Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
335/04.3IDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIMES TRIBUTÁRIOS
SUSPENSÃO DO PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP20150923335/04.3IDPRT-A.P1
Data do Acordão: 09/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Para que ocorra a suspensão do processo prevista no artº 47º1 RGIT não basta a pendência da impugnação judicial tributária ou oposição à execução fiscal, mas é ainda necessário que a qualificação criminal dos factos imputados dependa da definição da concreta situação tributária ali em discussão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 335/04.3IDPRT-A.P1
Porto

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 335/04.3IDPRT, da Instância Local do Porto, Secção Criminal, Juiz 5, da comarca do Porto, foi determinada a suspensão do processo criminal, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (doravante designado apenas por RGIT), por despacho judicial datado de 10 de fevereiro de 2015, com o seguinte teor:
“Requerimentos de fls. 954 a 956 e 1033 a 1035:
Compulsados os presentes autos, constata-se que os arguidos, B… e C…, encontra-se pronunciados, em autoria material, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, nºs 1 e 2 do R.G.I.T., aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5-6.
Ora, conforme decorre de fls. 957 a 993 e 1042 a 1068, encontra-se no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, um processo de oposição à execução fiscal, sob o nº …………4247, em que se discute a situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados nos presentes autos ao arguido, B….
Atento o exposto, e face ao disposto no art. 47.º, nº 1 do R.G.I.T., defiro o requerido pelo arguido, B…, e, em consequência, suspendo o presente processo penal tributário, ficando igualmente suspenso o prazo de prescrição do procedimento criminal, conforme decorre do estatuído no art. 21º, nº 4 do R.G.I.T., até se verificar o trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida em tal processo de oposição à execução.
Notifique.”
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
i. “Em 29/09/2006 foi deduzida acusação contra o arguido B… imputando-lhe, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105º, 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias (R.G.I.T.).
ii. A materialidade imputada ao arguido consiste na não entrega dos montantes devidos ao Fisco a título de I.R.S. retido nos salários de trabalhadores.
iii. Os tributos, nos termos do disposto no art. 91º, com referência aos artigos 92º e 94º, todos do CIRS, na redação dada pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, deveriam ter sido entregues até ao dia 20 do mês seguinte a que respeitavam, ou seja, in casu, até ao dia 20 de janeiro de 2003. Tais prestações, contudo, não foram entregues nessa data nem nos 90 dias subsequentes.
iv. O recurso é interposto do despacho judicial de fls. 1072 e 1073, datado de 10/02/2015, e notificado ao Ministério Público em 12/02/2015, no qual se determinou a suspensão do processo penal tributário até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida sobre a oposição deduzida pelo aqui arguido (e aí oponente) B…, no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º …………4247, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, por se ter entendido que nesse processo se discute situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados nestes autos.
v. De acordo com o disposto no art. 204º do CPPT existe um numerus clausus de fundamentos que podem sustentar a oposição deduzida na execução fiscal, sendo certo que nem todos são necessariamente integrantes do pressuposto material exigido pelo art. 47º, 1 R.G.I.T., a saber, a capacidade de influir na qualificação criminal dos factos imputados no processo penal.
vi. Não será, assim, a mera oposição formulada na execução que terá a virtualidade de acionar o mecanismo no art. 47º, 1 C.P., importando analisar cuidadamente como se manifesta a questão suscitada no âmbito do processo penal
vii. O conteúdo do conceito de “questão prejudicial”, integrado à luz do princípio da suficiência do processo penal, impõe que se conclua que a necessidade legal de efetuar a suspensão do processo penal fiscal, como decorrência da interposição de oposição à execução fiscal, reduzir-se-á às situações em que se mostra imprescindível à decisão da verificação dos elementos típicos da infração penal-fiscal, de tal forma que se arvora à categoria de um precedente lógico-jurídico, de natureza autónoma e determinante da forma como a questão prejudicada vai ser conhecida.
viii. A finalidade da oposição deduzida pelo arguido B… é a anulação dos efeitos da reversão que determinou a sua posição de executado, pelo que o conjunto de argumentos aí invocados serve um só propósito: evitar que o seu património responda pelas dívidas da sociedade D…, Lda., da qual a administração fiscal o tem por legal representante.
ix. São os argumentos de facto, independentemente da relevância jurídica que o próprio lhes atribui, que o arguido faz elencar na oposição que deverão ser atendidos pelo tribunal para delimitar qual a questão prejudicial e a adequação da referida oposição para fazer desencadear o efeito de suspensão do processo penal
x. A alegada inconstitucionalidade da reversão das coimas, a suficiência do património da executada, a nulidade da citação (para a execução, note-se), a falta de fundamentação do despacho de reversão ou a falta dos pressupostos legais para a reversão da execução não têm a mais ínfima relevância para a questão jurídico-penal que se trata nestes autos e que se configura na prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
xi. Assim se decidiu no AcRC de 03/07/2013, proferido no Proc. n.º 17/08.7IDLRA, em cujo sumário se pode ler: “A oposição à execução fiscal, com fundamento na falta dos pressupostos legais da responsabilidade subsidiaria efectivada por reversão (art. 23º da Lei Geral Tributária), não determina a suspensão do processo penal previsto no art. 47º do R.G.I.T.”
