Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2841/18.3T8LOU.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
AQUISIÇÃO POR USUCAPIÃO
POSSE
Nº do Documento: RP202010222841/18.3T8LOU.P1
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A existência no muro que separa dois prédios de proprietários distintos de duas aberturas onde estão colocados dois portões a deitar para um caminho que atravessa o outro prédio até à via pública não pode deixar de ser interpretado como um sinal ostensivo de que o proprietário dos portões os usa na convicção de ter um direito de servidão de passagem por esse caminho.
II - Para que a sua posse seja pública basta que o possuidor a exerça em condições notórias de normal utilização, que não o faça de forma encapotada ou dissimulada, apenas quando ninguém está a observar, sob anonimato ou às escondidas de todas as pessoas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:2841.18.3T8LOU.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º …….., residente em …, Lousada, instaurou acção judicial contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Maia, formulando contra esta os seguintes pedidos: condenação da ré a reconhecer o seu direito de propriedade sobre prédio que identifica no artigo 1.º da petição inicial e a reconhecer que este prédio beneficia de um direito de servidão de passagem que onera prédio contíguo da ré, referido em 11.º da petição, direito exercido sobre uma parcela de terreno com o comprimento de cerca de 150 metros e a largura de três metros, passando na confrontação norte do prédio onerado, prolongando-se por este prédio no sentido norte – sudeste até aos portões do prédio de que se arroga proprietário; condenação da ré a restituir tal faixa de terreno a tal uso, inviabilizado pela sua terraplanagem e movimentação de terras, com plantação posterior de vinha, repondo o leito dessa servidão, o que implicaria a subida desse leito junto aos referidos portões, de forma a permitir o acesso ao prédio do autor, devendo abster-se, no futuro, da prática de actos que perturbem ou violem o exercício desse direito.
Alegou para tanto que é proprietário de um prédio que confina a poente com um prédio pertencente à ré e no qual existia um caminho com cerca de 3 metros de largura e 150 metros de comprimento, em terra batida, pisada e trilhada pelo percurso de pessoas tractores e veículos de mercadorias por onde o autor e os seus ante possuidores acedem ao seu prédio, desde há mais de 30 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de beneficiarem de uma utilidade que onerava o prédio da ré, em proveito do prédio de sua invocada propriedade. A ré realizou trabalhos de terraplanagem, remoção de terras e plantação de vinha, alterando o traçado do caminho e impedindo a sua utilização pelo autor nos moldes até então existentes.
A ré contestou a acção pugnando pela respectiva improcedência, impugnando que o acesso ao quintal do prédio do autor se fizesse pelo caminho e do modo invocado pelo autor mas sim através do próprio prédio do autor até à Rua…, com a qual o prédio do autor confronta a nascente; mais alega que a abertura de dois portões para o seu prédio se fez por mera tolerância do anterior proprietário, seu falecido tio, C…, acrescentando ainda que a faixa de terreno em causa existiu simplesmente para uso dos utilizadores do seu terreno.
No decurso da audiência de julgamento foi proferido despacho consignando que «atendendo à posição assumida por D…, é esta admitida a intervir a título principal, no lado passivo».
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré de todos os pedidos.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I- O Apelante está convicto que o tribunal recorrido se equivocou quanto ao ponto 14º dos factos provados (por aquiescência dos seus proprietários) e à matéria de facto que não considerou demonstrada e que resulta da respectiva alínea A (que os ante possuidores do prédio referido em 1 utilizavam a faixa de terreno referida em 10 na convicção de que estavam a beneficiar de uma utilidade que onerava o prédio mencionado em 9, em proveito daquele prédio).
II- Sendo elementos estruturais da posse, o corpus (elemento objectivo) e o animus (elemento subjectivo), a existência do primeiro faz presumir a existência do segundo tal como resulta da presunção legal estatuída no artigo 1252º nº 2 do C.C.
III- Pode adquirir por usucapião quem tem o poder de facto correspondente ao direito real exercido e exteriorizado se a presunção não for ilidida, impondo-se a prova do contrário para ilidir a presunção legal consagrada no dito artigo 1252º nº 2 conforme estatui o artigo 350º nº 2 do C.C. (neste sentido acórdão uniformizador de jurisprudência de 14 de maio de 1996).
IV- O tribunal recorrido considerou, quanto a nós mal, que a ré e interveniente ilidiram a presunção legal plasmada no artigo 1252º nº 2 do C.C. ao dar como provado o que resulta do ponto 14º e em simultâneo ao dar como não demonstrado o que resulta da alínea A. dos factos não provados.
V- É incompreensível que o tribunal não tenha retirado, nenhuma ilação da existência de dois portões (um em cada socalco) na linha divisória nos quintais do prédio do autor que deitam directamente para a faixa de terreno por onde se processou o exercício do direito de servidão de passagem até à data em que a ré plantou a vinha que se encontra no local.
VI- As fotografias recolhidas pelo tribunal aquando da inspecção judicial ao local, demonstram a ancestralidade dos portões de mais de 30 anos, facto também atestado pela testemunha E… como resulta da fundamentação da sentença recorrida e do olhar cirúrgico e atento do próprio tribunal aquando da inspecção judicial ao local.
VII- A existência dos portões no prédio dominante, (prédio do A. ora apelante), há mais de 30 anos, a deitarem directamente para uma faixa de terreno, (do prédio da ré) pisada, trilhada que revela um serviço de passagem, é, (aliado aos demais sinais visíveis e permanentes) um sinal inequívoco da existência do direito de servidão de passagem em benefício do prédio do autor e a onerar o prédio para onde os portões deitam directamente.
VIII- A conformação por parte do titular do prédio serviente com a colocação e manutenção dos portões, no concreto local do prédio dominante, a deitar directamente para a faixa de terreno do seu destinada ao serviço de passagem, é também um sinal inequívoco de reconhecimento pelo menos tácito da existência do direito de servidão de passagem ou pelo menos um sinal de que concederá ou tolerará na sua constituição, pelo passar dos anos, pois de outro modo tinha quer ter existido reacção fosse ela judicial ou extrajudicial.
