Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
824/06.5TYVNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: CRÉDITO COMUM
CRÉDITOS GARANTIDOS
Nº do Documento: RP20180711824/06.5TYVNG-B.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º142, FLS.115-121)
Área Temática: .
Sumário: Do regime instituído pelo CIRE resulta que mesmo que o crédito reclamado na insolvência beneficie de uma penhora registada, para os efeitos da sua classificação aí. É tido como crédito comum e não como um crédito garantido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
Processo n.º 824/06.5TYVNG-B.P1
Comarca do Porto
Vila Nova de Gaia - Juízo de Comércio - J2
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Des. Teles de Menezes
2.º Adjunto: Des. Mário Fernandes
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
Por apenso ao processo de insolvência no qual foi declarada, por sentença transitada em julgado, a insolvência de “B…, Lda.” veio o Sr. Administrador da insolvência inicialmente nomeado juntar aos autos a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, elaborada ao abrigo do disposto no artigo 129.º do C.I.R.E.
Tendo sido fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos, vieram reclamar, entre outros, o credor “C…, Lda.”, com fundamento em penhora sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 01756/050598 e apreendido para a massa insolvente.
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Subsequentemente, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que se procedeu ao reconhecimento e graduação dos créditos nos seguintes termos:

“a) Julgar extintas, por inutilidade superveniente da lide, a impugnação apresentada por D… quanto aos créditos reclamados por E…, F… e G… e H… e I…, bem como a impugnação apresentada pela J…, SA quanto ao crédito reconhecido a E…, nos termos do art. 277.º, al. e), do Código de Processo Civil.

b) Julgar parcialmente procedente a reclamação apresentada por D…, reconhecendo-se a esse credor um crédito no valor de €29.799,47 (vinte e nove mil, setecentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos), acrescido de juros de mora, contados à taxa legal, desde 25/9/1999 até à data de declaração da insolvência, classificando-se esse crédito como comum.
c) Julgar improcedentes as impugnações apresentadas pelas credoras “C…, Lda.” e “K…, Lda.” quanto à classificação dos seus créditos como garantidos, classificando-se os créditos reconhecidos a essas credoras como comuns.
d) Graduar os créditos reconhecidos e determinar que se proceda ao pagamento dos respetivos créditos através do produto dos bens da massa insolvente (artigo 46.º) - depois de observada a regra do art. 172.º, que impõe que antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduza da massa os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta (artigo 51.º), incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo - pela ordem seguinte:
1) Quanto às verbas n.º 1 a 13 e 15:
- Em primeiro lugar, deve ser graduado o crédito reconhecido à L…, classificado como garantido.
- Em segundo lugar deve ser graduado o crédito reconhecido ao Instituto da Segurança Social, IP classificado como privilegiado.
- Em terceiro lugar, os créditos reconhecidos e classificados como comuns, em paridade e em rateio, se necessário.
- Em quarto lugar, devem ser graduados os créditos subordinados.
2) Quanto às verbas 16 a 23 e 25:
- Em primeiro lugar, deve ser graduado o crédito reconhecido à J…, classificado como garantido.
- Em segundo lugar deve ser graduado o crédito reconhecido ao Instituto da Segurança Social, IP classificado como privilegiado.
- Em terceiro lugar, os créditos reconhecidos e classificados como comuns, em paridade e em rateio, se necessário.
- Em quarto lugar, devem ser graduados os créditos subordinados.”.

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Não se conformando com a decisão proferida, a recorrente “C…, Lda.” veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida no âmbito dos presentes autos que graduou o crédito da ora Recorrente como crédito comum e não como garantido, conforme era por si pugnado.

Acontece que,
II. Salvo melhor opinião, deveria o crédito reclamado pela ora Recorrente ter sido graduado como privilegiado,

III. Porquanto a penhora deve ser entendida como um verdadeiro direito real de garantia (neste sentido cfr. Menezes Leitão, «Garantia das Obrigações», Almedina 2ª ed, 2008, 251; Salvador da Costa, «Concurso de Credores», Almedina, 2005, 3ª ed, 27; Palma Carlos, «Acção Executiva, 1970, 148; Castro Mendes, «Acção Executiva» p 97; Lebre de Freitas, «A Acção executiva à luz do Código revisto», 3ª ed, p 228.)

