Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1830/12.6JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CRIME DE BURLA
BEM JURÍDICO
PREJUÍZO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RP201701111830/12.6JAPRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º2/2017, FLS.133-155)
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido pelo crime de burla é o património do ofendido globalmente considerado numa perspectiva jurídico criminal, mas ao lado do património protege também os valores da lealdade, transparecia e boa fé das transações e a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correcta nas suas disposições de caracter patrimonial.
II - Ocorre o crime de burla e não mera fraude civil quando ocorre um incumprimento contratual preconcebido, criado de forma astuciosa levando o ofendido ao engano que causou o prejuízo patrimonial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1830/12.6JAPRT.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum colectivo nº 1830/12.6JAPRT, da Comarca do Porto, Instância Central, 1ª Secção Criminal, Unidade de processos nº4, foi condenado o arguido B…, pela prática de dois crimes de burla simples, p.p., pelo Artº 217 nº1 do C. Penal, na pena, por cada um, de 1 (um) ano de prisão e em cúmulo jurídico das mesmas, na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período e subordinada ao pagamento da indemnização ao ofendido C… no valor de €3.250,00 (três mil duzentos e cinquenta euros).

Mais foi condenado, em sede civil, no pagamento a C… da referida importância de €3.250,00, acrescida de juros moratórios desde a notificação do PIC.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):
1.NULIDADES PROCESSUAIS INSANÁVEIS

A- ALTERAÇÃO OFICIOSA DE MANDATÁRIO, À REVELIA DO ARGUIDO
1. O arguido viu, sem qualquer justificação para tal, o advogado que escolheu ser substituído por defensor oficioso aleatório, por determinação do MP. Talvez por distracção, o MP e todos os demais intervenientes do processo até ao momento não se aperceberam que em todos os actos do inquérito o arguido foi assistido pelo Dr. D…, advogado da sua escolha neste processo.
2. O mandatário do arguido já se encontrava constituído desde 2012, estando documentadas as suas intervenções a fls, 93, no TIR, a fls. 99, a fls. 100, a fls. 140, a fls, 145 e a fls. 167.
3. Por causa do referido na Conclusão lª, a defesa do arguido neste processo só existiu formalmente, sem que com isto se esteja a criticar a actuação da defensora, pois a verdade é que esta fez o que podia, atendendo às circunstancias - não conhece o processo e não conhece o arguido.
4. A actuação do MP, ao nomear defensor ao arguido, sem disso dar conhecimento quer a este, quer ao mandatário constituído, e contra a vontade de qualquer destes intervenientes, viola todas as convenções sobre direitos humanos que vigoram no ordenamento jurídico português, desde o art. 14° nº3 al. b) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, ao art. 6° nº3 al. c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, inconstitucionalidade que desde já se arguiu expressamente.
5. Em termos de direito interno, são violados os arts. 32° nº3 da Constituição da Republica Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se arguiu expressamente, assim como os arts. 61° nº1 al. e) e 62° nº1, ambos do CPP.
6. A violação destas disposições legais configura nulidade insanável, nos termos do art. 119° al. c) do CPP, porquanto, por facto imputável ao Ministério Público, quem compareceu às audiências de julgamento e foi notificado do despacho de acusação não foi o "seu" defensor, tendo antes sido um defensor aleatoriamente escolhido, em substituição operada pelo MP à revelia de todos - arguido e advogado.

B - REALIZAÇÃO DE JULGAMENTO NA AUSENCIA DO ARGUIDO
7. Como refere o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão que será abundantemente citado (Proc. 07P3486, de 24/ 10/2007), "o arguido é sujeito processual de direitos e de deveres, e é na audiência, mediante o exercício pleno do contraditório, que o arguido pode - e deve - defender-se, confrontado com as provas, já que a discussão da causa vai posteriormente implicar uma decisão, de harmonia com elas e com referência ao objecto do processo, decisão essa em que emite um juízo decisório sobre a conduta juridico-penal imputada ao arguido, com reflexos notórios na sua vida pessoal e comunitária, pois que, sendo este absolvido, fica desvinculado da imputação havida, e restaurado à normalidade anterior ao juízo incriminatório, mas se for condenado, fica sujeito às consequências jurídicas do crime. "
8. Sendo verdade que o arguido não deu cumprimento ao disposto no art. 196° nº3 al. c) do CPP, importa ter presente que esta negligência do arguido não teria qualquer implicação se os actos processuais sido notificados à defensora oficiosa.
9. O advogado constituído, conhecendo o arguido e tendo os seus contactos actualizados, sempre diligenciaria, no cumprimento dos seus deveres deontológicos, pela preparação da audiência de julgamento e da contestação à acusação e PIC's. Ou seja, a negligencia do arguido seria contrabalançada pela diligência do seu mandatário constituído.
10. Todavia, a negligência do arguido no cumprimento do 196° nº3 al. c) do CPP apenas teve impacto na qualidade da sua defesa porquanto, sem qualquer justificação legal, o MP substituiu o mandatário constituído por uma defensora oficiosa que, naturalmente, não tem qualquer forma de comunicar com o arguido, salvo tentando contactá-lo na morada onde ele já não morava.
11. Assim, a realização de julgamento na ausência resulta de factos imputáveis não só ao arguido, mas também ao Ministério Público, quando este órgão decide (??) ignorar o mandatário constituído e nomear uma terceira pessoa, sem que disso o arguido e o seu mandatário pudessem tomar conhecimento.
12. Analisando as actas da audiência, verificamos ainda que o Tribunal não realizou qualquer diligência necessária e legalmente admissível para obter a comparência do arguido, em flagrante violação do disposto no art. 333° nº1 do CPP.
13. A isto acresce o facto de o tribunal não ter que realizar qualquer diligência especial para localizar o arguido, pois bastaria contactá-lo na morada constante do ultimo auto de interrogatório.
14. O Direito em discussão nesta questão não requer particular especialização. Tudo o que bastava é que qualquer um dos participantes, acusadores, defensores ou julgadores, prestassem atenção à anotação do art. 333° nº1 do CPP constante do excelente site da Procuradoria Distrital de Lisboa, para descobrirem citações como:
• "Na reunião de trabalho realizada no dia 18-03-2010 na PGD Lisboa, analisada a questão decorrente da falta e julgamento sem a presença do arguido, regularmente notificado na morada constante do TIR e omissão de diligências tendentes a obter a sua comparência, assentou-se na defesa da tese propugnada no Ac. do BTJ, de 2-05-2007 segundo o qual:
É nula a audiência de julgamento - e a subsequente decisão realizada na ausência da arguida que para esse acto fora notificada e, faltou, sem que fossem tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.
Em idêntico sentido: «decisão sumária» de 13/11/2008, proferida no processo n° 8558/08, relatada por Moraes Rocha [A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido, regularmente notificado na morada constante do Termo de Identidade e Residência (TIR) que prestou, sendo legalmente admissível, não dispensa o tribunal de tomar medidas adequadas com vista a procurar assegurar a sua comparência, tudo nos termos do 1 do art° 333° do CPP];Ac. do TRL de 2/7/08, processo n05384/08 relatado por Rui Gonçalves; Ac. TRL de 24/6/2009, processo n 01007/06.0SILSB.L1, relatado por Maria José Machado; Ac. TRL de 3/3/2009, relatado por Nuno Gomes da Silva, CJ, 2009, II, 135 e Ac. STJ de 24/10/2007, CJSTJ,
2007, III, 224"
• Ainda no mesmo sentido, Ac. STJ de 24-10-2007, sumário retirado da CJ (STJ), 2007, T3, pág.224: A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido, devidamente notificado para tanto embora sem que o juiz tenha tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência consubstancia uma nulidade insanável
15. Assim, devem ser anulados todos os actos processuais praticados durante e após a primeira audiência de julgamento, em face da clamorosa falha do tribunal, geradora de nulidade insanável, por violação grosseira do art. 333° nº1 do CPP.

C - DA INDISPENSABILIDADE DA PRESENÇA DO ARGUIDO
16. Em nenhuma das audiências de julgamento o tribunal ponderou fez qualquer ponderação sobre a indispensabilidade ou dispensabilidade da presença do arguido.
17. Inexistindo decisão que considere dispensável a presença do arguido, todas as audiências deste processo estão feridas com a nulidade insanável a que alude o art. 119° al. c) do CPP, por sem tratarem de actos para os quais a lei exige a comparência do arguido, apenas podendo ser realizados se e quando o tribunal decidir que a presença do arguido é dispensável.

