergente do citado incumprimento da promessa.
Na verdade, e daí o sentido restritivo do aludido acórdão do STJ, ao contrário do que sucede na generalidade dos casos, isto é, dos casos em que o promitente alienante não foi declarado insolvente, em que basta para efeitos de preenchimento dos pressupostos do direito de retenção o incumprimento definitivo da promessa, a traditio da coisa para o promitente adquirente e a existência de um direito de crédito emergente do incumprimento definitivo da promessa, no caso específico em que o promitente alienante é declarado em estado de insolvência, além destes pressupostos (cuja verificação no âmbito do presente recurso não se mostram esgrimidos), é, ainda, indispensável que o promitente fiel e credor pelo incumprimento seja um consumidor.
Consequentemente, não logrando o credor reclamante provar essa qualidade – enquanto elemento constitutivo do seu direito de retenção (art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil) -, o seu crédito não será caucionado pela dita garantia real, antes será um crédito comum, sendo graduado como tal, nomeadamente no confronto com o credor hipotecário, que assim prevalece.
É essa, como resulta dos termos do recurso, e já antes se salientou, a questão que subjaz ao presente litígio e que subjaz agora à discordância da apelante em face do acto decisório do Tribunal de 1ª instância.
Ora, neste particular conspecto, não obstante as vozes discordantes quanto a esta interpretação restritiva do art. 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil, interpretação que, na hipótese de insolvência do promitente-vendedor, conduziu, como se referiu, ao reconhecimento do citado direito de retenção apenas e só a favor do promitente-comprador que detenha a qualidade de consumidor [5], dúvidas não subsistem que que foi esta interpretação restritiva, na senda da posição defendida na doutrina por Miguel Pestana de Vasconcelos, que vingou no aludido acórdão uniformizador e que, assim, se nos impõe. [6]
Neste sentido, refere-se, de forma expressa, entre outros, no AC STJ de 14.02.2017, no AC STJ de 5.07.2016 e no AC STJ de 24.05.2016 [7], todos proferidos após o aludido AC UJ, que “nos termos do acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, o credor de uma empresa insolvente com crédito derivado de um contrato promessa celebrado com a insolvente e não cumprido (…), só pode beneficiar do direito de retenção previsto no art. 755º, al. f) do Cód. Civil, se demonstrar ser consumidor.” [sublinhado nosso]
Sendo assim, e tendo presente que os acórdãos de uniformização de jurisprudência, apesar de não disporem de força obrigatória geral, criam um precedente qualificado de carácter persuasivo, a desconsiderar apenas com fundamentos em fortes razões ou especiais circunstâncias que não tenham sido suficientemente ponderadas [8] – o que, no caso dos autos, não se vislumbra -, segue-se, logicamente, que a única questão que importa dirimir, para efeitos de conhecimento do direito de retenção invocado pela apelante é saber se esta última é de considerar como consumidor para efeitos do preceituado no art. 755º, nº 1 al. f) do Cód. Civil, na sobredita interpretação acolhida pelo Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, pois que se assim for a sentença recorrida no que se refere à natureza comum do crédito da apelante não pode subsistir.
Nesta matéria, a primeira nota que se impõe deixar expressa é que, como se mostra reconhecido de forma clara nos citados arestos do STJ de 24.05.2016 e 5.07.2016, o aludido AC UJ n.º 4/2014 não incluiu no seu segmento uniformizador o conceito de consumidor.
Dito de outra forma, a noção de consumidor, ainda que subjacente à argumentação e fundamentação do acórdão uniformizador, não foi nele definida ou estabelecida, pelo menos na parte do seu segmento decisório final, único que, por princípio, se pode impor como doutrina a seguir.
Neste sentido, concorda-se com a apelante quando refere que esse conceito de consumidor não se mostra definido pelo acórdão uniformizador n.º 4/2014 e, ainda se aceita como indiscutido que esse conceito não é unívoco.