xxii. A eventual prescrição da prestação tributaria, analisada à luz das normas do ordenamento jurídico-tributário, não tem qualquer influência na punibilidade da conduta criminosa imputada ao arguido, que será analisada no estrito âmbito da disciplina jurídico-penal: uma eventual prescrição das obrigações fiscais de entrega das quantias retidas e não entregues nos cofres do Estado a título de I.R.S. devido pelos trabalhadores da sociedade D…, Lda., não interfere de qualquer forma na qualificação jurídico-criminal dos factos que integram o objeto destes autos.
xiii. Quanto às questões relacionadas com a liquidação do imposto e, mais precisamente, com a respetiva notificação, o arguido não as deixa de colocar no âmbito da relevância que estas têm na fundamentação da reversão, pelo que não será de extrapolar qualquer efeito para a qualificação jurídico-penal dos factos que integram o objeto dos autos.
xiv. Na oposição deduzida pelo arguido não se mostram alegados factos que, desde logo, integrem as alíneas h) ou i) do n.º 1 do art. 205º CPPT, uma vez que havia já sido apresentada a impugnação das liquidações em fase anterior (o que suscitou a suspensão da fase de instrução), pelo que foi efetivamente exercido o direito de impugnação do ato de liquidação, donde a suposta ilegalidade de tal liquidação não constituir fundamento válido da oposição e, portanto, não poder ser conhecida por esta via.
xv. O arguido não invoca na oposição a falta de notificação das liquidações do tributo no prazo de caducidade, limitando-se a referir que não foram notificadas, questão que fica aquém daquela outra que o 205º, 1, e) CPPT contempla.
xvi. A tudo acresce que na oposição não são minimamente identificadas as prestações a que se referem as liquidações alegadamente não notificadas, sendo certo que o processo de execução fiscal integra diversas liquidações, referentes a variados impostos (I.R.S., IRC, I.V.A.), ficando por saber a quais concretamente se refere a oposição.
xvii. Nessa medida a oposição não contém em si elementos que permitam concluir que se dirige às liquidações das prestações tributárias que estão em causa nos presentes autos de processo comum singular.
xviii. Para que se entendesse estar perfeitamente delimitada uma questão prejudicial que justificasse a suspensão dos termos do processo crime impunha-se, no mínimo, que ficasse estabelecida a identidade do tributo “impugnado” com o I.R.S. retido e não entregue nos cofres do Estado, que se refere na acusação. Tal, contudo, não acontece.
xix. A delimitação da questão a decidir é tão deficitária, incipiente, vaga e imprecisa, que não habilita o tribunal a aquilatar da efetiva verificação dos pressupostos do art. 47º, 1 R.G.I.T.
xx. Nessa medida, a decisão que decidiu suspender o processo penal não assentou num conhecimento suficiente do âmbito da alegada questão prejudicial, pelo que não estava em poder de elementos que permitissem afirmar a verificação da previsão normativa do referido art. 47º R.G.I.T.
xxi. Pelo exposto, por não estarem demonstrados os pressupostos do art. 47º, 1 R.G.I.T., máxime, no que respeita à determinação de que na oposição deduzida pelo arguido se discute situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputado, o despacho recorrido fez uma errada aplicação do direito, assim violando o disposto no referido art. 47º, 1 R.G.I.T. e no art. 7º C.P.P., pelo que deverá ser revogado.
xxii. Em 29/09/2006 foi deduzida acusação contra o arguido B… imputando-lhe, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105º, 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias (R.G.I.T.).
xxiii. A materialidade imputada ao arguido consiste na não entrega dos montantes devidos ao Fisco a título de I.R.S. retido nos salários de trabalhadores.
xxiv. Os tributos, nos termos do disposto no art. 91º, com referência aos artigos 92º e 94º, todos do CIRS, na redação dada pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, deveriam ter sido entregues até ao dia 20 do mês seguinte a que respeitavam, ou seja, in casu, até ao dia 20 de janeiro de 2003. Tais prestações, contudo, não foram entregues nessa data nem nos 90 dias subsequentes.
xxv. O recurso é interposto do despacho judicial de fls. 1072 e 1073, datado de 10/02/2015, e notificado ao Ministério Público em 12/02/2015, no qual se determinou a suspensão do processo penal tributário até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida sobre a oposição deduzida pelo aqui arguido (e aí oponente) B…, no âmbito do Processo de Execução Fiscal n.º …………4247, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, por se ter entendido que nesse processo se discute situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados nestes autos.
xxvi. De acordo com o disposto no art. 204º do CPPT existe um numerus clausus de fundamentos que podem sustentar a oposição deduzida na execução fiscal, sendo certo que nem todos são necessariamente integrantes do pressuposto material exigido pelo art. 47º, 1 R.G.I.T., a saber, a capacidade de influir na qualificação criminal dos factos imputados no processo penal.
xxvii. Não será, assim, a mera oposição formulada na execução que terá a virtualidade de acionar o mecanismo no art. 47º, 1 C.P., importando analisar cuidadamente como se manifesta a questão suscitada no âmbito do processo penal
xxviii. O conteúdo do conceito de “questão prejudicial”, integrado à luz do princípio da suficiência do processo penal, impõe que se conclua que a necessidade legal de efetuar a suspensão do processo penal fiscal, como decorrência da interposição de oposição à execução fiscal, reduzir-se-á às situações em que se mostra imprescindível à decisão da verificação dos elementos típicos da infração penal-fiscal, de tal forma que se arvora à categoria de um precedente lógico-jurídico, de natureza autónoma e determinante da forma como a questão prejudicada vai ser conhecida.
