Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
868/17.1T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RP20180924868/17.1T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º40, FLS.147-157)
Área Temática: .
Sumário: I - O Estatuto da Ordem dos Advogados não contém qualquer norma que preveja uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.
II - O nº 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.
III - Na alínea e) do n.º 1 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.
IV - Na alínea f) do n.º 1 do mesmo artigo 92º o que se proíbe é apenas a revelação e utilização de factos de que o Mandatário teve conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas em que tenha intervindo.
V - A junção ao processo de correspondência (não confidencial) trocada entre mandatários e onde consta apenas e só que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que o mesmo cheque pode ser reapresentado a pagamento pelo respectivo beneficiário não constitui violação do segredo profissional do advogado nos termos do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 868/17.1T8PRT-B.P1
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Origem: Juízo de Execução do Porto – Juiz 9.
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Decisão singular – arts. 652º, n.º 1 al. c)- e 656º, ambos do CPC.
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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I. RELATÓRIO:
A. Nos autos de embargos de executado em que é embargante B… e são embargados C… e D…, todos identificados nos autos, com data de 26.06.2017, foi proferido o seguinte despacho (sic):
Vêm os embargados alegar que o documento 3 que o embargante junta à petição de embargos está coberto pelo segredo profissional consagrado no artº. 92º. do Estatuto da Ordem dos Advogados não podendo ser divulgado sem autorização do Presidente do Conselho Regional do Porto da referida Ordem.
O embargante defende que o mesmo não está abrangido por tal obrigação de sigilo que só existe relativamente aos factos enunciados nas várias alíneas do nº. 1 do artº. 92º do referido Estatuto.
Dispõe o artº. 92º. nº. 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados que “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste.
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações que vise pôr termo ao diferendo ou litigio.
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
Diz, depois, o nº. 3 do mesmo dispositivo que “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo” e o nº. 4 que “O Advogado pode revelar facto abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente…”. Dispõe ainda o artº. 113º. nº. 1 que “sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caracter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção”.
(…)
Não vindo nem na petição de embargos nem na contestação aos mesmos invocada a existência de quaisquer negociações entre Advogados, nem traduzindo a comunicação em causa a existência de tais negociações, reconduzindo-se à transmissão de uma simples informação sobre a ocorrência de um facto, não pode a questão do sigilo profissional ser equacionada nos termos pretendidos pelos embargados.
Na verdade, não estando em causa factos conhecidos no decurso de negociações, o documento junto aos autos não põe em causa a confiança que deve existir entre cliente e advogado nem a liberdade de negociação entre as partes pelo que, salvo melhor opinião, o documento junto aos autos pelo embargante não é confidencial (veja-se que se tal comunicação tivesse sido enviada diretamente pelo embargante a sua junção aos autos não suscitaria qualquer discussão), inexistindo sequer interesse público na proteção do segredo profissional.
Termos em que se indefere o requerido desentranhamento. “ (sublinhado nosso)
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B. Inconformados com este despacho, dele vieram os embargados interpor recurso de apelação que foi admitido nos termos legais, nele aduzindo alegações e formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
1. No despacho de que se recorre foram cometidos erros na apreciação e aplicação da matéria de direito, impondo-se uma solução totalmente inversa à decidida no despacho ora impugnado, competindo, assim, a este Tribunal ad quem usar dos seus poderes/deveres (funcionais) de censura.
2. O tribunal “a quo” considerou o instituto do segredo profissional do Advogado na vertente do instituto autónomo, aplicando, única e exclusivamente o disposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, ignorando, assim, os seus afloramentos ao longo de todo o Estatuto da Ordem dos Advogados.
3. O segredo profissional, assumindo o princípio basilar e a regra-de-ouro do exercício da atividade da Advocacia, não se esgota no instituto autónomo do artigo acima transcrito, mas também encontra os seus afloramentos ao longo de todo o Estatuto da Ordem dos Advogados, como no Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, Código de Deontologia dos Advogados Europeus, etc..
