Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2634/11.9TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: INÊS MOURA
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO
DIREITOS DE NATUREZA PRIVADA
Nº do Documento: RP201703232634/11.9TBVCD.P1
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º89, FLS. 6-17)
Área Temática: .
Sumário: I - Estando em causa um terreno que se situa a menos de 50 metros das águas do mar, o mesmo integra o domínio público marítimo, nos termos do disposto no art.º 3.º al. e) e art.º 11.º n.º 2 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro.
II - O facto de um terreno estar integrado no domínio público marítimo não constitui obstáculo a que possam subsistir direitos de natureza privada. A averiguação e prova da existência desses direitos que pode levar ao seu reconhecimento, deve porém ser feita de acordo com o regime legal e exigências estabelecidas no art.º 15.º do diploma referido.
III - O reconhecimento do direito de propriedade privada exige a alegação e prova, de que o terreno já se encontrava no domínio privado antes de 1864, bem como do seu historial de transmissão, sendo irrelevante apenas a prova da posse mais recente atenta a natureza de direitos indisponíveis conferida aos bens do domínio público, que obsta a que os mesmos possam ser adquiridos por usucapião.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 2634/11.9TBVCD.P1
Apelação 1ª

Relator: Inês Moura
1º Adjunto: Paulo Dias da Silva
2º Adjunto: Teles de Menezes

Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do C.P.C.)
1. Estando em causa um terreno que se situa a menos de 50 metros das águas do mar, o mesmo integra o domínio público marítimo, nos termos do disposto no art.º 3.º al. e) e art.º 11.º n.º 2 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro.
2. O facto de um terreno estar integrado no domínio público marítimo não constitui obstáculo a que possam subsistir direitos de natureza privada. A averiguação e prova da existência desses direitos que pode levar ao seu reconhecimento, deve porém ser feita de acordo com o regime legal e exigências estabelecidas no art.º 15.º do diploma referido.
3. O reconhecimento do direito de propriedade privada exige a alegação e prova, de que o terreno já se encontrava no domínio privado antes de 1864, bem como do seu historial de transmissão, sendo irrelevante apenas a prova da posse mais recente atenta a natureza de direitos indisponíveis conferida aos bens do domínio público, que obsta a que os mesmos possam ser adquiridos por usucapião.
Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
B… e C…, instauraram contra Administração da Região Hidrográfica …, I.P. e D…, S.A, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária pedindo que:
a) - Se reconheça e declare o direito de propriedade dos Autores sobre a totalidade do imóvel identificado no artigo 1.° da petição, nele se incluindo a parcela de terreno de 150 m2 ocupada com as construções promovidas pela 2.ª Ré e autorizadas pela 1.ª Ré;
b) - Se ordene a restituição da posse sobre a mesma aos Autores, livre e desocupada de pessoas e bens, designadamente, das infra-estruturas ali edificadas;
c) Se condene as Rés, solidariamente, no pagamento aos Autores do valor de €500,00, a título de indemnização pecuniária compulsória, por cada mês de atraso na restituição da parcela de terreno com a área de 150 m2, completamente livre, limpa e desembaraçada de quaisquer construções.
Alegam, em síntese, que adquiriram por usucapião a propriedade sobre o imóvel em que a 2ª Ré, autorizada pela 1ª, implantou as infra-estruturas cuja remoção pede, sendo que ambas as Rés afirmam pertencer tal trato de terreno ao domínio público marítimo.
Os RR. contestaram impugnando os factos alegados e deduzindo defesa por excepção – tendo sido arguidas as excepções de ilegitimidade passiva da 1ª Ré, foi requerida a intervenção principal do Estado (apenas esta admitida) e do Instituto da Água, IP e arguida incompetência material do tribunal.
Foi proferido despacho saneador que fixou o valor da acção, conheceu da matéria excepcionada e procedeu à selecção da matéria de facto.
Procedeu-se à audiência de julgamento com observância do formalismo legal.
Em sede de audiência de julgamento, os AA. reduziram o pedido nos seguintes termos: "Se reconheça e declare o direito de propriedade exclusiva dos Autores sobre a totalidade do imóvel descrito na al. A) da douta especificação e com a descrição registral ali referenciada, bem como a manutenção da posse de propriedade sobre a totalidade do terreno identificado como objecto do direito de propriedade, tal como descrito em A). Na sequência da redução assim declarada, não pretende ver tomada posição sobre os restantes pontos que constavam da p.i., ou seja, a desocupação de pessoas e bens, designadamente, das infraestruturas ali edificadas e a condenação de título de indemnização pecuniária que integrava a alínea c ) da p.i. apresentada, ( … ) ” – conforme resulta da respectiva acta de fls. 873 e ss dos autos.
Foi admitida a redução do pedido apresentada pelos AA.
Foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção, absolvendo as RR. dos pedidos contra eles formulados nos autos.
É com esta decisão que os AA. não se conformam e dela vem interpor recurso, concluindo pela revogação da sentença proferida e sua substituição por outra que julgue procedente o pedido, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A) – Está ferida do vício qualificado como nulidade – 615.º, nº 1, c) do C.P.C. - a douta sentença quando, tendo definido como “Questão a decidir: Se deve reconhecer-se os AA como proprietários do prédio identificado em A) da matéria dada como assente, ……e respectiva posse sobre o mesmo, incluindo a parcela de 150 m2 ocupada com as construções ….” (sic) e depois de ter assumido, como pressuposto da decisão que “apenas essa parcela [a parcela de terreno ocupada com a construção das infra-estruturas em causa está integrada no imóvel reclamado pelos Autores” (nº 10), e que “fica a norte da assinalada com a letra A) e delimitada a vermelho no ortofotomapa da IGP/DGRF” (nº 30), ambos da matéria provada] está em causa, no demais não é questionada a propriedade” (sic), julga a acção totalmente improcedente, depois de ter declarado não questionada a propriedade dos AA sobre a maior parte do terreno, e, do que, em termos de posse de proprietários dos AA sobre o terreno cuja propriedade não é questionada, se dá como provado - nºs 35 e 36 da matéria provada. Há, pois, que julgar procedente a nulidade de contradição entre fundamentos e a douta decisão, assim arguida, declarando-se, quando menos, que a acção improcede só em parte, ainda que com custas a cargo dos AA por falta de oposição dos RR nessa parte.