IV. Ao tratar-se de um verdadeiro direito real de garantia deve o crédito que goza de penhora registada em data anterior à insolvência ser graduado como privilegiado,

V. Cumprindo-se o determinado no art.º. 822º do Código Civil.

VI. A interpretação de que o art.º. 140º, n.º 3 do CIRE afasta a penhora como crédito privilegiado mostra-se ferida de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, ínsito ao princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

VII. Neste contexto, ao classificar o crédito de todo pela Recorrente como crédito comum violou a sentença recorrida o art.º. 822º do Código Civil,

VIII. Pelo que deverá ser proferido acórdão que, revogando a sentença ora em crise, classifica o crédito da ora Recorrente como privilegiado.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com aferir da natureza do crédito reconhecido ao recorrente e da constitucionalidade do disposto no artigo 140.º, n.º 3 do CIRE.
3. Conhecendo do mérito do recurso:
De acordo com as conclusões das alegações está em causa, em primeiro lugar, saber se o crédito reconhecido a favor do reclamante “C…, Lda.” e garantido por uma penhora sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 01756/050598, ao invés de ter sido graduado na sentença de verificação e graduação de créditos como crédito comum, deveria ter sido graduado como crédito de natureza garantido.
A questão em causa postula a classificação de créditos sobre a insolvência a que procedeu o artigo 47.º, n.º 4 do CIRE, classificação de que decorre que, pese embora o referido diploma legal (bem como o CPEREF que o antecedeu) tenha acolhido o princípio geral da igualdade de tratamento dos credores - cf., respectivamente, artigo 194.º, n.º 1 do CIRE, e 62.º, n.º 1 do CPEREF - há razões objectivas que justificam a diferença de tratamento dos mesmos.
Por isso, o mais que, em rigor se pode dizer nesta matéria, é que o carácter universal do processo de insolvência, implicando a participação de todos os credores no processo, implica o tratamento igualitário dos mesmos, mas, segundo a qualidade dos seus créditos.
Como é evidente, a regra «par conditio creditorum» que caracteriza o regime da insolvência enquanto execução universal não pode deixar de admitir excepções, que advêm justamente, da maior ou menor categoria em que se insira o credor.
O CIRE admitiu a existência de quatro tipos de créditos, os garantidos, os privilegiados, os subordinados e os comuns, como resulta do referido nesse artigo 47.º, n.º 4.
Seguindo Menezes Leitão, a distinção entre as categorias de créditos da insolvência decorrente da análise daquele preceito, pode ser sintetizada do seguinte modo:
“Créditos garantidos são apenas aqueles que beneficiem de uma garantia real, considerando-se como tal os privilégios especiais. Abrangem assim, além destes, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca e o direito de retenção. As garantias pessoais não revelam consequentemente para a qualificação do crédito como garantido.
Créditos privilegiados são aqueles que beneficiam de privilégios creditórios gerais (mobiliários e imobiliários), os quais não constituem garantias reais por não incidirem sobre coisa determinadas.
Os créditos subordinados correspondem a uma nova categoria de créditos enfraquecidos, enumerados no art.º. 48º, os quais são satisfeitos depois dos restantes créditos sobre a insolvência.
Os créditos comuns são aqueles que não beneficiam de garantia real, nem de privilégio geral, e não são objecto de subordinação.” - cf. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, pág. 98.
Ser-se titular de um ou outro dos mencionados créditos não é indiferente, nem quanto ao regime de satisfação dos mesmos, nem tão pouco, precedentemente, quanto aos direitos que deles decorrem quanto a aspectos vários do processo.
A questão central que, não obstante, está em causa nos autos, mostra-se transversal à que poderia gerar a controvérsia de saber se a penhora configura, ou não, verdadeiro direito real de garantia, de modo a poder fazer qualificar o respectivo credor/exequente na categoria dos créditos garantidos, ao longo do decurso do processo de insolvência.
Ora, dispõe o artigo 822.º, n.º 1 do Código Civil, em relação à penhora, que “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.”
A doutrina não é consensual relativamente à classificação da penhora como garantia real, por a sua formação ocorrer no âmbito de um processo judicial, e não no decurso de um acto negocial, tendo na sua raiz um direito de crédito sem conexão qualquer com o bem penhorado, não obstante proporcionar ao exequente uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados.
Nesse sentido, escreveu Miguel Teixeira de Sousa, que “A penhora não é um direito real de garantia, mas é fonte de uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados, dado que o exequente adquire por ela o direito a ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior (art.º 822º, nº 1 do CC).” - cf. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, Lex, 1998, pág. 251.