4. Na apreciação do documento aqui em causa, o tribunal “a quo”, apenas considerou o seu conteúdo como não revelador de factos abrangidos pelo segredo profissional, à luz do regime autónomo, consagrado no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Avogados, tendo, porém, ignorado por completo, o regime específico das relações entre mandatários – correspondência entre Advogados.
5. O artigo 113.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, estabelece que, sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção, sendo que, as comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não sendo sequer aplicável o instituto da prévia autorização do presidente do Conselho Regional respetivo.
6. Sendo certo que a correspondência dirigida do mandatário do embargante/executado ao mandatário dos embargados/exequentes não faz referência à intenção de confidencialidade, a verdade é que TODA E QUALQUER correspondência entre Advogados continua sujeita à obrigação de segredo profissional, só podendo ser dispensada desde que previamente seja objeto do pedido de autorização por parte do Presidente do Conselho Regional (neste sentido, veja-se o Estatuto da Ordem dos Advogados, anotado e comentado, Fernando Sousa Magalhães, artigo 113.º do EOA).
7. A correspondência que indique, expressamente, a intenção de confidencialidade, NUNCA poderá ser sujeita ao pedido de autorização por parte do Presidente do Conselho Regional, contrariamente à correspondência que não indique essa intenção que, apesar de estar coberta pelo segredo profissional, poderá ser dispensada desde que seja previamente, objeto do pedido de autorização.
8. Qualquer correspondência trocada entre mandatários está protegida pelo segredo profissional, não cabendo ao Advogado, contrariamente ao sucedido no caso em concreto, fazer prova, “de per si” do que quer que seja.
9. O tribunal “a quo” não podia ter considerado apenas o regime geral e autónomo do segredo profissional previsto no artigo 92.º do EOA, mas, também o regime especial da correspondência entre mandatários – artigos 111.º e seguintes do EOA.
10. O segredo profissional é o princípio basilar e a regra-de-ouro do exercício da atividade da Advocacia, direcionada, essencialmente, para a proteção dos direitos e interesses legítimos do cliente, porém, também salvaguarda os valores e princípios fundamentais do exercício da profissão do advogado e, por isso, protege, naturalmente, as relações entre mandatários – veja-se o capítulo IV do Estatuto da Ordem dos Advogados.
11. O tribunal “a quo”, não deveria ter admitido o referido documento como meio de prova no presente processo.
12. A junção pelo embargante/executado, do documento sob censura, demonstra, nitidamente, que, antes da entrada em juízo do requerimento executivo, havia sido trocada correspondência entre os dois mandatários, pelo que, tal demonstração por parte do mandatário do embargante/executado é reveladora da violação do dever de segredo profissional, no âmbito de uma negociação extrajudicial.
13. O documento aqui em apreço tem em comum as caraterísticas de ser um correio eletrónico entre Advogados das partes e o seu conteúdo reporta-se à questão em discussão na causa.
14. Face ao princípio da confiança em que se deve estruturar a relação do advogado com o cliente e a contraparte, a junção aos autos pelo ilustre mandatário do embargante/executado, de um documento de correio eletrónico que alegadamente dirigiu ao mandatário dos embargados/exequentes, no âmbito de negociações anteriores à entrada da ação, é violadora do dever de segredo profissional.
15. O documento aqui em apreço demonstra a existência de negociações anteriores à entrada do requerimento executivo, pois, o mesmo refere que “No seguimento do anterior mail informo que se encontra já depositado no banco sacado o valor do cheque (…)”.
16. As expressões “no seguimento do anterior mail” e, ainda “que se encontra já depositado”, são demonstrativas da existência de uma negociação extrajudicial malograda entre as partes e, por isso, nunca poderia ter sido revelado, nos termos do disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea e) e f) e artigo 113.º, ambos do EOA.
17. É altamente reprovável e violador do segredo profissional a junção aos autos, de qualquer das partes, de documentos que demonstrem negociações malogradas anteriores à data da entrada do requerimento executivo, pois, caso o documento aqui em apreço tivesse sido junto aos autos pelo mandatário dos embargados/exequentes, era manifesta a violação do segredo profissional, uma vez que, de acordo com a alínea e), do n.º 1 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, o advogado é obrigado a guardar segredo profissional quanto a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio, ou seja, o mandatário dos embargados/exequentes, que, alegadamente, recebeu o e-mail aqui em apreço e que, alegadamente tinha conhecimento do depósito do cheque, nunca o poderia juntar como prova, sob pena da violação do dever de segredo profissional.