2 - RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
18. O facto nº1 é conclusivo, porquanto o conceito de proprietário é um conceito jurídico, pelo que deve ser removida, pela menos a parte final.
19. O facto nº2 é conclusivo e está redigido num português pouco rigoroso, pois desconhece-se o que seja "inventar um esquema", ou "engano a provocar no vendedor". Por outro lado, "natureza onerosa", "contrato de compra e venda" e "declaração negocial" ou "enriquecimento ilegítimo" são conceitos de direito, e não factos. São conclusões que se podem retirar de factos, e não factos em si.
20. O facto nº3 também tem que ser dado como não escrito, por se encontrar cravejado de conclusões como "convencimento erróneo", "inventou uma aparência de credibilidade do negocio e de confiança a ter na sua pessoa".
21. O facto nº4 é igualmente conclusivo, pois afirma existir um plano, sem quaisquer factos que sustentem tal conclusão.
22. O facto nº6 é conclusivo, na medida em que refere que o arguido encetou negociação com o ofendido, nas circunstancias referidas, de modo a criar no ofendido o convencimento erróneo que pretendia celebrar e cumprir o contrato de compra e venda.
23. O facto nº7 contradiz em absoluto os factos nº2 e nº6, porquanto decorre das regras da experiencia comum que ninguém que pretenda adquirir de forma fraudulenta o direito de propriedade de um veiculo, faz questão que o vendedor fique com os documentos do veiculo enquanto não receber o preço.
24. O facto nº11 é conclusivo, sendo certo que a questão da provisão apenas se coloca quando o cheque é apresentado a pagamento, e não no momento da emissão.
25. O facto nº13 não é um facto.
26. O facto nº14 é conclusivo, pois a falsidade dos problemas mecânicos é uma conclusão que se extrai de factos concretos, e não um facto em si mesmo. O facto de o ofendido ter colocado o veiculo a trabalhar não é suficiente para se concluir que os problemas mecânicos alegados pelo arguido fossem falsos, mas que tão somente não se verificaram naquele momento.
27. O facto nº16 é conclusivo, na parte em que se refere a propósitos fraudulentos. Nota-se ainda que este facto contradiz em absoluto os factos 2 e 6, porque demonstra que o arguido quis devolver o veículo, tendo sido o ofendido a recusar a devolução. Por mais que o motivo invocado para a devolução seja discutível, a verdade é que essa discutibilidade coloca-se num plano não penal. Ainda que a referida carta servisse para encapotar um arrependimento do comprador, o arrependimento da compra e posterior tentativa de devolução do bem comprado não configura burla, configura precisamente arrependimento.
28. O facto 17 é conclusivo na parte "Como sempre soube o que iria suceder", sendo que no demais, o facto contradiz o facto 16, uma vez que o não pagamento vem na sequencia do arrependimento, e a não devolução da viatura vem na sequencia de o ofendido se ter recusado a receber a viatura de volta. Mais uma vez, estamos perante uma questão de direito civil, em relação à qual até se admite que o arguido não tenha razão. Todavia, não se pode acusar de burla quem toma posse de uma viatura, arrepende-se da compra, tenta anular o contrato e devolver o veiculo, e apenas não o faz porque o vendedor se recusa a receber o veiculo de volta. Nada disto é direito penal.
29. O facto 20 é conclusivo, na parte em que considera que as despesas são "alegadas despesas", pois certamente o arguido não terá pedido alegadas despesas ao ofendido.
30. O facto 21 é totalmente conclusivo, com a agravante de se tratar de uma conclusão assente em outras conclusões, e de os poucos factos que se podem retirar do acórdão contradizerem em absoluto tais conclusões.
31. O facto 22 é conclusivo, e é desmentido pelo facto nº16, ou com os factos que dele são possíveis extrair, uma vez que está provado que o arguido quis devolver o veiculo, só não o tendo feito porque o ofendido recusou.
32. O facto 23 é igualmente conclusivo e igualmente contradiz o facto 16.
33. O facto 24 é conclusivo e, além do mais, trata-se de uma conclusão manifestamente infundada, pois nada na lei impede alguém de vender coisa que não é sua, sendo isso algo que acontece diariamente, por exemplo, em contratos promessa. Além do mais, o arguido poderia, com essa conduta, estar a procurar financiamento para pagar ao ofendido vendedor. Além do mais, o efeito traslativo da propriedade dá-se por mero efeito do contrato, e não pelo pagamento, como se aprende no primeiro ano de direito.
34. O facto 26 é completamente conclusivo, exceptuando a parte do preço de venda.
35. O facto 28, na parte que diz "por estar erroneamente convencido pela conduta do arguido de que estava a adquirir o veiculo ao seu legitimo proprietário e em condições de ser legalizado, registado em seu nome e de circulação em Portugal, o que o arguido sabia não corresponder a realidade, nem ser susceptível de vir a suceder." É conclusivo e, além do mais, destituído de fundamento jurídico, porquanto o automóvel era efectivamente propriedade do arguido. Só não estava pago.
36. O facto 29 é completamente conclusivo, e é contraditório em si mesmo: não é crível que o arguido tenha apresentado um documento intitulado "contrato promessa" e, em simultâneo, tenha tentado convencer o comprador de que estava mesmo a vender o veiculo, ou seja, que o contrato promessa era um contrato de compra e venda.
37. O facto 30 é conclusivo na parte "o que estava impossibilitado de vir a cumprir", e é uma conclusão absurda, porquanto o arguido era o legitimo proprietário do veiculo, apenas lhe bastando fazer o pagamento para que os documentos ficassem em sua posse, pelo que o arguido não se encontrava impossibilitado de cumprir qualquer promessa.
38. O facto 31 é conclusivo na parte em que rege "falsamente", não se conseguindo perceber se o arguido fez ou não fez o pagamento. Não há nenhum facto provado que diga que o arguido não efectuou o pagamento, pelo que a conclusão "falsamente" não tem qualquer sustentação nos factos provados.
39. O facto 32 é conclusivo na parte em que se escreve "afirmar inveridicamente".
40. O facto 33 é conclusivo na parte em que escreve "por ter tomado conhecimento do engano em que se encontrava." A apreensão da PJ a que alude o facto 33 resulta do facto de o ofendido C… ter accionado, indevidamente, meios penais, para obter pagamento do preço do veiculo que se recusou a receber (facto 16).
41. O facto 34 é praticamente todo conclusivo, sendo contraditado pelo facto de se encontrar provado que o arguido era proprietário do veículo - facto 9 - sendo que a apreensão da PJ a que alude o facto 33 resulta do facto de o ofendido C… ter accionado, indevidamente, meios penais, para obter pagamento do preço do veiculo que se recusou a receber (facto 16).
42. O facto 35 é conclusivo, sendo que se trata de uma conclusão manifestamente infundada porquanto o arguido era proprietario do Hyundai (facto nº9) e tinha, portanto, poder para transmitir o direito de propriedade e direito a receber um preço por essa transacção.
43. O facto 36 é todo ele conclusivo, sendo uma conclusão ilegítima, em face dos demais factos apurados.

3 - RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO

A- DA INEXISTENCIA DE QUALQUER CRIME DE BURLA
44. A matéria de facto apurada se resume a isto:
i. Arguido e ofendido C… celebraram contrato que designaram de contrato de compra e venda sobre o Hyundai;
ii. O arguido, insatisfeito com a viatura, interpelou o vendedor para aceitar o veiculo de volta.
iii.O vendedor não aceitou que o arguido devolvesse o veiculo, recusando a nulidade do negócio;
iv. O arguido procurou, então, vender o carro que havia adquirido, embora não pago.
v. O vendedor, insatisfeito com a falta de pagamento do preço, aproveitou a "borla" do processo penal para coagir o arguido, ao invés de intentar a competente acção cível.
vi. As entidades competentes acederam a tratar o incumprimento da obrigação de pagamento de preço como sendo um crime.
vii. Por força da actuação das forças policiais, a revenda do veiculo operada pelo arguido veio a frustrar-se, porquanto o ofendido comprador, E…, assustado com a apreensão do carro, não quis cumprir o contrato promessa, sendo que o pagamento do preço pelo E… permitiria ao arguido pagar ao ofendido C….
45. Uma das conquistas civilizacionais mais apreciáveis dos tempos modernos foi a abolição da chamada prisão por dividas, as quais passaram a ser tratadas como questões de direito civil. Abandonou-se a execução de seres humanos, para passar-se a executar patrimónios.
46. Apesar da opção legislativa inequívoca no sentido da descriminalização da divida, a verdade é que, de forma encapotada, o incumprimento de obrigações pecuniárias vai fazendo caminho no nosso sistema penal, mascarado de burla.
47. Todas as pessoas que assumem obrigações pecuniárias afirmam que as vão pagar, assim como todas as pessoas que vendem bens sem pagamento a pronto acreditam que o comprador vai cumprir a sua prestação. Todos os compradores de bens a prestações declaram a sua intenção de pagar.
48. O facto de ser declarada a intenção de pagar, não transforma os compradores de bens a crédito em burlões quando as prestações não são cumpridas. Transforma-os em devedores em mora.
49. Assim, a decisão recorrida viola o art. 207º do Código Penal, porquanto o alegado enriquecimento do arguido deriva de incumprimento contratual, o que configura enriquecimento ilegítimo em termos civis, mas não em direito penal.
50. A venda do veiculo em prestações operada pelo ofendido C… não derivou de qualquer engano que o arguido tenha inculcado naquele, antes derivando de decisão de venda que já havia sido tomada ainda o ofendido não conhecia o arguido.

B - DA INEXISTENCIA DE CRIME CONTRA E….
51. Da matéria de facto assente resulta cristalinamente que o ofendido E… adquiriu validamente o veiculo, permanecendo este propriedade sua após a prolação da sentença.
52. Por outro lado, o veiculo foi adquirido a um preço inferior ao qual o referido E… se propunha pagar, pois apenas foi paga parte do preço acordado com o arguido. Qualquer lesão que o E… tenha tido, foi provocada não pela conduta do arguido, mas sim pela apreensão do veiculo, facto em relação ao qual o arguido é alheio.
53. Analisando os requisitos do crime de burla, parece evidente que o negócio com o E… não resultou no enriquecimento do arguido ou de terceiro, sendo a matéria de facto, aliás, completamente omissa em relação a qualquer enriquecimento que pudesse existir. Tal omissão, todavia, é compreensível, porquanto no negocio arguido-E…, o arguido não obteve nem para SI nem para terceiro qualquer enriquecimento.
54. Também inexiste qualquer engano sobre factos que o arguido astuciosamente provocou, uma vez que, como resulta do facto 9°, o arguido era proprietário da viatura, podendo, assim, aliená-la legalmente. E tanto assim é que, civilmente, o tribunal não se considerou competente para anular qualquer dos negócios, e bem, pois ninguém pediu sequer tal anulação.
55. Assim, parece obvio que em nada o ofendido E… foi burlado. Pelo contrário, burlado foi o arguido, porquanto o ofendido não lhe pagou o preço (isto na inaceitável lógica de que as dividas são burlas), aproveitando o pretexto da apreensão para cancelar os cheques remanescentes, e mantendo em sua posse e propriedade a viatura.