xxix. A finalidade da oposição deduzida pelo arguido B… é a anulação dos efeitos da reversão que determinou a sua posição de executado, pelo que o conjunto de argumentos aí invocados serve um só propósito: evitar que o seu património responda pelas dívidas da sociedade D…, Lda., da qual a administração fiscal o tem por legal representante.
xxx. São os argumentos de facto, independentemente da relevância jurídica que o próprio lhes atribui, que o arguido faz elencar na oposição que deverão ser atendidos pelo tribunal para delimitar qual a questão prejudicial e a adequação da referida oposição para fazer desencadear o efeito de suspensão do processo penal
xxxi. A alegada inconstitucionalidade da reversão das coimas, a suficiência do património da executada, a nulidade da citação (para a execução, note-se), a falta de fundamentação do despacho de reversão ou a falta dos pressupostos legais para a reversão da execução não têm a mais ínfima relevância para a questão jurídico-penal que se trata nestes autos e que se configura na prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
xxxii. Assim se decidiu no AcRC de 03/07/2013, proferido no Proc. n.º 17/08.7IDLRA, em cujo sumário se pode ler: “A oposição à execução fiscal, com fundamento na falta dos pressupostos legais da responsabilidade subsidiaria efectivada por reversão (art. 23º da Lei Geral Tributária), não determina a suspensão do processo penal previsto no art. 47º do R.G.I.T.”
xxxiii. A eventual prescrição da prestação tributaria, analisada à luz das normas do ordenamento jurídico-tributário, não tem qualquer influência na punibilidade da conduta criminosa imputada ao arguido, que será analisada no estrito âmbito da disciplina jurídico-penal: uma eventual prescrição das obrigações fiscais de entrega das quantias retidas e não entregues nos cofres do Estado a título de I.R.S. devido pelos trabalhadores da sociedade D…, Lda., não interfere de qualquer forma na qualificação jurídico-criminal dos factos que integram o objeto destes autos.
xxxiv. Quanto às questões relacionadas com a liquidação do imposto e, mais precisamente, com a respetiva notificação, o arguido não as deixa de colocar no âmbito da relevância que estas têm na fundamentação da reversão, pelo que não será de extrapolar qualquer efeito para a qualificação jurídico-penal dos factos que integram o objeto dos autos.
xxxv. Na oposição deduzida pelo arguido não se mostram alegados factos que, desde logo, integrem as alíneas h) ou i) do n.º 1 do art. 205º CPPT, uma vez que havia já sido apresentada a impugnação das liquidações em fase anterior (o que suscitou a suspensão da fase de instrução), pelo que foi efetivamente exercido o direito de impugnação do ato de liquidação, donde a suposta ilegalidade de tal liquidação não constituir fundamento válido da oposição e, portanto, não poder ser conhecida por esta via.
xxxvi. O arguido não invoca na oposição a falta de notificação das liquidações do tributo no prazo de caducidade, limitando-se a referir que não foram notificadas, questão que fica aquém daquela outra que o 205º, 1, e) CPPT contempla.
xxxvii. A tudo acresce que na oposição não são minimamente identificadas as prestações a que se referem as liquidações alegadamente não notificadas, sendo certo que o processo de execução fiscal integra diversas liquidações, referentes a variados impostos (I.R.S., IRC, I.V.A.), ficando por saber a quais concretamente se refere a oposição.
xxxviii. Nessa medida a oposição não contém em si elementos que permitam concluir que se dirige às liquidações das prestações tributárias que estão em causa nos presentes autos de processo comum singular.
xxxix. Para que se entendesse estar perfeitamente delimitada uma questão prejudicial que justificasse a suspensão dos termos do processo crime impunha-se, no mínimo, que ficasse estabelecida a identidade do tributo “impugnado” com o I.R.S. retido e não entregue nos cofres do Estado, que se refere na acusação. Tal, contudo, não acontece.
xl. A delimitação da questão a decidir é tão deficitária, incipiente, vaga e imprecisa, que não habilita o tribunal a aquilatar da efetiva verificação dos pressupostos do art. 47º, 1 R.G.I.T.
xli. Nessa medida, a decisão que decidiu suspender o processo penal não assentou num conhecimento suficiente do âmbito da alegada questão prejudicial, pelo que não estava em poder de elementos que permitissem afirmar a verificação da previsão normativa do referido art. 47º R.G.I.T.
xlii. Pelo exposto, por não estarem demonstrados os pressupostos do art. 47º, 1 R.G.I.T., máxime, no que respeita à determinação de que na oposição deduzida pelo arguido se discute situação tributária de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputado, o despacho recorrido fez uma errada aplicação do direito, assim violando o disposto no referido art. 47º, 1 R.G.I.T. e no art. 7º C.P.P., pelo que deverá ser revogado.”
*
O recurso foi admitido por despacho datado 18 de março de 2015.