18. A decisão sob censura coloca em risco a imunidade negocial dos advogados, já que ao validar como meio de prova um documento que a parte contrária sujeitou ao regime do segredo profissional, de acordo com o disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea e) e f) e 113.º, ambos do EOA, permite que os mandatários, em representação dos seus patrocinados, possam produzir prova indireta, impedindo, assim, que se possa fazer contraprova de tal documento.
19. Os mandatários das partes são meros representantes dos seus clientes e, por isso, não podem, em nome deles, fazer qualquer tipo de prova, pois, caso contrário, mostra-se violado em absoluto o direito do contraditório que assiste à parte contrária, pois, perante a junção aos autos de um documento por um mandatário judicial, a outra parte ficou impedida de se pronunciar sobre tal documento, uma vez que não poderá fazer a contraprova, por estar vinculada ao segredo profissional, sendo certo que, os embargados desconhecem o envio e veracidade do conteúdo desse mesmo documento.
20. À semelhança do que sucede com outras categorias profissionais, o Advogado está obrigado a guardar segredo relativamente a factos que lhe advenham através do exercício da sua atividade profissional, conforme imposição prevista pelo do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA).
21. Os Advogados desempenham um relevante papel no exercício de uma função de soberania, a administração da justiça, como reconhece o artigo 208.º da Constituição, que estabelece sob a epígrafe “Patrocínio forense”, em que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.
22. O segredo profissional dos advogados não tem a mesma natureza e significado que o dever de segredo vigente para outras categorias profissionais ou entidades (banqueiros, jornalistas, funcionários de finanças, etc.).
23. O segredo profissional não visa salvaguardar qualquer interesse, mais ou menos disponível, do próprio advogado, mas interesses de outrem (do cliente e de outros cidadãos, incluindo colegas) e os altos interesses da Justiça e do Estado de Direito.
24. O direito-dever de segredo profissional dos advogados é um direito particular análogo aos direitos, liberdades e garantias.
25. Como direito do advogado, o segredo profissional é uma forma de escudar o advogado de pressões tendentes à revelação de factos, com prejuízo do exercício independente da sua profissão.
26. É outrossim um modo de salvaguardar o ambiente de confiança que deve rodear o exercício profissional da advocacia livre.
27. Como dever, o respeito do advogado pelo segredo profissional tem como beneficiário principal e proeminente o cliente.
28. O segredo profissional, sendo radicalmente um dever para com o cliente, já que sem ele sempre seria impossível o estabelecimento da relação de confiança, resulta também de um compromisso da Advocacia com a sociedade.
29. Na verdade, a função social desempenhada pelos Advogados implica, para além da independência e isenção, o reconhecimento do seu papel como confidentes necessários.
30. O dever de guarda de segredo profissional corporiza aquilo que a doutrina vem chamando de regra de proibição de produção de prova, expressão que prefere a consideração de regra de proibição de valoração de prova.
31. A tese do tribunal “a quo” é manifestamente insustentável, pois é violadora dos princípios basilares do Processo Civil, nomeadamente o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, o princípio da igualdade das partes, previsto no artigo 4.º do mesmo código e, ainda, o princípio da boa-fé processual, estabelecido no artigo 8.º do CPC.
32. O mandatário do embargante/executado, no alegado envio desse e-mail ao mandatário dos embargados/exequentes, violou ainda as regras do processo, pois, não utilizou o endereço de correio eletrónico registado pela Ordem dos Advogados.
33. O mandatário do embargante/executado abusou das regras do Processo Civil, bem como, dos deveres deontológicos que a atividade da Advocacia está adstrita.
34. O documento sob censura está sujeito ao dever de segredo profissional – artigo 92.º, n.º 1, alínea e) e f) e artigo 113.º, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados – bem como a sua admissão como meio de prova resulta, claramente, numa violação dos princípios basilares do Processo Civil, nomeadamente o princípio do contraditório, da igualdade e da boa-fé - requer-se a V. Exa. se digne ordenar o seu desentranhamento dos autos, não podendo o mesmo fazer prova em juízo – artigo 92.º, n.º 4 do EOA.