B) - Há contradição absoluta entre a matéria de facto dada como provada, no nº 30 desta, e não provada, tal como consta da al. G) desta.
C) - Se uma das RR, autorizada pela outra, por virtude de trabalhos que levou a cabo no terreno, em 2009, e, como comprovam fotos nos autos, esses determinaram profundas alteração do mesmo, e por tal, se tornou incerta ou impossível a prova do traçado da estrema (sic) norte do prédio”, como se sublinha a fls. 603 e 668 -, demais que os Peritos entendem que se “afigura ter esta área correspondência quer com a parcela assinalada pela letra A no citado ortofotomapa junto a fls. 238” -, dar como não provada a matéria subsumida na alínea g) desta, é violar a regra do nº2 do artigo 344 do C.C. Deve, pois, ser alterada a resposta de não provado que “o prédio referido em 1) na realidade e actualidade tenha a área referida em 1), passando a constar da matéria provada que: “o prédio referido em 1) na realidade e actualidade tem a área total de 2950 m2- certidão de fls. 25, referida em 1)”
D) - Ao dar como provada a matéria dos artigos 22, 31 a 34 da matéria provada e não provada a matéria sob as alíneas D) e H), com base numa prova testemunhal, cuja coerência fica acima apontada e contra critério legal, o que só se tolera – e a referida testemunha não perfilhou recentemente – em “Comissões”, que só deve ter lugar em caso de dúvidas fundadas na aplicação dos critérios legais à definição no terreno dos limites do domínio público hídrico, pode levar a aplicação do regime do artigo 2º, b) DL 353/2007, a douta decisão violou as regras dos artigos 607.º, nº 5 e 662.º, nº 2, a) do C.P.C e 351.º, ou 393.º, todos do C.C., por se dar como provado algo que contraria norma legal pré - existente. Há, pois, que, com base nos esclarecimentos do também Perito, Eng.º E… – depoimento gravado das 10:15 às 11:21 da sessão de 16.02, como do depoimento de Arq. F… - registado, das 10:45 às 11:23, da sessão de 01.03, e sobremaneira, depoimento de Eng.º G… e até mesmo Eng.ª H… (registado de 10:15 às 11:21, da sessão de 16.02) e documentos que serviram de base à douta fundamentação,
D.1) – dar como provado: 22)“O terreno, tal como descrito em 1), dista mais de 50 metros da “linha máxima da preia–mar das águas vivas equinociais”, que, de acordo com o que está estabelecido, pela Portaria 931/2010, para toda a costa oeste de Portugal continental, corresponde à curva de nível dos 4 metros”;
30)“ A parcela de terreno dos AA, onde se encontra localizada a câmara de carga do emissário submarino e parte da tubagem, fica a Norte da assinalada com a letra A, delimitada a vermelho no ortofotomapa do IGP/DGRF, do ano de 2005, existente no Instituto da Água, na escala 1.2000, junto a fls. 238”
D.2) – Eliminar a resposta constante actualmente dos nºs 31, 32, 33 e 34 dos ”factos provados”, como as constantes das alíneas D), H), e pelas razões já apontadas, também, G) da matéria não provada,
D.3) – Mantendo–se a alínea I, dos não provados.
E) – Sendo o tema da questão o reconhecimento de posse titulada de proprietário, relativamente a dado terreno com a descrição registral comprovada e assente na especificação, sendo qualificado, por entidade oficial como “terreno com fim agrícola” - planta de localização no POOC - Caminha a Espinho e documento nº 6, junto em 29.09.2014, com referência a 18.11.2009 (!!) e doc. nº 6, junto em 19.03.2015, com data de 16.02.2015, com a configuração coincidente com a do ortofotomapa referido pela perícia (!!), era ao perturbador que incumbia provar que tinha fundamento para tal (teria que demonstrar que não ofendia posse aparentemente tutelada dos AA ou que tinha melhor posse), o que se traduz em defesa por excepção – artigo 571.º, nº 2, IIª parte, do C.P.C. Se se conclui pela incerteza da prova do contestante sobre a área em que não havia ofensa dessa posse tutelada, haveria que fazer funcionar o regime dos artigos – artigos 414.º, 607.º, nº 5 do C.P.C. e 342.º, e sempre 344.º, nº 2, do C.C. Viola a interpretação e aplicação destes normativos a resposta dada nos nºs 22, 33, e 34 dos factos provados, que se devem dar como contidos na alínea I dos factos não provados.
F) – A haver qualquer dúvida fundada sobre a alteração de limites, que a aplicação dos critérios legais à definição no terreno (sic, com sublinhado nosso) não resolvesse, ficaria legitimado o particular ou o Estado para, então, sim, e com essa limitação física de objecto, requerer a aplicação do regime do artigo 2º, b) DL 353/2007.
G) – Se, como se referiu no douto saneador – que, nessa parte, fez caso julgado formal (artigo 620.º do C.P.C.) – o tema da questão é, não definição de limites, nem reconhecimento de propriedade privada face a domínio público, antes que “reconheça que o seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam, propriedade privada deles há mais de trinta anos, que se não confunde com o domínio público marítimo, não havendo qualquer pedido de delimitação do domínio público hídrico, fez a douta decisão errada aplicação das normas dos artigos 12.º e sobremaneira, 15,º da Lei 54/2015, face à causa de pedir (e mesmo pedido), tornados estáveis com a citação das RR – artigo 260.º do C.P.C.