C – Resposta ao Recurso

O M.P., junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apesar de não ter apresentado conclusões.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que defendeu a manutenção da decisão recorrida.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
Atentas as conclusões do recorrente, podem-se extrair as seguintes matérias a tratar:

1) Nulidade insanáveis
2) Conclusões na matéria de facto
3) Inexistência dos crimes de burla

B – Apreciação

Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte (transcrição):

II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
Caso I
1. Em Julho de 2012 o arguido viu um anúncio no sitio da Internet denominado “ Coisas” de venda do veículo automóvel de marca Hyundai, modelo … de … e de matrícula . …. de cor cinzenta que havia sido colocado pelo seu proprietário C….
2. Então, o arguido resolveu inventar um esquema de actuação que visava adquirir e apoderar-se de tal veiculo sem qualquer contrapartida monetária da sua parte mediante engano a provocar no vendedor quanto à natureza onerosa do contrato de compra e venda que falsamente lhe ia assegurar estar a celebrar e à autenticidade das suas declarações negociais para assim se enriquecer com o veículo de modo ilegítimo.
3. Para convencimento erróneo do ofendido que pretendia vender o seu veiculo, inventou um aparência de credibilidade do negócio e de confiança a ter na sua pessoa, afirmando ser advogado, ter uma empresa denominada F… e ter um escritório em Lisboa, quando na realidade o arguido não tem essa qualidade profissional, a sociedade não tem qualquer actividade efectiva de importação, exportação, aluguer e comercialização por grosso de máquinas e equipamentos médicos e de bem estar e o escritório sito na Rua …, n.º .., Lisboa, corresponde apenas a um serviço de escritório virtual que inclui acesso à utilização do endereço, recepção de correspondência e aviso de recepção de correspondência por email ou SMS, ali não sendo exercida qualquer actividade de advocacia ou empresarial.
4. Em execução do plano por si delineado, o arguido contactou o C… através do endereço de correio electrónico fornecido no anúncio e posteriormente por telefone, e afirmou ser advogado e combinou um encontro que se realizou no dia 21 de Julho de 2012, da parte da manhã, na habitação ocupada pelo arguido na Rua …, n.º .., Porto demonstrando interesse na aquisição do referido veículo.
5. Naquele local, o arguido apenas entrou no veículo que estava estacionado em frente à aludida residência, sem ter pretendido accionar o motor e conduzir o mesmo ou vê-lo em circulação e logo conduziu o ofendido e seu cônjuge para uma sala e intitulou-se falsamente perante aqueles como advogado especialista em processos de imigrantes de França para Portugal e que exercia habitualmente a sua actividade em Lisboa.
6. O arguido encetou negociação com o ofendido, nas circunstâncias referidas, de modo a criar no ofendido o convencimento erróneo que pretendia celebrar e cumprir o contrato de compra e venda e assim acordaram o preço de 3.250€ (três mil duzentos e cinquenta euros) a pagar em três prestações, tendo a primeira como data de vencimento o dia 28/7/2012 , assim como assegurou que iria preencher e entregar um cheque que denominou cheque caução no valor do preço acordado para apresentar a pagamento em caso de incumprimento.
7. O arguido pretendeu que o C… ficasse em poder dos documentos do veículo (…) até que o preço estivesse pago/ liquidado, com o que este concordou.
8. Pese embora terem acordado inicialmente novo encontro no dia 23/7/2013 para formalizar contrato de compra e venda do … (a fim de ulteriormente o arguido poder legalizar o veiculo em Portugal dado possuir matricula de Andorra), o ofendido repensou tal agendamento e, devido a morar longe - … Guimarães, contactou por telefone o arguido solicitando a celebração por escrito do contrato nesse mesmo dia 21/7/2012, com o que o arguido concordou.
9. Voltaram a encontrar-se no mesmo local da parte da tarde e o arguido apresentou-lhes um documento relativo a contrato escrito de compra e venda automóvel por si elaborado onde fez menção das condições acima indicadas que todos assinaram, assim como escreveu em computador uma declaração por si assinada onde declarou ser residente na Rua …, .., Lisboa e na qual assumiu a inteira responsabilidade pelo veículo de marca Hyundai, modelo …, com a matrícula ….. a partir das 15 horas do dia 21 de Julho de 2012. Ali declarou ainda “ que adquiri o veiculo no estado e condições presentes”, sem qualquer tipo de garantia e sem direito a qualquer tipo de reclamação, ficando a minha total responsabilidade a sua circulação e as respectivas obrigações legais (seguros, impostos, selo de circulação etc). O arguido datou ambos os documentos de 21/7/2012 e entregou cópia ao ofendido, assim como fotocópia do seu passaporte.
10. Mais preencheu e entregou um cheque do G… n.º ………. relativo a conta bancária titulada por F… Unipessoal, Lda que assinou como gerente que denominou cheque caução no valor do preço acordado para apresentar a pagamento em caso de incumprimento.
11. O arguido bem sabia que prestava uma falsa garantia de pagamento pois a conta a que respeita o cheque não estava por si provisionada.
12. Em consequência desta conduta e acreditando que iria obter pagamento do preço assegurado pelo arguido o ofendido entregou o seu veículo automóvel que se vem referindo ao arguido, deixando-o estacionado na rampa de acesso à garagem da habitação do arguido acima indicada.
13. Contudo, logo no dia seguinte, o arguido começou a por em prática os expedientes que tinha maquinado para colocar obstáculos ao regular cumprimento do contrato.
14. Com efeito, no dia 22/7/2012, cerca das 17 horas, telefonou a C… e alegou não pretender o veículo invocando falsos problemas mecânicos e que não “ pegava”, o que não se revelou verdadeiro, pois o ofendido deslocou-se à residência sita na Rua …, n.º .., Porto onde constatou que o veiculo já estava na via publica, tinha sido objecto de limpeza e, com a chave que o arguido lhe entregou, colocou o motor a trabalhar de imediato.
15. Logo de seguida, o arguido disse a C… que este tinha de pagar as despesas que teve com um reboque para o retirar do interior da moradia. Contudo, uma vez mais confrontado com a infundada alegação uma vez que não existia espaço para reboque, o arguido acabou por alegar que o tinha feito com ajuda de um amigo que tem um …, sendo que o ofendido devolveu-lhe a chave e retirou do local, esperando o regular e pontual pagamento das prestações contratualmente estabelecidas, o que o arguido sabia não ir satisfazer.
16. Desse modo e com os seus propósitos fraudulentos acima descritos, em 23/7/2012 o arguido escreveu uma carta dirigida ao ofendido e cônjuge, que a receberam em 25/7/2012, onde invocava a nulidade do contrato de compra e venda do …, alegando que a matrícula aposta no referido contrato não coincidia com a do veículo que lhe foi entregue, bem sabendo que o ofendido iria rejeitar tal pretensão -como o fez também por escrito- na medida em que o contrato havia sido escrito pelo próprio arguido, pelo que o lapso existente só a ele era imputável (a matricula do livrete a que teve acesso era a correspondente ao veiculo que adquiriu).
17. Como sempre soube o que iria suceder, o arguido não pagou qualquer prestação no dia 28/7/2012 nem nos meses subsequentes.
18. Como haviam inicialmente acordado, face à falta de pagamento da primeira prestação, o ofendido apresentou o cheque que tinha em seu poder a pagamento tendo o mesmo sido devolvido no dia 1/8/2012 por motivo de falta de provisão.
19. Em poder do veículo, o arguido colocou-o, em Agosto de 2012 à venda no site “COISAS” pelo preço negociável de 5.900€ tendo alterado a sua cor para preto.
20. O arguido chegou a dizer por telefone ao ofendido que só lhe devolveria o seu … se lhe pagasse a quantia de 1.500€ relativas a alegadas despesas que teve com o mesmo após o que nunca mais contatou o ofendido C….
21. Ao agir da forma exposta, o arguido, fê-lo com a intenção alcançada de enganar deliberadamente C… fingindo que era advogado e empresário e que pretendia adquirir legitimamente e nos termos negociados e contratados o veiculo de matricula ….. que o primeiro quis vender, aproveitando-se da credulidade do mesmo e induzindo-o em erro através dos expedientes acima narrados.
22. O arguido determinou o ofendido a, por causa desse engano, entregar-lhe o seu veículo de marca Hyundai modelo …, de matrícula ….. de que se viu desapossado sem obter qualquer contrapartida pecuniária e que lhe acarretou prejuízo patrimonial equivalente ao valor do veiculo que atribuíram de 3.250€ e desse modo logrou obter e apoderar-se ilegitimamente do mencionado veiculo.
23. Determinou-se sempre de forma voluntária e consciente, com a intenção alcançada de obter para si e se enriquecer com o veiculo a que se sabia sem direito, conhecendo bem que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
Caso II
24. Uma vez em poder do veículo de matrícula ….., o arguido decidiu coloca-lo à venda, como já se referiu, através da internet (site do H…) bem sabendo que não o podia fazer por o ter adquirido ilegitimamente e que o mesmo nunca estaria em condições legais de circulação pois não possuía os documentos necessários á legalização em Portugal e á transmissão da propriedade a favor de qualquer adquirente.
25. E…, residente em … mostrou-se interessado na sua aquisição e contactou por telefone e através de correio electrónico com o arguido.
26. Em execução do seu propósito fraudulento, o arguido conversou com E… sobre as características do veículo e negociou o preço de venda que acordaram ser de 6.700€ arrogando-se a qualidade de legitimo proprietário e possuidor do veiculo.
27. Depois, no dia 15/9/2012 a solicitação do arguido, E… deslocou-se à residência por aquele indicada sita na Rua … n.º .., no Porto onde viu a viatura automóvel acima indicada que se encontrava no acesso à garagem da vivenda e decidiu-se pela sua aquisição.
28. Para pagamento do preço o ofendido entregou o seu veiculo automóvel Toyota … matricula ..-..-EF avaliado em 800€ por ambos, a quantia pecuniária de 2000€ e vinte e oito cheque pré datados -a pagar dois por mês-no montante de 150€ do I… relativos a conta titulada pela sociedade J… Unipessoal, Lda de que é sócio gerente o que perfaz o total de 4.200€ emitidos a favor da companheira do arguido (e cuja numeração consta de fls.14 a 23 do apenso) por estar erroneamente convencido pela conduta do arguido de que estava a adquirir o veiculo ao seu legitimo proprietário e em condições de ser legalizado , registado em seu nome e de circulação em Portugal, o que o arguido sabia não corresponder à realidade , nem ser susceptível de vir a suceder.
