Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1474/17.6T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
AUDIÇÃO DO MENOR
Nº do Documento: RP201911041474/17.6T8PRD.P1
Data do Acordão: 11/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em termos normativos, é hoje assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito.
II - O direito de audição da criança surge como expressão do direito à palavra e à expressão da sua vontade mas funciona igualmente como pressuposto de um efectivo direito à participação activa da criança nos processos que lhe digam respeito no âmbito de uma cultura judicial que afirme a criança como sujeito de direitos.
III- No âmbito de um processo de promoção e protecção terá sempre de existir um despacho, devidamente fundamentado, a reflectir a necessidade ou não da audição da criança.
IV- A falta de prolação desse despacho afeta a validade da decisão final do processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1474/17.6T8PRD.P1
Origem: Comarca do Porto Este, Paredes – Juízo de Família e Menores, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
O Ministério Público intentou o presente processo judicial de promoção e proteção relativamente à criança B…, nascida a 14.02.2014, filha de C… e D…, a qual, desde o dia 29 de setembro de 2016, se encontra acolhida na Casa de Acolhimento E…, no Porto.
Foi declarada aberta a instrução e os autos foram devidamente instruídos, deles constando relatórios sociais e informações da instituição onde a criança se encontra acolhida.
Não se mostrando viável a obtenção de uma solução consensual, foram os progenitores, o Ministério Público e os patronos da criança e dos seus pais notificados para apresentarem alegações por escrito e apresentarem prova.
Nessa sequência, o Ministério Público veio requerer a aplicação, a favor da criança, da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista à adoção nos termos dos arts. 35°, nº 1, al. g) e 38°-A, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo[1] (doravante, LPCJP).
O pai apresentou alegações escritas, terminando pedindo alteração da medida para apoio junto dos pais a executar junto do pai com retaguarda da tia materna F….
Teve lugar o debate judicial que decorreu com observância do formalismo legal.
Após foi proferido acórdão no qual se decidiu:
“A) Aplicar à criança B…, nascida a 14.02.2014, a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista à adoção – arts. 35º, nº 1 al. g), 38º-A, al. b) e 62º-A, da LPCJP;
B) Decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais relativas à mencionada criança por parte de C… e D…;
C) Decretar a interdição de visitas à criança por parte da família natural ou biológica.
Para curadora provisória da criança nomeia-se a Dr.ª G…, assistente social da Casa de Acolhimento E…”.
Não se conformando com o assim decidido, veio a progenitora da criança interpor recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
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O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil, aplicável aos processos da jurisdição de família e menores por força do disposto no 124º da LPCJP.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante/progenitora, são as seguintes as questões solvendas:
do direito da criança em ser ouvida no processo e das consequências processuais resultantes da sua não audição;
determinar se se encontram verificados os pressupostos necessários para aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
O Tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 14 de fevereiro de 2014, nasceu, pelas 01 h 11 min no Centro Hospitalar H…, B…, a única filha de C…, nascido a 14.9.1987 e de D…, nascida a 9.6.1995, ambos solteiros.
2. No dia em que a B… nasceu, foi pelo serviço social do Centro Hospitalar H… sinalizada à CPCJ a situação como grave do ponto de vista social e familiar dada a falta de competências por parte do casal, sendo possível observar em contexto hospitalar a evidente inexistência de cuidados ao nível pessoal, tendo sido mantido o internamento da B… até avaliação do risco para a bebé por parte da CPCJ.
3. No dia 17 de fevereiro foi instaurado processo de promoção e proteção em benefício da B… tendo os pais assinado o consentimento para a intervenção da CPCJ e iniciadas as diligências com vista à avaliação da situação.
4. No dia 18 de fevereiro de 2014 foi pela CPCJ proposta a alta social da B…, se reunidas as condições clínicas, estando asseguradas ao nível da situação social o acompanhamento pelo CPCJ e CAFAP.
5. No dia 25 de fevereiro de 2014, foi aplicada pela CPCJ do … em benefício da B… a medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, pelo período de 6 meses.
6. No dia 28 de fevereiro de 2014 o peso da B… em consequência da alimentação dada pela mãe tinha aumentado o mínimo.
7. Em 5 de março de 2014 a B… observada no serviço de urgência apresentava evolução ponderal pouco favorável, tinha eritemalcandidíase perineal.
8. Durante o primeiro mês de vida, a B… foi sujeita a tratamento para "candidiase oral e genital" e apresentava a vulgarmente designada "assadura de bebé".
9. E no final do 10 mês de vida apresentava sinais de falta de higiene e inflamação na zona das axilas e atrás das orelhas.