Também Almeida Costa defende que “… em rigor não se trata de uma garantia real, mas de um acto processual que visa criar a indisponibilidade dos bens adstritos à execução, mediante a produção dos mesmos efeitos substantivos das garantias reais: a preferência e a sequela.” - cf. Almeida Costa, Obrigações, págs. 983-984
Já Menezes Leitão considera que a penhora deve ser inserida no âmbito das garantias reais, porque “… independentemente da forma como se estabelece a garantia não há dúvida que a penhora atribui ao exequente um direito sobre uma coisa corpórea, oponível erga omnes que lhe atribui preferência no pagamento sobre a venda desse mesmo bem” - cf. Menezes Leitão, Garantia das Obrigações, Almedina, 2008, 2.ª edição, pág. 251.
Salvador da Costa também classifica a penhora como um direito real de garantia, por lhe ser “… inerente a preferência de pagamento sobre outros credores que não dispõem de melhor garantia anterior, bem como a sequela, em termos de o exequente poder executar os bens penhorados, já integrados no património de terceiros cuja aquisição não haja sido registada antes da penhora …” . cf. Salvador da Costa, Concurso de Credores, Almedina, 2005, 3.ª edição, pág. 27.
Independentemente da polémica doutrinária que ora atende ao lado mais privatístico do direito, classificando a penhora como direito real de garantia, ora ao lado mais publicista e processual da sua formação, distanciando-se dessa classificação, importa sublinhar que a penhora tem um regime específico decorrente da sua natureza processual, daí decorrendo, sobretudo no processo de insolvência do executado, uma fragilização da sua “força” face a outros direitos reais de garantia, mormente face à hipoteca voluntária, uma vez que o artigo 140.º, n.º 3 do CIRE determina que “Na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente de penhora…”.
Por esta razão, mesmo para quem entenda que tem a natureza de uma garantia real, acaba por aceitar que se trata de um “direito de garantia imperfeito”, - cf. Salvador da Costa, ob., cit., pág. 27 - de uma “garantia“ - cf. Almeida Costa, Noções de Direito Civil, Almedina, 2.ª edição, pág. 260 - ou mesmo um “direito de garantia anómalo” - cf. Ana Carolina Santos Silveira, A Extinção de Direitos por Venda Executiva, in Garantias das Obrigações, coordenação de Sinde Monteiro, Almedina, 2007, pág. 33.
Do regime instituído pelo CIRE resulta, consequentemente, que mesmo que o crédito reclamado na insolvência beneficie de uma penhora registada, para os efeitos da sua classificação neste processo, é tido como crédito comum e não como um crédito garantido, por força da conjugação dos artigos 47.º, n.º 4, alínea a) e 140.º, n.º 3 do CIRE.
Assim a resposta à questão central que está em causa nos autos afigura-se muito simples, pois que se contém claramente no disposto no artigo 140.º, n.º 3 do CIRE, segundo o qual, “na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante da hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora”, embora, acrescente tal preceito que, “as custas pagas pelos autor ou exequente constituem dívidas da massa insolvente”.
Dizem a respeito desta norma, Carvalho Fernandes/João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 2008, pág. 473 que: “A regra do nº 3 afasta a aplicação dos arts 686.º - quanto à hipoteca judicial - e 822º do Código Civil - relativo à penhora. As circunstância de as custas entretanto pagas pelos autor ou exequente serem considerados dívidas da massa insolvente e beneficiarem de um regime privilegiado de pagamento, visa compensar o credor pela perda de privilégios que a penhora e a hipoteca judicial normalmente lhes concederiam, aliviando-os das despesas judiciais feitas para a defesa dos seus interesses e que lhes serão atempadamente restituídas”.
O que não há dúvida é que a regra em causa afasta no que toca à penhora - que é o que está em questão no recurso - a aplicação do disposto no artigo 822.º do Código Civil - segundo o qual, “salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior”.
Não se pense que é solução nova adveniente do CIRE, ou mesmo do CPEREF.
Com efeito, contendo o Código Civil de 1876 regra paralela à do actual artigo 822.º do Código Civil, o Decreto n.º 21 758, de 22/10/1933, ao criar o processo de insolvência civil e depois o Código das Falências de 1935, vieram limitar os efeitos dessa preferência, dizendo o primeiro que tal preferência não funcionava no dito processo de insolvência, e o segundo que ela não subsistia no processo de falência.
O projecto do Código Civil de 1939 continha disposição semelhante à do artigo 836.º do Código de 1876, mas a mesma não transitou para o texto definitivo (embora tivessem ficado outras que à preferência resultante da penhora se referiam expressamente), tendo, por isso, surgido dúvidas e divergências sobre se tal preferência se mantinha.
Dominava, todavia, a opinião afirmativa.
E no sentido dessa opinião dominante se veio a pronunciar o actual Código Civil no art.º 822º: a penhora dá preferência ao exequente, salvo nos casos especiais declarados na lei.