De facto, se é certo – aqui ao contrário do que sugere a apelante - que, pelo texto da fundamentação do aresto uniformizador, se depreende que ali se teve em vista e presente um conceito restrito de consumidor – afastando, pois, do âmbito de aplicação do segmento uniformizador as situações em que a actuação vise fins que se incluam no âmbito da actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional do contratante -, certo é também que a noção de consumidor, na sua dimensão ou sentido normativo aplicáveis, não foi ali fixada ou determinada em termos uniformes.
Destarte, como se refere no AC STJ de 31.10.2017, incumbe aos tribunais “trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, por não ser esta uma questão estritamente jurídica.” [9]
Sendo assim, importa, no caso dos autos, determinar a noção relevante de consumidor, por forma a aferir do alegado direito de retenção da apelante/promitente-compradora.
A Lei n.º 24/96 de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor - LDC) define consumidor como «todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios
Por seu turno, o DL n.º 24/2014 de 14.02. ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, define no seu artigo 3º, alínea c), como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.”
Por seu turno, o próprio artigo 2º, n.º 1, da citada Directiva refere que, para os efeitos nela previstos, é considerado «consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional

Resulta, assim, da comparação entre a norma nacional e a norma comunitária, que a legislação nacional consagrou, precisamente, a mesma noção (restrita) de consumidor que constava da directiva, não existindo, ao contrário do que sustenta a apelante, uma qualquer contradição entre a dita Directiva e a norma nacional que procedeu à sua inserção no nosso direito interno.
Ainda a propósito desta noção de consumidor, refere J. Calvão da Silva [10] que, em sentido estrito, consumidor é apenas aquele que adquire, possui ou utiliza um bem ou um serviço para uso privado (pessoal, familiar ou doméstico), de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas já não o que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou da sua empresa.
Como dá nota o Ilustre Professor é esta última noção a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas comunitárias, sendo, nessa perspectiva, consumidor o adquirente ou utilizador de bens de consumo ou de serviços destinados ao seu uso pessoal, familiar ou doméstico, portanto ao seu uso privado, não ao seu uso profissional.
Em sentido similar sustenta J. Morais de Carvalho [11] que o conceito restrito de consumidor exclui do seu âmbito «todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que atuam no âmbito de uma atividade profissional, independentemente de terem ou não conhecimentos específicos no que respeita ao negócio em causa. Incluem-se, contudo, no conceito as pessoas jurídicas que não destinem o bem a uma atividade profissional, como associações ou fundações. Encontram-se igualmente incluídas as pessoas que, apesar de terem conhecimentos específicos no que respeita ao negócio em causa, atuam fora do âmbito de uma actividade profissional.»
Em suma, segundo cremos, à luz da legislação nacional e da própria legislação comunitária, em conformidade com a melhor doutrina, será de perfilhar um conceito restrito de consumidor, nele se contemplando apenas o adquirente de bens que não os destine a um uso profissional mas antes a um fim pessoal ou privado, isto é, não integrado no exercício de uma actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional. [12]
De todo o modo, como se refere no já citado AC STJ de 31.10.2017, que aqui se segue, “há vários acórdãos do STJ que têm perfilhado visões mais amplas do conceito de consumidor, como nos dá conta, em importante e útil resenha, o acórdão de 16.02.2016. Deles se destaca, o acórdão de 29.05.2014, no qual se adoptou uma concepção mais ampla de consumidor. Aí se decidiu que deve ser considerado consumidor o promitente-comprador que, na fracção prometida comprar, tem um estabelecimento de venda ao público de artigos para o lar, que explora através duma sua sociedade com sede na mesma fracção.
Posteriormente, foram proferidos outros acórdãos no STJ em que a amplitude do conceito de consumidor tem variado, consoante as cambiantes factuais de cada caso, nomeadamente no que concerne à finalidade de uso do imóvel, que funciona como elemento teleológico do conceito.” [13]
No entanto, e como também se salienta neste aresto do STJ de 31.10.2017, certo é que, independentemente da amplitude que se dê à figura do consumidor, ela nunca poderá abarcar as situações em que uma entidade compra ou promete comprar imóveis para o mercado imobiliário de arrendamento, de revenda ou de exploração comercial.

