Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
693/16.7T8VCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: PENA DE PRISÃO
DESCONTO
MEDIDA DE COACÇÃO
INTERNAMENTO DO ARTIGO 200º/1AL. F) C.P. PENAL
Nº do Documento: RP20170927693/16.7T8VCD-A.P1
Data do Acordão: 09/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 47/2017, FLS.82-85)
Área Temática: .
Legislação Nacional: ART.º 200.º, N.º1, AL.ª F), C.P.PENAL
Sumário: Se nada obsta a que o internamento em instituição adequada, aplicado ao abrigo do artigo 201.º/1 C P Penal – que não depende do consentimento prévio do arguido - seja descontado, por força do artigo 80.º C Penal, na pena de prisão, já não é de proceder ao desconto do período de tempo de internamento do arguido em regime fechado, aplicado ao abrigo do disposto no artigo 200,º/1 alínea f) C P Penal – que depende do consentimento prévio do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 693/16.7T8VCD-A.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
1.1. O Ministério Público junto da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal de Vila do Conde, não se conformando com o despacho proferido em 31.05.2017, a fls. 304/5 do processo acima referenciado - que discordou da liquidação da pena proposta pelo MP, por entender que inexistia fundamento legal para proceder ao desconto, na pena de prisão aplicada ao arguido B…, do período de 4 meses e 26 dias correspondente ao tratamento médico a que o mesmo esteve sujeito, em regime fechado (tratamento da dependência de álcool e toxicodependência, prevista na al. al. f) do n.º 1 do art. 200º do C. P. Penal) - recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“I. Salvo o devido respeito por posição contrária, entendemos que deve ser descontado o período de 4 meses e 26 dias (13.03.2014 a 8.08.2014), período que o arguido B… esteve sujeito a tratamento da dependência de álcool e toxicodependência, prevista na al. al. f) do n.º 1 do art. 200º do C.P.Penal, em regime fechado, na Instituição “C…”, em Vila Real.
II. Sobre a natureza do instituto do desconto, e recurso à analogia para as privações de liberdade não previstas no art. 80º do C.Penal aderimos à declaração de voto do Conselheiro Rodrigues da Costa no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 3/2009, publicado no D.R.-I-Série, de 17.02.2009.
III. E seguindo a fundamentação no referido voto vencido, entendemos que também na medida de coação de sujeição a internamento, em regime fechado, está em causa uma verdadeira privação da liberdade (sendo ou não considerada prisão - não é isso que interessa), em tudo idêntica às demais contempladas no artigo 80.º do C.Penal.
IV. Tanto assim é, que a elevação apenas às medidas de coacção previstas nos artigos 200.º – Proibição e imposição de Condutas – e 201.º – Obrigação de Permanência na Habitação – do Código de Processo Penal são aplicáveis os restantes números do artigo 215.º, pois “Ubi lex non distinguit, non distinguere debemus”.
V. As medidas de coacção, porque restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, têm prazos legalmente tipificados. O artigo 218º do CPP, precisa, pois, com clareza aritmética, a definição do regime dos prazos de duração máxima aplicáveis às medidas de coacção nele contempladas. Assim o acórdão do STJ nº 4/2015, publicado no D.R., 1ª-Série, de 24.03.2015, fixou a seguinte jurisprudência: “Não são aplicáveis às medidas de coação referidas no art. 218.º, n.º 1, do CPP as elevações de prazo previstas no art. 215.º, n.os 2, 3 e 5 do mesmo diploma.”.
VI. A isto juntam - se as características da fase processual em que decorre tal privação da liberdade, uma fase de incerteza quanto à comprovação do facto ilícito típico, coberta pelo princípio da presunção de inocência. Nessa medida, estamos perante uma lacuna, que importa preencher, mediante o recurso ao aludido normativo, por via da analogia, legítima porque favorável ao agente.
VII. Não constituindo o artigo 80º, n.º 1, do C. Penal, norma incriminatória ou definidora de qualquer estado de perigosidade ou determinativa de correspondente pena ou medida de segurança, não pode deixar de ser tida como uma daquelas «normas negativas» que garante ou favorece os direitos das pessoas, pelo que não suscita objecção de princípio a sua aplicação analógica.
