Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1067/19.3PVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE COAÇÃO SEXUAL
CRIME DE COAÇÃO SEXUAL AGRAVADO
ATO SEXUAL DE RELEVO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE
INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: RP202304191067/19.3PVNG.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Estando em causa a prática de factos suscetíveis de integrar crime de coação sexual, o n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal (na redação introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto) atribui ao Ministério Público poderes para iniciar o procedimento criminal, desde que tenha a perceção de que a vítima não formalizou tempestivamente queixa em virtude de circunstâncias que, de alguma forma, a dissuadiram de o fazer, mas que no caso não excluam o seu – da vítima, não do Ministério Público – interesse em que o procedimento criminal tenha lugar, situação que se pode designar de “semipublicidade híbrida”.
II - Ainda que não se anteveja a viabilidade de sindicância jurisdicional da decisão do Ministério Público de proceder criminalmente com base em tal critério, sempre se dirá que as circunstâncias de a pessoa ofendida não manifestar a sua rejeição de que seja instaurado e prossiga o procedimento criminal, e de participar no curso deste mostrando–se sempre disponível para qualquer intervenção que lhe seja solicitada, não deixarão de ser indícios sólidos de que a avaliação do Ministério Público terá sido adequada e criteriosa.
III - A alegada omissão pelo Ministério Público de um pressuposto formal da acusação oportunamente deduzida nos autos, consubstanciaria nulidade sanável nos termos do artigo 120.º do Código de Processo Penal, pelo que, respeitando à fase de inquérito, deveria ter sido suscitada nos cinco dias subsequentes à notificação ao interessado (arguido) do despacho de acusação (aquele que encerrou o inquérito).
IV - Logo que aberta a audiência de julgamento – ato procedimental que encontra expressa previsão no n.º 3 do artigo 329.º do Código de Processo Penal, note–se – sem que seja arguida, ou até apreciada e declarada oficiosamente, a incompetência territorial do tribunal para o julgamento, fica imediatamente precludida a possibilidade de tal questão ser suscitada e conhecida nos autos, situação até expressamente salvaguardada do vício de nulidade nos termos da parte final da alínea e) do artigo 119.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
V - Constitui ato de natureza sexual relevante para efeitos de preenchimento da tipicidade do crime de coação sexual previsto no artigo 163.º do Código Penal, a atuação do arguido que beija a ofendida na boca, não se vislumbrando outra motivação para proceder dessa forma senão o de satisfazer os seus instintos e desejos sexuais na altura.
VI - Para configurar a existência de violência para os efeitos da agravação prevista no nº2 do artigo 163.º do Código Penal, não é necessário qualquer ato de agressão ou sequer uma especial intensidade determinante de qualquer tipo de sequela corporal, antes sendo suficiente que o contacto físico executado pelo agente sobre o corpo da vítima seja tão só o mínimo adequado e suficiente para impedir a reação desta última.
VII - No âmbito das circunstâncias determinantes da agravação do crime de coação sexual previstas no artigo 177.º. n.º 1, b) do Código Penal, a dependência hierárquica, económica ou de trabalho, tem em vista as situações em que está em causa o aproveitamento e abuso pelo agente, designadamente, de uma posição de autoridade ou da sua capacidade de influenciar a situação laboral da pessoa ofendida, retirando partido da natureza e dinâmica dessa relação, não obstante por via dela lhe ser mais exigível uma conduta especialmente adequada a essa sua autoridade, e assim ao respeito pelo direito – condição que aumenta o desvalor da ação, justificando, deste modo, a agravação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1067/19.3PIVNG.P1
Referência : 16828154
Tribunal de origem: Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 15 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto



Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) nº 1067/19.3PIVNG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 15, em 17/11/2021 foi proferido Acórdão, cujo dispositivo é do seguinte teor :

«7 - Dispositivo
Nestes termos julga-se parcialmente procedente por provada a douta acusação pública, e, os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo decidem:
Após convolação, condenar o arguido AA:
A) Pela prática em relação a BB de:
- um crime de de coacção sexual agravada, previsto e punido pelos arts. 163.º, n.º 2 e 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
- um crime de de coacção sexual agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos arts.23º, 163.º, n.º 2 e 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
B) Pela prática em relação a CC de:
- 21 (vinte e um) crimes de de coacção sexual agravada, previsto e punido pelos arts. 163.º, n.º 2 e 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;
- um crime de importunação sexual agravado, previsto e punido pelo art.170º nº1 e art.177.º, n.º1, b) todos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

Bem como absolvendo da instância o arguido dos crimes de importunação sexual, p. e p. pelo art.170º do Código Penal, pelo qual deveria ser condenado, após convolação dos crimes de coacção sexual, p. e p. pelo art.163º nº2 do Código Penal, atenta a ausência de queixa tempestiva relativamente aos mesmos.