35. Como poderão os embargados/exequentes fazer contraprova do referido documento com especial relação com o 1º tema da prova, e cuja junção foi admitida? Se tal documento resulta das negociações entre advogados…
36. Será igualmente admitida a prestação de”depoimento” pelo mandatário do embargante/executado?
37. Será admitida a prestação de ”depoimento” pelo mandatário dos embargados/exequentes para contraprova do 1º tema da prova?
38. Impõe-se, assim, a substituição da decisão de admissão do documento aqui em apreço como meio admissível de prova, por outra que rejeite o mesmo como meio de prova, pela violação do dever de segredo profissional e, ainda, pela violação dos mais elementares princípios de Processo Civil.
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C. O embargante ofereceu contra-alegações nas quais, em síntese, pugnou pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso, delimitado pela apelante nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do CPC), consubstancia-se apenas na seguinte questão de saber: - se é ilegal a decisão de admitir o documento junto aos autos pelo embargante como n.º 3 (com a sua petição de embargos) e, ao contrário do decidido, esse documento deveria ter sido desentranhado dos autos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
A factualidade relevante para efeitos decisórios é a que consta do relatório que antecede e ainda o conteúdo do citado documento n.º 3 e que é o seguinte (sic):
“Assunto: FWD FW
De: B… «B1…@gmail.com»
Data:14.02.2017 15:56
Para: F… «F….G…@H…»
--- Mensagem encaminhada----
De: I… «I1…@gmail.com»
Data: 7 de janeiro de 2017 às 16:19
Assunto: FW
Para: B… «B1…@gmail.com»
De: I… [mailto: I1…@gmail.com]
Enviada: sexta-feira, 6 de janeiro de 2017 17:09
Para: J…/ Advogado / J1… e Associados
Assunto: FW
Exmº Colega:
No seguimento do anterior mail informo que se encontra já depositado no banco sacado o valor do cheque (e acréscimos) N.º …….., emitido sobre o D… e que aguarda que o seu cliente o reapresente a pagamento.
Com os melhores cumprimentos
I…“
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como já antes se expôs, a questão que se suscita no presente recurso e que este Tribunal Superior é chamado a dirimir consiste em saber se o documento n.º 3, cujo conteúdo acima se reproduziu, se encontra coberto pelo sigilo profissional que decorre do Estatuto Profissional dos Advogados, caso em que tal documento não deveria ser admitido como meio de prova, ou, ao invés, se, como se mostra decidido pelo Tribunal de 1ª instância, o mesmo documento não se mostra coberto por aquele sigilo profissional e, assim, logicamente, é o mesmo de admitir como meio de prova.
Neste conspecto, o dissenso entre o entendimento perfilhado na decisão recorrida (secundado pelo embargante nas suas contra-alegações) e o entendimento perfilhado pelos embargados/recorrentes reconduz-se, em primeiro lugar, à interpretação dos artigos 92º, n.º 1, alínea e) e f) e 113º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015 de 9.09.
Com efeito, se bem se alcança das conclusões do recurso, segundo os recorrentes a interpretação do Tribunal de 1ª instância quanto aos citados normativos deveria ter, ao contrário do decidido, em razão do preceituado no n.º 5 do mesmo artigo 92º, conduzido à inadmissibilidade de tal documento n.º 3, pois que o mesmo documento se integra nas hipóteses contempladas nos ditos normativos, ou seja, encontra-se o seu teor abrangido pelo sigilo profissional que vincula o Mandatário Forense do embargante.
Vejamos.
O aludido artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados preceitua o seguinte:
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
(…)
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. “ (negrito nosso)
Por seu turno, prevê o artigo 113º do mesmo Estatuto da Ordem dos Advogados [doravante designado por EOA] o seguinte:
“ 1 - Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado ou solicitador, tenha caráter confidencial, deve exprimir claramente tal intenção.