VIII. Em suma, entendemos que deve proceder-se ao “desconto” por existir uma identidade material entre a sujeição a tratamento, em regime fechado e as privações de liberdade previstas no art. 80º do C. Penal.
IX. Do que se trata é de procurar assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).
X. Daí que o princípio penal geral do “desconto” encontre previsão nos arts. 80º a 82º do C. Penal. Este “princípio fundamental” (e, não, uma regra de excepção, que, essa sim, poderia colocar entraves à analogia) abrange “não apenas a prisão preventiva mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto” (Eduardo Correia, loc. cit.).
XI. É certo que inexiste uma ausência de previsão legal expressa para o desconto em causa. Nos arts. 80º a 82º (que constituem a Secção IV do Capítulo IV do Código Penal que tem a epígrafe de “Desconto”) não se encontra realmente enunciada, de modo expressão, o internamento, em regime fechado.
Mas o elemento literal de interpretação não é aqui decisivo. Da omissão assinalada não resulta que a intenção do legislador tenha sido a de excluir da norma e retirar do princípio geral que consagra (o princípio do desconto) a sujeição a internamento, em regime fechado. Esta norma não é uma norma excepcional, que consagre uma regra ou solução de excepção.
A ausência de consagração legal expressa da sujeição a internamento, em regime fechado, na previsão do art. 80º do C. Penal não constitui, pois, argumento inequívoco que afaste a sua aplicação e que obste ao desconto no presente caso.
XII. Afigura-se-nos que a sujeição a internamento, em regime fechado, tal como a detenção, prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação servem finalidades de medida de coacção (finalidades de natureza exclusivamente cautelar).
Ora, se em relação a estas medidas a lei determina que se proceda ao desconto (das medidas de coacção no cumprimento da pena), desconto imposto pela mera decorrência da identidade fáctica de que decorre a privação da liberdade, como justificar então a exclusão do desconto num caso como o em análise? Num caso em que é de reconhecer tanto a identidade material das medidas como ainda a homologia das suas finalidades.
XIII. De tudo o que se deixa exposto resulta que entendemos proceder-se ao desconto de 4 meses e 26 dias, correspondente ao período de duração da sujeição do arguido B… a tratamento da dependência de álcool e toxicodependência, prevista na al. al. f) do n.º 1 do art. 200º do C. P. Penal, em regime fechado, na Instituição “C…”, em Vila Real
XIV. Por mera hipótese, caso assim não se entenda, o tempo de “detenção” para interrogatório do arguido e detenção para condução ao internamento, ocorrido no dia 13.04.2014, tem de ser descontado, por inteiro, no cumprimento da pena de prisão aplicada, conforme expressamente previsto no artigo 80º, nº 1, do C. Penal, reformulando-se a liquidação efectuada no despacho judicial recorrido.”
1.3. Não foi apresentada resposta ao recurso.
1.4. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1.5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, 2 do CPP.
1.6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A decisão recorrida é do seguinte teor (transcrição):
Discorda-se da douta liquidação que antecede, na parte em que procedeu ao desconto, na pena de prisão em que o arguido foi condenado, do período de 4 meses e 26 dias, correspondente ao tratamento médico a que o arguido esteve sujeito, em regime fechado, entre 13/3/2014 e 8/8/2014, no processo 505/ 13.3PAPVZ.
Com efeito, o Artigo 80° do Código Penal prevê (taxativamente) o desconto no cumprimento da pena de prisão apenas nas situações de detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação.
Ora, como resulta da fundamentação da douta promoção do MP, que no aludido processo n° 505/13.3PAPVZ requereu a aplicação ao arguido da sujeição deste a tratamento médico em regime fechado (cfr. a certidão desse processo junta a estes autos, designadamente a fls. 200), tal pretensão, que veio a ser acolhida pelo JIC, fundou-se no disposto na alínea f) do n° 1 do Artigo 2000 do Código de Processo Penal. Tendo aí sido invocado, para fundamentar tal medida, que a mesma "(…) é a única alternativa a outras medidas mais gravosas, detentivas da sua liberdade (…)".