IX- Por si só, dos portões colocados no prédio do autor, mais propriamente na extrema dos dois quintais que deita directamente para a faixa de terreno existente no prédio da ré e interveniente afecta ao serviço de passagem, com a ancestralidade que resulta dos mesmos, deve dar-se como provado o elemento subjectivo da posse correspondente ao direito real de servidão de passagem, quer referente ao autor, quer à ante possuidora sua mãe e consequentemente a matéria de facto não demonstrada passar para o rol dos factos provados.
X- Ao dar-se como provada a factualidade da alínea A dos factos não demonstrados, obviamente sob pena de contradição ter-se-á que alterar a resposta dada ao ponto 14º da matéria de facto dada como provada.
XI- Já dissemos no corpo das alegações que em nosso entendimento há um lapso de escrita por parte do tribunal a quo quando refere na parte final do 1º parágrafo da página 6 da sentença recorrida “o referido em 12”, o que se pretendeu ali escrever foi “o referido em 14”.
XII- Se o tribunal ad quem entender não existir o referido lapso de escrita, então vislumbramos na sentença recorrida o vício da falta de fundamentação que a tornaria nula ao abrigo do artigo 615º nº 1 alínea b) do C.P.C. e que expressamente se argui para os devidos e legais efeitos.
XIII- Como o nosso entendimento é o da existência do lapso de escrita que se revela do contexto, iremos fazer a análise critica à resposta ao ponto 14º da matéria de facto dada como provada.
XIV- O tribunal criou a convicção do que resulta daquele ponto da matéria de facto dada como provado, no depoimento das testemunhas F…, gravado em suporte digital do dia 07-03-2019 com início às 11:56:14 horas e fim às 12:17:47 horas, G… gravado em suporte digital do dia 07-03-2019 com início às 15:14:35 horas e fim às 15:29:52 horas e H… gravado em suporte digital do dia 07-03-2019 com início às 15:30:40 horas e fim às 16:14:10 horas.
XV- Não cremos que o depoimento das aludidas testemunhas numa análise reflectida, amadurecida e critica consiga, em primeiro lugar ilidir a presunção legal de que goza o A. e consagrada no artigo 1252º nº 2 do C.C. e em segundo linha consiga a aguentar a objectividade dos sinais visíveis e permanentes que o próprio Tribunal constatou.
XVI- O tribunal a quo não teve qualquer dúvida da existência do elemento objectivo da posse, (corpus) na pessoa do A. e sua ante possuidora, durante mais de 30 anos, consequentemente devia presumir a existência do elemento subjectivo (animus) e considerar a aquisição do direito de servidão de passagem por usucapião.
XVII- Todavia sustentado no depoimento das identificadas testemunhas o tribunal considerou ilidida a aludida presunção legal.
XVIII- O depoimento das testemunhas e a sua razão de ciência estão num passado anterior aos 30 anos e como tal o seu conhecimento não acolhe os últimos 30 anos, em especial com os últimos 20 anos que são os que relevam para efeitos de aquisição por usucapião do direito de servidão de passagem fundamentada na posse ainda que de má-fé.
XIX- Já discorremos sobre o significado escorreito da existência dos portões no prédio dominante durante mais de trinta anos, bem assim dos demais sinais visíveis e permanentes no prédio serviente.
XX- A partir do momento em que se colocaram os portões em ferro nos quintais do prédio dominante (hoje do A.) e não houve por parte do titular do prédio serviente (hoje da R. e Interveniente) reacção a esse facto concludente de que se está a exercer um poder de facto correspondente ao direito de servidão de passagem, obviamente que a situação de aquiescência que poderia inicialmente ter existido, deixou de subsistir e passou a haver uma situação de posse em sentido estrito, onde o elemento intencional do exercício do direito real que o corpus já demonstrava, é inequívoco.
XXI- Nenhuma testemunha consegui iludir este facto.
XXII- A testemunha F…, foi trabalhador da ré, demonstrou quanto a nós, comprometimento com a sua versão, nomeadamente com o facto da utilização do caminho ser de favor.
XXIII- Apresentou-se nervoso e à falta de melhor adjectivo diremos que trapalhão e com evidentes contradições, foi a voz da ré sabia a lição e quando questionado se era verdade que a mãe do A. utilizava o caminho respondeu: Usava o caminho, como eu passar no terreno, o Senhor ter um terreno e eu passar a pé ou passar de carro e ninguém ligar.
XXIV- A testemunha na contra instância mostrou-se esguia, sem respostas directas, sinal evidente do seu comprometimento com a verdade.
XXV- A título de exemplo, vejam-se as passagens constantes nos minutos 10:40 a 11:20, 11:20 a 12:11, 12:11 a 12:30, 12:30 a 12:54, 12:56 a 13:22, 14:00 a 14:18, 14:30 a 15:00, 15:00 a 15:15, 15:40 a 16:00, 16:32 a 17:00, 20:42 a 21:20, já supra transcritos.
XXVI- Em conclusão o depoimento desta testemunha não pode haver-se como verdadeiro, muito menos como decisivo e de especial importância para a prova do vertido em 14º dos factos provados, apesar de se admitir que por referência há 53 anos atrás, a testemunha tenha referido que a mãe do A. usava o caminho por favor.
XXVII- O depoimento da testemunha G… se alguma importância pode ter é o de firmar a constituição do direito de servidão de passagem por usucapião que o A. ora Recorrente pretende ver reconhecido.
XXVIII- Começa esta testemunha por dizer ao tribunal que no local nunca existiu caminho nenhum para se passar, o caminho que existia era da própria mata, para dela se retirarem lenhas, matos e madeira.