2 - As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 92.º “
Dito isto, é, desde logo, em nosso ver e com o devido respeito, evidente que o documento n.º 3 ora em causa não se mostra compreendido na previsão normativa do citado artigo 113º.
Com efeito, o que o dito normativo consagra – como, aliás, o referem (e bem) os próprios recorrentes – é a estrita proibição de o Advogado revelar o conteúdo de comunicações que lhe sejam dirigidas por outro seu colega de profissão, quando este último (o declarante) lhe exija, de forma expressa, a respectiva confidencialidade.
Nesta hipótese, e como resulta de forma clara do n.º 2 do citado artigo 113º ao afastar a aplicação do n.º 4 do artigo 92º (que se refere à autorização do Conselho Regional respectivo para o levantamento do sigilo profissional), não é admissível ao receptor de tal comunicação (declaratário/Advogado) revelar o conteúdo da mesma, não sendo sequer possível obter autorização para tanto junto do respectivo Conselho Regional da Ordem.
Porém, no caso dos autos e do documento ora em apreço, não só não está em causa uma comunicação recebida pelo Mandatário Forense do embargante, mas uma comunicação expedida por este a um outro seu colega Advogado, como, ainda e sobretudo, não existe qualquer menção de confidencialidade, seja ela expressa ou tácita.
Por conseguinte, a hipótese a que alude o artigo 113º do EOA não é aplicável ao caso dos autos, não representando, pois, a junção de tal documento por parte do Mandatário Forense do embargante e a sua admissão como meio de prova pelo despacho ora recorrido uma violação de tal norma estatutária e do seu sentido, conforme se expôs.
Coloca-se, no entanto, à luz da argumentação dos recorrentes, a questão de saber se a junção de tal documento pelo Mandatário Forense do embargante e a sua admissão pelo Tribunal de 1ª instância encerra a violação dos comandos que resultam do preceituado no artigo 92º, n.º 1, alíneas e) e f), acima descritas.
Como é pacífico, o dever de sigilo profissional que impende sobre o Advogado tem a sua razão de ser na necessidade de preservar o princípio da confiança, sendo que o exercício da advocacia assume reconhecido interesse público, dada a natureza social dessa função.
Como se consagra no n.º 2.3.1. do Código de Deontologia dos Advogados Europeus: “ É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado.
A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado. “
E como forma de salvaguardar e proteger esse dever de sigilo profissional, acrescenta-se no n.º 2.3.2 que “O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional. “ [1]
Neste sentido, como se refere no AC desta Relação de 7.07.2010 [2] “ Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de elevado interesse público. “ E, ainda, refere-se em outro passo do mesmo aresto que “ O segredo profissional é um direito e um dever do advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial.“
Em idêntico sentido, refere-se, no que tange ao âmbito do segredo profissional em caso de negociações entre as partes representadas por Mandatário Forense, no Acórdão desta Relação de 28.10.2015 [3] que nas “ negociações, tendentes a evitar o recurso aos tribunais, se espera um comportamento de boa fé e se age com uma certa dose de confiança. Aliás, o esforço de fazer sentir à parte contrária as razões próprias obriga a que se abra o jogo e se digam factos que não se devem converter em trunfos para o adversário.
Em suma, sendo provável a existência, nestas negociações, do objectivo de conseguir uma transacção, é natural que se façam cedências ou concessões cuja revelação se não quer.“
Dito isto e tendo, pois, por indiscutível o relevo do sigilo profissional que impende sobre o Advogado e, ainda, que os meios de prova obtidos com violação de tal dever de sigilo não podem ser admitidas e fazer prova em juízo, importa, no entanto, considerar, como se salienta nos dito aresto desta Relação de 28.10.2015, ou, ainda, no Acórdão desta mesma Relação de 10.11.2015 [4] que o Estatuto da Ordem dos Advogados não prevê uma qualquer norma de onde “ decorra uma proibição genérica de revelação ou de junção a processos de correspondência trocada entre advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.“
O nº 3 do citado artigo 92º apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo.