H) – Face à matéria provada, nos nºs 1 a 6, 35 e 36, na redacção constante da douta sentença, independentemente, mas de modo reforçado com a alteração proposta e a ocorrer, visto o disposto nos artigos 1311.º, nº 1 – Iª Parte, 1268.º, a contrario, 1251.º, 1257.º todos do C.C., e por não se ter provado o circunstancialismo do nº 1, c) do artigo 1267.º do mesmo diploma, ao julgar totalmente improcedente a acção, apesar de considerar que, relativamente à quase totalidade do terreno descrito no nº 1 da matéria de facto provada, nada estava em causa, e não reconhecer a posse de proprietário, fez errada subsunção da matéria de facto por erro de aplicação dos normativos acima citados.
Os RR. vieram responder ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência e manutenção da sentença recorrida.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608 n.º 2 in fine:
- da impugnação da matéria de facto;
- da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C.;
- do reconhecimento do direito de propriedade e posse dos AA.
III. Fundamentos de Facto
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância:
1) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º 1628/20100323, com aquisição inscrita a favor dos AA. pela Ap. 2749 de 16.4.2010, por partilha, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 82, um prédio rústico denominado “I…”, sito no lugar …, freguesia de …, concelho de Vila do Conde, terreno inculto com a área total de 2950 m2 – certidão a fs. 25.
2) O referido registo foi efectuado em 23.03.2010 – certidão de fls. 25.
3) De acordo com a descrição predial, o prédio em causa confina a Norte e Poente com Junta de Freguesia de …, a Sul com J… e a Nascente com caminho – ibidem.
4) O prédio foi adquirido pela sociedade “CONSTRUÇÕES K…, LDA”, pessoa colectiva ………, com sede na Rua …, n° …, …, Vila Nova de Gaia, por partilha titulada por escritura pública lavrada no dia 24 de Outubro de 1992, no 1.° Cartório de Secretaria Notarial de Vila do Conde, a folhas 60 v° do livro 125, em 24.10.1992 aos Herdeiros de L… – cópia da escritura junta a fs. 28/33.
5) Aquela sociedade tinha como seus únicos sócios e gerentes B…, ora Autor Marido, e M…, residente na Rua … n° …, freguesia de …, Vila do Conde e foi dissolvida e liquidada em procedimento administrativo, por decisão de 06/02/2009.
6) Na sequência desse procedimento, o prédio denominado “I…” foi adjudicado aos Autores em 14/04/2010, em partilha de activo superveniente, nos termos da escritura copiada a fs. 34/37.
7) A Ré ARH remeteu aos AA, em 4.5.2011, a carta copiada a fs. 38, afirmando que a parcela de terreno dita em A e pelos AA reivindicada localiza-se na margem das águas do mar, dentro dos 50 metros medidos a partir da linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, … pelo que integra, até prova em contrário, o domínio público marítimo.
8) Os Autores remeteram à Câmara Municipal de … a carta de 25/05/2010, copiada a fs. 49, a que a Câmara respondeu com o ofício de fs. 50, informando que as obras e estacionamento de materiais no prédio em causa eram de natureza particular e da responsabilidade do promotor do complexo comercial N….
9) A 2.ª Ré (D…) informou os Autores que procedia às obras em causa devidamente autorizada pela 1.ª Ré, por licença de utilização de recursos hídricos para ocupação temporária para construção, conforme cartas de 8.11.2010, copiada a fs. 51/52, e de 2.5.2011, copiada a fs. 53/54.
10) A parcela de terreno ocupada com a construção das infra-estruturas em causa está integrada no imóvel reclamado pelos Autores.
11) A Ré D…, S.A., é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, à construção de edifícios para venda.
12) No exercício da sua actividade, esta Ré construiu e desenvolveu o Complexo Comercial N…, sito nas freguesias …, de … e de …, no concelho de Vila do Conde.
13) No âmbito do loteamento que permitiu a construção e o posterior alargamento do referido conjunto comercial, foi elaborado um Estudo de Impacto Ambiental ("EIA"), do qual resultou a necessidade de adopção de algumas medidas preventivas para a zona envolvente do Complexo Comercial N…, a serem executadas pela 2.ª Ré - Declaração de Impacte Ambiental ("DIA"), copiada de fs. 97 a 109.
14) Entre essas medidas incluía-se o reforço do colector da rede de drenagem de águas pluviais já existente na zona e a construção de uma câmara de carga e de um emissário submarino (que prolonga a conduta para descarga no mar) dessa rede de drenagem de águas pluviais (Solução B), estruturas essas que se encontram em funcionamento.
15) O custo de construção da câmara de carga e do emissário submarino foi de €1.442.102,29, tendo sido integralmente pago pela 2.ª Ré.
16) O colector e o emissário submarino estão integrados na rede de drenagem de águas pluviais que serve não só a zona do conjunto comercial N… e da O…, mas também as freguesias de …, … e …, todas do concelho de Vila do Conde, tendo por finalidade melhorar o funcionamento do colector de águas pluviais e a respectiva drenagem.
17) Tais estruturas, nomeadamente a câmara de carga e o emissário submarino, integram o domínio público, não sendo propriedade da 2.ª Ré.
18) A câmara de carga do emissário submarino encontra-se localizada no limite Norte da parcela de terreno que os Autores ora reivindicam.
19) No âmbito do processo de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) do Complexo Comercial N… foi adoptado como solução final para drenagem das águas pluviais a instalação de um colector de águas pluviais até à O… e a sua descarga no mar, por meio de um emissário submarino.