10. Em Março de 2014 a B…, por razões que se prendem com a mudança de casa do agregado familiar da tia materna – I…, passou a residir em casa dos avós maternos, sem as mínimas condições necessárias à sua permanência, sendo certo que também não eram cumpridas as orientações emanadas dos técnicos relacionadas quer com a alimentação, como ao nível das mais básicas condições de higiene e organização habitacional.
11. Em 25 de março de 2014, a CPCJ deliberou por unanimidade a prorrogação da medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, com o compromisso dos avós maternos nos cuidados a prestar à B….
12. Em 2 de abril de 2014 os pais da B… continuavam a não respeitar os horários das refeições, nem a manter higiene da B… ou mudar a fralda.
13. Os pais e os familiares maternos apresentavam limitações cognitivas que "dificulta a compreensão das orientações técnicas, bem como a extrema necessidade dos vários cuidados a prestar à menor (tratamentos médicos, cumprir horas de amamentação, higiene da bebé, questões de segurança e adequação do vestuário)" e não demonstravam qualquer abertura para o acompanhamento técnico em curso.
14. Em 24 de abril de 2014, a B… deu entrada nos serviços de urgência do Centro Hospitalar H… com sinais de maus cuidados de higiene - dermatite seborreica com 5 dias de evolução, assim como a mãe, e o peso continuava a não aumentar como desejado, situação que foi comunicada à CPCJ.
15. A CPCJ solicitou a manutenção do internamento da B… no H… até realizar as diligências necessárias à avaliação do risco.
16. Na sequência do descrito, foi no dia 29 de abril de 2014 pela CPCJ aplicada à B… a medida de acolhimento residencial da criança em Comunidade de Inserção, juntamente com a mãe.
17. No acordo de promoção e proteção celebrado os pais comprometeram-se a prestar cuidados de alimentação, higiene, necessidades de conforto, educação e saúde, garantindo o seu salutar desenvolvimento integral e a cumprir as orientações/indicações da equipa técnica/Responsáveis Institucionais".
18. A B… manteve-se internada no H… até ser integrada na Comunidade de Inserção no dia 7 de maio de 2014.
19. Aquando da entrada na comunidade de inserção, a mãe da B… apresentava graves limitações em relação à prestação de cuidados à filha.
20. A 24 de julho de 2014 a mãe da B… apresentava resistência à intervenção das técnicas da comunidade e continuava a não ter cuidados relativamente à higiene pessoal da criança, bem como da sua.
21. Na comunidade de inserção a B… e a sua mãe recebiam todos os Domingos a visita do progenitor daquela, entre as 15 e as 17 horas, e em Domingos alternados visitas da tia materna da criança, I…, seu filho e companheiro, bem como dos avós maternos.
22. Foi realizada uma avaliação do quociente de inteligência à mãe da B… tendo resultado 66 pontos, indicador dum baixo nível de funcionamento intelectual.
23. No início de novembro de 2014 a mãe da B… apresentou evolução nas competências parentais essencialmente quanto à higiene, vestuário adequado e gestão doméstica.
24. No dia 18 de novembro de 2014 foi prorrogada a execução da medida por 6 meses, tendo sido subscrito pelos progenitores o necessário acordo de promoção e protecção.
25. A 04 de fevereiro de 2015 foi constatada uma evolução efetiva e positiva das competências da progenitora ao nível da prestação dos cuidados básicos à B… bem como ao nível do desenvolvimento das competências de gestão habitacional.
26. Em julho de 2015 era visível entre mãe e filha vinculação afetiva, assumindo a mãe os cuidados da B… e as tarefas domésticas.
27. A 28 de julho de 2015 a medida de promoção e proteção em execução, foi prorrogada por 6 meses tendo sido celebrado o necessário acordo de promoção e proteção.
28. A relação dos progenitores da B… pautou-se por instabilidade e conflito, com discussões regulares, mesmo ao telefone.
29. No início de dezembro de 2015 ocorreu uma rutura entre o casal progenitor da B…, passando o pai a visitá-la na Comunidade de Inserção sem a presença da mãe semanalmente.
30. No início de 2016, D… reconciliou-se com o pai da B….
31. No início de 2016 a mãe da B… não tinha condições de assumir todos os cuidados necessários à B… carecendo de supervisão.
32. A mãe da B… manteve-se integrada na Comunidade de Inserção com a criança e começou a exercer funções laborais num restaurante com alguma estabilidade, ao passo que o trabalho do progenitor da criança também assumiu foros de alguma constância.