*
Respondeu o arguido B…, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do provimento do recurso, por considerar que no processo tributário em curso o arguido não promoveu a discussão de qualquer questão prejudicial cuja decisão possa influir na decisão do processo penal.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na sequência do que o arguido B… respondeu, reafirmando encontrarem-se preenchidos os presupostos previstos no artigo 47.º do RGIT, para efeitos de suspensão do processo penal tributário.
*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer [1].
1. Questão a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é a de saber se se verificam os pressupostos de que depende a suspensão do processo penal tributário, nos termos previstos no artigo 47.º, nº 1 do RGIT.
*
2. Elementos processuais com interesse para a decisão

1. Em 29.09.2006 foi deduzida acusação contra os arguidos B…, C… e a sociedade C…, Lda., imputando-lhes, a cada um deles, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105º, 1 e 2 do RGIT.
Consistindo a materialidade fática imputada aos arguidos na não entrega dos montantes devidos ao Fisco a título de retenções efetuadas nos salários de trabalhadores, em conformidade com a obrigação que para aqueles resultava de acordo com as normas do Código do Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares (C.I.R.S.). As prestações, nos termos do disposto no artigo 91º, com referência aos artigos 92º e 94º, todos do C.I.R.S., na redação dada pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de dezembro, deveriam ter sido entregues até ao dia 20 do mês seguinte a que respeitavam, ou seja, in casu, até ao dia 20 de janeiro de 2003. Tais prestações, contudo, não foram entregues nessa data nem nos 90 dias subsequentes.
2. O arguido C… requereu a abertura de instrução.
3. Por requerimentos entrados nos autos em 09.01.2007, a arguida D…, Lda. e o arguido C… requereram a suspensão do processo penal tributário ao abrigo do disposto no art. 47.º, 1, do R.G.I.T., alegando ter sido apresentada impugnação judicial da liquidação do imposto devido.
4. Na sequência do que foi proferido despacho que determinou a suspensão dos autos.
5. Em 26.04.2013, foi proferido despacho em que foi declarada cessada a suspensão, na sequência do conhecimento do trânsito em julgado da decisão judicial que recaiu sobre a impugnação, que absolveu a Fazenda Pública da instância.
6. A 13.05.2013 foi proferida decisão instrutória de pronúncia quanto ao arguido que requereu a instrução, C….
7. Os autos foram remetidos para julgamento, tendo em 03.09.2013 sido proferido o despacho a que alude o disposto no artigo 311.º, do Código de Processo Penal e marcada a audiência de julgamento.
8. Por despacho de 13.01.2014 foi declarada a extinção da responsabilidade criminal da sociedade arguida.
9.Em 04.09.2014 o arguido B… apresentou um requerimento com o seguinte teor:
(transcrição)
“1. No dia 02/02/2011, deduziu o ora Arguido oposição à execução fiscal no processo n.º …………4247 e respectivos apensos, tendo-a apresentado naquele mesmo dia no Serviço de Finanças do Porto-3, cfr. Doc. n.º 1 que se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais.
2. A dívida que subjaz à referida execução fiscal refere-se, entre outros, aos actos de liquidação de IRS, reportados aos exercícios de 2000 e 2001, de que é devedora originária a sociedade D…, Lda., titular do NIPC ……….
3. Do acabado de expor resulta que naquele processo de oposição à execução estão em causa os mesmos impostos cuja falta de entrega à Autoridade Tributária e Aduaneira fundamenta a acusação deduzida contra o aqui Arguido.
4. Para além do mais, no âmbito daquele processo de oposição à execução foi já produzida toda a prova testemunhal, em 13/03/2012, e apresentadas as competentes alegações escritas, aguardando, assim, tal processo apenas a prolação de sentença, conforme registo de processo retirado do SITAF que se junta (Doc. 2).
5. Assim, sendo dada razão ao Oponente, aqui Arguido, transitada em julgado a respectiva decisão, falece a possibilidade de voltar o mesmo a ser importunado com diligências que visem apurar da bondade do seu comportamento, uma vez que ela, para todos os efeitos, se deve ter por consolidada.
6. Com efeito, sem obliterar o princípio da suficiência do processo penal, a censura penal de um determinado comportamento pretensamente evasivo não se acha divorciada do que se passe ao nível declarativo propriamente dito.
7. Aliás, apurando-se definitivamente que nada é devido pelo aqui Arguido ao erário público, fica demonstrada a inexistência de qualquer comportamento censurável.
8. Especialmente considerando que, de um ponto de vista puramente dogmático, a efectiva pretensão tributária, ainda que em termos de mera susceptibilidade, é parte integrante do elemento objectivo do tipo criminal.
9. Ora, dispõe o n.º 1 do art.º 47.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que:
«Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças».
10. Significa isto que, nos casos em que estiver pendente um processo em que se discuta a existência do facto de que dependa a existência da infracção criminal, o processo penal tributário deverá ser suspenso até ao trânsito em julgado da respectiva sentença.
11. Verifica-se, assim, que estando ainda em discussão a exigibilidade ao Arguido do imposto de que depende a qualificação criminal dos factos ora imputados ao Arguido, por via de oposição à execução fiscal.
12. De onde resulta que a qualificação criminal dos factos em apreciação no presente processo depende irremediavelmente da definição da situação tributária que se discute naquele processo de oposição á execução.