XXIX- Acabou no entanto por admitir que a mãe e familiares do A. passavam lá mas não pediam a ninguém, na sua expressão “eles serviam-se pelo caminho de servidão da mata, mas sem ordem e continuou assim…”, “Depois um filho fez uma casa do outro lado e atravessava pelo caminho para ir ver a mãe”. “Eles atravessavam a mata da I… para se irem ver uns aos outros”. Tudo o que dizem, é tudo mentira porque lá nunca houve nada, “pois passavam mas não pediam a ninguém”. Nunca viu ninguém a opor-se a que eles lá passassem. Nunca lá foi colocado nenhum cadeado. Não vai ao local há mais de 30 anos. O conhecimento dos factos que trouxe ao Tribunal é pois de há 30 anos para trás. Os portões se foram colocados com ordem ou sem ordem não sabe (cf. minutos 04:40 a 05:10, 05:00 a 06:00, 06:10 a 07:25, 07:30 a 08:30, 08:30 a 08:50, 09:00 a 09:30, 10:00 a 10:45 e 13:20 a 14:30 do depoimento).
XXX- Não vemos como pôde o tribunal sustentar também neste depoimento a prova do que resulta vertido no ponto 14º dos factos provados.
XXXI- O depoimento da testemunha H…, pessoa com 76 anos e que foi caseiro da R. desde o ano de 1966 e fabricava a mata que parte com o prédio do A., ou seja cortava mato. Agora não é caseiro, mas continua a trabalhar para a R.
XXXII- A testemunha referiu que a mãe do A. já tinha uma cancela em madeira a sair directamente para o monte no tempo em que ele era caseiro do Sr Engenheiro I….
XXXIII- Admitiu que a mãe do A. e filhos passavam no local e nunca proibiu, nem fez qualquer reparo a essa passagem. Referiu ainda que o A. antes da construção da vinha entrava pelo monte adentro com o tractor.
XXXIV- Nunca proibiu a mãe ou o filho (A.) de utilizar o caminho o que leva a pressupor que tinham assimilado que a utilização que dele faziam era no âmbito de um direito doutro modo teria tido a mesma atitude que tinham quando encontrava as cabras no local (Cf. passagens constantes a minutos 00:20 a 02:25, 14:45 a 15:50, 15:50 a 17:00, 17:00 a 18:00, 22:00 a 24:00, 24:10 a 25:20, 27:00 a 28:40, 31:00 a 32:40 e 36:40 a 38:00 do depoimento).
XXXV- O depoimento desta testemunha não oferece nenhuma dúvida quanto à existência das cancelas na parede divisória dos quintais do prédio do A. há mais de trinta anos a deitar directamente para o espaço físico, onde se processava o serviço de passagem. A existência das cancelas no prédio dominante e a deitar directamente para o prédio serviente, passam diferentes proprietários do prédio serviente. O Engenheiro da Quinta I…, O Sr. J… da Fundição e agora a ré e interveniente.
XXXVI- As cancelas, aliado aos sinais visíveis e permanentes existentes no prédio da ré (trilho visível das fotografias aéreas) são factos demonstrativos da existência do direito de servidão de passagem e daí que seja incompreensível o que resulta provado do ponto 14 que deve passar para facto não provado.
XXXVII- A douta sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação pelo menos o preceituado no artigo 1252º nº 2 e 350º nº 2 do C.C.
Nestes termos e nos melhores de direito deve alterar-se a matéria de facto nos termos pugnados nas presentes alegações de recurso e em consequência revogar-se a sentença recorrida reconhecendo-se ao autor o direito de servidão de passagem a favor do seu prédio e a onerar o prédio da ré e interveniente nos termos peticionados, com o que se fará justiça.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso reclamam desta Relação que decida as seguintes questões:
i - Se deve ser alterada a decisão de julgar provado o facto do ponto 14 e de julgar não provado o único facto que assim foi julgado;
ii - Se em resultado da nova matéria de facto assente deve ser reconhecida a constituição por usucapião de um direito de servidão de passagem a favor do prédio do autor.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrita a aquisição, pelo autor, do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com quintal, sito na Rua…, n.º .., União das Freguesias de …, …, concelho de Lousada, inscrito na respectiva matriz no artigo 1720 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º 750 – ….
2. O autor adquiriu o prédio por compra e venda celebrada com B… e sua mulher, por escritura pública outorgada em 1 de Fevereiro de 2012 a folhas 102 do livro 23-A do Cartório a Notária K…, sito na Praça…, n.º …, em Lousada.
3. O registo da aquisição pelo autor do prédio atrás descrito efectuou-se pela ap. 933 de 01-02-12.
4. O autor e os ante possuidores há mais de 15 ou 20 anos que cultivam o quintal do aludido prédio, afecto à agricultura, preparando as terras, onde semeiam, plantam e colhem géneros agrícolas, cuidam das ramadas, podam, sulfatam e colhem uvas.
5. E habitam a casa, permitindo que outros a habitem, utilizando os seus anexos para a guarda de bens e alfaias agrícolas.
6. Atos que praticados à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, de forma ininterrupta, na convicção de que tal vem sido feito porque são proprietários e que não lesam interesses ou direitos alheios.
7. O prédio confronta a norte com L… e E…, nascente com via pública, sul com M… e poente com um prédio da ré.
8. Parte do quintal que compõe o prédio referido em 1 fica num socalco, num plano superior em relação à casa, e outra parte ao mesmo nível da casa, sendo que a parte do quintal que fica ao mesmo nível da casa se situa por detrás desse edifício.
9. As rés são donas do prédio rústico, actualmente vinha, sito no Lugar de I…, da União das Freguesias de …, …, concelho de Lousada, contíguo ao prédio referido em 1.
10. Havia um acesso à via pública do quintal do prédio referido em 1 que se fazia por uma faixa de terreno com a largura de cerca de 3 metros, que, iniciando-se na via pública localizada a norte do prédio das rés, se prolongava para o seu interior no sentido norte – sudeste, até ao dito quintal.