Como tal, por a referida medida de tratamento médico, em regime fechado, que foi aplicada ao arguido, não constituir detenção, prisão preventiva, nem obrigação de permanência na habitação, não há fundamento legal para descontar o período de duração dessa medida de coacção na pena única de prisão em que o arguido foi condenado.
Deste modo, apenas há que descontar, nos termos do Artigo 80°, n° 1, do Código Penal, os 3 dias de detenção sofridos pelo arguido no aludido processo n° 505/13.3PAPVZ.
Assim sendo, o arguido atingirá:
- o meio da pena em 20/8/2019;
- os 2/3 da pena em 20/5/2020; e
- o termo da pena em 20/ 11/2021.
Notifique (Artigo 477°, n° 4, do Código de Processo Penal) e solicite ao arguido, à DGRS, à DGSP e ao E.P que informem se têm conhecimento de alguma privação da liberdade que haja de ser descontada nos termos do Artigo 80° do Código Penal.
Matosinhos, d.s.
2.2. Matéria de Direito
É objecto do presente recurso o despacho (proferido a fls. 62 dos autos) que discordou da liquidação da pena proposta pelo MP, por entender que inexistia fundamento legal para proceder ao desconto, na pena de prisão aplicada ao arguido B…, do período de 4 meses e 26 dias correspondente ao tratamento médico a que o mesmo esteve sujeito, em regime fechado, na Instituição “C…”, em Vila Real (tratamento da dependência de álcool e toxico -dependência, prevista na al. al. f) do n.º 1 do art. 200º do C. P. Penal)
A única questão a decidir é pois a de saber se o período de tempo durante o qual o arguido esteve em cumprimento da imposição prevista no art. 200º, 1, al. f) do CPP, em regime fechado (4 meses e 26 dias), para tratamento de dependência, é relevante para o desconto, no cumprimento da pena de prisão aplicada ao arguido, nos termos do art. 80º do C. Penal.
Para a análise da questão, importa transcrever o citado artigo 80º do C. Penal que, na Secção IV, relativa ao “Desconto”, dispõe:
“1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
2 - Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de um dia de privação da liberdade por, pelo menos, um dia de multa.”
O despacho recorrido entendeu que a enumeração das medidas processuais que podem ser descontadas no cumprimento da pena de prisão é taxativa e, portanto, não constando do respectivo elenco a imposição/sujeição a tratamento médico, em regime fechado, prevista no art. 200º, 1, f) do CPP, a mesma não podia ser descontada, por falta de base legal.
O MP/recorrente sustenta que a falta de enumeração de tal medida, no texto legal, não deve obstar a que se proceda ao respectivo o desconto. Argumenta no essencial que a sujeição a internamento, em regime fechado, tal como a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação, serve finalidades de medida de coacção, isto é, finalidades de natureza exclusivamente cautelar. Daí que, (continue o recorrente) “ (…) se em relação a estas medidas a lei determina que se proceda ao desconto (das medidas de coacção no cumprimento da pena), desconto imposto pela mera decorrência da identidade fáctica de que decorre a privação da liberdade, como justificar então a exclusão do desconto num caso como o em análise? Num caso em que é de reconhecer tanto a identidade material das medidas como ainda a homologia das suas finalidades”. Pretende assim a aplicação analógica do art. 80º, 1 do C. Penal, fundando tal analogia na identidade material das medidas em causa (privação da liberdade) e das suas finalidades.
Vejamos.
O artigo 80º do Cód. Penal não prevê, em termos literais, o desconto, no cumprimento da pena de prisão, do período de tempo em que o arguido esteve sujeito à medida processual prevista no art. 200º, 1, f) do CPP. Portanto, a aplicação do regime ali previsto apenas poderia ocorrer por interpretação extensiva ou integração analógica.