13. Pelo que se encontram integralmente verificados os pressupostos previstos no supra transcrito art.º 47.° do RGIT, para efeitos de suspensão do processo penal tributário, pelo que se impõe seja a mesma ordenada, com todas as consequências legais e até trânsito em julgado da aludida Oposição, o que se impetra.
Termos em que requer a V. Exa. que se digne ordenar a suspensão do presente processo até trânsito em julgado da oposição à execução fiscal na qual se discute o facto tributário de que depende a existência da infracção criminal imputada ao arguido, com a consequente desmarcação da audiência de julgamento designada para o próximo dia 11/09/2014, às 9:30 horas, tudo nos termos do art. 47°, n.º do R.G.I.T.”
Com o requerimento acabado de transcrever foi apresentada cópia simples da oposição deduzida no Processo de Execução Fiscal n.º …………4247, do Serviço de Finanças do Porto– 3.
Em tal oposição estão invocados os seguintes argumentos de facto, neles sustentando o aqui arguido (e aí oponente) a sua pretensão:
(transcrição)
“B· Factos:
2) O Oponente nunca foi validamente citado para a acção de execução em causa nos presentes autos.
3) Só em Janeiro de 2011 o Oponente teve conhecimento da certidão de verificação da hora certa, emitida pelo Serviço de Finanças de Cascais 2 (…) (cfr. Doc. 2),
4) O qual designou o último dia 29 de Dezembro de 2010 às 10 horas como dia e hora para realização da citação com hora certa, 5) Não tendo o Oponente comparecido na data indicada no mesmo ofício, por não ter tido em absoluto conhecimento do mesmo, por facto que não lhe é imputável.
6) Não obstante, até à presente data, o Oponente não sabe nem tem como saber quais terão sido os fundamentos de facto e de direito que terão legitimado o despacho que ordenou a reversão da execução,
7) Sabendo única e exclusivamente os factos que foram alegados em sede de notificação para o exercício do direito de audição prévia,
8) Sendo que na verdade, a DGCI não alegou qualquer facto constitutivo do direito à emissão do despacho de reversão,
9) Uma vez que a DGCI se limitou a fazer referências genéricas para as normas da LGT que legitimam o exercício da reversão, designadamente o disposto nos artigos 23.0 e 24.0 da mesma lei.
10) Ao exposto acresce que o Oponente não sabe as razões pelas quais as liquidações que deram origem às execuções não foram pagas,
11) Nem as razões pelas quais as mesmas liquidações foram emitidas.
12) O Oponente apenas tem conhecimento que as execuções em causa nos presentes autos, respeitam a dívidas de IRS, IRC, IVA e coimas relativas aos exercícios de 1999,2000 e 2001 (cfr. Doc. 3),
13) As quais respeitam a liquidações emitidas pela DGCI em 2003 (PEF …………4247 -IVA 2001),
14) A liquidações emitidas pela DGCI nos anos de 2001, 2002 e 2003 (PEF …………4280 - IVA),
15) Bem como a liquidações emitidas no ano de 2004 (PEF: …………0824 - IVA 2003 (T06); PEF: …………1001 - IRC 1999; PEF: …………9622 - Coimas 2004),
16) No ano de 2005 (PEF: …………8250 - IVA 2000 a 2003; PEF: …………8250 - IVA 2000 a 2002),
17) Também no ano de 2005 foram emitidas as liquidações de IRC relativas a 2000 (PEF …………6211),
18) Bem como a liquidação de IRC relativa a 2001 e 2002 (PEF: …………1010).
19) Ao exposto acresce, que os PEF n.º: …………9555 (Coimas 2005); PEF: ............3949 (IRC 2003); PEF: …………5988 (IVA 2003/2004); PEF: ............7085 (IRC 2004); PEF: …………4022 (Coimas 2006), que constam do documento junto aos autos como Doc. 3, não constam da notificação do oponente para exercício do direito de audição prévia (cfr. Doc. 1),
20) O que significa que os mesmos processos não foram objecto de reversão.
21) Ao exposto acresce que, o Oponente foi gerente da sociedade até meados de Agosto de 2001,
22) Tendo cessado funções em Agosto de 2001.
23) Tendo o Oponente deixado de praticar qualquer acto de gerência,
24) Designadamente, deixando de tomar qualquer decisão no que respeita ao pagamento dos impostos,
25) Bem como deixando de tomar qualquer decisão no que respeita à contratação de trabalhadores,
26) Ou mesmo relativamente à contratação com fornecedores.
27) Em consequência da cessação de funções por parte do Oponente, conforme consta da certidão permanente com o código de acesso ………-…., em 8 de Agosto de 2001 foram designados dois novos gerentes da sociedade.
28) Ademais, o Oponente foi sempre um gestor diligente,
29) Sendo que, quando o mesmo deixou de ser gerente da executada, a mesma estava a funcionar em pleno,
30) Com um volume de facturação na ordem dos três milhões de euros.
31) Ademais, à data em que o Oponente saiu da sociedade, a mesma tinha a receber da parte dos clientes, um saldo superior a 750.000,00 €, o qual era exigível a noventa dias,
32) Não dispondo a executada, àquela data de saldos incobráveis.