O Código de Processo Civil, no revogado artigo 1235º, n.º 3, referente à falência, veio referir expressamente que “na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante da hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora, mas as custas pagas pelo autor ou exequente são equiparadas às do processo de falência para o efeito de saírem precípuas da massa”, norma essa aplicável à insolvência nos termos do artigo 1315.º do Código de Processo Civil.
O conteúdo da referida norma foi reproduzido “ipsis verbis” no artigo 200.º, n.º 3 do CPEREF.
Deste modo, pode-se concluir que desde há muito está assente entre nós que em sede de repartição do produto da venda dos bens do (falido ou) insolvente, não releva a hipoteca judicial, nem a penhora - repare-se, que se tratam ambas de garantias de origem processual - detidas pelos credores.
Essa solução, no que toca à penhora, de perda de preferência pelo exequente no concurso de credores a que dá origem a insolvência, não pode deixar de se ter como natural, atento o carácter universal do processo de insolvência.
O direito de preferência do exequente no concurso de credores na execução, só fará sentido no quadro que a lei actual confere à acção executiva, de singularidade.
Com efeito, o processo de execução deixou de ter, desde 1961, o carácter colectivo e universal que revestia em 1939, e que o aproximava da falência ou da insolvência civil, sendo que nesse regime anterior o concurso de credores implicava uma cumulação de execuções, ao passo que hoje, em que a execução é essencialmente singular, o concurso de credores tem como objectivo exclusivo o de expurgar de encargos os bens que hão-de ser vendidos, adjudicados ou entregues.
Assim, a partir do momento em que a insolvência pela força de atracção que exerce sobre as acções em que estejam envolvidas questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, implica, nos termos do artigo 88º, “a suspensão de quaisquer diligências ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente” e “obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência” - preceito que “visa evitar a excussão de bens do devedor falido ou insolvente, sem consideração de todas as suas dívidas” - há-de pressupor que o exequente perca a preferência que ali dispunha, para ficar num plano de igualdade com os demais credores.
Quer dizer, a preferência do exequente só faz sentido no âmbito da execução - apenas quando de modelo essencialmente singular como é a nossa actual - e enquanto a mesma se encontra normalmente a prosseguir para vir a atingir os seus objectivos.
Se se suspende por estar pendente acção de insolvência, o exequente dever-se-á já comportar no âmbito desta como um qualquer credor comum, e, por maioria de razão, na graduação dos créditos que nela venha a ter lugar, deverá ser tratado como tal.
Por isso, a apelação deve ser julgada improcedente, havendo os créditos reclamados pelos recorrente, porque beneficiam, única e exclusivamente, de penhora sobre os bens imóveis propriedade dos insolventes, ser graduados como créditos comuns e não como créditos garantidos.
A apelante, porém, defende que deve ser afastada a aplicabilidade do n.º 3, do artigo 140.º do CIRE por entender que a norma é inconstitucional, por violar o princípio da confiança ínsito ao Estado de direito democrático, uma vez da sua interpretação resulta o afastamento do princípio da prevalência estipulado no artigo 822.º, n.º 1 do Código Civil.
Tal questão coloca-se apenas no processo de insolvência, face ao regime prescrito no artigo 140.º, n.º 3 do CIRE.
Mas conforme atrás foi dito, a razão de ser deste regime excepcional está plenamente justificado em face da natureza e finalidades específicas do processo de insolvência em relação ao processo executivo.
De facto, a tutela que é dispensada aos direitos e interesses legalmente protegidos no processo de insolvência, dado o seu carácter universal, quer no aspecto objectivo (abrange todos os créditos), quer no aspecto subjectivo (abrange todos os credores), não impede que o legislador tenha considerado, ao invés do juízo que fez na execução singular, que o meio mais adequado para proporcionar a tutela efectiva dos direitos de todos os credores, incluindo os titulares dos direitos reais de garantia, seja a prevalência destes sobre os credores comuns, já que estes apenas gozem de uma garantia geral constituída pelo património comum do devedor, ou quanto muito de uma garantia processual, proveniente da penhora ou da hipoteca legal.
Na verdade, apesar de qualquer processo, por determinação constitucional (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa) dever ser equitativo e proporcionar uma tutela plena e efectiva, o legislador tem uma margem de ponderação constitutiva sobre o modo como adequar a tutela jurisdicional aos específicos direitos ou interesses legalmente protegidos - cf., neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/07, de 08.03.2007, em www.tribunalconstiutucional.pt/tc/acórdãos.