33. Em inícios de julho de 2016 D… informou que pretendia sair da Comunidade.
34. A mãe da B… deixou de cumprir os regulamentos internos da instituição quanto à saída da B… da escola - tendo-se verificado um retrocesso nos ganhos obtidos ao nível da prestação de cuidados à filha, com recurso à mentira como justificação para comportamentos incorretos e aos esquemas como forma de ludibriar as regras pre­existentes o que colocou em causa a permanência de D… na Comunidade, tendo as técnicas responsáveis desta convidada a progenitora a sair.
35. A medida de promoção e proteção em execução foi mantida por mais 6 meses e assinado o necessário acordo.
36. A 25 de agosto de 2016 houve um retrocesso na prestação de cuidados da mãe à B…, que persistia no uso de mentiras e esquemas.
37. Em 27 de setembro de 2016, foi prorrogada a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, pelo período de 6 meses, reavaliada em 3 meses, tendo sido, mais uma vez, celebrado o necessário acordo de promoção e protecção.
38. A Comunidade de Inserção que acolhia a B… e mãe anunciou o encerramento até 1 de outubro de 2016.
39. A B… na falta de família alargada que a acolhesse ou outra resposta social manteve-se em situação de acolhimento residencial, tendo sido integrada na casa de acolhimento E… em setembro de 2016.
40. No dia 29 de setembro de 2016 a progenitora saiu da comunidade, informando o fim da relação com o pai da B…, marcando visita individual à filha tendo a B… sido integrada na casa de acolhimento temporário E….
41. No primeiro mês apos a saída D… visitou a filha na instituição diariamente (21 visitas) e a partir do dia 26 de outubro as visitas espaçaram (em novembro 4 visitas e dezembro 12 visitas) tendo em simultâneo deixado de atender o telefone.
42. Um mês após sair da Comunidade de Inserção D… informou as técnicas que tinha um novo "amigo" chamado J….
43. Em janeiro de 2017 a mãe da B… que trabalhava na restauração do "K…” de Valongo informou a CA que tinha um namorado chamado L…, sendo que já se conheciam há 7 anos e o mesmo residia na Trofa.
44. Em 6 de fevereiro de 2017 D… informou a CPCJ que estava a residir na Rua …, …, …"., em …, Valongo, juntamente com a irmã I…, cunhado e filhos destes, num apartamento T2.
45. D… deixou a casa da irmã e iniciou novo relacionamento com "M…" e voltou a residir no Marco de Canavezes.
46. No mês de março D… visitou a filha 4 vezes (contactos telefónicos diários).
47. A 10 de abril de 2017 a mãe da B… realizava trabalhos agrícolas não tendo regularizada a sua situação laboral, mantinha o relacionamento amoroso com "M…" de …, que conheceu através das redes sociais.
48. Nos primeiros seis meses de acolhimento da B… o contacto com a mãe caracterizou-se por grande irregularidade "coincidente com a instabilidade presente na organização da sua vida, com frequentes mudanças de emprego e residência (já esteve com 3 irmãs, madrinha e amiga)".
49. Durante as visitas realizadas era "visível a ligação afetiva positiva que une mãe e filha. A B… na presença da mãe é mais comunicativa e exibe semblante de felicidade", mostrando-se a progenitora atenta e disponível para a filha, embora denote dificuldade em impor regras e limites; "parece não compreender ou não ter consciência de que a instabilidade presente na sua vida está a prejudicar seriamente a hipótese de proposta de regresso da B… à mãe".
50. O progenitor visita a filha uma vez por semana, ao Domingo, na Casa de Acolhimento, "apesar de assíduo a relação afetiva com a filha é pobre. O pai não tem a iniciativa de brincar ou falar com a filha, normalmente é a B… que o desafia para brincar. Não apresenta noção das necessidades de uma criança da idade da B…".
51. Relativamente à integração no contexto institucional, a criança tinha dificuldade em brincar com os pares mais velhos, embora o fizesse com os mais novos mas sem grande elaboração, optando por tirar os brinquedos aos outros, sendo certo que, quando estes respondiam de forma idêntica, a mesma amuava e chorava com facilidade. Em relação aos adultos, a B… parecia não ter estabelecido vinculação com ninguém em especial.
52. Em 2017 a B… tinha uma vinculação segura com a mãe, sendo certo que, ao nível do desenvolvimento, "tendo em conta a sua idade necessita de maior estimulação nas áreas da linguagem, socialização e motricidade fina".
53. Em 13 de abril de 2017 apurou-se que o pai da criança vivia com um irmão e a namorada deste e a mãe vivia com os pais no Marco de Canaveses.