33) Ademais, do património da executada faziam parte máquinas e viaturas avaliadas em 1.903.518,00 €,
34) Sendo que, na altura em que o Oponente saiu, a Executada estava a efectuar o pagamento de impostos atrasados, relativos aos exercícios de 1998 e 1999.
35) Sem conceder, o Oponente teve conhecimento que após a sua saída, a executada começou a sofrer graves problemas financeiros,
36) Motivados única e exclusivamente por questões de mercado,
37) Uma vez que houve um aumento desmesurado da oferta de sociedades dedicadas à mesma actividade da Executada, artes gráficas,
38) Ao mesmo tempo que houve uma agravada diminuição da procura, motivada designadamente pela súbita dispersão da oferta. 39) Não obstante, a DGCI não ponderou se a executada dispunha de bens suficientes para satisfazer os créditos executados,
40) Sendo que nem tão pouco avocou os processos de execução fiscal em causa nos presentes autos, ao processo de falência da executada o qual correu termos com o n.º de processo 484/04.8TYVNG no 1.° Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia (cfr. Doc. 4),
41) Uma vez que na sua totalidade, os processos de execução fiscal em causa nos presentes autos, foram instaurados antes da data em que foi decretada a falência da executada,
42) A qual foi decretada em 24 de Novembro de 2006.
43) Porquanto, do exposto nos presentes autos resulta que, não pode a DGCI pretender obter o pagamento das dívidas em execução através de processo de reversão, numa situação em que o meio próprio para obter o pagamento dos créditos é através de reclamação de créditos em processo de falência.”
Aos factos invocados o arguido faz corresponder as seguintes questões de direito:
a) Prescrição das obrigações tributárias;
b) Inconstitucionalidade da reversão das coimas;
c) Suficiência do património da Executada;
d) Nulidade da citação;
e) Falta de fundamentação;
f) Inexigibilidade da dívida exequenda;
g) Falta de pressupostos legais para a reversão da execução;
Termina a oposição pedindo a anulação do despacho que determinou a reversão ou caso assim não se entenda, a anulação do processo de execução fiscal, com as demais consequências legais.
10. Em 09.10.2014 o Ministério Público emitiu parecer no sentido de não estarem verificados os pressupostos do artigo 47º, n.º 1 R.G.I.T., por entender que as questões suscitadas na oposição à execução fiscal não contendem com a qualificação criminal dos factos que integram o objeto do processo.
11. Na sequência de solicitação do Tribunal, foi junta aos autos certidão da oposição à execução apresentada por B… no Processo de Execução Fiscal n.º …………4247, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
12. Em 10.02.2015, foi proferido o despacho recorrido, já transcrito no início deste acórdão, que deferindo o requerimento do arguido B…, supra referido em 9., decidiu a suspensão dos presentes autos com fundamento no artigo 47.º, n.º 1 do R.G.I.T., por entender que se encontra “pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto um processo de oposição à execução fiscal, sob o número …………4247, e em que se discute a situação tributaria de cuja definição depende a qualificação criminal dos factos imputados nos presentes autos ao arguido B…” .
***
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Insurge-se o recorrente contra o despacho que determinou a a suspensão do presente processo penal tributário, nos termos do disposto no artigo 47º, n.º 1, do RGIT, por considerar não se verificarem os respetivos pressupostos legais.
Vejamos.
O artigo 7.º, do Código de Processo Penal, consagra o princípio da suficiência do processo penal, segundo o qual nele devem ser resolvidas todas as questões relevantes para o conhecimento do seu objeto.
Em manifesto desvio a tal princípio, estabelece o artigo 47.º, n.º 1, do RGIT:
“Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respetivas sentenças”.
Da mera leitura do texto desta disposição resulta que tal suspensão não é automática, na medida em que não basta a pendência de impugnação judicial tributária ou oposição à execução fiscal para a determinar, sendo concomitantemente necessário que, naquelas lides, “se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados”. Aliás, este segmento do preceito, que não constava da sua redação original, foi nele introduzido pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, precisamente com intenção de o clarificar definitavamente nesse aspeto.[2]
A suspensão do processo penal tributário só será pois obrigatória quando a questão em discussão na impugnação judicial/oposição à execução se apresente como uma verdadeira questão prejudicial no processo penal em curso, nos termos do preceituado pelo n.º 2, do artigo 7º, do Código de Processo Penal [3], ou seja, quando a decisão dessa questão (prejudicial) seja absolutamente indispensável para a decisão do crime fiscal ou tributário (questão prejudicada), relativamente à qual se assume como um verdadeiro “antecedente jurídico-concreto”, de caráter autónomo [4].
Ainda a este propósito, Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos explicam que “… neste artigo 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objecto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT, constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal. Naturalmente que a suspensão só se justificará nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal … Infere-se do regime previsto neste artigo que existe uma opção legislativa no sentido da primazia da jurisdição fiscal para apreciação de questões tributárias, o que tem plena justificação no carácter especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a uma jurisdição especializada e não à jurisdição comum, em que se inserem os tribunais criminais.”[5]
O certo é que, uma vez verificados os pressupostos do artigo 47.º, n.º 1 do RGIT, a suspensão do processo penal é decretada ope legis e até ao trânsito em julgado da decisão da questão prejudicial pela jurisdição tributária, o que consubstancia um regime especial relativamente ao que, em geral, a lei processual penal prevê para os casos de prejudicialidade de questões não penais em processo penal, em que a suspensão é sempre decretada ope judice e por um prazo, ainda que prorrogável, findo o qual a questão será decidida no processo penal [6].