Portanto, nem todos os factos estão abrangidos pelo sigilo profissional, mas apenas aqueles que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, ou, ainda, no âmbito de negociações que visem pôr termo ao litígio, tenham essas negociações obtido o almejado acordo de interesses (judicial ou extrajudicial) ou não tenham obtido esse acordo (negociações malogradas), pois que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, o mesmo não os revelaria a mais ninguém.
Por conseguinte é este, em nosso ver, o preciso e específico sentido do artigo 92º do EOA e é, logicamente, com tal interpretação que o mesmo deve, pois, ser aplicado o caso dos autos.
Ora, sendo assim, o documento n.º 3 ora em apreço – em função do seu conteúdo – não se integra em qualquer uma das hipóteses do n.º 1 do artigo 92º do EOA e, em particular, não se integra nas hipóteses contempladas nas suas alíneas e) e f).
Com efeito, o dito documento, ao contrário do que sustentam os recorrentes, pelo seu conteúdo, não dá a conhecer quaisquer factos que vieram ao conhecimento do Mandatário do embargante/recorrido no decurso de negociações entre ambos; Ao invés, o dito documento dá apenas nota de ter já existido entre ambos os Srs. Advogados contactos ou troca de correspondência prévia ao mail que constitui o dito documento n.º 3; Todavia, como é bom de ver, a simples troca de correspondência entre Advogados não significa, de per si, que tenham existido negociações entre ambos.
Nestes termos, o dito documento – em função do seu conteúdo (lido e interpretado segundo os cânones interpretativos que decorrem do preceituado no artigo 236º do Código Civil) – não dá conta da existência de quaisquer negociações entre os Srs. Advogados em representação dos respectivos clientes e, por maioria de razão, não dá conhecimento de quaisquer factos integrados e conhecidos, directa ou indirectamente, nesse (inexistente) processo negocial.
Destarte, a junção de tal documento aos autos e a sua admissão pelo Sr. Juiz a quo não comporta a violação do segredo profissional tal como o mesmo decorre da previsão das citadas alíneas e) e f) do artigo 92º do EOA, em contrário do que invocam os recorrentes.
Pode, no entanto, colocar-se a questão de saber se a possibilidade de tal junção infringir a mais genérica alínea a) desse mesmo n.º 1 do artigo 92º, onde se estatui que o advogado é obrigado a guardar segredo no que respeita a factos que vieram ao seu conhecimento no exercício da sua actividade, exclusivamente, por revelação do cliente ou que lhe foram revelados por ordem deste.
Não pode, contudo, ignorar-se que os factos cujo conhecimento advenha para o advogado em virtude do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços não são todos e quaisquer factos, mas apenas aqueles que tenham vindo ao seu conhecimento em situação tal que, pela relação de confiança criada com o respectivo cliente, seja indesculpável deontologicamente a sua revelação.
Acontece que não é de modo manifesto a situação dos autos.
Como já se assinalou, a documentação em causa corresponde tão só a um mail que foi enviado pelo Mandatário do recorrido ao Mandatário dos recorrentes em que aquele primeiro dar a conhecer a este último que o valor correspondente a um determinado cheque já se encontra depositado no banco sacado e que esse cheque pode ser reapresentado a pagamento. Nada mais.
Como assim, a junção ao processo de um mail com tal conteúdo não envolve factos que tenham vindo ao conhecimento do advogado em contexto tal que torne a sua revelação como deontologicamente reprovável em face do seu cliente, que, naturalmente, lhe deu (ao seu Advogado) a conhecer esse facto para o comunicar à outra parte, através do seu Advogado, sendo certo que é corrente que tais assuntos, em vez de serem tratados directamente pelos clientes, sejam tratados pelos seus Advogados.
E sendo assim, em conclusão, nada obsta à luz do EOA à junção aos autos de tal documento e, consequentemente, nenhuma censura é possível dirigir ao despacho (ora recorrido) que o admitiu.
A última questão que importa apreciar, já não no âmbito do dever de sigilo profissional – antes dirimida -, é, no âmbito adjectivo ou processual, a de saber se a admissão de tal documento consubstancia a violação do princípio da igualdade das partes, consagrado no artigo 4º, o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3º, n.º 3, ou, ainda, o princípio da boa-fé processual, consagrado no artigo 8º do CPC.