29. Para atribuir aparência de credibilidade ao negócio fraudulento que sabia estar a efetuar, o arguido elaborou um contrato promessa de compra e venda do veiculo, onde nada se diz quanto à data e condições da celebração do contrato prometido, que fez assinar o ofendido apesar de afirmar e convencer indevidamente o J… de que estava a vender o mesmo e este ultimo a comprá-lo.
30. Nele consta que o arguido obrigava-se a remeter o original dos documentos e a declaração de venda assinada por ele no dia 15/9/2013, o que estava impossibilitado de vir a cumprir.
31. O ofendido mais veio a realizar uma transferência bancária para a conta do arguido no montante de 258,93€ e para pagamento do valor do seguro da viatura que o arguido, falsamente, prometeu ir efectuar.
32. Nesse dia 15/9/2012 o ofendido K… levou consigo o veiculo Hyundai … matricula ….. sendo que o arguido, apesar de ter apresentado a pagamento oito cheques entre Outubro e Dezembro de 2012 e beneficiado da quantia titulada pelos mesmos no montante de 1.200€, continuou a afirmar inveridicamente por correio electrónico ao ofendido que estava a tratar de toda a documentação do referido veículo para assim o poder legalizar e o colocar em nome do ofendido.
33. O veiculo em causa veio a ser apreendido pela Policia Judiciária em 12/12/2012 e o ofendido cancelou os vintes cheques no montante de 3.000€ que ainda se encontravam em poder do arguido, por ter tomado conhecimento do engano em que se encontrava.
34. Ao agir da forma exposta, o arguido, fê-lo com a intenção alcançada de enganar deliberadamente E… sobre existência de todas as condições legais para a propriedade do mesmo ser transferida para o ofendido por efeito do contrato de compra e venda, além de lhe afiançar falsamente a celebração de contrato de compra e venda entre ambos e a existência de condições de circulação do mesmo de modo a convencê-lo a celebrar negócio de compra e venda do veículo automóvel acima identificado e a entregar-lhe, por causa desse engano, a titulo de preço, um veiculo automóvel avaliado em 800€ e a quantia pecuniária de 3.458,€ (pois veio a cancelar vinte cheques predatados no montante de 3.000€) , no montante patrimonial global de 4.258€ (800+1200+2000+258)que acarretaram ao ofendido prejuízo patrimonial por não poder reaver efectivamente essa quantia e ficar impossibilitado de circular legalmente com o veículo .
35. Desse modo, logrou obter ilegitimamente o mencionado veiculo do ofendido Toyota … e quantia monetária acima mencionada paga a titulo de preço pelo ofendido.
36. Determinou-se sempre de forma voluntária e consciente, com a intenção alcançada de obter para si vantagem económica a que se sabia sem direito, conhecendo bem que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
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37. Do relatório social ressuma que: “B… nasceu em França, país onde o pai se encontrava emigrado e a mãe residia desde a adolescência, sendo ambos de origem portuguesa. O pai dedicava-se ao comércio de obras de arte e antiguidades, atividade que permitia ao agregado uma situação económica confortável, mantendo-se a mãe, enquanto doméstica, mais dedicada ao cuidado dos filhos. O seu processo de crescimento foi marcado por um grave acidente de viação sofrido pelo pai, quando tinha cerca de 5 anos. Este acidente, para além de determinar um longo período de internamento e de recuperação, teve influência na dinâmica do agregado, uma vez que a figura paterna se constituía como mais próxima afetivamente, tendo a mãe uma postura mais distante. Nesta altura, a mãe passou a exercer atividade laboral, de modo a colmatar as necessidades do agregado, face à impossibilidade de o cônjuge trabalhar. Protagonizou uma adaptação ao contexto escolar dentro de padrões avaliados como normais ao nível da interação com os vários intervenientes na comunidade escolar, frequentando o sistema de ensino até terminar a licenciatura em ciências de gestão. No entanto, desde a adolescência mantinha atividade laboral com carácter sazonal, enquanto animador na edilidade onde a mãe trabalhava. Refere ter iniciado atividade empresarial aquando do termo do ensino secundário (1997/98), em regime de sociedade, dedicando-se à comercialização de telemóveis. Não obstante se ter tratado de uma atividade que caracteriza como muito rentável, o seu termo ocorreu ao fim de um ano e meio, por ausência do sócio para outro país. Dedicou-se depois aos estudos superiores, na área da gestão. Em 1999, ocorre o falecimento do pai, episódio que caracteriza como muito penoso no seu percurso pessoal, quer pela perda, quer pelos efeitos a nível familiar, causando inclusivamente o internamento da mãe em unidade especializada. Esta altura coincidiu com a decisão pessoal de se autonomizar do agregado de origem, por questões de proximidade com a faculdade onde estudava. Ainda durante o curso, trabalhou enquanto diretor de vendas numa empresa de telecomunicações, o que motivou a sua interrupção durante cerca de 1 ano. Retomou depois os estudos, tendo realizado estágio final numa entidade bancária, onde permaneceu durante alguns meses a trabalhar. Passou depois a trabalhar numa empresa de publicidade e marketing, onde permaneceu até 2006. Neste último ano, tendo adquirido um cargo de direção na empresa, encetou atividade paralela no grupo empresarial de um amigo, no ramo ótico, à qual gradualmente passou a dedicar-se em exclusividade. Veio a Portugal em 2007, na sequência da doença de uma familiar, altura em que conheceu a atual companheira, o que determinou a sua futura permanência neste país. Ainda regressou a França de modo a poder organizar a sua situação laboral, passando depois a residir definitivamente em Portugal. Revela-se uma pessoa focalizada na progressão profissional, procurando sempre novos desafios profissionais e oportunidades de negócio, caracterizando a sua atividade como financeiramente rentável, a qual lhe permitiu sempre ter um nível de vida confortável. Em Portugal, refere numa fase inicial ter-se dedicado à recuperação física e emocional da sua companheira, a qual se encontraria particularmente debilitada na sequência de um processo de divórcio e afastamento dos filhos. Em 2008, com a constituição de um agregado familiar com a companheira e filhos desta, reingressou no mercado laboral, na área da restauração, experiência que caracteriza como ruinosa a nível financeiro. Dedicou-se depois a vários projetos independentes, designadamente na comercialização de diversos artigos e serviços, com maior ou menor sucesso.
- B… encontrava-se a residir com a companheira e filhos desta, na Rua …, nº .. -Porto, desde Out 2011, tendo alterado de residência em Abril de 2013 para a Rua …, nº .. – Porto. A nível laboral, dedicava-se a negócios em vários ramos, designadamente arte e automóveis, para além da atividade de uma associação comercial que referia ter criado com o objetivo de promover o contacto entre a oferta e a procura de modo a criar oportunidades de negócio. Referia, nessa altura, auferir um rendimento que oscilava entre os 3 e os 5 mil euros mensais, sendo com este montante que fazia face às despesas inerentes à manutenção do agregado e habitação, pagando uma renda mensal de 1.250€. A companheira, enquanto designer, estava numa fase inicial de atividade por conta própria, dedicando-se à criação e comercialização de artigos de decoração, atividade esta que terá sido incrementada num passado próximo, com o auxílio do arguido, durante a sua permanência na habitação. O seu quotidiano decorria integrado em contexto familiar, circunscrevendo as suas rotinas à atividade laboral e ao convívio com pares, com a intenção de estabelecer a sua rede social de conhecimentos neste país, privilegiando a frequência de estabelecimentos de restauração e outros locais de lazer. Como projeto de vida, B… verbalizava a intenção de dar continuidade à empresa de design de peças de decoração, produzidas pela sua companheira, promovendo a sua comercialização.
- A impossibilidade de realização estruturada de entrevista ao arguido inviabiliza uma análise ponderada do impacto da situação jurídico-penal para o arguido. No âmbito do processo 407/12.0JAPRT do 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim, o arguido foi condenado pelos crimes de, falsificação de documentos, uso de documento falso, na forma continuada e burla qualificada, na forma tentada, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova. O acórdão transitou em julgado a 16 de junho de 2014. Estes serviços da DGRSP, equipa Porto penal 1, já iniciou diligências, tendo convocado o arguido para entrevista, a realizar no dia 9 de setembro, para a morada destes autos, com vista à elaboração do respetivo Plano de Reinserção Social, uma vez que o arguido não reside nesta morada, tendo esse facto sido comunicado aos respetivos autos. No âmbito do processo 2083/12.1TAMTS da Comarca de Aveiro – Stª Mª Feira -Instância Central 2ª Secção Criminal – J 3, o arguido tem julgamento agendado para o dia 27 de Abril de 2015, acusado de um crime de burla qualificada e um crime de falsificação ou contrafação de documento.
- em conclusão: A impossibilidade de realização de entrevista impede a real ponderação, análise e avaliação das necessidades, atuais de intervenção psicossocial relativamente ao mesmo”.
24- Do CRC constam as seguintes condenações:
. no processo 6942/09.0TDPRT, do 1º juízo Criminal do Porto, foi condenado por sentença de 15.03.2013, transitada em julgado, por crime de emissão de cheque sem provisão, por factos ocorridos em 2009, na pena de 30 dias de multa, e prisão subsdiária, tendo sido declarada extinta em 02.09.2013.
. no processo 407/12.0JAPRT, do 1º juízo Criminal do Tribunal judicial da Póvoa de Varzim, foi condenado por sentença de 02.05.2013, transitada em julgado, por crime de burla qualificada, na forma tentada e cinco crimes de falsificação de documento, por factos ocorridos em 09.03.2012, na pena única de 4 anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução.
. no processo 499/10.7GCSTR da instância Local-secção genérica-j1 do tribunal de Santarém, foi condenado por sentença de 13.01.2014,transitada em julgado, por crime de emissão de cheque sem provisão, por factos ocorridos em 06.08.2010 , na pena de 190 dias de multa, à taxa de 5euros.
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Factos não provados:
Caso I-
- que na sala da sua casa tinha encenado a existência de local de trabalho de advocacia com um computador, impressora e códigos em cima da mesa;
- Durante todo o encontro, o arguido repetia sucessivamente que não estava ali para enganar ninguém
PIC:
- que o veículo ficou degradado e não há possibilidade de reparação.