Impondo-se assim o regime decorrente daquele artigo 47.º do RGIT como verdadeira regra especial e obrigatória, relativamente ao princípio geral da suficiência do processo penal, do artigo 7.º, do Código de Processo Penal, [7].
*
Revertendo agora ao caso sub judice e comprovado que está que o arguido B… apresentou oposição à execução contra si instaurada no processo de Execução Fiscal nº …………4247, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, torna-se necessário descortinar se nessa oposição está em causa matéria em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos que lhe são imputados no presente processo penal tributário.
De acordo com os elementos documentais constantes dos autos, aquele arguido figura como executado no referido processo de execução fiscal, enquanto responsável subsidiário, por força da reversão operada quanto à dívida fiscal da sociedade D…, Lda..
A esse processo de execução fiscal está apenso, além de outros, o processo de execução fiscal n.º …………0349, que respeita a dívidas de I.R.S. que remontam a 2000 e 2001, que integram a quantia exequenda, conjuntamente com outras dívidas, relativas a I.V.A. de 2000 e 2001, IRC de 1999, coima de 2001 e IRC de 2000 e 2001.
Atendo-nos aos períodos temporais em causa e ao tipo de imposto, afigura-se, efetivamente, que as dívidas de I.R.S. que estão a ser executadas no processo de execução fiscal, coincidem em parte com as prestações cuja não entrega é descrita na acusação.
Vejamos agora os fundamentos de tal oposição, a fim de verificarmos se a questão decidenda nessa sede contende, ou não, com a qualificação jurídico-criminal dos factos que se encontram sob julgamento, posto é que, como vimos supra, a mera pendência de oposição à execução fiscal não determina ipso facto a suspensão do processo penal tributário.
Lido o articulado da oposição, que nas suas partes essenciais foi supra reproduzido em 9., logo se alcança que a oposição tem por escopo a anulação da reversão sobre o aí oponente das dívidas fiscais da sociedade D…, Lda., em ordem a evitar que o seu património responda pela dívidas da sociedade, da qual a administração fiscal o tem por legal representante. Para o que invoca a inconstitucionalidade da reversão das coimas, a suficiência do património da executada, a nulidade da citação (para a execução), a falta de fundamentação do despacho de reversão, a falta dos pressupostos legais para a reversão da execução, bem como a sua falta de culpa no desaparecimento do património da empresa.
Recorde-se, contudo, que nos presentes autos de processo penal tributário o recorrente está, com a empresa de que era gerente, acusado da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 2, do R.G.I.T..
Ora, todos aqueles fundamentos da oposição relacionados com a reversão remetem para um período de tempo posterior ao da consumação do crime, ao qual são estranhos, não tendo absolutamente nenhuma relevância para a questão jurídico-penal em causa.
Note-se, que também no que respeita à falta de culpa no desaparecimento do património da empresa, a alegação é feita exclusivamente para impugnar os pressupostos da reversão.
Aliás, quanto a este último ponto, não se pode esquecer que a culpa no processo de reversão não coincide com a culpa jurídico-penal, que é mais exigente. No crime em causa nestes autos, de abuso de confiança fiscal, é sempre necessário o dolo, o qual se reporta à falta da prestação tributária (com a inversão do título de posse caraterística dos crimes de abuso de confiança). Enquanto que no processo de reversão, para além de a culpa não ter de ser dolosa, reporta-se ao destino dado aos bens patrimoniais que constituem as garantias da execução fiscal.
Como em situação similar se escreveu em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra [8], pode pois concluir-se que “não há uma relação de dependência ou uma questão prejudicial entre o processo de reversão e a impugnação da mesma pelos recorrentes e a responsabilidade criminal destes nos presentes autos.
Aquela reversão tem objectivos e pressupostos diversos, qual seja o de fazer responsabilizar os devedores fiscais pessoas singulares com responsabilidade subsidiária pelas dívidas fiscais de empresas ou pessoas jurídicas institucionais. Mais exactamente, a reversão fiscal é um mecanismo que consiste no chamamento do responsável subsidiário à execução fiscal no processo de execução fiscal, como decorre dos arts 22.º e ss. da Lei Geral Tributária (LGT), e que depende dos seguintes pressupostos : (1) fundada insuficiência patrimonial dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários ou dos seus sucessores; (2) exercício de funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados; (3) culpa no não pagamento da prestação tributária bem como na insuficiência patrimonial.”
É certo que para além dos factos expressamente relacionados com a reversão, na oposição à execução fiscal é alegada, ainda, a falta de notificação das liquidações.
Contudo, também neste ponto o escopo de tal alegação circunscreve-se, em última análise, à responsabilidade do património do oponente pelo cumprimento das obrigações tributárias, ou seja, à relevância que as alegadas faltas de notificação têm na fundamentação da reversão, o que também é alheio à qualificação jurídico penal dos factos que integram o objeto dos autos.