11. E onde a referida faixa de terreno passava junto do quintal do prédio referido em 1, existem duas entradas dotadas de portão, uma na parte do quintal localizada no socalco superior, e outra na parte do quintal disposta por detrás da casa.
12. Esse acesso tinha um comprimento de cerca de 150 metros, com leito em terra batida, pisada e trilhada pela passagem de pessoas e tractores e veículos de mercadorias, permitindo aceder ao quintal da casa que integra o prédio referido em 1.
13. Esta faixa de terreno foi utilizada pelos ante possuidores do prédio referido em 1 durante mais de 15, 20 ou 30 anos, à vista de toda a gente e sem oposição.
14. Por aquiescência dos seus proprietários.
15. Há cerca de 6 anos as rés efectuaram obras no prédio mencionado em 9 de terraplanagem e movimentação de terras, com vista à plantação de vinha.
16. Estas obras alteraram o traçado da faixa de terreno referida em 10, afundando o seu leito na zona das entradas para o quintal do prédio referido em 1.
17. Permitindo unicamente o acesso pedestre, e impedindo o acesso de tractores.
18. Desde a aquisição do prédio pelo autor, e até à realização das obras citadas em 15, este utilizava o caminho referido em 10 na convicção de que estavam a beneficiar de uma utilidade que onerava o prédio mencionado em 9, em proveito daquele prédio.
IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença:
O recorrente sustenta a dado momento das suas alegações que no caso de se entender que a referência feita na motivação da decisão sobre a matéria de facto ao facto do ponto 12 respeita efectivamente a esse facto e não ao facto do ponto 14, como em rigor lhe parece, a sentença recorrida será nula por falta de fundamentação uma vez que nessa eventualidade a mesma não apresenta a exposição dos motivos pelos quais o facto do ponto 14 foi julgado provado.
Independentemente de entendermos que os vícios da motivação da decisão sobre a matéria de facto são distintos dos vícios da sentença e que as deficiências daquela motivação não correspondem ao conceito de «falta de fundamentação» da sentença tal como o mesmo se encontra há muito definido para efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, cremos que assiste razão ao recorrente quando considera que a referência feita na motivação da decisão sobre a matéria de facto ao facto do ponto 12 é um mero lapso e que o Mmo. Juiz a quo se queria efectivamente referir ao facto do ponto 14.
Com efeito, depois de aludir aos depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor e ao resultado das observações que efectuou no decurso da inspecção judicial ao local, o Mmo. Juiz a quo refere que «…estas testemunhas mostraram conhecer unicamente a morfologia pretérita do caminho, a possibilidade de passagem, sem aparente oposição ou obstáculo físico, mas não o fundamento ou a motivação inerente a tal passagem».
Imediatamente a seguir aborda os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré «F…, filho de um antigo caseiro do prédio referido em 9 (deixando este o local há cerca de 53 anos) referindo a existência de um caminho que pertencia ao prédio, por onde se permitia que as pessoas passassem, e em especial das testemunhas G… e H…, anteriores caseiros deste prédio, respectivamente com 80 e 76 anos de idade, referindo a existência de um caminho de servidão da mata (do prédio citado em 9), por onde a progenitora do autor foi passando por mera anuência dos caseiros, em especial do segundo, com quem a mãe do autor mantinha uma boa relação – até de entreajuda –, para ir buscar estrume, jamais lhe sendo reconhecido qualquer direito. A abertura dos portões teria sido simplesmente tolerada pela presença dessa boa relação. O autor utilizaria o caminho nestes últimos tempos com alguns “abusos”, passando de tractor, declarou H…, o mais recente caseiro destas duas testemunhas, sendo advertido – e sem lhe pertencer qualquer direito a tal. E o tribunal creu nestes testemunhos, sendo especialmente enfático e esclarecedor o recebido de H…, pelo modo claro com que se exprimiu, revelando um conhecimento dos factos que mais nenhuma testemunha pôde igualar, auxiliando grandemente o tribunal a afastar o descrito em A, e a firmar o referido em 12, e também em 18
Esta exposição revela-nos que o Mmo. Juiz a quo procurava dessa forma justificar o «fundamento ou a motivação» da passagem que vamos encontrar precisamente na redacção dos pontos 14 e 18 da matéria de facto (bem como no facto julgado não provado), razão pela qual é legítimo interpretar a menção ao facto do ponto 12 como mero lapso de escrita e que o Mmo. Juiz a quo estava realmente a reportar-se ao facto do ponto 14 (aspecto que ele mesmo podia ter consignado quando admitiu o recurso, fazendo uma interpretação autêntica do texto da sua lavra).
Porque assim também o entendemos e iremos considerar não iremos apreciar a questão da nulidade da sentença, arguida de forma subsidiária apenas para a hipótese interpretativa que se afastou.
B] impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
O recorrente contesta a decisão de julgar provado o facto do ponto 14, no qual se afirma que a utilização do caminho pelos ante possuidores do prédio adquirido pelo autor era feita (há mais de 15, 20 ou 30 anos, à vista de toda a gente e sem oposição, segundo o facto antecedente e a que dá continuidade o ponto impugnado) «por aquiescência dos seus proprietários». Para o recorrente este facto deve ser julgado não provado.
Em simultâneo, o recorrente impugna a decisão de julgar não provado o seguinte facto: «os ante possuidores do prédio [adquirido pelo autor] utilizavam a faixa de terreno [o caminho] na convicção de que estavam a beneficiar de uma utilidade que onerava o prédio [da ré], em proveito daquele prédio.» Defende o recorrente que este facto deve ser julgado provado.
A decisão que nos cabe pressupõe em primeira linha que se compreenda o que pretendeu exactamente afirmar com a expressão «aquiescência» dos proprietários.