C) Passando agora ao cúmulo das penas parcelares, ora impostas ao arguido AA, atento o disposto no art.77º nº2 Código Penal, condena-se o mesmo na pena unitária de 4 (quatro) anos de prisão;
D) Decreta-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido AA pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos do disposto no art.50º do C. Penal, mediante a imposição dos deveres e regras de conduta indicados;

E) Vai, ainda, o arguido condenado no pagamento das custas processuais, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida.. »

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 19/12/2022, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões :
1) O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo Mmo. Tribunal a quo o qual julgou “parcialmente por provada a douta acusação pública, e, os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo, decidem:
(…)”
2) A acusação formulada pelo Ministério Público não refere, quanto à alegadamente Ofendida BB, os concretos crimes que são imputados ao ora Recorrente nos arts. 14º, 15º, 17º, 18º, 19º, 20º e 21º da acusação, porquanto limita-se a referir “um crime”, sem mencionar o concreto crime imputado ao arguido.
3) A mesma acusação refere “1 crime” sem mencionar sequer o correspectivo artigo da acusação e, muito menos, o correspondente artigo do Código Penal, cuja previsão hipoteticamente estaria em causa.
4) Esta situação repete-se quanto à alegadamente Ofendida CC, uma vez que a acusação do Ministério Público também não refere, quanto a esta, os hipotéticos crimes que são imputados ao ora Recorrente nos arts. 32º, 33º, 34º, 35º, 35º (menção repetida na acusação, sem qualquer explicação plausível) e 37º da acusação, limitando-se a referir “1 crime”.
5) Como anteriormente, refere “1 crime” sem fazer qualquer alusão, quer ao hipotético artigo da acusação, quer ao artigo do Código Penal que, em tese, estaria em causa.
6) A acusação deduzida pelo Ministério Público é nula, em virtude de não obedecer aos requisitos legais plasmados no art. 283º do Código de Processo Penal (no caso concreto, por não indicar as disposições legais aplicáveis a cada concreta conduta atribuída ao Recorrente).
7) Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 19º do Código de Processo Penal e art. 118º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, o tribunal competente para apreciação do presente processo é o Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, atendendo a que os factos imputados ao Recorrente terão (teriam) ocorrido em Vila Nova de Gaia.
8) A preterição das regras da competência territorial determina a nulidade de todo o processado, por violação do disposto na 1ª parte do nº 1 do art. 32º do Código de Processo Penal.
(…)
54) O crime de coação sexual, previsto e punido no art. 163º do Código Penal, remete para o conceito indeterminado de acto sexual de relevo, sobre o qual a doutrina se tem debruçado, concretamente:
Figueiredo Dias define acto sexual de relevo como “todo o comportamento activo (só muito excepcionalmente omissivo) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica.” In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 447.
55) Também a jurisprudência tem prestado particular atenção a este conceito, destacando-se o douto Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação nº TRP_0610510 de 21.06.2006 in bdjur.almedina.net:
“Quis-se depurar dos chamados crimes sexuais de referências éticas e assentando-se na ideia de que a sexualidade é uma manifestação de auto-realização pessoal, na concreta dimensão da autodeterminação sexual.
Assim, sem deixar de se reconhecer a dificuldade de definir a noção do que sejam “actos sexuais de relevo”, tem-se dito que são aqueles que constituam uma ofenda séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano. [M. Leal Henriques e M. Simas Santos, C. P. Anotado, 2ª ed., 1996]
E, ainda, que como tal só pode ser considerado o acto que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso, haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer petites sexuais. [Maia Gonçalves, C. P. Anot., 8ª ed., p. 624]”.
e
“Buscando jurisprudência entretanto publicada, destacam-se dela as seguintes referências:
“O conceito de acto sexual de relevo não é dado pela lei. O conceito de «atentado ao pudor» era-nos dado pelo nº 3 do art. 205º do Código, antes da última revisão. Já nas actas de revisão daquele diploma consta que o autor do Projecto referiu que «a intenção foi limitar a aplicação deste artigo (então era o 247º) a actos que ofendam em grau elevado os sentimentos gerais de pudor e de moralidade sexual. Ficam de fora atitudes anódinas, como, por exemplo, um simples beijo, que não tem dignidade criminal».
E dentro dos modernos conceitos de criminalidade sexual, «há que erradicar do direito criminal todo o dogmatismo moral, ficando no âmbito dele somente condutas sexuais que ofendam bens jurídicos fundamentais das pessoas no que concerne à sua livre expressão do sexo», como anota Maia Gonçalves. [No C. P. anotado, 8ª edição].”.
56) Neste Acórdão, este Venerando Tribunal considera expressamente que um simples beijo não tem dignidade criminal.