20) Com entrada nos serviços da CCDR-N em 10/08/2007, a 2.ª Ré apresentou o projecto de licenciamento para construção do referido Emissário Submarino – fs. 156.
21) Tendo a 2.ª Ré prestado a respectiva garantia bancária, após alguns aditamentos e alterações ao projecto, a Ré ARH do Norte, I. P . emitiu a licença n.º L00901/2011-RH2.11994S.0 – fs. 164/166.
22) A parcela de terreno na qual se encontra localizada a câmara de carga do emissário submarino e parte da tubagem, cuja propriedade os Autores ora reivindicam, encontra-se a uma distância menor de 50 (cinquenta) metros da linha máxima preia-mar de águas vivas equinociais – (margem das águas do mar).
23) A 2.ª Ré adjudicou os trabalhos de construção em causa em Setembro de 2009 e deu início aos mesmos nos inícios de Outubro ou Novembro de 2009.
24) Estando nessa data e posteriormente a faixa de terreno em causa desocupada e livre de pessoas e bens.
25) A construção da câmara de carga do emissário já se encontrava concluída em 02.11.2010.
26) A desocupação do terreno reclamado pelos AA. da câmara de carga do emissário submarino originaria a necessidade de demolir o existente e de construir desde a raiz uma nova câmara de carga e um novo emissário.
27) Do que decorreriam custos aproximados ou superiores a 2 (dois) milhões de euros.
28) A sua deslocação para outro ponto conflituaria com outras estruturas existentes no local e em funcionamento.
29) A localização no subsolo da câmara de carga do emissário submarino não prejudica, de qualquer modo, a fruição (legalmente possível) do prédio em questão.
30) A parcela de terreno reclamada pelos AA fica a Norte da assinalada com a letra A e delimitada a vermelho no ortofotomapa do IGP/DGRF, do ano de 2005, existente no Instituto da Água, na escala 1:2000, junto a fs. 238, é a aqui reclamada pelos AA.
31)Tomando-se como referência essa parcela de terreno, a linha máxima de praia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) corresponde à curva de nível de 6 metros, de acordo com o que está estabelecido para a toda a costa oeste de Portugal continental.
32) O traçado desta LMPAVE acompanha a base da duna onde se extingue a natureza de praia.
33) A distância actual entre a LIMPAVE e o terreno em causa é de aproximadamente 20 metros e esse terreno sempre esteve dentro dos limites da LIMPAVE.
34) A parcela de terreno supra referenciada e reivindicada pelos AA encontra-se dentro dos limites dos 50 metros, medidos a partir da linha máxima de Praia – Mar de Águas Vivas Equinociais.
35) Desde 24.10.1992 em relação ao Autor marido e desde 14.04.2010 em relação aos dois AA e, pelo menos desde 1948, que os respectivos ante possuidores, vêm possuindo o prédio identificado em 1).
36) Colhendo os seus frutos e pagando as contribuições prediais a ele referentes, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção do exercício de um direito próprio e sem lesar os direitos de terceiro.
- da impugnação da matéria de facto
Vêm os Recorrentes impugnar a decisão da matéria de facto.
- invocam a contradição entre a matéria de facto dada como provada no n.º 30 dos factos provados e a al. G) dos factos não provados, pretendendo que se dê como provado o teor da al G) dos factos não provados.
- pretendem a alteração da resposta que deu como não provado que: o prédio referido em 1) na realidade e actualidade tenha a área referida em 1), passando a constar da matéria provada que na realidade e actualidade tem a área total de 2950 m2 referida em 1).
- pretendem que se altere a matéria provada que consta do n.º 22 e que se considere não provada a matéria dos n.º 31 a 34 devendo ser eliminadas dos factos não provados as alíneas D) e H).
Quanto à invocada contradição do n.º 30 dos factos provados com a al. G) dos factos não provados, devendo o teor desta alínea ser tido como provado
É a seguinte a redacção dos pontos de facto controvertidos:
30- A parcela de terreno reclamada pelos AA fica a Norte da assinalada com a letra A e delimitada a vermelho no ortofotomapa do IGP/DGRF, do ano de 2005, existente no Instituto da Água, na escala 1:2000, junto a fs. 238, é a aqui reclamada pelos AA.
G) A parcela de terreno assinalada com a letra A e delimitada a vermelho no ortofotomapa do IGP/DGRF, do ano de 2005, existente no Instituto da Água, na escala 1:2000, junto a fs. 238, é a aqui reclamada pelos AA.
O que está em causa nestes dois pontos de facto é a localização do terreno reclamado pelos AA. nos autos, com referência ao documento que se encontra junto ao processo a fls. 238 que corresponde à cartografia existente no Instituto da Água, ortofotomapa do IGP/DGRF, onde se encontra identificada a linha limite do leito do mar (estimada) e a linha limite da margem do mar (estimada), bem com a indicação de um terreno, delimitado a vermelho e identificado com a letra A.
Existe uma contradição entre dois factos quando há uma impossibilidade lógica de coexistência dos mesmos, não podendo verificar-se os dois sob pena de incongruência, pelo facto de um deles obrigatoriamente excluir o outro.
Na situação invocada, podendo haver desacordo dos AA. quanto a ter sido considerado não provado o facto constante da al. G), como há, é no entanto linear que não existe qualquer contradição entre este facto e o teor do ponto 30 da decisão de facto. Pelo contrário, a lógica impõe precisamente que um destes factos seja considerado provado e o outro não provado, uma vez que a localização da parcela em causa tem de ser, em alternativa, num local ou noutro. Se, como pretende o Recorrente, a matéria constante da al. G) dos factos não provados passasse a provada é que ficaríamos perante uma contradição, em face do teor do ponto 30 dos factos provados, por não poder a parcela de terreno em causa situar-se nos dois locais referidos em simultâneo.