Com efeito, no decurso da fundamentação de direito da sentença e a propósito do animus possidendi, o Mmo. Juiz a quo afirma que o uso do «caminho teve sempre como base uma mera tolerância das rés e antecessores, e nunca uma aceitação por estes de um dever jurídico de conceder trânsito, como contraponto a um direito de passagem fundado, porventura, na sua passividade perante um claro e manifesto “assenhoreamento” desse direito por réu e antecessores. Estes simplesmente aproveitaram a permissão que lhes foi sendo concedida para, por mera graça, transitarem naquele espaço
Daqui parece resultar que o que se pretendeu assinalar no ponto 14 (descontado o lapso de se aludir ao “assenhoramento” pelo réu e antecessores quando certamente se tinha em mente o autor e antecessores) foi que a utilização do caminho pelos ante possuidores do prédio do autor, para passarem do e para o seu prédio, era feita por mera tolerância, por mera permissão graciosa dos proprietários do prédio sobre o qual essa utilização era feita.
Sucede que a expressão aquiescência tem o significado de consentimento, aceitação, adesão, anuência, assentimento, beneplácito ou concordância, palavras cujo significado é diferente da mera tolerância ou permissão graciosa. Nestas últimas palavras está presente a ideia de contemporizar, transigir sem conceder, suportar algo por mero favor ou perdão por não haver a obrigação de o tolerar, sentidos que faltam na expressão «aquiescência» cujo sentido é o de puro assentimento ou concordância.
No facto do ponto 13 o Mmo. Juiz a quo já tinha dado como provado que a utilização em causa era feita «à vista de toda a gente e sem oposição», ou seja, que era conhecida ou cognoscível dos proprietários do prédio serviente e que estes não opunham à mesma. Com o significado que efectivamente tem, o facto do ponto 14 era redundante, porque se a utilização era conhecida ou cognoscível e eles não lhe ofereciam oposição já se podia concluir que aceitavam, assentiam ou davam anuência a essa utilização. Portanto, o que o Mmo. Juiz a quo pretendeu consignar no facto do ponto 14 foi que isso ocorria por mera tolerância ou graça dos referidos proprietários.
A ler-se desse modo, já se compreende a impugnação da decisão sobre o facto do ponto 14 uma vez que nessa leitura ele é efectivamente prejudicial à pretensão do autor (na sua redacção literal entendemos que não seria).
O que está afinal em causa?
O autor invocou a constituição do direito de servidão de passagem por usucapião, alegando para o efeito a prática de actos materiais de posse com intenção da titularidade do direito.
O Mmo. Juiz a quo julgou provados os actos materiais e provado que a sua execução era feita à vista de toda a gente e sem oposição.
Relativamente ao autor o Mmo. Juiz a quo julgou ainda provado que ele fazia a utilização «na convicção de que estava a beneficiar de uma utilidade que onerava o prédio da ré em proveito do seu» (ponto 18), mas julgou não provado que o mesmo sucedesse com os antecessores do autor. A decisão de julgar provado o facto do ponto 14 filia-se nessa apreciação; para o julgador eles não tinham essa convicção porque a passagem lhes era facultada por mera tolerância dos proprietários do prédio onde se localizava o caminho.
O que cabe decidir em sede de matéria de facto é pois apenas se existem elementos para afirmar que os antecessores (e já não o autor, porque a ele não se refere a afirmação do ponto 14 e já vimos o que está provado em 18) não tinham a convicção de serem titulares de um direito de servidão de passagem por fazerem a passagem por mera tolerância dos proprietários do prédio do caminho.
Salvo o devido respeito e melhor opinião, a distinção introduzida pelo Mmo. Juiz a carece de justificação e é em si mesma contraditória. Não se compreende, por exemplo, como é que os proprietários do prédio do caminho haveriam de anuir à passagem dos antecessores do autor por mera tolerância e não haveriam de ter a mesma posição em relação à passagem do autor uma vez adquirida por este a proprietário do prédio!
Se eles entendiam que sobre o seu prédio não havia qualquer direito de passagem a favor do prédio indicado pelo autor, o mais natural era que eles mantivessem esse entendimento e postura relativamente a quem quer que o viesse a adquirir, não se vislumbrando fundamento para fazer a distinção em sede de matéria de facto.
Acresce que conforme resultou da audiência, pese embora o autor tenha adquirido a propriedade do prédio por acto entre vivos, antes disso o prédio pertencia ou era detido e explorado (não se esclareceu devidamente esse pormenor) pela mãe do autor. Por esse motivo, é evidente que o autor não podia ter um conhecimento ou uma convicção diferente da que tinha a sua mãe relativamente ao exercício passagem pelo caminho.
Existe, portanto, uma incongruência da matéria de facto que tem de ser ultrapassada.
Ouvida a gravação da audiência constata-se com facilidade que não foi produzido qualquer meio de prova que revele ou indicie qual era a atitude, posição ou entendimento dos proprietários do prédio onde existia o caminho relativamente à passagem pelo mesmo pela mãe do autor ou por este para acesso ao seu prédio.
A própria ré, ouvida em depoimento, apesar de ser filha e sobrinha dos anteriores proprietários aos quais sucedeu na titularidade do direito, evidenciou que nem ela sabe, por si ou das conversas com aqueles familiares, se os proprietários do prédio com os portões a deitar para o caminho têm direito de passagem sobre estes e, não podendo negar a existência dos portões nem o que os mesmos significam, argumenta a título puramente especulativo que é normal as pessoas aproveitarem-se do distanciamento dos proprietários vizinhos para criarem situações a que não têm direito, afirmando que andou a perguntar às pessoas que conhecem o local para saber quem por ali passava e a que título.