54. Nenhum dos pais dispunha à data de condições mínimas pessoais (ausência de competências e rotinas) e materiais (ausência de estabilidade profissional e habitacional e de apoio familiar) necessárias para ter a filha.
55. Decorridos 6 meses do acolhimento da B… na Casa E… ainda não tinha sido possível delinear projeto da B… junto da mãe, apesar da intervenção da equipa junto desta, iniciado com data anterior à do acolhimento.
56. A 04 de abril de 2017 foi remetido o processo de promoção e proteção ao Ministério Público junto deste Juízo de Família e Menores por incumprimento reiterado, por parte dos progenitores, dos acordos de promoção e proteção celebrados.
57. Em maio de 2017, a progenitora faltou às visitas agendadas e no dia da mãe permaneceu 20 minutos com a filha, tendo a B… sentido a falta da mãe.
58. Verificou-se um afastamento da progenitora em relação à filha, que terminara, também, o último relacionamento afetivo que lhe havia sido conhecido.
59. Em maio de 2017 a mãe passou a residir com a irmã I… em Valongo.
60. Em setembro de 2017 a Emat realizou relatório de avaliação diagnóstica da situação, dando nota que os progenitores da B… se encontravam, de novo, a residir juntos numa habitação síta em …, Marco de Canavezes, a qual ainda não estava mobilada e não tinha ainda disponível água e eletricidade.
61. O progenitor trabalhava na construção civil de forma irregular, ao passo que a progenitora estava novamente desempregada e tinha a perspetiva de requerer o RSI.
62. Os progenitores continuavam em conjunto, a visitar semanalmente a B… apesar da duração das visitas ir progressivamente diminuindo.
63. Face à manifesta persistência de alguns dos fatores de perigo que justificaram o acolhimento residencial da criança - ausência de condições habitacionais, de capacidades parentais dos progenitores, respetiva instabilidade pessoal, emocional, afetiva e profissional - foram os pais da B… alertados para tal facto e sugerida a manutenção da medida de promoção e proteção em execução.
64. No dia 25 de setembro de 2017 foi celebrado o acordo de promoção e proteção com vista à manutenção da execução da medida de acolhimento residencial por 6 meses, obrigando-se a progenitora "frequentar o CAF AP e os progenitores a manter a casa arrumada e limpa".
65. A partir e dezembro de 2017 a B… passou a realizar visitas com pernoitas na habitação dos pais, com intervenção e supervisão do CAF AP, notando-se a mesma, nesses períodos, mais faladora e segura.
66. Na mesma data os progenitores tinham uma dívida na mercearia de cerca de €.100,00.
67. Subsistiam constrangimentos relacionados com a organização e higienização habitacional, planeamento e organização da lista de compras, conflitos com a família alargada e encobrimento por parte da progenitora da sua situação laboral.
68. Em abril de 2018, foi realizada nova avaliação da situação pela EMAT, notando-se uma evolução no enquadramento da criança no jardim de infância, foi intervencionada às adenóides contando com o acompanhamento da mãe, que passou a estar, de novo, mais presente na sua vida.
69. A EMAT colocou à apreciação do Tribunal a eventual alteração da medida de promoção em execução para a de apoio junto dos pais, com supervisão muito próxima do CAFAP, sendo certo que não estava afastada a possibilidade de persistir perigo, nessas circunstâncias, para a criança.
70. Para apreciação da proposta foi designada pelo Tribunal conferência que decorreu no dia 23 de maio de 2018, com a presença dos progenitores, dos técnicos da EMAT e do CAFAP.
71. Durante a visita domiciliária na ida da B… a casa no fim de semana, não havia alimentos para lá daqueles que a Casa de Acolhimento havia remetido, a cozinha estava muito suja e o exterior da habitação parecia o de uma casa inabitada.
72. O CAFAP providenciou pela entrega ao casal de um cabaz alimentar.
73. O casal “nunca está em casa quando tenta fazer as visitas e arranja variadas desculpas para justificar a sua ausência” o que dificultou o acompanhamento por parte da equipa.
74. Na mesma data os progenitores tinham uma dívida na mercearia de cerca de €100,00.
75. A alteração da situação constada nas últimas visitas pela equipa de acompanhamento impos a inversão do caminho que então se começava a traçar.