Naquele mapa assinalado com a letra A e delimitado a vermelho está a indicação de um terreno, com o limite traçado com base num levantamento topográfico feito pela Câmara Municipal, cuja cópia se encontra a fls. 58 dos autos.
O tribunal a quo deu como provado que a parcela de terreno com a área de 150 m2 que os AA. estão a reclamar nos autos como sendo sua não se integra no terreno assim delimitado naquele mapa, mas antes se encontra a norte do terreno delimitado no mapa referido.
Conclui-se por isso que não existe qualquer contradição entre o facto tido como provado no ponto 30 da decisão de facto e a al. G) dos factos não provados, sendo que o teor desta al. G) também não pode ter-se como provado sob pena dessa contradição passar a existir.
- Quanto à alteração da resposta que deu como não provado que: o prédio referido em 1) na realidade e actualidade tenha a área referida em 1), que no entender dos Recorrentes deve passar a constar da matéria provada.
Embora individualizada nas conclusões do recurso pelo seu teor e não pela letra dos factos não provados que a contempla, esta matéria corresponde ao teor da al. B) dos factos não provados, entendendo os Recorrentes que, com base na certidão de fls. 25, deve ter-se como provado que “na realidade e actualidade o terreno tem a área total de 2950 m2 referida em 1).”
Alegam que os trabalhos levados a cabo no terreno por uma das RR. autorizada pela outra, determinaram uma alteração do terreno que tornou incerta ou impossível a prova do traçado norte do prédio, sendo que a impossibilidade do apuramento do traçado da estrema norte do prédio por facto imputável às RR. não pode deixar de provocar a inversão do ónus da prova, pelo que a resposta do tribunal viola a regra do art.º 344.º n.º 2 do C.Civil.
Referem que o acervo fotográfico de fls. 110 ss., 476 e 477, 607 e 608 e 674 revela que já tinha ocorrido alteração profunda no terreno do imóvel e seus limites.
O art.º 344.º n.º 2 do C.Civil estabelece: “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
Em primeiro lugar, importa referir que os elementos constantes dos autos não revelam de forma alguma que as RR. tenham, ainda mais culposamente, tornado impossível qualquer prova que possa determinar a pretendida inversão do ónus da prova, situação que aliás os AA. nunca invocaram anteriormente nos autos.
Antes se verifica que a intervenção da 2ª R. no terreno, autorizada pela 1ª R., não levou à sua alteração, designadamente no sentido de impossibilitar a determinação dos limites do terreno. Isso mesmo decorre desde logo da perícia realizada, cujo relatório se encontra junto aos autos a fls. 599 ss. e 667 ss. onde é referido pelos peritos, na comparação de fotografias e imagens antigas com actuais que: “não se visualiza alteração da morfologia do terreno”.
Das fotografias invocadas pelos Recorrentes também não decorre que tenham ocorrido alterações no imóvel e nos seus limites, sendo certo que os mesmos também não referem concretamente aquelas que o podem demonstrar e em que termos.
Por outro lado, os peritos concluíram que: não tendo havido alteração na LIMPAVE e considerando o prédio com a configuração assinalada a fls. 58, a parte do terreno situada mais a norte ocupa a margem das águas do mar que a lei integra no domínio público marítimo, não tendo sido identificados indícios de que, em algum tempo, tal não tenha acontecido. Todos os peritos são unânimes em dizer que “parte do terreno está e sempre esteve dentro dos limites da margem das águas do mar”.
Não resulta dos autos qualquer elemento que possa levar à conclusão de que a intervenção da 2ª R. no terreno autorizada pela 1ª R. procedeu à alteração do mesmo, designadamente no sentido de tornar impossível a determinação dos seus limites, susceptível levar à inversão do ónus da prova.
Resta referir a este propósito que, nem os elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente a perícia realizada e cujos relatórios se encontram juntos ao processo e documentos que lhe servem de suporte permitem dar como provada a matéria de facto que os AA. pretendem, no sentido de que na realidade a área do terreno a que alude o ponto 1) da decisão de facto é de 2950 m2, não podendo ir-se além do que já consta como provado naquele ponto, que atesta o que está registado na Conservatória do Registo Predial respectiva- doc. fls. 25.
- Quanto aos n.ºs 22 e 31 a 34 dos factos provados que Recorrentes consideram não provados e alíneas D) e H) dos factos não provados que entendem dever ser eliminados
Os pontos de facto impugnados têm a seguinte redacção:
22) A parcela de terreno na qual se encontra localizada a câmara de carga do emissário submarino e parte da tubagem, cuja propriedade os Autores ora reivindicam, encontra-se a uma distância menor de 50 (cinquenta) metros da linha máxima preia-mar de águas vivas equinociais – (margem das águas do mar).
31)Tomando-se como referência essa parcela de terreno, a linha máxima de praia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) corresponde à curva de nível de 6 metros, de acordo com o que está estabelecido para a toda a costa oeste de Portugal continental.
32) O traçado desta LMPAVE acompanha a base da duna onde se extingue a natureza de praia.
33) A distância actual entre a LIMPAVE e o terreno em causa é de aproximadamente 20 metros e esse terreno sempre esteve dentro dos limites da LIMPAVE.
34) A parcela de terreno supra referenciada e reivindicada pelos AA encontra-se dentro dos limites dos 50 metros, medidos a partir da linha máxima de Praia – Mar de Águas Vivas Equinociais.
D) Há mais de 30 anos ou, pelo menos desde 1948, aquele terreno, na sua totalidade, distava mais de 50 metros da linha máxima preia-mar de águas vivas equinociais.
H) Tomando-se como referência essa parcela de terreno, a linha máxima de praia-mar de águas vivas equinociais (LMPAVE) corresponde à curva de nível dos 4 metros, de acordo com o que está estabelecido para a toda a costa oeste de Portugal continental.