Nesse sentido parece concluir também o Acórdão desta Relação do Porto datado de 23/3/2009, acessível em www dgsi pt, onde se diz: “Podemos assim concluir, que a razão de ser da preferência dada à penhora pelo CC está directamente relacionada com a natureza do processo executivo, que não visa uma liquidação de todo o património do devedor, mas apenas a satisfação do exequente e dos credores que são chamados à execução - apenas os que estão mencionados no art 864º CPC - e não a liquidação de todo o património, com o concurso de todos os credores, característica do processo de insolvência que o art.º 1º do CIRE consagra e do qual se extrai o carácter universal deste processo”.
Ademais, como refere Teixeira de Sousa, “São três as soluções possíveis para a conjugação da posição do exequente com a dos demais credores do executado: - uma primeira solução, dominada pelo princípio da igualdade entre todos os credores (a chamada par conditio creditorum), consiste em permitir que todos os credores concorram, em plano de igualdade, ao produto da venda dos bens penhorados; - uma outra solução baseia-se num princípio de prioridade e hierarquiza os credores segundo o momento da aquisição da preferência sobre os bens do devedor, seja ela uma garantia real ou a própria penhora; - finalmente, uma solução intermédia coloca em igualdade todos os credores que obtenham, num certo prazo, uma preferência sobre os mesmos bens”. - cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 2.ª edição, pág. 646.
Apesar do artigo 604.º, n.º 1 do Código Civil estabelecer o princípio par conditio creditorum, há muitas situações em que se verificam causas legítimas preferência, conferindo-se aos credores o direito de serem pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor em função dessas preferências, como as que resultam das hipotecas voluntárias e dos vários privilégios creditórios existentes.
Na harmonização desses interesses, e no processo executivo, o legislador orientou-se pelo princípio da prioridade, embora não beneficie apenas o exequente, mas também todos os credores com garantia real sobre os bens penhorados, permitindo a sua intervenção na execução, a reclamação dos respectivos créditos e o seu pagamento por via da venda executiva ou da adjudicação (artigos 864.º, 865.º, 873.º e 875.º do Código de Processo Civil).
A prioridade dessas garantias reais determina-se pela data da sua constituição e a sua anterioridade perante a penhora afere-se, quanto aos bens sujeitos a registo, através da realização do mesmo (artigos 838.º do CPC e 822.º, n.º 1 do Código Civil).
Já no processo de insolvência, segundo o mesmo autor, o princípio da prioridade não pode valer, por nele concorrerem todos os credores. Por isso, “Estrutura-se com base no princípio da proporcionalidade das perdas dos credores: perante a insuficiência de bens do activo do falido, os credores são pagos rateadamente pelo produto da liquidação do activo, admitindo-se apenas as preferências resultantes das garantias reais sobre os bens integrados na massa falida (art.º 209.º do CPEREF), excepto a hipoteca judicial e a penhora (art.º 200º, n.º 3, do CPEREF).”
Todo este raciocínio se aplica ao regime falimentar em vigor, bastando substituir a palavra “falido” por “insolvente” e a referência ao artigo 209.º pelo artigo 174.º do CIRE e ao artigo 200.º, n.º 3 pelo artigo 140.º, n.º 3 do CIRE, já que a previsão normativa destes últimos não é inovadora em relação àqueles.
De todo o exposto, resulta que dentro da referida margem de ponderação a que atrás se aludiu, o legislador fez opções quanto à forma de tutelar os interesses de todos os credores do insolvente, opções estas que não violam o princípio da confiança a que alude o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido, e como se referiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 696/04, de 15.12.2004, embora no âmbito do confronto que fez entre privilégios imobiliários gerais e penhora, a não prevalência desta sobre outras garantias de carácter real, “…pela própria natureza (…), que não resulta de um específico negócio jurídico, não se verifica lesão desproporcionada do comércio jurídico…”.
E continuou, concluindo que na ponderação da tutela constitucional da confiança jurídica, o credor vê atingida “…a expectativa de realização do crédito que resultava da actividade processual desenvolvida no processo executivo e do subsequente registo da penhora, mas não um elemento especificamente determinante da concreta configuração da relação creditícia de que a execução emerge”, razão pela qual não se ajusta à situação qualquer juízo de inconstitucionalidade.
Nestes termos, desatende-se a alegação do apelante concernente ao juízo de inconstitucionalidade do n.º 3, do artigo 140.º do CIRE, donde resulta a sua aplicação ao caso em apreciação e a consequente classificação e graduação do crédito reclamado nos termos acima analisados.
Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante.
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Notifique.
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Porto, 11 de Julho de 2018.
Paulo Dias da Silva
Teles de Menezes
Mário Fernandes