Estabelecida a base factual pelo acórdão em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente:

B.1. Nulidade insanáveis

Invoca o recorrente três circunstâncias que, em seu entender, consubstanciam nulidades insanáveis do processado: a alteração oficiosa de mandatário que lhe foi feita pelo tribunal e à sua revelia, a realização do julgamento na sua ausência e o facto de inexistir qualquer decisão que tenha considerado dispensada a presença do arguido na audiência.
Importa analisá-las de per si.
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A primeira questão é, como se disse, a alegada troca/substituição de mandatário constituído pelo arguido, o Drº D…, por defensor oficioso, a Drª L…, o que, invoca o recorrente, para além de ter influído, decisivamente, na marcha e desfecho do processo, traduz-se num atropelo inadmissível das mais basilares garantias de defesa de um arguido em processo penal e constitui uma nulidade insanável, nos termos do Artº 119 al. c) do CPP.
Percorrendo os autos, constata-se que aquando da constituição do ora recorrente como arguido, em 04/01/12, e no interrogatório que se seguiu, este foi assistido pelo Dr. D…, com escritório na Praça …, nº …, …..-…, Porto (Cfr. Fls. 97/99), sendo este causídico chamado aos autos pelo Srº Inspector da PJ, M…, titular do processo (Cfr. cota de Fls. 93).
Em 29/04/13 e 04/07/13, são lavradas cotas nos autos (Fls. 145/146), em que o referido Inspector consigna que tentou, sem sucesso, contactar com o Drº D…, defensor do arguido, no sentido de agendar novo interrogatório do mesmo, o qual viria a ter lugar em 15/11/13 (Cfr. Fls. 167), tendo o ora recorrente se feito acompanhar pelo mencionado Srº Advogado, interrogatório que, tal como o anterior, foi feito pelo referenciado Inspector e nas instalações da PJ.
Encerrado o inquérito e proferido despacho de acusação contra o arguido, determinou o M.P., em cumprimento do preceituado no Artº 64 nº3 do CPP, que se oficiasse à Ordem dos Advogados no sentido de indicar Advogado para a defesa daquele, aí se consignando que o indicado ficaria, desde logo, nomeado defensor oficioso, na sequência do que, foi indicada a Drª L…, que ficou a figurar como defensora oficiosa do arguido (Cfr. Fls. 226/274).
É contra esta postura processual do MP que o recorrente se insurge, alegando que já tinha defensor nos autos – o Drº D… – pelo que não haveria lugar à indicação de novo defensor, o que se traduziu, na prática, na ausência de uma verdadeira e eficaz defesa, assim se consubstanciado a nulidade que reputa de insanável.
Todavia, com o devido respeito, não tem razão.
Na verdade, a assistência prestada pelo Drº D… ao arguido no decurso do inquérito e que supra se descreveu, não era, por assim dizer, obrigatória, no sentido de decorrer de uma imposição da lei, nomeadamente, do plasmado nos nsº1 e 2 do Artº 64 do CPP.
A mesma apenas ocorreu por ser do interesse do arguido em ser assistido por defensor, primacialmente, da sua escolha, mas daí não resultava que o defensor em causa passasse a ser, necessariamente, o que interveio naquelas diligências de interrogatório, até porque do estado dos autos ainda não existia a obrigatoriedade da constituição de mandatário.
Esta só surge com a dedução da acusação, altura em que caberia ao arguido juntar aos autos procuração forense a constituir como seu mandatário o Drº D….
Não o tendo feito e sabendo-se que aos arguidos está vedada a escolha de defensor oficioso – em consequência da revogação do Artº 40 da Lei 30/04 de 29/06 operada pela Lei 47/07 de 28/08 – o MP limitou-se a cumprir o preceituado no Artº 64 nº3 do CPP, solicitando à Ordem dos Advogados, através da plataforma Sinoa, a indicação de defensor ao arguido.
Esta indicação, por sua vez, com expressa menção da identidade e domicílio profissional da defensora nomeada, foi notificada ao arguido, por via postal simples para a morada constante do TIR, não tendo o arguido, à mesma, manifestado qualquer oposição (Cfr. 275/276 e 284).
Esta postura processual, por parte do MP, é a exigida por lei e é, por isso, inatacável.
Acresce, que em todas as notificações judiciais efectuadas a partir daí, sempre ao arguido foi indicado o nome da defensora nomeada e tendo o julgamento decorrido na sua ausência, só quando foi pessoalmente notificado do acórdão condenatório, em 01/06/16, é que fez chegar aos autos procuração forense datada de 16/06/16, a favor de três Srsº Advogados, entres eles, o Drº D…, em consequência do que se declararam cessadas as funções da defensora oficiosa nomeada (Cfr. Fls. 476/477).
Nesta medida, só a partir de 16/06/16, data em que foi junta nos autos procuração a seu favor, é que o Drº D… se pode considerar Mandatário do arguido, que, até então, nos autos havia sido legalmente representado pela defensora oficiosa nomeada, como obrigava o nº3 do Artº 64 do CPP.
A verdade é que o arguido só reagiu a esta representação após ter sido notificado do acórdão condenatório, sendo seguro que logo aquando da nomeação da Drº L… como sua defensora, o arguido poderia ter obstado à mesma, juntando a procuração forense que veio a atravessar nos autos em 16/06/16.
A intervenção do Drº D… durante o inquérito ocorreu em consequência de o Srº Inspector da PJ titular do processo o conhecer como defensor do arguido e ter o seu número de telemóvel, pelo que o mesmo, em termos técnicos e rigorosos, não pode ser considerado como defensor ou mandatário do arguido, na medida em que não foi, em tal qualidade, indicado pela Ordem dos Advogados, nem o arguido juntou procuração aos autos, assim constituindo o necessário mandato.
A referida intervenção nunca foi formalizada através da competente procuração, pelo que, quando se tornou obrigatória a nomeação de defensor ao ora recorrente, o MP teve de recorrer ao mecanismo resultante do nº3 do Artº 64 do CPP, solicitando à Ordem dos Advogados a nomeação de defensor, obedecendo assim a indicação da Drª L…, nessa qualidade, a todos os requisitos legais impostos pelo Sistema de Acesso ao Direito e Tribunais.
O processado, a este nível, não revela, pelo exposto, qualquer nulidade e, muito menos, insanável, improcedendo a alegação do recorrente, nesta parte.
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A segunda nulidade é, como se referiu, o facto de se ter realizado o julgamento na ausência do arguido, e de o tribunal não ter levado a cabo qualquer diligência para assegurar a sua comparência, em manifesta violação do disposto no nº1 do Artº 333 do CPP, o que gera a nulidade insanável da audiência de julgamento e do seu processado posterior.
Ora, como bem reconhece o recorrente, o arguido não deu cumprimento à exigência legal do nº3 al. b) do Artº 196 do CPP, ou seja, a “obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado”, não tendo assim indicado ao tribunal que havia mudado de residência e que esta já não correspondia à que havia sido por si fornecida no TIR que prestou aquando da sua constituição como arguido a Fls. 100.
Ora, não tendo o arguido requerido qualquer outra alteração de morada, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 196 nº3 do CPP, o tribunal cumpriu com a lei, direccionando todas as notificações dos autos, por via postal simples, para a morada que o ora recorrente indicou como sendo aquela onde queria ser notificado, incluindo, naturalmente, a relativa à realização do julgamento.
Nessa medida, é juridicamente irrelevante que no processo haja notícia de outras possíveis moradas do arguido, pois como decorre do estatuído no Artº 196 do CPP, o arguido estava obrigado a comunicar aos autos qualquer alteração de morada para as futuras notificações processuais, sofrendo assim as consequências jurídico-processuais dessa postura negligente, incluindo, também, a realização do julgamento na sua ausência, nos termos do Artº 333 do CPP e para o qual se tem de considerar como regularmente notificado.
Como bem diz o M.P. na sua resposta ao recurso “O facto de haver notícia no processo de outras moradas do arguido não autoriza a que as notificações passem a ser feitas para esses novos locais se o arguido nada veio requerer aos autos com esse alcance e nem há notícia que tenha deixado de aí residir.
Esta última afirmação vale para o caso da notificação para a realização de julgamento na medida em que o arguido foi notificado por via postal simples das datas agendadas para a realização de audiência de discussão e julgamento e o expediente não veio devolvido pelo que tal conjugado com a inexistência de qualquer outra comunicação oriunda do arguido não desencadeou obviamente por parte do Tribunal a realização de quaisquer diligências para se saber do paradeiro do arguido na medida em que nada havia no processo que fizesse supor que não estivesse notificado.
No pressuposto – inabalável – face ao documentado no processo – de que o arguido estava devidamente notificado – e estava por via postal simples! – e na ausência de qualquer comunicação realizada ao abrigo do preceituado no Artº117º, nº2 do C.P.P. é que o mesmo foi condenado em multa e ordenado que a audiência de julgamento tivesse início na sua ausência.”
Nesta medida, só ao arguido pode ser imputado a sua eventual não notificação para a audiência de julgamento, na medida em que não requereu qualquer alteração da morada para recepção das notificações do tribunal, apesar de saber ser esse o procedimento a seguir caso pretendesse eleger outra morada para o efeito.
Inexiste, por isso, qualquer procedimento irregular, ou nulo, ou qualquer incumprimento de regras que possa ser assacado aos serviços do tribunal.
O mesmo se diga, aliás, em relação à circunstância de o julgamento ter sido realizado na ausência do arguido sem que o tribunal a quo tivesse diligenciado para assegurar a sua presença.
No seu recurso e depois de citar alguns arestos que sufragavam a sua posição – no sentido de padecer de nulidade insanável a audiência realizada sem a presença do arguido, ainda que devidamente notificado, mas sem que o tribunal tenha tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência – o recorrente parece esquecer-se do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº9/2012 de 10/12/12, posterior àquelas decisões, proferido pelo STJ, e cuja jurisprudência obrigatória veio contrariar, frontalmente, o que ali se defendia.
Assumiu então o Supremo Tribunal de Justiça que:
Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente á mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo
Como se explicita na fundamentação desta decisão “A adoção das «medidas necessárias e legalmente admissíveis» para obter a comparência do arguido só se justifica, pois, quando o tribunal adiar o julgamento, por considerara presença do arguido indispensável, e destina -se a garantir a presença do mesmo na segunda data marcada para a audiência (artigo 312.º, n.º 2). É esse o sentido da previsão contida no n.º 1 do artigo 333.º Portanto, só quando há adiamento do julgamento, pela razão indicada, é possível, mediante as referidas medidas, impor ao arguido a sua presença.
O decretamento dessas medidas só tem sentido quando o arguido está obrigado a comparecer, já não quando a sua presença não é obrigatória
Estava assim o tribunal a quo em condições de actuar como actuou, ou seja, entendendo que a presença do arguido não era indispensável para a realização da audiência, proceder à realização da mesma sem ter necessidade levar a cabo quaisquer diligências para assegurar a sua comparência, não decorrendo, desta conduta processual, qualquer nulidade, nomeadamente, a invocada pelo recorrente.
Naufraga, por isso, também neste domínio, o recurso.
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A terceira e última nulidade insanável invocada pelo arguido está intimamente ligada com a anterior, na medida em que se reporta à inexistência de decisão do tribunal a quo no sentido de se considerar dispensável a presença do ora recorrente na audiência de julgamento.
Ainda aqui, não lhe assiste razão.
Com efeito, apesar de não constar expressamente da acta de julgamento a dispensabilidade do arguido para o início da audiência, a mesma decorre, implícita e tacitamente, dessa mesma circunstância, na medida em que só nesses termos, ou seja, só assumindo como não indispensável a presença do arguido, é que o tribunal a quo poderia realizar tal acto processual, sem encetar diligências tendentes a fazer nela comparecer o arguido.
Da postura processual do tribunal resulta, evidente, que o mesmo avaliou a ausência do arguido, aferiu sobre a sua dispensabilidade e, tendo concluindo pela verificação desta, deu início à audiência de julgamento.
Nenhuma nulidade foi, assim, praticada pelo tribunal a quo e mesmo que assim não se entendesse, o eventual vício decorrente dessa decisão, traduzido no facto de não constar da acta o requisito previsto no nº1 do Artº 333 do CPP para a realização do julgamento sem a presença do arguido, não consubstancia uma nulidade insanável, mas antes, uma nulidade passível de arguição, que há muito estaria sanada por não ter sido arguida no prazo legal por quem tinha legitimidade para o fazer, na medida em que a legal defensora do arguido e ora recorrente esteve presente durante toda a audiência.
Afastado está, pois, o cometimento de qualquer nulidade por parte do tribunal a quo, como pretendido pelo recorrente.