A impugnação da decisão sobre esta matéria de facto pelos Recorrentes, apresenta-se feita de forma algo confusa, e pouco organizada, misturando considerandos sobre a fundamentação da decisão recorrida com os elementos de prova que invoca, a par da referência a normas de direito e diplomas legais.
Verifica-se, além do mais, que os Recorrentes não dão cumprimento às exigências previstas no art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 al. a) do C.P.C. ao procederem à impugnação destes pontos da matéria de facto.
O art.º 662.º do C.P.C. com a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto” dispõe, no seu n.º 1 que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. impõe um ónus a cargo do Recorrente que impugne a decisão de facto, estabelecendo o seguinte:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do artigo anterior, observa-se o seguinte:
a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considera relevantes;
b) (…)
Diz-nos Abrantes Geraldes, in. Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 129, a propósito dos requisitos previstos para a impugnação da matéria de facto: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”
Verifica-se, que os Recorrentes no recurso que apresentam não dão cumprimento ao disposto no art.º 640.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do CPC, o que constitui um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que foi objecto desta impugnação e que implica, nos termos da norma mencionada, a imediata rejeição do mesmo, no que a estes pontos da impugnação da matéria de facto se refere.
Os Recorrentes ao porem em causa a resposta dada pelo tribunal à matéria de facto mencionada invocam para o efeito: os esclarecimentos do Eng.º E…; o depoimento do Arq. F…; o depoimento do Eng.º G… e da Eng.ª H…, cuja coerência põem em causa, bem como “os documentos que serviram de base à douta fundamentação”.
Com referência aos depoimentos mencionados, os Recorrentes não indicam os excertos da gravação dos mesmos que servem para fundamentar a sua discordância com a decisão do tribunal, limitando-se a invocar a totalidade da gravação dos depoimentos realizada, ou seja, todo o depoimento prestado por cada uma das pessoas referidas.
Também quanto aos documentos, não individualizam os mesmos, nem o seu teor ou a parte dos mesmos que têm como relevante, com correspondência aos factos que impugnam antes se referem, de forma genérica, aos documentos que serviram de base à fundamentação.
Em face do exposto, conclui-se que os Recorrentes não deram cumprimento ao disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.C., ao não indicar os concretos meios probatórios contantes do processo que impunham decisão diferente sobre os pontos da matéria de facto impugnada, no que respeita aos documentos, nem tão pouco cumprem o disposto no n.º 2 al. a) deste artigo, no que respeita aos depoimentos que invocam ao não indicar as passagens da gravação dos depoimentos dos peritos e das testemunhas em que fundam o seu recurso, o que determina a rejeição do recurso no que à impugnação desta matéria de facto respeita, de acordo com o que dispõem as normas citadas, o que se determina.
Em face do exposto, nenhuma alteração se impõe efectuar relativamente à decisão de facto.
IV. Razões de Direito
- da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C.
Invocam os Recorrentes a nulidade da sentença pretendendo que na mesma existe contradição entre os fundamentos e a decisão, já que, não questionando a propriedade dos AA. sobre a maior parte do terreno, julga a acção totalmente improcedente quando, no seu entender, a devia ter julgado parcialmente improcedente, por haver uma parte do mesmo em que o direito de propriedade dos AA. não é controvertido.
O art.º 615.º n.º 1 do C.P.C. dispõe sobre as causas de nulidade da sentença, prevendo na al. c) que tal acontece quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Verifica-se uma contradição entre os fundamentos e a decisão quando os fundamentos invocados, de facto e de direito, conduzem, de uma forma lógica ou necessária a uma decisão diferente, revelando um vício de raciocínio do julgador. Como nos diz, a título de exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2011, no proc. 2903/05.7TBCSC.L1.S1 in. www.dgsi.pt: “A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão só ocorre quando a fundamentação adoptada conduz logicamente a determinada conclusão e, a final, o juiz extrai outra, oposta ou divergente.
Se atentarmos no pedido formulado pelos AA. constatarmos que o que está em causa na presente acção é o invocado direito de propriedade dos AA. sobre o terreno que identificam e que, no seu entender integra uma parcela de terreno onde tiveram lugar as obras realizadas pela 2ª R. e autorizadas pela 1ª R.
São os seguintes os pedidos inicialmente formulados pelos AA. nestes autos:
a) - Se reconheça e declare o direito de propriedade dos Autores sobre a totalidade do imóvel identificado no artigo 1.° da petição, nele se incluindo a parcela de terreno de 150 m2 ocupada com as construções promovidas pela 2.ª Ré e autorizadas pela 1.ª Ré;
b) - Se ordene a restituição da posse sobre a mesma aos Autores, livre e desocupada de pessoas e bens, designadamente, das infra-estruturas ali edificadas;
c) Se condene as Rés, solidariamente, no pagamento aos Autores do valor de €500,00, a título de indemnização pecuniária compulsória, por cada mês de atraso na restituição da parcela de terreno com a área de 150 m2, completamente livre, limpa e desembaraçada de quaisquer construções.
O imóvel identificado no art.º 1.º da petição inicial é: “um terreno a lavradio, denominado I…, sito no lugar …, freguesia de …, concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o art.º 1628 e inscrito na matriz predial rústica sob o art.º 82.”
Posteriormente, em sede de audiência de julgamento vieram os AA. reduzir o pedido, referindo não pretender ver tomada posição sobre a matéria que integrava as alíneas b) e c) da petição inicial.
O pedido que passou a competir ao tribunal apreciar foi então apenas o formulado pelos AA. na parte final da petição inicial sob a al. a).