De todo o modo, não pode deixar de se notar que na oposição não são minimamente identificadas as prestações a que se reportam as liquidações alegadamente não notificadas, entre as várias que integram o processo de execução fiscal, referentes a vários impostos (IRS, IRC, IVA), muitos dos quais não estão em causa no presente processo penal. Pelo que não há sequer elementos que permitam concluir com o mínimo de segurança se esse fundamento respeita, ou não, ao IRS retido e não entregue nos cofres do Estado a que se reporta a acusação, o que só por si também sempre impediria que se pudesse considerar existir aqui uma questão prejudicial, que condicionasse a qualificação jurídica do processo penal tributário.
Por outro lado, e ainda no mesmo âmbito da alegada falta de notificação das liquidações, não se pode olvidar que dos autos consta já a impugnação anterior da liquidação do IRS dos anos de 2000 e de 2001, pela devedora originária, a arguida sociedade D…, Lda., sobre a qual recaiu decisão já transitada em julgado (cfr. supra pontos 3 a 5). Circunstancialismo que é legalmente impeditivo de que tal fundamento seja invocado (e consequentemente conhecido) na oposição, posto é que nos termos das als. h) e i), do n.º1, do artigo 204.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), apenas pode constituir fundamento da oposição à execução “a ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação”, sendo ainda possível ser fundamento da oposição qualquer outro que não esteja contemplado nas restantes alíneas “a provar apenas por documento, desde que não envolvam apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda, nem representem interferência em matéria de exclusiva competência da entidade que houver extraído o título.”
Resta a alegação da prescrição das dívidas tributárias, que também é invocada como fundamento da oposição à execução, com o que pretende o oponente eximir-se a qualquer responsabilidade patrimonial pelo pagamento das dívidas tributárias exequendas.
Note-se, no entanto, que a alegação da prescrição dessas dívidas é feita por referência às normas do segmento ordenativo da fiscalidade.
Ora, como é sabido, a prescrição das dívidas tributárias não se confunde com a prescrição dos ilícitos criminais que correspondem às ações geradoras de tais dívidas, já que são absolutamente distintos os respetivos fundamentos.
O crime tributário, necessariamente tipificado numa norma penal, tem pressupostos próprios, que são os respetivos elementos típicos, que transcendem o incumprimento da obrigação tributária, ainda que a possam pressupor, enquanto elemento histórico, verificado em particulares circunstâncias temporais.
Por sua vez, a responsabilidade tributária, ou seja, a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações fiscais, tem na sua origem a inobservância de norma própria do ordenamento jurídico tributário.
A responsabilidade penal tributária e a responsabilidade tributária são pois realidades distintas, que surgem, se mantêm e se extinguem de forma independente entre si.
A cada uma dessas responsabilidades correspondem, inclusive, específicas causas de extinção. Assim, da mesma forma que o cumprimento de pena aplicada por crime tributário não exonera do pagamento da obrigação tributária que possa ter estado na sua origem, também a satisfação da prestação tributária não implica necessariamente e de per si a extinção da pretensão penal. Aliás, se assim não fosse, “Para os senhores do crime haveria sempre o perdão ao alcance do talão de cheques. Isso seria uma invasão do direito penal pelo direito tributário, usando promiscuamente o direito penal ao serviço do direito tributário, mostrando que a conduta do agente só é reprovável socialmente até ao momento do pagamento do crédito tributário”[9].
Pelo que também a eventual prescrição das obrigações fiscais de entrega das quantias retidas e não entregues nos cofres do Estado a título de IRS devido pelos trabalhadores da sociedade arguida D…, Lda., em nada interfere com a qualificação jurídico-criminal dos factos que integram o objeto dos presentes autos.
*
De tudo assim decorrendo, em síntese conclusiva, não se verificar a prejudicialidade das questões discutidas na oposição à execução fiscal, já que a decisão que nela vier a ser proferida pela jurisdição tributária não é suscetível de condicionar a qualificação jurídico-criminal dos factos que se encontram sob julgamento.
Não há pois qualquer motivo para declarar a suspensão do processo penal tributário, nos termos do artigo 47.º do RGIT, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
***
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso interposto, em consequência do que se revoga o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que indefira a requerida suspensão do processo penal.
Sem tributação.
*
Porto, 23 de setembro de 2015
Elaborado e revisto pela relatora (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)
Fátima Furtado
Elsa Paixão
_________
[1] Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Na esteira de alguma ambiguidade na aplicação desta norma, se bem que a jurisprudência já tivesse maioritariamente tal entendimento; veja-se a título meramente exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01.02.2006, no proc. nº.0515213 – anterior áquela alteração de 2006 -, disponível em www.dgsi.pt.
[3] “Quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida essa questão no tribunal competente”.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, págs. 164 e 165.
[5] In Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 3.ª edição, Áreas Editora, 2008, pág. 400 e segs.
[6] Cfr. artigo 7.º, nºs 2 e 4, do Código de Processo Penal.
[7] cfr. Reis Bravo, Revista do Ministério Público nº.115, Jul-Set 2008, pág.105; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, “Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado”, 2008, pág.399/405; Alfredo José de Sousa, “Infracções Fiscais não Aduaneiras”, 3.ª edição - anotada e atualizada, 1998, pág.218.
[8] Acórdão do TRC, de 03.07.2013, proferido no Proc. nº 17/08.7IDLRA, disponível em www.dgsi.pt.
[9] In Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, UCP, Lisboa, 2009, p. 129,