76. A execução da medida de acolhimento residencial da B… foi por acordo prorrogada por 3 meses.
77. Em junho de 2018 o pai da B… foi trabalhar para França.
78. O pai da B… mantinha contactos telefónicos regulares com a casa de acolhimento.
79. Em 29 de agosto de 2018 foi elaborado relatório pela casa de acolhimento do qual consta que "apesar da relação de afeto que une a B… à sua família biológica ser muito forte, a dúvida persiste nas dificuldades justificadas pela debilidade apresentada por ambos os progenitores o que compromete o entendimento e consequente cumprimento das orientações apresentadas. Aliado a este facto existe uma ausência de retaguarda familiar que possa funcionar como modelo positivo efetivamente existem fragilidades significativas no contexto familiar de ambos os progenitores. Pelo exposto vemos com preocupação o regresso da B… ao seu meio natural ... não se vislumbrando que a situação se modifique num futuro próximo".
80. Em 17 de outubro de 2018 a medida de promoção em execução foi prorrogada por mais três meses.
81. A partir de novembro de 2018 a mãe deixou de cumprir o plano de visitas acordado, apresentado como razões, ora motivos de saúde, ora avarias na linha de comboio.
82. A mãe da B… no início de novembro de 2018 encetou nova relação amorosa com individuo de nome N…, residente em Vila Verde, que conheceu nas redes sociais e para junto de quem se mudou.
83. Simultaneamente, o pai da B… deixou de telefonar à B…, mantendo o telemóvel desligado.
84. Por decisão judicial proferida a 23 de novembro de 2018 foram suspensas a visitas da B… a casa dos pais.
85. Os filhos da tia paterna da B…, O… são objeto da intervenção do sistema protetivo no âmbito do processo nº 741/14.5TBPNFB-J2 deste Juízo de Família e Menores, tendo solicitado o respetivo acolhimento residencial "devido à falta de apoio por parte da progenitora ... a progenitora apresenta serias limitações que não obstante toda a intervenção desenvolvida não lhe permitiu adquirir competências parentais".
86. A F…, tia paterna da B… tem uma filha de 12 anos entregue aos cuidados dos avós paternos, com quem mantem esporádicos contactos telefónicos ... é beneficiária do RSI, não apresenta noções básicas ao nível sócio económico e é deficitária na gestão do orçamento mensal. Não sabe ler nem escrever. Revela alguma debilidade no discurso.
87. P…, irmão do pai da B… vive desde dezembro de 2016 maritalmente com Q…, ambos acolhidos no âmbito de PP até 2016. O tio paterno da B… trabalha na S… e a companheira numa loja de artigos de festa, ainda sem situação regular, habitam num apartamento T2, pelo qual pagam 250€ de renda mensal. O tio paterno tem um filho de outro relacionamento, nascido a 15.3.2016, a residir com a mãe, que não visita desde março de 2019 e a quem paga 100 euros mensais a título de prestação de alimentos. Declararam estar dispostos a ajudar o irmão nas deslocações da B… à escola, preparar pequeno-almoço e banho da B….
O casal conheceu a B… acolhida na comunidade de inserção, não mantendo desde então contacto com a B…. Ambos perspetivam ter filhos em conjunto.
88. Quanto às condições de vida do N…: conheceu a mãe da B… nas redes sociais e quando se conheceram pessoalmente, há 6 meses começaram a namorar e a viver juntos.
As despesas são suportadas pelo N…, tendo a D… começado a trabalhar numa cervejaria em Maio de 2019, sendo sua intenção comparticipar nas despesas. Reside num apartamento T2, num 2° andar com boas condições de habitabilidade.
Tem um filho, fruto de relação que terminou em 2016. O menor ficou a residir com a mãe, que emigrou no início de 2018 com o atual companheiro para França. Na sequência da oposição deduzida pelo pai à ida do menor com a mãe, o mesmo ficou a viver com os avós maternos. Há 18 meses que o N… refere não dispor de condições para ter o filho junto de si a tempo inteiro, pelo que foi fixado um regime de visitas de quinze em quinze dias, com pernoitas.
Correu termos em 2017 processo de proteção na CPCJ relativamente ao filho do N…, que transitou para o tribunal em Janeiro de 2018 e no âmbito do qual a 13 de fevereiro de 2018 foi aplicada por acordo medida de apoio junto de outro familiar - no caso os avós maternos.
89. Desde Novembro de 2018 a mãe visitou a filha a 24 de dezembro.
O pai da B… esteve de férias em Portugal entre 22/12/2018 e 06/01/2019 e visitou a filha nos dias 23 e 30 de dezembro.
90. A B… também recebe visitas dos avós e tia maternos.
91. "A B… é a menina acolhida há mais tempo na Casa E…, registou um grande desenvolvimento principalmente nas áreas da linguagem e socialização. Tem uma relação positiva com adultos e pares da Casa, conseguindo progressivamente afirmar-­se, verbalizando os seus interesses".