A sentença proferida, em face dos factos provados que elenca, entendeu que uma parte do terreno reclamado pelo AA. como sendo de sua propriedade, designadamente aquele que foi ocupado com a construção de infraestruturas, está integrado nas margens de águas do mar, em área do domínio público marítimo, não sendo por isso susceptível de ser objecto de propriedade privada. Aí se refere ainda, que a área constante do registo predial não pode determinar a área real do terreno propriedade dos AA., pelo facto da presunção de propriedade resultante do registo não abranger, designadamente a área do prédio registado, em consequência do que julgou improcedente o pedido formulado na presente acção.
Não se vislumbra, por isso, em face do pedido formulado pelos AA. que exista qualquer contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão proferida.
Regista-se que, os fundamentos da sentença apontam para que a parcela de terreno na qual foram realizadas as infra-estruturas em questão, cuja propriedade os AA. reivindicam, encontra-se a uma distância menor de 50 metros da linha máxima de preia-mar de águas vivas equinociais e que a distância actual entre a LIMPAVE e o terreno em causa é de aproximadamente 20 metros e esse terreno sempre esteve dentro dos limites da LIMPAVE.
Apurando-se que a parcela de terreno reclamada, dada a sua localização, pertence ao domínio público marítimo, a verdade é que não ficou inteiramente apurado qual área do terreno dos AA. que se encontra nessas circunstâncias, não havendo elementos suficientes que permitam concluir pela verificação do direito de propriedade dos AA. sobre uma parte específica do terreno, identificada pela sua área e pelos seus limites, que os mesmos reclamam como seu.
Não competia também ao tribunal decidir pela procedência parcial da acção, só não reconhecendo a propriedade dos AA. sobre a parcela de terreno ocupada com as construções promovidas pela 2ª R. e autorizadas pela 1ª, que está agora ocupada com infra-estruturas em causa, considerando dessa forma os AA. legítimos proprietários do terreno registado em seu nome com a área que os mesmos pretendem, já que o tribunal nem se debruçou sobre a questão de saber se outra área do terreno além da parcela reclamada se encontra situado nas margens das águas do mar, por isso não estar em causa nos autos, sendo que o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos tem de ser feita nos termos que constam do art.º 15.º da Lei 54/2005 de 15 de Novembro, não sendo sequer o acordo das partes relevante nesse âmbito, nos termos do art.º 354.º al. b) do C.Civil, por estarmos perante direitos indisponíveis como é o caso do domínio público marítimo, conforme resulta do art.º 202.º do C.Civil.
Em face do exposto, verifica-se que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão que possa determinar a nulidade da sentença, nos termos previstos no art.º 615.º n.º 1 al c) do C.P.C., antes os fundamentos de facto e de direito invocados se apresentam como corolário lógico da improcedência do pedido decidida.
- do reconhecimento do direito de propriedade e posse dos AA.
Pretendem os Recorrentes que não é formulado qualquer pedido de delimitação do domínio público hídrico, pelo que não há que recorrer às normas da Lei 54/2015, resultando dos factos provados a posse e propriedade dos AA. sobre o terreno identificado na petição inicial.
A sentença recorrida considerou que a situação em discussão nos presentes autos deve ser analisada à luz da Lei 54/20015 de 15 de Novembro que estabelece a titularidade dos recursos hídricos.
O diploma legal em questão regula sobre a titularidade dos recursos hídricos. Vejamos algumas das previsões aí contempladas, com interesse para a questão dos autos.
Desde logo o art.º 3.º desta lei, referindo-se ao domínio público marítimo, estabelece que este compreende:
a) As águas costeiras e territoriais;
b) As águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas;
c) O leito das águas costeiras e territoriais e das águas interiores sujeitas à influência das marés;
d) Os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva;
e) As margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés.”
De acordo com o disposto no art.º 4.º desta lei, o domínio público marítimo pertence ao Estado.
A este respeito importa levar em consideração o art.º 202.º n.º 2 do C.Civil que estabelece que estão fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
A noção de margem é-nos dada pelo art.º 11.º da Lei 54/2005 que dispõe:
“1 - Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.
2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis que se encontram à data da entrada em vigor desta lei sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas e portuárias, tem a largura de 50 m.”
Por seu turno, o art.º 12.º n.º 1 diz-nos que: “São particulares, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que forem objecto de desafectação e ulterior alienação, ou que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, presumindo-se públicos em todos os demais casos.
Tal como nos diz o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/06/2013 no proc. 6584/06.2TBVNG.P1.S1 in. www.dgsi.pt: “Essas faixas de terreno, qualificadas como margens, estão sujeitas a uma presunção juris tantum de propriedade pública, mas podem os particulares invocar direitos de natureza privada, devendo para tal elidir essa presunção”.
É o art.º 15.º desta lei que vem dispor sobre o reconhecimento do direito de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicas, o que faz nos seguintes termos:
“1 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento desde que intente a correspondente acção judicial até 1 de Janeiro de 2014, devendo provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868.
2 - Sem prejuízo do prazo fixado no número anterior, observar-se-ão as seguintes regras nas acções a instaurar nos termos desse número:
a) Presumem-se particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais, na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos mesmos nos termos do n.º 1, se prove que, antes daquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;
b) Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas.
3 - Não ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números anteriores os terrenos que, nos termos da lei, hajam sido objecto de um acto de desafectação nem aqueles que hajam sido mantidos na posse pública pelo período necessário à formação de usucapião.
As datas referidas nesta norma têm uma explicação, para o que nos socorremos aqui do que refere o Desembargador Manuel Bargado, no seu estudo denominado “O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico”, in. www.trg.pt/ficheiros/estudos/o_reconhecimento_da_propriedade_privada : “Embora, por definição, os leitos e as margens de águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis sejam bens do domínio público, não podia o legislador deixar de reconhecer os direitos adquiridos sobre esses terrenos por sujeitos privados, antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868. A indicação destas datas tem uma explicação.