O que se tem por certo é que os proprietários nunca se opuseram à passagem pelo caminho de e para o prédio actualmente do autor. Tratava-se de pessoas que tinham a propriedade mas não tinham ocupações agrícolas, pelo que não exploravam o prédio por si mesmos, tendo entregado essa exploração a caseiros. Esse facto justifica o seu distanciamento em relação ao prédio e a possibilidade de eles não terem perfeita noção de tudo o que lá se passava. No entanto, os caseiros que exploravam a propriedade faziam-no com autorização e mediante contrato ou acordo com os proprietários pelo que se sentiriam naturalmente vinculados a informar os proprietários de algo que pudesse afectar o direito destes.
Nesse contexto, a existência no muro em pedras de granito que delimita ambas as propriedades de duas aberturas a cortar a vedação e permitir o acesso de uma para a outra e a colocação nas mesmas de dois portões de ferro com aspecto de estarem bem fixados em pilares de granito e não serem algo provisório ou mal acabado, ão, a nosso ver, numa perspectiva de análise técnica da prova, absolutamente determinantes para a decisão a tomar sobre a matéria de facto e não podiam em circunstância alguma ser desprezados nas conclusões a retirar.
A decisão recorrida, com todo o devido respeito, desprezou estes elementos indiciários, preferindo os depoimentos de três testemunhas arroladas pela ré apenas com fundamento em ter acreditado em tais depoimentos, esquecendo a enorme debilidade do meio de prova por declarações e a circunstância de ser extremamente fácil a qualquer testemunha afirmar o que lhe apetecer, sustentar que sabe o que afinal desconhece, que viu o que apenas lhe foi contado por terceiros, ou ainda, consciente ou inconscientemente, modificar ou deturpar os acontecimento que relata, e não equacionando sequer a dificuldade de detectar, avaliar e medir a credibilidade, a sinceridade, a segurança dos depoentes (aspectos que, como aqui sucedeu, são sistematicamente apresentados como decisivos para a formação da convicção mas cuja afirmação carece a maior parte das vezes de um suporte técnico ou científico bastante, de modo que as mais das vezes é a convicção que leva à sua afirmação em vez do contrário, como deve ser).
Em condições normais ninguém construiria aquelas aberturas e/ou colocaria aqueles portões se não fosse para os usar para passar para o prédio com que confinam. Quem os implantou não podia deixar de estar consciente de que o proprietário vizinho ou os seus caseiros iriam vê-los e saberiam interpretar o seu significado inequívoco e, consequentemente, se não houvesse direito de passagem, reagiriam contra a colocação dos portões colocando no seu prédio algo que impedisse o acesso (um muro, uma vala, um desnível, um obstáculo). Portanto, a colocação dos portões não pode deixar de ser interpretada como a afirmação da convicção da titularidade de um direito de passagem pelo caminho a que eles conduzem.
Por outro lado, tratando-se de um elemento perfeitamente visível e ostensivo quanto à intenção subjacente, o decurso de anos sem haver por parte dos proprietários confinantes uma reacção visível ao uso dos mesmos para passar sobre o seu prédio (a referida colocação de impedimentos à passagem) torna aquele indício absolutamente intransponível do ponto de vista probatório.
Os diversos depoimentos produzidos por iniciativa da ré não conseguem de forma alguma inverter essa conclusão probatória, seja pelas debilidades inerentes a este meio de prova, seja porque as suas afirmações são em grande medida incompatíveis com a dedução impelida pela existência dos dois portões, seja porque em bom rigor os mesmos nem sequer se mostram de melhor valia, com mais razão de ciência ou merecedores de mais credibilidade que os depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor que afirmaram factos reveladores de décadas de utilização dos portões para passar pelo caminho.
Acresce que as fotografias colhidas na inspecção judicial deixam claro que o muro de granito, as aberturas e os portões têm uma antiguidade superior à da aquisição da propriedade pelo autor. Aliás, várias testemunhas referiram que no tempo da mãe do autor antes dos portões já lá havia uma cancela de madeira que também permitia o acesso ao caminho.
Em conclusão, cremos que a prova produzida, em particular e decisivamente os documentos compostos por fotografias do local que mostram a existência e as características dos portões, obriga a julgar não provado o facto do ponto 14, isto é, não provado que a utilização do caminho pelos antecessores do autor tivesse lugar por aquiescência (rectius, por mera tolerância) dos proprietário do prédio do caminho), e provado o facto que a 1.ª instância julgou não provado.
Em consequência,
i- elimina-se da matéria de facto provada o facto do ponto 14;
ii- acrescenta-se ao respectivo rol o facto (que passa a ser o ponto 19) com a redacção seguinte: «Os antecessores do autor no prédio referido em 1 utilizavam o caminho referido em 10 na convicção de que estavam a beneficiar de uma utilidade que onerava o prédio mencionado em 9, em proveito daquele prédio
C] da matéria de direito:
Em sede de matéria de direito cumpre determinar o relevo jurídico da alteração factual para efeitos da procedência da pretensão do autor.
O autor formulou um primeiro pedido de condenação da ré a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio inscrito no registo predial em seu nome.
Na sentença recorrida, em sede de fundamentação de direito, o Mmo. Juiz a quo apreciou esse pedido e concluiu no sentido de estarem reunidas as condições para a respectiva procedência, o que se mostra inteiramente acertado sendo certo que a matéria de facto revela uma forma de aquisição derivada (a compra e venda), a inscrição no registo predial (com a inerente presunção não afastada de titularidade do direito inscrito), bem como o preenchimento dos requisitos para a aquisição originária do direito por usucapião em consequência da prática de actos de posse praticados publicamente (a qual por sua vez também faz presumir a titularidade do direito correspondente sem que esta presunção tenha sido afastada). Para além de que esse direito não foi impugnado pela ré nem foi alegado que esta praticou qualquer acto que o viole ou questione.
A questão da titularidade do direito de propriedade, porém, não está suscitada no presente recurso. Não obstante, devemos aqui referi-la e abordá-la uma vez que, de novo por lapso, a conclusão a que se chegou na fundamentação quanto à procedência desse pedido não se encontra reflectida e é mesmo contrariada pelo dispositivo da sentença recorrida no qual se julgou a acção (totalmente) improcedente, embora a seguir se absolva a ré (apenas) do pedido relativo ao direito de servidão.