92. Da avaliação psicológica inicial a que os progenitores foram sujeitos, destacam-se os seguintes factos a) Quanto à mãe:
"evidencia um funcionamento intelectual global inferior à média. (...) revelando dificuldades de desenvolver pensamento crítico, relacionar factos complexos, interpretar e contrastar informação proveniente de diferentes origens e diferentes pontos de vista. A examinanda evidencia dificuldades a nível da compreensão, cálculo mental, abstração, raciocínio e flexibilidade cognitiva, nomeadamente perante situações de maior complexidade e exigência. Estes resultados sugerem que a função executiva (...), perante situações que requerem a ponderação e integração de diversas habilidades cognitivas (devido à maior complexidade) tende a ser inferior ao que seria esperado tendo em conta a idade cronológica. Evidencia também comprometimento a nível da capacidade de atenção (...) e concentração (...), assim como no que respeita às competências mnésicas (...). Relativamente à personalidade, destacam-se as seguintes características: imaturidade psicológica; padrão de vinculação inseguro; dificuldades na autorregulação e ressonância afetiva; carência e dependência afetiva; dificuldades em lidar com situações emocionalmente exigentes (v.g., conflitos familiares, gestão de emoções, negociação de conflitos, etc), com consequente monotorização de comportamentos que podem ser desajustados/impulsivos; dificuldades em lidar com a frustração; dificuldades na avaliação de situações e na resposta autónoma e eficaz às mesmas; dificuldades de adaptação face a circunstâncias de adversidade; locus de controlo externo; baixa autoestima. Revela também comprometimento ao nível das capacidades de concepção, planificação e execução de um objetivo e de uma ação previamente delineados.
No que diz respeito às competências e capacidades parentais, a D… revelou sentimentos muito positivos face à B…, revelando genuína preocupação e interesse face á filha. Apesar de toda esta afetividade (fator protetor da relação materno-filial), dos progressos que a examinanda tem vindo a fazer para se autonomizar e da sua genuína motivação para a mudança, não podemos deixar de considerar que ainda se registam fatores de risco que nos levam a admitir que, na atualidade, a examinanda não se encontra ainda capaz de, autonomamente, assegurar as responsabilidades parentais da pequena B…. A examinanda revela ainda grande dependência de terceiros no desempenho parental. Continua a revelar dificuldades na identificação das principais necessidades, atuais e futuras do menor, revelando ausência de conhecimentos importantes acerca do desenvolvimento da descendente, assim como pobreza de conhecimentos fundamentais para fazer exigências de maturidade, autonomia e responsabilização (progressivas), concordantes com o desenvolvimento da criança. Revelou também dificuldade na identificação de estratégias de resolução de situações de conflito e/ou mais exigentes com a menor, assim como na concretização objetiva de práticas educativas assertivas e construtivas. São também de registar as dificuldades ainda sentidas pela examinanda no que toca à capacidade de organização e gestão da vida familiar quotidiana.
A precariedade económica, com consequente incapacidade de a examinanda se autonomizar em termos habitacionais; de a rede de suporte familiar existente ser pobre e da relação conjugal ser pautada pela instabilidade. ... a examinanda revela grande dependência emocional em relação ao mesmo ("companheiro"), não conseguindo perspetivar um futuro que não passe por esta relação. Todavia, do seu discurso, denotam-­se várias fragilidades no que toca ao companheiro, nomeadamente percurso laboral instável, precário e irregular; mudanças recorrentes de habitação (com grande dependência de terceiros) motivadas por desavenças; dificuldades em termos de estabelecimento de rotinas e hábitos (incluindo higiene); má gestão de prioridades, admite que ainda não reúne as condições mínimas exigidas, estando disponível, interessada, motivada e empenhada em continuar com o importante processo de aprendizagem e consolidação de competências básicas para que tal seja possível ("regressar a casa o mais brevemente possível com a B…").
b) Quanto ao pai "O examinando apresenta um nível sociocultural muito baixo, uma certa indiferenciação de personalidade, e algumas limitações nas suas competências parentais, de carácter crónico, que decorrem quer da incapacidade intelectual de gravidade ligeira que apresenta, quer da indiferenciação da sua personalidade, esta também condicionada pela sua incapacidade intelectual. Estas limitações propiciam uma limitada compreensão de si próprio, uma inadequada interpretação das pistas sociais e necessidades dos outros, nomeadamente dos filhos, uma diminuta capacidade de orientação e de supervisão das atividades escolares dos seus filhos por falta de capacidade e de conhecimento. Apresenta uma situação laboral instável e uma situação social e económica muito precária".