B.2 Conclusões na matéria de facto

Alega o recorrente que grande parte da matéria de facto é conclusiva, devendo, por isso, ser expurgada.
Valem, a este propósito, por inteiro, os ensinamentos do Acórdão desta Relação, datado de 13/03/13, disponível em www.dgsi.pt, e que agora se reproduzem: “Por outro lado, como se salienta no Ac. do STJ de 13.11.2007[17], pese embora no âmbito do processo civil, mas que, naturalmente, se estende ao processo penal, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo inteleto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas
Enquadrados pelo balizamento da questão que foi efetuado, consideramos que os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”
Também na situação sub judice, como é aliás tradicional de um caso de burla, a matéria de facto contêm expressões que, em si próprias, contêm matéria conclusiva, mas que é essencial para o desenho fáctico do processo, nomeadamente, no que respeita aos elementos objectivos típicos deste ilícito em concreto.
A não ser assim, a descrição factual daquele episódio de vida era insusceptível de ser conseguida ou traduzir-se-ia em meras abstracções de linguagem, sem qualquer correspondência com a realidade e incompreensíveis para o cidadão comum.
No mais, nesta sede, o arguido tece considerações em relação à assunção probatória efectuada pelo tribunal a quo, sem contudo apontar-lhe qualquer um dos vícios previstos no Artº 410 nº2 do CPP, os quais, como se sabe, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, e sem sequer impugnar a factualidade assumida pela instância recorrida, nos termos em que estava obrigado a fazê-lo, ou seja, ao abrigo do nº3 do Artº 412 do CPP, razão pela qual a mesma se tem de considerar como assente.
Apenas uma última nota, neste domínio, para deixar consignado que as contradições apontadas pelo recorrente à referida factualidade apenas o são, em seu entender, na medida em que este avalia os factos pela sua versão, ou seja, que os mesmos se devem ater a meras situações de incumprimento civil, sem qualquer relevância penal, análise que será efectuada no segmento seguinte.
Nessa medida, em termos factuais, as apontadas contradições são naturalmente inexistentes se a factualidade em causa for revestida do enquadramento jurídico-criminal que foi acolhido pelo tribunal a quo.
Improcede assim, ainda aqui, o recurso.

B.3 Inexistência de crime de burla

Defende por fim o recorrente a inexistência dos crimes de burla pelos quais foi condenado, alegando, em síntese, que as situações descritas se resumem a meras questões de natureza civil, relacionadas com a compra e venda de veículos e com o incumprimento daí resultante, não tendo qualquer relevância penal, designadamente, sob o crime de burla.
Nesta parte, consta da decisão recorrida (transcrição):