Incorreu-se assim na nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, que deve aqui ser sanada ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 665.º do mesmo diploma. Impõe-se por isso revogar a sentença recorrida e, desde logo, julgar procedente o primeiro pedido do autor.
Passemos ao que verdadeiramente importa: se está constituído por usucapião um direito de servidão de passagem.
A causa de pedir que suporta o pedido de reconhecimento desse direito é constituída pelos factos integradores da usucapião enquanto forma de aquisição originária de um direito real de servidão de passagem. O que o autor pretende com esse pedido é o reconhecimento de que anda na posse pública e pacifica de um terreno alheio em termos de servidão de passagem e adquiriu por usucapião um direito de servidão de passagem com o objecto e conteúdo correspondentes a essa posse.
A servidão predial é o «encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente« (artigo 1543.º do Código Civil). A servidão é, assim, um direito real menor que pode ter por objecto quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (artigo 1544.º).
As servidões prediais podem ser constituídas por negócio jurídico consensual (contrato ou testamento) com efeitos reais e, com excepção das servidões não aparentes, por usucapião, considerando-se como não aparentes as que não se revelem por “sinais visíveis e permanentes” (artigos 1547.º e 1548.º).
Para as servidões prediais poderem ser constituídas por usucapião é, pois, necessário que elas sejam aparentes, ou seja, que se revelem por sinais visíveis e permanentes. Esse aspecto não foi posto em crise nos autos e, de todo o modo, não se colocava face à existência de dois portões nos locais por onde, feita a passagem pelo prédio da ré, o autor entrava para o seu prédio, que são um sinal visível e explicito de um acesso por aquele local, e face á circunstância de o caminho ser em terra batida, pisada e trilhada pela passagem de pessoas e tractores e veículos
A usucapião traduz-se na faculdade do possuidor, através da posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, adquirir, salvo disposição em contrário, o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287.º). Trata-se pois de uma forma de aquisição originária do direito de propriedade que se dá, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 2ª edição, pág. 64, “pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa”. O seu primeiro requisito é a posse.
Na noção do artigo 1251º do Código Civil, a posse consiste no «poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real». É maioritário o entendimento - nesse sentido cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª edição, pág. 5, Mota Pinto, in Direitos Reais, pág. 189, e Orlando de Carvalho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, pág. 65 e segs. - de que o Código Civil consagra a chamada concepção subjectiva da posse, segundo a qual a posse é constituída por dois elementos: o elemento objectivo ou “corpus” e o elemento subjectivo ou “animus” (art. 1251º e 1253º CC). Nessa concepção, tem posse quem exerce poderes de facto correspondentes ao exercício do direito, com a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2009, relatado por Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt, escreveu-se que «a posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro. A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., pág. 5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) sustenta que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus” e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.). O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º, nº2). Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1). Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 15ª edição 2006, pág. 1037
Para haver posse, não basta, portanto, o simples poder de facto, é necessário que o detentor actue com a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela. Como adverte Orlando de Carvalho, há uma relação biunívoca ou de interdependência entre esses dois elementos, pelo que não existe corpus sem animus, nem animus sem corpus: «Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) de certa actuação de facto» - cf. Orlando de Carvalho, in Introdução à Posse, na Revista de Legislação e de Jurisprudência,1989, n.º 3780, pág. 68 e seguintes, e n.º 3810 (1992), pág. 261.
Ainda segundo o mesmo autor «(…) a usucapião requer que a posse tenha certas características, que seja, de algum modo, “digna’ do direito a que conduz. O que nela se homenageia, digamos, é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que a prefiguração do direito a cujo título se possui. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio – e uma intenção de domínio que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade» - cf. Introdução à Posse, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3780, pág. 67. Por isso, o poder de facto em que se traduz o corpus tem de possuir um mínimo de estabilidade, embora não continuidade no tempo. Essa estabilidade dos poderes de facto depende naturalmente da afectação concreta do bem, da normal utilização que o mesmo permite e da forma de aquisição da posse. Já o animus, carece de ser seguro e inequívoco, revelando uma intenção clara de se exercerem poderes de facto sobre a coisa, de agir como titular do direito de propriedade ou de outro direito real. Isto, porque «sobre o carácter real do direito que os actos “intendem” não pode haver dúvidas, pois a ausência total de animus possidendi é insuprível».
A propósito dessa questão, no Acórdão do Pleno das Secções Cíveis de 14.05.1996, Amâncio Ferreira, in DR Série II, de 24.06.1996, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu uniformizar a jurisprudência do seguinte modo: “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
Na fundamentação da decisão, escreveu-se no aludido Acórdão: «A posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indica. É o fenómeno da usucapião, definido no artigo 1287, como todas os a seguir indicados sem menção em contrário, do actual Código Civil. Mas a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não, a posse precária ou detenção. Esta só é susceptível de levar à dominialidade se houver inversão do título de posse, como resulta do artigo 1290, que corresponde ao artigo 510 do Código Civil de Seabra. (…) São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no artigo 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente. Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse. Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi. Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados. O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade. Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o nº 2 do artigo 1252, como já o fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus). Donde, e tendo em conta o que se dispõe no nº 1 do artigo 350, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor
Para poder gerar a consequência jurídica da aquisição do direito por usucapião a posse necessita de reunir duas características específicas, ser pacífica e pública (artigos 1287.º, 1297.º e 1300.º do Código Civil).
A posse é pacífica quando foi adquirida sem violência e é violenta quando para a obter o possuidor usou de coacção física ou moral (artigo 1261.º). O que releva para o efeito não é o modo como os actos de posse vêm sendo praticados ao longo do tempo, o modo como a posse é exercida, mas o modo como a posse foi adquirida, ou seja, como teve início, como começou a prática reiterada dos actos materiais, como se fez a tradição material ou simbólica da coisa, o constituto possessório ou a inversão do título de posse.