Não estamos seguramente – nem o MP sustenta tal hipótese - perante a possibilidade de estender a aplicação do art. 80º, 1 do C. Penal a outras situações ali não previstas, desde logo porque não há razões para crer que o legislador, na letra do artigo, disse menos do que aquilo que, de acordo com os demais elementos da interpretação, queria dizer (interpretação extensiva). O legislador teve o cuidado de enumerar as medidas processuais relevantes para o desconto - detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação - não sendo visível que tenha querido dizer todas as medidas de coacção em que o arguido sofre privação de liberdade.
A aplicação analógica do referido preceito já é mais discutível, sendo que, como refere o MP, a mesma não é proibida, desde que a favor do arguido ou condenado. Importa, todavia, saber se (i) existe identidade das medidas previstas no art. 80º do C.P e na imposição da conduta referida no art. 200º, 1, f) CPP e (ii) se a razão que subjaz ao desconto das medidas processuais previstas no art. 80ª é idêntica à da medida não prevista (internamento), de modo a verificar-se existir ali uma lacuna a necessitar de preenchimento para, desse modo, garantir a unidade e coerência da Ordem Jurídica.
Apesar de a questão não ter uma resposta imediata, julgamos que há uma diferença importante entre as medidas previstas no art. 80º do C.P e as imposições de conduta previstas no art. 200º, 1, f) do CPP, qual seja, a do prévio consentimento do arguido. Este aspecto é determinante, a nosso ver, uma vez que em todas as situações previstas no art. 80º do C.P o arguido é sujeito a elas, ainda que não preste o seu consentimento. Ou seja, a razão justificativa (do desconto) que serviu para unificar as medidas legalmente previstas - privação da liberdade sem o consentimento do arguido - não se verifica na medida prevista no art. 200º, 1, f) do CPP. Não existe, assim, razão para a pretendida aplicação analógica, desde logo porque as situações previstas e não previstas no C.P não são análogas num elemento essencial: nuns casos (detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação),o arguido é sujeito a tais medidas, queira ou não queira; no outro caso (medida prevista no art. 200º, 1, f) do CPP), o arguido só é sujeito à mesma com consentimento prévio. E não se diga que a obrigação de permanência na habitação carece de autorização do arguido, porque isso não é verdade. O que carece de autorização é a fiscalização por meios electrónicos (art. 4º, nº 1, da Lei n.º 33/2010, de 02 de Setembro) e não a imposição da medida de coacção.
Nem se argumente com o disposto no art 201º do CPP que, sob a epígrafe “obrigação de permanência na habitação”, prevê também o internamento em instituição adequada. Com efeito, o internamento previsto neste artigo não depende do consentimento prévio do arguido e, portanto, nada obsta a que o mesmo, quando decretado ao abrigo do art. 201º do CPP, seja descontado, por força do art. 80º do C.P.
Finalmente, em matéria de cumprimento de penas de prisão justifica-se que, por razões de segurança, exista uma clara e objectiva definição do regime legal, evitando que interpretações diversas levem a que os condenados tenham afinal tratamento diferente.
Nestes termos, improcede a pretensão do MP (desconto, no cumprimento da pena de prisão, do período de internamento do arguido em regime fechado, ao abrigo do disposto no art. 200º, 1 f) do CPP), por não ser caso de aplicação analógica do art. 80º, 1 do C. Penal.
Importa ainda considerar um outro aspecto colocado pelo MP, na parte final da sua motivação, a título subsidiário, pretendendo que se desconte por inteiro o tempo de detenção do arguido para interrogatório, audição e condução à instituição, ocorrido no dia 13-04-2014 (1 dia). Também aqui o recurso deve ser julgado improcedente, uma vez que, na matéria de facto dada como assente no despacho recorrido e na promoção do MP de folhas 162 dos autos, apenas consta que o condenado sofreu detenção nos dias 23 a 25 de Novembro de 2013 e 2 de Janeiro de 2014, os quais foram efectivamente descontados no tempo de prisão a cumprir.
Impõe-se, assim, julgar o recurso totalmente improcedente.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas.

Porto, 27/09/2017
Élia São Pedro
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