Ora, dito isto, no caso dos autos, a apelante “C..., Lda.” tem por objecto social a construção civil e empreitadas de obras públicas e particulares, a compra e venda de imóveis quer para revenda, quer para construção, quer para revenda dos adquiridos para esse fim e, ainda, a promoção imobiliária e actividades de natureza urbanística, a exploração de actividades comerciais turísticas em empreendimentos imobiliários a adquirir ou a reabilitar pela sociedade ou tomados de arrendamento ou mediante cessão de exploração e, ainda, todas e quaisquer outras actividades conexas com o exercício de actividade de construção, decoração, fiscalização e representações” – vide factos provados em 20 da sentença -, o que significa, pois, em conformidade com o seu objecto social, que a mesma não destina a fracção prometida adquirir para qualquer fim privado ou particular, mas antes para a sua actividade profissional, qual seja a actividade comercial lucrativa a que se dedica.
Aliás, tanto assim é, que já após a tradição da fracção em apreço a mesma não foi aplicada para qualquer fim privado, antes foi dada de arrendamento pela ora apelante para habitação a terceiros, colhendo, naturalmente, a apelante os proventos desse arrendamento da fracção em causa (factos provados em 12. a 15. da sentença).
Destarte, destinando-se, manifestamente, a fracção prometida adquirir ao exercício da actividade profissional da apelante, em conformidade com o seu descrito objecto social, não pode ela ser, na hipótese de que versam os autos – insolvência do promitente-vendedora -, considerada, como já declarado na sentença recorrida, como consumidor, pois que não é, manifestamente, o interesse social associado ao exercício de uma actividade profissional/comercial o que subjaz à protecção concedida pelo direito de retenção.
Dito de outra forma, as razões que justificam a particular protecção dedicada ao adquirente-consumidor encontram-se associadas a uma noção de parte contratante mais débil, menos protegida – com menor capacidade de negociação, com menor informação e inferior protecção dos seus próprios interesses em face do contratante profissional -, o que não ocorre, a nosso ver, com alguém, como a ora apelante, que adquire uma fracção autónoma para, segundo o seu objecto social, a aplicar para o exercício da sua actividade profissional, qual seja a compra e venda de imóveis e promoção imobiliária.
Com efeito, se, como aponta o acórdão uniformizador n.º 4/2014, está em causa a protecção dos consumidores do mercado de habitação, por serem a parte mais débil na contratação (o que, como já se referiu, justifica a atribuição do direito de retenção, segundo a intenção legislativa subjacente aos diplomas que o consagraram), mal se compreenderia que a aquisição de uma fracção com fitos manifestamente profissionais, associados à compra e revenda de imóveis e à promoção imobiliária, merecesse tal protecção. [14]
Como assim, a nosso ver, à luz do acórdão uniformizador já citado e da interpretação restritiva que o mesmo consagrou expressamente quanto ao artigo 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil, não poderá, pois, o recorrente, não se encontrando demonstrada a sua qualidade de consumidor (cujo ónus de prova lhe incumbe), beneficiar do arrogado direito de retenção e para garantia do crédito pelo incumprimento da promessa de compra e venda em apreço nos autos.
Com efeito, e resumindo a nossa posição na matéria – tal como a mesma decorre do sentido normativo do acórdão n.º 4/2014 quanto ao direito de retenção previsto no art. 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil -, não sendo o promitente-comprador consumidor não se verificam relativamente ao mesmo as razões sociais que justificam a preferência na satisfação do seu crédito em detrimento do credor hipotecário e/ou dos demais credores comuns do insolvente.
Aliás, neste conspecto, e ao contrário do que sustenta o recorrente, a sentença recorrida efectuou, a nosso ver, a devida e correcta interpretação do citado acórdão uniformizador n.º 4/2014, o qual, como já antes se referiu, tomou expressa posição quanto à questão da interpretação normativa do art. 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil e, em particular, quanto à exigência de que o promitente-comprador, para poder beneficiar do direito de retenção, seja considerado como consumidor, sendo certo, ainda, que o dito acórdão não tomou já posição normativa (e uniformizadora) quanto a este último conceito, embora tenha tido presente a sua noção mais restrita.