Cremos ser evidente – com o devido respeito – que admissão de tal documento, a coberto de um despacho judicial que expressamente reconheceu da sua admissibilidade legal à luz do regime do sigilo profissional que emerge do EOA (ora confirmada por este Tribunal), não confronta qualquer um dos ditos princípios.
Desde logo, não viola o princípio do contraditório, pois que a parte contra quem esse documento (pré-constituído), enquanto meio de prova, é oferecido, não está inibida ou impedida de sobre ele se pronunciar, nomeadamente de contraditar o seu valor probatório. Aliás, os ora recorrentes assim o fizeram, tendo, além do mais, sustentado a inadmissibilidade legal de tal documento, o que mereceu oportuna decisão judicial do Tribunal de 1ª instância, interposição de recurso e decisão nesta outra instância superior; Não se vislumbra que outro contraditório poderia ser cumprido.

Relativamente ao princípio da igualdade das partes também não se vê em que medida o mesmo possa ter sido desrespeitado. O recorrido procedeu à junção aos autos dos meios probatórios que legalmente lhe são consentidos e os recorrentes tiveram também oportunidade para o fazerem, oferecendo os meios de prova legais que tiveram como pertinentes. Por outro lado, ainda, e como já se referiu, os recorrentes não estão, de algum modo, impedidos ou inibidos de contraditarem e impugnarem, nos termos legais, o conteúdo do dito documento.
Sendo assim, como é, não ocorre qualquer violação do princípio da igualdade, antes cabendo a cada parte, em plena igualdade (independentemente dos meios de prova que cada uma das partes logra produzir nos autos, desde que legalmente admissíveis, como é o caso), a produção dos meios de prova que comprovem os factos por si alegados e cujo ónus de prova lhe incumbe e a infirmação dos factos alegados pela parte contrária.
Por último, também não ocorre qualquer violação do princípio da boa-fé processual e dos deveres de cooperação entre as partes, na estrita medida em que não pode ter-se como violação daquela cooperação ou da boa-fé que deve presidir à conduta processual das partes e do Tribunal a junção aos autos e admissão judicial de um documento, cuja admissibilidade legal é, em nosso ver e como antes se expôs, indiscutida.
Na verdade, e em particular quanto ao Tribunal o mesmo não tem que fazer, nesta fase (de admissão dos meios probatórios oferecidos pelas partes), uma aferição do seu valor probatório, antes lhe incumbe apenas aferir da sua admissibilidade legal – proferindo despacho a admiti-los, como fez - e permitindo o exercício do respectivo contraditório pela parte contrária, como também sucedeu.
E assim sendo, à luz do antes exposto, manifestamente infundado o recurso interposto pelos recorrentes, a título singular, na qualidade de Juiz Relator (art. 656º, n.º 1 do CPC), deve ser decretada a sua improcedência, o que se julga.
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III. DECISÃO:
Pelos fundamentos expostos, decide-se, na qualidade de Juiz Relator (arts. 652º, n.º 1 al. c) e 656º, ambos do Código de Processo Civil), julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
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Custas do recurso pelos apelantes, que ficaram vencidos – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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DN.
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Porto, 24.09.2018
Jorge Seabra
(A presente decisão não segue na sua elaboração as regras do Novo Acordo Ortográfico)
(Processado em computador e revisto pelo Signatário)
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[1] Aprovado por deliberação na sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 13 de Julho de 2007 e tornada pública pela Deliberação n.º 2511/2007 de 7 de Dezembro, publicada no DR, II ª Série, de 27 de Dezembro.
[2] AC RP de 7.07.2010, Processo n.º 10443/08.6TDPRT-A.P1, relator EDUARDA LOBO, disponível in www.dgsi.pt
[3] AC RP de 28.10.2015, Processo n.º 3705/11.7TBSTS-B.P1, relator RODRIGUES PIRES, disponível in www.dgsi.pt.
[4] AC RP de 10.11.2015, Processo n.º 964/11.9TBMAI-D.P1, relator TOMÉ RAMIÃO, disponível no mesmo sítio.