III-Enquadramento jurídico-penal

Em relação ao crime de burla (simples e qualificada), que suscita, na prática, muitas dúvidas, por ser de natureza complexa, importa relembrar os elementos que o integram e interpretá-los correctamente.
Dispõe o artigo 217.º, n.º 1 do C. Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Este crime é constituído pelos seguintes elementos:
--intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;
--uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado;
--para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
O crime de burla tem como fim a protecção do património, globalmente considerado, afastando-se assim das teses que reconduzem o bem jurídico da burla à lealdade, transparência, boa fé ou verdade das transacções.
Para que se verifique a consumação deste tipo legal de crime necessário se torna a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro[1].
A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento, a qual se traduz na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. Sendo assim, não basta a simples utilização de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Por outro lado, também não
se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos que decorrem os prejuízos patrimoniais[2].
O erro do sujeito passivo deverá ser provocado astuciosamente, pressupondo um comportamento que - pelo seu especial engenho ou astúcia que reveste -, se mostre susceptível de iludir o lesado, devendo este advérbio ser entendido como uma mentira qualificada[3].
Do ponto de vista do preenchimento do elemento subjectivo do tipo, estamos perante um delito de intenção, em que não basta o dolo de causar um prejuízo patrimonial ao sujeito passivo ou a terceiro, sendo ainda necessário que o agente tenha a intenção de conseguir, através da sua conduta específica, um enriquecimento ilegítimo próprio ou alheio.
Ainda sobre o crime de burla José António Barreiros in “Crimes contra o património”, pág. 152/153 ensina que “Quanto ao elemento subjectivo exige-se também um “dolo específico”, no caso o dolo de enriquecimento ilegítimo, o qual haverá de animar a conduta do agente, embora não tenha que se verificar necessariamente tal resultado.(..)”
E acrescenta, a este propósito, que “A exigibilidade do dolo específico faz com que, na ausência de intenção de enriquecimento, haja a inexistência do próprio crime e não uma mera tentativa do mesmo. Se a intenção do agente - que no mais pode praticar todos os actos executivos de burla - for outra que não a de enriquecer de modo ilegítimo, sendo, por exemplo, a de prejudicar - na forma de dolo de dano - a sua vítima, não há burla.”
É que este elemento configura, nas palavras de Souto de Moura, um dolo antecedente, ou pelo menos contemporâneo do início da acção (…). A intenção em foco tem que anteceder a entrega (ou transferência de bens ou valores), e tem também que presidir à actuação do arguido desde o seu início - v. Ac. STJ de 24/0/2008 in www.dgsi.pt/jstj.
Também Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pá. 297-8) e citado in Ac do STJ de 04.10.2007 (colhido dgsi.pt) lembra que foram sugeridos vários critérios para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal.
«Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio etc. Afirma Hungria que, “tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais. orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude”. Na verdade; não há diferença de natureza, antológica, entre a fraude civil e a penal; Não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões (JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo (RT 543/347-348).
E acrescenta este Autor: «tem-se entendida que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT423/344) Isso, porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima (RT329/121), Mas é comum nas transacções civis ou comerciais certa malícia entre as partes, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efectuar operação mais vantajosa. Mesmo em tais hipóteses, o que, se tem é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento, com as consequentes perdas e danos (arts. 147, II, e 1.103 do CC), não, porém, do dolo configurador do estelionato (RT 547l34g) Não há crime na ausência de fraude, e o mero descumprimento do contrato, mesmo doloso, é mero ilícito civil (JTACrSP 49/173, 50/79, 51/405, RT 423/394, RTJ 93/978) (...).
Configura-se o crime: (...) na obtenção de financiamento com garantia fiduciária inexistente; na compra a crédito com nome falso (JTACrSP 59/261, 62/171); na inadimplência contratual preconcebida (JTACRSP 44/166) etc.» (in AC STJ de 4.10.2007-relator: Juiz Conselheiro, Dr. Simas Santos).
Na distinção do ilícito civil, aquele mesmo relator Dr. Simas Santos conclui que há fraude penal:
--quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico;
--quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;
--quando se verifica uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;
--quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scéne para iludir;
--quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;
--quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio - v. Ac. STJ de 04/10/2007 in www.dgsi.pt/jstj.
Ora, no caso vertente, provou-se que:
- no caso I, a intenção do arguido na realização daquele contrato de compra e venda do veículo ao ofendido, foi ab initio de incumprir aquele contrato, porquanto dos factos provados retirou-se a conclusão de que o arguido nunca quis cumprir a prestação económica- o preço, tudo por forma a obter um enriquecimento ilícito, ou seja, obter o veículo sem pagar o preço para posteriormente vende-lo, como fez no caso II e obter vantagem patrimonial (ou então para negociar com o ofendido C… para que este lhe entregasse 1.500 euros a troco da devolução do veículo, alegando várias causas de anulação do contrato, as quais se revelaram falsas e apenas trazidas à colação para que mais uma vez o arguido se locupletasse à custa do ofendido com despesas ficticias. Para o efeito, usou de engano e astúcia, criando uma mise-en-scene, de ser advogado e empresário, atividades essas comprovadamente não exercidas pelo arguido ou apenas ficticiamente, para dar a aparência de credibilidade e confiança, inclusive emitiu um cheque da dita empresa virtual, o qual veio a revelar-se não ter fundos ( vide na jurisprudência caso semelhante: Ac do STJ de 10.05.2000, citado in Ac do STJ de 04.10.2007:compra de veículo paga com cheque de conta cancelada). Igualmente todas as ações para justificar a anulação do negócio jurídico, de modo a receber quantia ilegítima, foram um verdadeiro engodo para reforçar a aparência das boas intenções de anular o negócio por culpa da contraparte, e no limite o arguido ficaria ou com o carro ( e sem o pagar) ou com a dita quantia de 1.500 euros. Daí fazer parte do engodo não querer os documentos na sua posse ( dando igualmente a aparência da lealdade da sua conduta), pois para o arguido não eram os mesmos importantes, porquanto o arguido nunca quis comprar nem circular com o veículo, mas tão somente ter um veículo para vender fraudulentamente a terceiro, como fez com o ofendido E… e assim, praticar mais uma burla. Destarte, o arguido, com tal postura, fez crer ao ofendido C… que os dados que contratou correspondiam à realidade e, que portanto, deveriam ser prestadas as obrigações, parte a parte, cumprindo o ofendido a sua: a entrega do veículo ao arguido.
Assim sendo, o engenho e astúcia utilizado pelo arguido determinou o erro e engano do ofendido C… que aceitou contratar com o arguido julgando que existia de parte a parte vontade de contratar, e nessa medida, cumpriu a sua obrigação de entrega do veículo, tendo ocorrido prejuízo para o mesmo pelo valor/preço do veículo e que nunca recebeu.
Temos então, o engenho e astúcia utilizado pelo arguido que determinou o erro do ofendido C… no caso I e posteriormente do ofendido E… no caso II, que pagou parte do preço do veículo, tudo no valor de €4.258, e nessa medida ocorreu o prejuízo deste ofendido de igual valor à quantia que foi paga e do ofendido C… de valor igual ao veículo e cujo preço nunca recebeu.
Com efeito, ainda no caso II, dir-se-á que ocorreu o pagamento do valor total de €4.258 por parte do ofendido E… pela compra e venda do mesmo veículo, negócio realizado com o arguido, o qual se fez passar por legítimo proprietário do veículo em causa (de cor preta), entregando-lhe cópia dos documentos originais e uma declaração por si forjada da marca “Hyundai” a certificar a circulação do veículo, e ali declarando que o mesmo tinha cor …, e que pintou de preto, quando na realidade a sua cor era “…”, pelo que com tal atuação criou, astuciosamente um erro no ofendido E… que recebeu o veículo e desconhecia o teor do registo original, tudo por forma a fazê-lo crer que o negócio jurídico em causa correspondia à realidade e, que portanto, deveria ser pago o preço do veículo ao arguido, ocultando-lhe a impossibilidade originária de obter os documentos originais.
Assim sendo, o engenho e astúcia utilizado pelo arguido determinou o erro do ofendido E… e, nessa medida, ocorreu o prejuízo do mesmo de igual valor à quantia que foi paga, não podendo circular com o veículo sem documentos originais, sendo certo que o veículo encontra-se apreendido à ordem dos pressentes autos.
Assim sendo, temos a prática pelo arguido, objectiva e subjectivamente, atento o valor dos mesmos, de 2 crimes de burla simples p e p pelo art. 217º do C.P.