Com efeito, como dá nota Maria do Rosário Epifânio [15], o acórdão uniformizador n.º 4/2014, pronunciou-se, sobre as seguintes questões: (1ª) «a sujeição do contrato-promessa meramente obrigacional, com tradição da coisa, ao disposto no art. 106º, n.º 2 [do CIRE]; (2ª) o direito do promitente-comprador a uma indemnização e qual o regime desse crédito; (3ª) a existência de um direito de retenção e qual o seu âmbito subjetivo
E prossegue a mesma Professora referindo que quanto à segunda questão, o citado acórdão toma posição no sentido de que “o incumprimento do contrato-promessa pelo administrador enquadra-se no regime do art. 442º, n.º 2 do CCivil, pois que existe uma imputabilidade reflexa, uma vez que o comportamento do insolvente esteve na origem do processo insolvencial.”
Por outras palavras, o dito acórdão reconhece, como já antes se aduziu, que o incumprimento da promessa de compra e venda por parte do Sr. Administrador de Insolvência implica o efeito sancionatório previsto no art. 442º, n.º 2 do Cód. Civil, ou seja a restituição do sinal em dobro ou a opção pelo aumento do valor da coisa a favor do promitente-comprador.
E, ainda, segundo a mesma Autora, pronunciou-se o dito acórdão uniformizador quanto à terceira questão, no sentido de que “o crédito indemnizatório do promitente-comprador que seja consumidor, e que beneficie da traditio da coisa, é tutelado pelo disposto no art. 755º, n.º 1 al. f) do CCivil.”
Em suma, por outras palavras, como já antes se aduziu e se mostra expressamente acolhido na sentença recorrida - em consonância, pois, com a doutrina firmada pelo acórdão uniformizador do STJ -, para efeitos de afirmação do direito de retenção a favor do promitente-comprador, além dos requisitos gerais do direito de retenção enquanto direito real de garantia do crédito devido pelo incumprimento da promessa (incumprimento definitivo da promessa sinalizada; traditio da coisa a favor do promitente adquirente) é, ainda, suposto que o promitente-comprador possa ser considerado como consumidor, incumbindo a este último, em conformidade com o preceituado no art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil, a alegação e demonstração dos respectivos pressupostos de facto. [16]
O que significa, pois, em conclusão, que, não sendo a apelante consumidora, não beneficia do invocado direito de retenção, não ocorrendo, pois, qualquer razão para dissentir do decidido pelo Tribunal a quo, que fez correcta aplicação da doutrina do citado Acórdão Uniformizador e do conceito de consumidor juridicamente relevante para efeitos do preceituado no artigo 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil.
E, por último, não colhe também a argumentação da apelante quanto à alegada utilização profissional marginal e a doutrina que emerge do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia citado pela mesma. [17]
Com efeito, a hipótese sobre que versa o dito acórdão nada tem que ver com a situação em apreço nos presentes autos.
O que se sustentou no dito Acórdão (que opôs o cidadão austríaco K..., agricultor, à empresa L...) foi que deve ser tido como consumidor quem adquire um bem (no caso do processo tratava-se de aquisição de telhas para colocar no telhado de vários edifícios existentes numa quinta onde existia uma exploração agrícola e onde habitava a família do agricultor) para fins profissionais e para fins particulares, quando a utilização profissional é, no concreto contexto negocial, meramente marginal, isto é, quando “ a utilização profissional for marginal, a ponto de apenas ter um papel despiciendo no contexto global da operação em causa…”. [sublinhado nosso]
Ora, como resulta do que já antes se expôs, no caso dos presentes autos, não está em causa um qualquer concurso entre uma utilização particular e uma utilização profissional da fracção em apreço, havendo que sopesar a importância de uma e de outra no contexto negocial, mas está em causa apenas e só a sua utilização profissional, no âmbito da actividade de compra e venda de imóveis e de promoção imobiliária ou actividades de natureza urbanística, que constitui o objecto social da apelante.
Consequentemente, a doutrina firmado no citado Acórdão do TJ da União Europeia não colhe qualquer aplicação ao caso dos presentes autos pois que não existe qualquer similitude num caso e no outro.
E assim sendo, falece este último argumento e com ele a própria apelação.