93. O relatório pericial do estudo de avaliação psicológica atualizado do pai concluiu que "dadas as alterações visuo percetivas muito significativas e significativa limitação cognitiva do examinado, que afeta a sua capacidade de compreensão da realidade, consideramos que este não possui capacidade para compreender de modo diferenciado as necessidades da filha. O examinando está muito limitado na sua capacidade para resolução dos problemas e das situações necessárias à criação de condições de estabilidade, estimulação e desenvolvimento da menor. A natureza das suas dificuldades é extensa, o que associado à sua falta de suporte social, ao meio de pertença e experiências prévias, não permite ter a expectativa de ocorrência de mudanças consistentes e auto-reguladas no seu modo de funcionamento".
94. O relatório pericial do estudo de avaliação psicológica atualizado da progenitora concluiu que "dada a sua limitação cognitiva e a superficialidade afetiva, imaturidade, egocentrismo e falta de capacidade introspetiva, a examinada evidenciou muito limitada capacidade de compreensão das necessidades da filha e muito limitada capacidade para resolução dos problemas e das situações necessárias à criação de condições de estabilidade, estimulação e desenvolvimento da menor. A examinanda revelou que relativamente a si própria apresenta dificuldades em se bastar e cuidar de modo autónomo. A natureza das suas dificuldades é extensa, o que associado à sua falta de suporte social e ao meio de pertença e experiências prévias, não permite ter a expectativa de ocorrência de mudanças consistentes e autorreguladas no seu modo de funcionamento".
95. Os progenitores não demonstram condições psicológicas, parentais ou afetivas que lhes permitam, desacompanhados de apoios sistemáticos e continuados, ter a filha B… a seu cargo, sendo certo que se verifica uma priorização absoluta dos interesses egoísticos dos próprios em detrimento dos da filha.
96. O pai da B… no mês de abril de 2019 auferiu na qualidade de aprendiz florestal por conta da sociedade unipessoal, Lda S… 718,40€, com contrato de trabalho ate 27 de setembro de 2019, com período experimental de 30 dias.
97. No dia 3 de abril de 2019 os serviços de qualificação e inserção profissional de Via Verde declararam que D… estava inscrita no curso EFA NS técnico de ação educativa.
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O Tribunal de 1ª instância considerou não provado o seguinte facto:
a - A tia avó-paterna da B…, F… é doméstica e não tem filhos e que vive com o marido, que trabalha em França.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Do direito da criança ser ouvida no âmbito do processo de promoção e protecção e das consequências processuais resultantes da sua não audição
Nas suas alegações recursivas a apelante sustenta registar-se irregularidade no acórdão proferido em 1ª instância, porquanto a B… não foi ouvida em qualquer momento do processo, sendo que, apesar de a mesma já ter capacidade para exprimir a sua opinião, nesse aresto não se apresenta qualquer justificação para a sua não audição.
Que dizer?
Num excurso breve sobre o direito da audição da criança, atente-se, desde logo, na própria Convenção sobre os Direitos da Criança, acolhida na ordem jurídica nacional pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de Junho de 1990, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro, que no seu artigo 12.º estatui “Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.”
De igual modo, nos artigos 3.º e 6.º da Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança adoptada em Estrasburgo, em 25 de Janeiro de 1996, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13 de Dezembro de 2013, e pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de Janeiro, determina-se que: “À Criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela pode solicitar: b) ser consultada e exprimir a sua opinião; Nos processos que digam respeito a uma Criança, a autoridade judicial antes de tomar uma decisão deverá: c) ter devidamente em conta as opiniões expressas da Criança”.
A este respeito recenseie-se ainda o Regulamento (CE) N.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, comummente designado “Regulamento Bruxelas II BIS”.
No que se refere à nossa legislação interna realce-se, em matéria de processo de promoção e protecção, o que se mostra estabelecido no art. 84º da LPCJP, que, sob a epígrafe audição da criança e do jovem, dispõe que “as crianças e os jovens são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção, nos termos previstos nos artigos 4º e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro”.
Diz-nos a alínea c) do nº 1 do art. 4º do último diploma citado que “[a] criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal (…)”.
Por seu turno, dispõe o art. 5.º do mesmo diploma legal que:
“1 - A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz promove a audição da criança, a qual pode ter lugar em diligência judicial especialmente agendada para o efeito.
(...)
6 - Se o interesse superior da criança ou do jovem o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos actos processuais posteriores, incluindo o julgamento”.
Da concatenação destas disposições legais resulta que presentemente é assegurada à criança uma ampla e extensiva oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais que lhe digam respeito.