No caso a posse correspondente ao direito de servidão de passagem é pacífica porque não existe notícia de que até ao plantio da vinha no prédio da ré tenha havido qualquer oposição por parte dos então proprietários deste prédio à passagem do autor ou dos seus antecessores a partir dos portões existentes no seu prédio e que indicam precisamente a intenção de exercer essa passagem.
Por outro lado, a posse é pública quando é exercida “de modo a poder ser conhecida pelos interessados” (artigo 1262.º). Esta noção exprime que o que releva não é o efectivo conhecimento de que os actos materiais vêm sendo exercidos, que o proprietário onerado saiba realmente que o possuidor está a exercer esses actos sobre o seu prédio, mas sim que eles sejam exercidos em circunstâncias que permitam o seu conhecimento pelos interessados.
Para o efeito basta que o possuidor exerça a posse em condições notórias de normal utilização das faculdades correspondentes ao direito, que não o faça de forma encapotada ou dissimulada, apenas quando ninguém está a observar, sob anonimato ou às escondidas de todas as pessoas.
Tal como não é necessário que o possuidor anuncie publicamente de alguma forma que está a exercer a posse ou que o faça quando o proprietário do prédio onerado está presente e a observar, também não é obstáculo à caracterização da posse como pública o facto de o proprietário do prédio serviente, face à organização da sua vida, poder ter uma relação distante com o prédio serviente e só esporadicamente nele se encontrar para poder oferecer resistência à posse de outrem.
Sendo assim tendo-se provado que o autor e os seus antecessores passam pelo prédio actualmente da ré através de duas aberturas no muro divisório das propriedades onde colocaram portões, não pode deixar de se qualificar a sua posse como pública uma vez que qualquer pessoa que fosse ao local concluiria facilmente que esses portões se destinavam a abrir e fechar a passagem para o prédio confinante.
A sua posse tem pois as características necessárias para permitir a aquisição do direito de servidão de passagem por usucapião. No que concerne ao prazo, atendendo a que está provado que a passagem é feita, pelo autor e pelos seus antecessores há mais de 30 anos, está igualmente decorrido tempo mais que suficiente para consolidar a aquisição originária do direito de servidão de passagem (artigo 1296.º do Código de Processo Civil). Por conseguinte, procede igualmente o pedido de condenação da ré a reconhecer a existência desse direito.
O autor pede ainda a condenação da ré a repor o leito do caminho e as condições para se efectuar a passagem pelo caminho nos moldes em que vinha sendo feita, permitindo o acesso do autor ao seu prédio pelo caminho que existia até aos seus portões, e a abster-se, no futuro, da prática de actos que perturbem ou violem o exercício desse direito.
O direito de servidão é um direito real menor que consiste, como vimos, num encargo que onera um prédio a favor de outro prédio pertencente a outrem, representando uma restrição ou limitação das faculdades inerentes ao direito de propriedade deste. Como direito real que é, goza naturalmente de uma protecção ampla, devendo ser respeitado pelo proprietário do prédio serviente como por quaisquer terceiros.
Nos termos do artigo 1564.º do Código Civil as servidões são reguladas no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título. Quando o título de aquisição é a usucapião, essa regulação advirá das circunstâncias específicas da posse que permitiu a aquisição por usucapião, isto é, das características e extensão dos actos materiais exercidos ao longo do tempo.
Segundo o n.º 1 do artigo 1565.º do Código Civil o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação. Mas o n.º 2 do preceito acrescenta que em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente.
Trata-se de uma norma que regula os casos em que haja dúvidas. Resultando da matéria de facto a concreta forma e extensão da servidão é com estas que o direito fica definido e terá de ser respeitado pelo proprietário serviente.
O n.º 1 do artigo 1568.º do Código Civil prescreve que o proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa. E o n.º 2 acrescenta que desde que se verifiquem esses requisitos o modo e o tempo de exercício da servidão serão igualmente alterados, a pedido de qualquer dos proprietários.
A importância destas faculdades está bem expresso pelo legislador no n.º 4 do preceito ao definir que as mesmas são irrenunciáveis e não podem ser limitadas por negócio jurídico. Todavia, não cabe no âmbito da presente acção qualquer avaliação ou decisão sobre as faculdades de mudança da servidão ou de extinção da mesma por desnecessidade uma vez que tais pretensões não foram aqui deduzidas pela ré.
Em conclusão, também este pedido do autor deve ser julgado procedente. Procede assim o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, alteram a sentença recorrida julgando agora a acção procedente e condenando a ré:
1. A reconhecer o direito de propriedade do autor sobre o prédio identificado no ponto 1 da matéria de facto;
2. A reconhecer que este prédio beneficia de um direito de servidão de passagem sobre o prédio referido no ponto 9 da matéria de facto, para acesso de pessoas e veículos, constituído sobre uma faixa de terreno com a largura de cerca de 3 metros que se inicia na via pública, a norte deste prédio, e se prolonga para o seu interior, no sentido norte/sudeste, até aos portões existentes no quintal daquele prédio que deitam para essa faixa de terreno.
3. A repor o leito e as condições para se efectuar a passagem pelo caminho nos moldes em que vinha sendo feita, permitindo o acesso do autor ao seu prédio pelo caminho que existia até aos seus portões.
4. A abster-se, no futuro, da prática de actos que perturbem ou violem o exercício deste direito de servidão.
Custas da acção por autor e ré na proporção de metade por cada um (uma vez que o direito de propriedade não foi impugnado e a dedução do respectivo pedido não foi causada por qualquer acto ilícito por parte da ré).
Custas do recurso pela ré.
*
Porto, 22 de Outubro de 2020.
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 575)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas certificadas]