Assim, a data de 31 de Dezembro de 1864 é a da publicação do decreto que estabeleceu, de forma inovadora, a dominialidade pública dos leitos e das margens, prescrevendo o seu art. 2.º que são “do domínio público imprescritível, os portos do mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens, os canais e valas, os portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se construam…”.
Já a data de 22 de Março de 1868 é a da entrada em vigor do Código Civil de 1867 (Código de Seabra), em cujo artigo 380.º § 4.º - preceito onde se faz a enumeração exemplificativa de coisas públicas – se dispunha que “as faces ou rampas e os capelos dos cômoros, valadas, tapadas, muros de terra ou de pedra e cimento erguidos artificialmente sobre a superfície do solo marginal, não pertencem ao leito ou álveo da corrente, nem estão no domínio público, se à data da promulgação do Código Civil não houverem entrado nesse domínio por forma legal”.
Este art.º 15.º vem contemplar exigências probatórias específicas para quem pretenda obter o reconhecimento de direito de propriedade designadamente sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar.
Verifica-se, em síntese, que o facto de um terreno estar integrado no domínio público marítimo não constitui um obstáculo a que possam subsistir direitos de natureza privada já existentes. A averiguação e prova da existência desses direitos que pode levar ao seu reconhecimento, deve porém ser feita de acordo com o regime legal estabelecido no art.º 15.º do diploma referido.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste artigo, aquele que pretenda ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parcelas de leito ou margens das águas, tem de fazer prova só admitida por documento, de que adquiriu tal direito por título legítimo, designadamente pelas formas de aquisição do direito de propriedade previstas no art.º 1316.º do C.Civil, em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 ou se forem arribas alcantiladas, em data anterior a 22 de Março de 1968.
No caso de não dispor de documento comprovativo do seu direito, ou existindo tais documentos anteriores a 1864 ou 1868 os mesmos se tenham tornado ilegíveis ou tenham sido destruídos, o n.º 2 do art.º 15.º permite que o interessado faça prova do exercício ininterrupto da posse em nome próprio, com referência às datas mencionadas no n.º 1, presumindo-se nesse caso os terrenos particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros.
De realçar, a este respeito, que o Acórdão do Tribunal Constitucional de 29 de Julho, no proc. 326/2015: “não julga inconstitucional a norma do artigo 15.º, n.os 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na redação conferida pela Lei n.º 78/2013, de 21 de novembro, quando interpretada no sentido de a obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864.
De todo este regime resulta, que aquele que pretenda ver reconhecido um direito de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos tem de fazer prova através de documento de que adquiriu tal propriedade em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 ou de 22 de Março de 1868 se se tratar de arribas alcantiladas ou, caso não disponha de documento terá de fazer prova de que por si e pelos seus antecessores tem vindo a exercer os actos de posse em nome próprio sobre tais terrenos, desde antes de 31 de Dezembro de 1864 ou de 22 de Março de 1868.
Passando ao caso concreto, contrariamente ao que defendem os Recorrentes, impõe-se a aplicação da mencionada Lei 54/2005, que contempla precisamente as circunstâncias em que pode haver o reconhecimento da propriedade privada em situação como a que se discute nos autos, uma vez que, de acordo com os factos que resultaram provados, se verifica que uma parte do terreno que os AA. Reclamam como sendo de sua propriedade, se situa nas margens das águas do mar, atenta a noção do art.º 11.º n.º 2 do diploma referido, por estar a menos de 50 metros da linha máxima da praia mar de águas vivas equinociais (LIMPAVE) integrando por isso o domínio público marítimo.
Estando em causa o pretendido reconhecimento do direito de propriedade sobre uma parcela de terreno que, de acordo com os factos provados, se integra nas margens das águas do mar, em domínio público marítimo, sendo a distância actual entre a LIMPAVE e o terreno reclamado pelos AA. de aproximadamente 20 metros, forçoso se torna recorrer ao regime estabelecido na Lei 54/2005 de 15 de Novembro, a fim de avaliar se o invocado direito de propriedade privada pode ser reconhecido.
Tal como nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/07/2014, no proc. 429/12.1TBPNI.L1-6 in. www.dgsi.pt : “Como é sabido, ao contrário do que acontece com os bens do domínio privado do Estado, que podem ser adquiridos por usucapião, os bens do domínio público do Estado são imprescritíveis, não podendo ser adquiridos por usucapião, por força do artigo 202º nº2 do CC e do artigo 19º do DL 280/2007 de 7/8, que contém o regime jurídico do património imobiliário público. Os terrenos situados na margem das águas do mar, como vem definida no artigo 11º da Lei 54/2005, são do domínio público do Estado e não podem ser adquiridos pelos particulares por usucapião.
Restava então aos AA. a alegação e prova, de acordo com a previsão do mencionado art.º 15.º, de que o terreno em questão já se encontrava no domínio privado antes de 1864, bem como do seu historial de transmissão, sendo certo que também não apresentaram qualquer documento comprovativo da aquisição da propriedade reportada a data anterior.
Ora, na situação dos autos, apenas ficou demonstrada a posse dos AA. e dos seus ante possuidores a partir do ano de 1948 o que é insuficiente para se integrar a previsão do art.º 15.º do diploma mencionado e dessa forma permitir o reconhecimento do direito de propriedade que invocam, sendo certo, como se referiu que atenta a natureza de direitos indisponíveis conferida aos bens do domínio público, os mesmos não podem ser adquiridos por usucapião.
O pedido formulado pelos AA. tem por isso que improceder, não merecendo censura a sentença recorrida que assim o decidiu.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o recurso interposto improcedente, confirmando-se a sentença proferida.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.

Porto, 23 de Março de 2017
Inês Moura
Paulo Dias da Silva
Teles de Menezes