Nesse contexto, como refere RUI ALVES PEREIRA[2], “o princípio da audição da criança traduz-se: (i) na concretização do direito à palavra e à expressão da sua vontade; (ii) no direito à participação activa nos processos que lhe digam respeito e de ver essa opinião tomada em consideração; (iii) numa cultura da Criança enquanto sujeito de direitos.”
Isto posto, questão que se coloca e que importa dirimir é a de saber a partir de que idade deve a criança ser ouvida.
A reforma legislativa operada pelas Leis nºs 141/2015 e nº 142/2015 (para as quais remete a LPCJP) foi no sentido de fomentar essa audição, sendo que para tal deixou de se falar de idades para realização da mesma, ficando a realização da audição judicial da criança a depender, fundamentalmente[3], do critério da “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade” (cfr. art. 4º, nº 1 al. c)).
A consagração da audição judicial da criança deixou de se filiar num critério objectivo (como, por via de regra, sucedia na lei pretérita, onde se estabelecia a obrigatoriedade de audição relativamente a toda e qualquer criança de 12 anos ou mais), passando antes a assentar em critérios subjectivos de aferição, como a “capacidade de compreensão”, a “maturidade” e o “discernimento”. Esta capacidade de “compreensão suficiente”, ou capacidade de entendimento mínimo, consubstancia-se então numa capacidade de compreensão relativa, assente na capacidade de compreender qual o assunto que será objecto das suas declarações, ou de, pelo menos, identificá-lo, o que, naturalmente, pressupõe uma ponderação casuística a levar a cabo pelo julgador.
Postos estes breves considerandos, perpassa dos autos que a B… (que completará seis anos no próximo mês de fevereiro) não foi efectivamente ouvida no decurso do processo, sendo certo que no ato decisório sob censura não se apresentou qualquer justificação para a dispensa da sua audição, designadamente quanto à sua maturidade (ou falta dela).
Ora, na esteira de jurisprudência que adrede se vem firmando[4], a ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, somente estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade (que se tem considerado ser o caso de crianças com idade inferior a três anos) não o permite ou aconselhe. Dito de outro modo, quando a criança não é ouvida, terá sempre de existir um despacho a reflectir a necessidade ou não da sua audição, devidamente fundamentado.
O problema que tem sido equacionado é o de saber quais as consequências processuais dessa não audição.
Embora não se registe, a este propósito, uma resposta unívoca, afigura-se-nos que essa omissão afeta a validade da decisão final do correspondente processo por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.
Isso mesmo é especialmente sublinhado por SALAZAR CASANOVA[5], quando afirma que as razões que permitem a audição de uma criança em juízo são de “ordem substantiva” e que se devem ao superior interesse da criança, e “assim, onde determinada diligência processual colida com tal interesse, há-de prevalecer este”.
Esta não audição da criança, não justificada, configura, assim, uma falta processual mas também a clara violação de regras de direito material, não devendo um tribunal limitar-se a ver esta omissão numa restrita visão processual, reconduzindo, antes, a falta a uma violação inegável da sua intrínseca validade substancial, ao dito princípio geral com relevância substantiva, e, por isso mesmo, processual.
Procedem, assim, as conclusões 41ª a 43ª formuladas pela recorrente, ficando, nessa medida, prejudicado o conhecimento das demais conclusões recursórias.
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V. DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, anulando o acórdão recorrido e determinando que o processo baixe à 1ª instância a fim se, ou ser ouvida a criança, se a sua capacidade de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição.
Sem custas (art. 4º, nº 2, al. f) do Regulamento das Custas Processuais).

Porto, 4.11.2019
Miguel Baldaia Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
___________________
[1] Aprovada pela Lei nº 147/99, de 1.09, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2003, de 22.08 e pela Lei nº 142/2015, de 8.09.
[2] Em artigo publicado na Julgar Digital, disponível em www.julgar.pt.
[3] Embora se continue a prever, no âmbito do processo tutelar cível, a obrigatoriedade de audição da criança com idade superior a 12 anos (cfr. art. 35º, nº 3).
[4] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 14.12.2016 (processo nº 268/12.0TBMGL.C1.S1) e de 5.04.2018 (processo nº 17/14.8T8FAR.E1.S2), acórdão da Relação de Coimbra de 8.05.2019 (processo nº 148/19.8T8CNT-A.P1), acórdão da Relação de Lisboa de 2.05.2017 (processo nº 897/12.1T2AMD-F.L1-1) e acórdão da Relação de Évora de 25.05.2017 (processo nº 805/12.0TMFAR-B.E1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] O regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho e o princípio da audição da criança, in Scientia Juridica, Tomo LV, n.º 306 – abril/junho 2016, pág. 236; no mesmo sentido milita o já citado acórdão do STJ de 14.12.2016.