* *
V. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
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Custas pela apelante, que ficou vencida - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 11.07.2018
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
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[1] O teor do ponto 20 dos factos provados resulta do despacho proferido a fls. 186 dos autos, onde foi feita constar a identificação da reclamante “C..., Lda. ” em substituição da original referência à insolvente “B..., Lda.”, atento o evidente lapso de escrita existente na sua redacção inicial.
[2] Vide, neste sentido, por todos, JOÃO CALVÃO da SILVA, “Sinal e Contrato Promessa”, 14ª edição, 2017, pág. 166, ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, pág. 431 ou F. GRAVATO MORAIS, “Contrato Promessa em Geral e Contratos Promessa em Especial”, 2009, pág. 233. Na jurisprudência podem consultar-se, além do mais, os arestos citados pelos Autores antes referidos.
[3]) Vide, por todos, neste sentido, A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, II volume, 4ª edição, pág. 87-88 e J. CARLOS BARNDÃO PROENÇA, “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, 2ª edição, UCP, pág. 325-327.
[4] Publicado no DR, Iª série, n.º 95, de 19.05.2014.
[5] Vide, por todos, os votos de vencido, constantes do Acórdão Uniformizador, subscritos pelos Srs. Juízes Conselheiros A. ABRANTES GERALDES, SALRETA PEREIRA, JOÃO BERNARDO, JOÃO CAMILO e LOPES do REGO.
[6] A dita interpretação restritiva do art. 755º, n.º 1 al. f) do Código Civil vinha sendo defendida por L. MIGUEL PESTANA VASCONCELOS, em particular nos estudos publicados in Cadernos de Direito Privado, n.º 33 (Janeiro/Março de 2011) – “Direito de Retenção, Contrato promessa e Insolvência”, pág. 3 a 29 –, ou, ainda, nos mesmos Cadernos, n.º 41 (Janeiro/Março de 2013) – “ Direito de Retenção, par conditio creditorum, justiça material ”, pág. 3 a 17; Em sentido idêntico, em abono da posição vertida no AC UJ, veio a pronunciar-se também J. CALVÃO da SILVA, “Sinal e Contrato Promessa”, cit., pág. 164.
[7] AC STJ de 14.02.2017, relator JOÃO CAMILO, AC STJ de 5.07.2016, relator ANA PAULA BOULAROT e AC STJ de 24.05.2016, relator NUNO CAMEIRA, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 395-397 e AC STJ de 24.05.2016, antes citado.
[9] AC STJ de 31.10.2017, relator HENRIQUE ARAÚJO, disponível in www.dgsi.pt.
[10] J. CALVÃO da SILVA, “Responsabilidade Civil do Produtor”, Reimpressão, 1999, pág. 59 e, ainda, do mesmo Autor “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, Reimpressão, 2002, pág. 111-112.
[11] JORGE MORAIS de CARVALHO, “Manual de Direito do Consumo”, 3ª edição, pág. 20-21.
[12] Vide, neste sentido, AC STJ de 5.07.2016 e AC STJ de 14.02.2017, ambos já citados.
[13] Vide AC STJ de 16.12.2016, relator MARIA CLARA SOTTOMAYOR, AC STJ de 29.05.2014, relator JOÃO BERNARDO, AC STJ de 5.07.2016, já citado, AC STJ de 29.07.2016, relator JÚLIO GOMES, AC STJ de 14.02.2017, já citado e, ainda, AC STJ de 13.07.2017, relator PINTO de ALMEIDA, todos in www.dgsi.pt.
[14] Vide, neste sentido, AC RP de 10.05.2018, relator FILIPE CAROÇO, disponível in www.dgsi.pt
[15] MARIA do ROSÁRIO EPIFÂNIO, “Manual de Direito da Insolvência”, 6ª edição, pág. 188-189.
[16] Sobre o ónus de prova dos elementos de facto necessários à qualificação do promitente-comprador como consumidor e no sentido por nós sustentado, vide, por todos, AC STJ de 14.02.2017, antes citado.
[17] Acórdão de 20.1.2005, proferido no Processo n.º C-464/01, disponível in www.curia.europa.eu.