Diz o Artº 217 do C. Penal que:
«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa»
Atenta esta asserção normativa, em tudo idêntica aliás, à cristalizada no C. Penal de 1982, facilmente se delimitam os elementos típicos de um crime de burla:
- a intenção do agente de obter, para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo;
- que movido por esse objectivo, o agente tenha actuado com astúcia e desta forma, induza em erro ou em engano sobre factos, a pessoa ofendida;
- que esta, assim determinada pela conduta do agente, pratique actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.
Atentos estes elementos típicos estruturais, no sentido de serem tais vertentes que enformam o delito em análise, outras considerações são importantes com vista à melhor delimitação do crime de burla tal como ele está consagrado no C. Penal.
Importa desde logo atentar no valor jurídico protegido pela incriminação do crime de burla, para se poder entender qual a unidade de conjunto destes vários elementos.
Ora, o valor jurídico fundamentalmente protegido pela incriminação é o património do ofendido globalmente considerado e entendido, numa perspectiva jurídico-criminal, ou seja, onde caiba, não só, a soma de todos os valores económicos e juridicamente protegidos, mas que os mesmos mereçam a censura penal e por isso estejam abrangidos pela necessária incriminação.
Na verdade, ao lado das outras duas possibilidades de definição do valor património para efeitos de concretização do mesmo como bem jurídico fundador de uma norma penal, concretamente, as concepções meramente conjunto de direitos ou obrigações patrimoniais e a segunda, assumindo aquele pela mera massa de correspondentes valores que fossem economicamente computáveis, crê-se que a noção jurídico-criminal de património é a que melhor se adapta ao figurino legal.
Desta forma e na esteira dos ensinamentos colhidos no Comentário Conimbricense do C. Penal, Tomo II, pág. 275 e segs, importa ter em conta que a noção de património, tal como ela foi desenvolvida pelo pensamento civilístico, ainda que servindo necessariamente de referência para a hermenêutica penal, em caso algum a limita, pela necessidade de prever, em termos criminais, situações cujo tratamento meramente civil seria diverso.
Daí, a premência de ter uma noção de património para efeitos de subsunção legal ao tipo previsto no Artº 217 do C. Penal suficientemente ampla, isto é, uma concepção que assuma, em definitivo, essas duas vertentes do conceito: a definição civilística dos direitos subjectivos de carácter patrimonial, e a óptica penal, pela qual, o que importa é penalizar todo o comportamento de onde resulte uma diminuição de todo e qualquer direito, valor, bem, expectativa ou prestação patrimonial do ofendido.
Para além deste bem jurídico fundamental que preside à base da tutela penal, outros existem, ainda que subsidiariamente, ou, dito de outro forma, adjuvantemente, no sentido da cristalização da norma.
Com efeito, ao lado do património, a burla protege também os valores da lealdade, transparência e boa-fé das transacções, por um lado e por outro, a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correcta nas suas disposições de carácter patrimonial.
Dito de outra forma, em cada crime de burla, para além da ratio subjacente ao património, existe uma clara violação da confiança e da boa fé de alguém, que na relação com o agente actuou de forma leal e transparente julgando estar a actuar de forma correcta de acordo com o cenário factico que lhe foi induzido; por outro lado, ou, se se quiser, analisando a mesma realidade objectiva que é o erro do burlado mas agora sob o foco subjectivista, em cada um de nós existe o direito à livre disponibilidade do nosso acervo patrimonial, necessariamente assumida após aquilo que julgamos ser uma correcta apreciação dos factos, assente numa vera informação dos mesmos.
Esta matéria está intimamente relacionada com a certeza que para a tipificação do crime de burla se exige a participação do burlado, razão porque Ferrando Mantovani in Diritto Penale, Delitti contro il patrimonio, Padovo, 1989, pág. 47, diz que uma das distinções entre os crimes de burla e abuso de confiança é que este se sustenta numa relação jurídica entre o agente e a vítima, enquanto a burla assenta numa participação desta motivada pelo astucioso engano sobre factos que lhe foi causado pelo agente.
Importa agora, definidos que foram, os valores normativos que presidem à tipificação da burla como conceito criminal, analisar os seus elementos objectivos e subjectivos.
Nos primeiros, está todo o processo enganatório conduzido pelo agente e os actos da vítima provocados por aquele.
Nos segundos, militam a manipulação da intenção da vítima, que a levará a agir em prejuízo próprio ou de terceiro e a afectação intencional do agente, movido pelo objectivo de alterar a capacidade de determinação daquela, levando-a a praticar actos que, de outro modo, não praticaria.
Acresce ainda - mesmo que alguns autores, pretendam dizer que já não se está no domínio da acção típica mas do evento considerado em si mesmo e na dinâmica que este exige - o prejuízo patrimonial da vítima, como elemento imprescindível para o cometimento do crime e o nexo de causalidade, necessariamente duplo, entre o engano provocado pelo agente, os actos cometidos pela burlado e o prejuízo patrimonial deste.
Importa ainda dizer mais algumas palavras na definição dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, com vista à aferição do seu preenchimento do caso dos autos.
No que concerne ao processo enganatório, exige o legislador que o mesmo seja gerado através de astúcia, causando esta o engano do burlado sobre factos, o que implica, como é evidente, que se exige uma indução astuciosa para a prática de factos, todo um tipo de comportamentos, de maquinação, de manha, de artifício fraudulento, de cenário enganador, de montagem ardilosa, os quais, aos olhos de quem vai ser burlado, sustentem uma aparência de credibilidade e correcção de posturas, que a levam a cometer actos dos quais irá decorrer o necessário prejuízo patrimonial.
Não basta assim a mera mentira, desligada de quaisquer outros elementos, para se poder falar em criação astuciosa de factos em sede de burla.
Neste sentido, ensina o Prof. Beleza dos Santos in RLJ, ano 76, pág.23, que a mentira, dissimulação ou silêncio do agente devem ser astuciosos, mesmo que se limitem a determinar as condições de actuação do sujeito passivo ou a aproveitar condições que lhes confiram particular credibilidade.
Por fim e em sede de elementos subjectivos do tipo, se já foi dissecada a viciação volitiva da vítima, que é levada a actuar de forma a prejudicar-se a si própria ou a terceiro, importa acrescentar que a par do chamado dolo genérico - conhecimento dos elementos objectivos do tipo e vontade de realização típica - exposto no Artº 14 do C. Penal, em qualquer uma das suas modalidades, exige-se o já referido dolo específico, consubstanciado no referido propósito que anima o agente de obter um enriquecimento patrimonial que sabe não ser legítimo.
Este dolo de enriquecimento ilegítimo, ou delito de intenção, como lhe chamam os autores do já citado Comentário Conimbricense, faz parte integrante do tipo apesar de se referir a algo (o dito enriquecimento), que como já se disse, dele está ausente, como o ensinou o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 16/01/90, in C.J., XVI, Tomo 1, pág. 6.
Daí que, na ausência de intenção de enriquecimento inexista crime pela falta de um dos seus pressupostos de raiz subjectiva.
O agente tem de se mover com a intenção de obter o mencionado enriquecimento, sob pena de na ausência desse propósito não poder ser incriminado pela prática de um crime de burla.
Cotejada a dogmática jurídico-criminal relacionada com o crime dos autos, ter-se-á de concluir, com toda a evidência, pelo integral preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de burla em relação à descrita conduta do arguido.
Como resulta da matéria de facto provada, demonstrado ficou que o arguido, em relação ao ofendido C…, realizou um contrato de compra e venda de um jipe de matrícula estrangeira, nele se intitulando como advogado e empresário e tendo emitido um cheque de uma empresa de que se dizia sócio, factos e circunstâncias que eram todas elas, falsas e que se enquadravam, naturalmente, naquele plano pré-concebido pelo agente que visava criar a confiança no burlado, de forma convencê-lo que estava perante alguém que agia animado das mais leais e lícitas intenções.
Na formação dessa mise-en-scene, o arguido nem sequer quis ver o veículo em questão, ou colocá-lo em trabalhar, insistindo com o vendedor para que ficasse em poder dos respectivos documentos, reforçando assim a necessária aparência de honestidade.
No dia seguinte, o arguido telefonou ao ofendido dizendo que tinha de lhe pagar o valor de €1.500,00 com o reboque, porquanto o carro não funcionava, circunstâncias que eram, as duas, não correspondentes com a realidade, pois, não só o carro não tinha qualquer problema mecânico, como o ora recorrente não tinha utilizado reboque algum para o mudar do local onde estava estacionado.
Em seguida, o arguido enviou uma carta ao ofendido a considerar nulo o negócio por no contrato constar uma matrícula diferente, num algarismo, o que não foi aceite por aquele, até porque tinha sido o próprio arguido a elaborar o contrato escrito e por isso a enganar-se em relação à matrícula da viatura.
A apreciação conjugada destes factores torna evidente, atentas as regras da experiência comum, que o arguido nunca quis cumprir o contrato de compra e venda e proceder ao pagamento do preço - como nunca pagou, apesar de ter continuado na posse da viatura - desenhando-se a situação dos autos como um incumprimento contratual preconcebido, criado de forma astuciosa e levando o ofendido ao engano que lhe provocou o respectivo prejuízo patrimonial.
A conclusão da postura ardilosa do arguido é ainda reforçada pela sua conduta em relação ao segundo ofendido dos autos, E…, a quem o arguido tentou vender o veículo em questão, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que ainda não havia pago o respectivo preço ao seu vendedor, o ofendido C….
O arguido mudou a cor do veículo, colocou-o à venda no H…, fixou-lhe um preço e combinou com o ofendido E…, que nele se mostrou interessado, entregar-lhe os documentos originais aquando do pagamento do preço, quando sabia que tal era impossível, pois não os tinha, nem nunca os iria ter.
Para reforçar a aparência da legalidade da compra e venda, no âmbito da astúcia e do ardil típicos da burla, o arguido fez com o dito ofendido um contrato escrito, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, e entregou-lhe cópias dos documentos originais e por si certificadas com um carimbo, como se tivesse poderes para certificar documentos, bem como, uma declaração falsa da marca Hyundai.
Pretendeu assim o arguido, na prática, ficar com o veículo sem o pagar para posteriormente o vender, como efectivamente veio a proceder, para assim alcançar um lucro ilícito (e não o lucro do negócio), como resulta evidente da apreciação conjugada das duas situações dos autos, a referente ao ofendido C…, e a reportada ao ofendido E…, o que demonstra, à saciedade, o seu dolo de burla antecedente, formulado ab initio, o seu propósito de enganar, ardilosamente, os ofendidos em questão.
Nessa medida, como bem se afirma na decisão recorrida “ Igualmente todas as ações para justificar a anulação do negócio jurídico, de modo a receber quantia ilegítima, foram um verdadeiro engodo para reforçar a aparência das boas intenções de anular o negócio por culpa da contraparte, e no limite o arguido ficaria ou com o carro (e sem o pagar) ou com a dita quantia de 1.500 euros. Daí fazer parte do engodo não querer os documentos na sua posse (dando igualmente a aparência da lealdade da sua conduta), pois para o arguido não eram os mesmos importantes, porquanto o arguido nunca quis comprar nem circular com o veículo, mas tão somente ter um veículo para vender fraudulentamente a terceiro, como fez com o ofendido E… e assim, praticar mais uma burla. Destarte, o arguido, com tal postura, fez crer ao ofendido C… que os dados que contratou correspondiam à realidade e, que portanto, deveriam ser prestadas as obrigações, parte a parte, cumprindo o ofendido a sua: a entrega do veículo ao arguido.
Assim sendo, o engenho e astúcia utilizado pelo arguido determinou o erro e engano do ofendido C… que aceitou contratar com o arguido julgando que existia de parte a parte vontade de contratar, e nessa medida, cumpriu a sua obrigação de entrega do veículo, tendo ocorrido prejuízo para o mesmo pelo valor/preço do veículo e que nunca recebeu.”
No caso do ofendido E…, o seu prejuízo é evidente, na medida em que pagou parte do preço do veículo, tudo no valor de €4.258, que efectuou o negócio com o arguido no pressuposto de que este era o legítimo proprietário da viatura o que, como é evidente, nunca foi verdadeiro.
Assim sendo, a versão apresentada pelo recorrente de que ele é que é o ofendido na situação com E… é absolutamente incompreensível e sem nenhuma correspondência com os factos provados de onde resultam, com meridiana clareza, como se diz na decisão sindicada “…o engenho e astúcia utilizado pelo arguido determinou o erro do ofendido E… e, nessa medida, ocorreu o prejuízo do mesmo de igual valor à quantia que foi paga, não podendo circular com o veículo sem documentos originais, sendo certo que o veículo encontra-se apreendido à ordem dos pressentes autos.”
É, precisamente, o convencimento sobre uma determinada verdade assegurada pelo arguido, manobrando em equívoco sobre pressupostos que não eram verdadeiros, que levou os ofendidos às decisões que lhes provocaram prejuízo patrimonial com o seu correspondente benefício, sendo seguro, como se deu por provado, que apenas por existir esse erróneo convencimento é que aqueles actuaram como exposto.
Estão assim demonstrados, de forma cristalina, os pressupostos que compõe o crime de burla, tal como foram supra definidos, pelo que nenhuma dúvida se coloca quanto ao facto de o arguido ter cometido dois crimes de burla, p.p. pelo Artº 217 do C. Penal.
Nesta medida, improcede o recurso.
3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 4 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
xxx
Porto, 11 de Janeiro de 2017
Renato Barroso
Luís Coimbra
____
[1] Neste sentido, vide Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 275 e 276.
[2] Neste sentido, vide Ob. Cit., pág. 293.
[3] Neste sentido, vide Beleza dos Santos, RLJ, 76º, págs. 276, 278, 295, 322 e 323.