57) E tal é assim, porque porque entende-se que certas zonas do corpo humano não têm conotação sexual (não são consideradas zonas erógenas), mas apenas conotação afectiva e carinhosa (p. ex., face, mãos, cabeça), pelo que são sexualmente inócuas.
58) Embora o Recorrente negue a prática das condutas que lhe são atribuídas, pugnando pela sua absolvição no presente recurso, considerando a hipótese de a posição deste Venerando Tribunal ser outra, não pode deixar de referir (nesse pressuposto) que os elementos constitutivos do tipo legal do crime de coação sexual não se verificaram no caso da Sra. BB.
59) Basta atentar em que não está relatado o uso de qualquer forma de violência (não foi provada e nem sequer invocada), nem qualquer ameaça grave (a alegadamente Ofendida BB passa a trabalhadora efectiva em Maio de 2018 e a lavadeira, em 01.02.20219 - como resulta do doc. junto aos autos).
60) No Natal de 2018, a Sra. BB é vista a sentar-se por sua iniciativa no colo do Recorrente com total à-vontade e sem qualquer constrangimento – a este propósito, depoimento da testemunha DD prestado na sessão de 13.06.2022, de 00:01:52 a 00:02:27.
61) Não se descortina no caso concreto (no pressuposto da validação dos factos provados 10º e 15º) a verificação dos pressupostos processuais do tipo legal de crime de coação sexual.
62) Nos termos do disposto no art. 178º do Código Penal, o procedimento criminal pelos crimes previstos no art. 163º do mesmo normativo depende de queixa – ora, os factos imputados ao Recorrente nos arts. 10º e 15 dos factos provados não mencionam a data da sua ocorrência, mas mesmo que consideremos as datas de Julho de 2017 (facto provado 9º) e de Agosto de 2017 (facto provado 14º), respectivamente, certo é que quando a queixa foi apresentada (05.12.2019) o prazo de 6 meses para apresentação de queixa havia expirado há muito (art. 115º do Código Penal).
63) Mantendo-se o pressuposto da validação dos factos provados relativos à Sra. BB, é manifesto que o Recorrente deve ser absolvido, por o Ministério Público carecer de legitimidade para actuar relativamente aos factos provados referidos (como o douto Acórdão reconheceu em relação aos restantes), porquanto falta um pressuposto processual fundamental – o exercício tempestivo do direito de queixa.
64) Quanto à Sra. CC, o douto Acórdão condena o Recorrente pela prática de um crime de importunação sexual, previsto e punido pelo art. 170º do Código Penal e 21 crimes de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163º/nº 2 do Código Penal, com a agravação prevista no art. 177º/nº 1 – b) do mesmo diploma legal.
65) No que ao crime de importunação sexual se reporta, não se descortina do elenco dos factos provados, a qual se refere o douto Acórdão, uma vez que tal indicação não é feita de forma objectiva, clara e concisa.
66) O Recorrente tem o direito (constitucionalmente consagrado, registe-se) de conhecer os concretos factos que lhe são imputados na decisão condenatória (quer em termos de conteúdo, quer em termos temporais), pois só assim pode usar a faculdade que a lei lhe reconhece de recorrer da mesma.
67) O douto Acórdão não refere em que data foi apresentada a queixa pela alegadamente Ofendida CC e consultado o processo, quer através do sistema Citius, quer presencialmente em Tribunal não se logrou encontrar nos autos tal documento.
68) O acesso à queixa formulada pela Sra. CC é fundamental para a ponderação a fazer, não só em relação ao(s) crime(s) de importunação sexual (art. 170º do Código Penal), mas também em relação ao crime de coação sexual (art. 163º do Código Penal).
69) Ambos os crimes revestem natureza pública, em virtude de se tratar de crimes cujo procedimento criminal depende de queixa, tal como resulta do estipulado no nº 1 do art. 178º do Código Penal (onde é referido o art. 163º, relativo ao crime de coação sexual, e o art. 170º, relativo ao crime de importunação sexual).
70) O comportamento da Sra. CC não é consentâneo com alguém que se diz vítima dos crimes que resultaram na condenação do Recorrente (episódio em que se despede do Recorrente, com o braço nos ombros deste, dizendo “Gosto muito de si” e dando-lhe dois beijinhos no rosto).
71) Também em relação à Sra. CC o Recorrente deve ser absolvido da prática dos crimes de que vinha acusado e relativamente aos quais foi condenado, não só em virtude de não ter sido produzida prova bastante da prática dos mesmos, mas também pela inexistência de queixa crime apresentada pela mesma que permita aferir da tempestividade da respectiva apresentação (atendendo a que os crimes em causa revestem ambos natureza semi-pública).
72) Não estão, consequentemente, reunidos os pressupostos de aplicação das normas relativas à fixação pelo Tribunal de uma indemnização às vítimas especialmente vulneráveis.
73) Os normativos invocados não têm aplicação no caso concreto – Lei nº 130/15, de 04 de Setembro, arts. 82º-A e 67º-A do Código de Processo Penal, art. 271º do Código Penal, arts. 483º, 494º e 496º do Código Civil.
74) O Recorrente não praticou os factos descritos no douto Acórdão, o que determina que falha o primeiro pressuposto, logo, toda a estrutura do instituto da indemnização civil.
75) O comportamento das Sra. BB e Sra. CC é elucidativo do contrário (atente-se no comportamento da Sra. BB sentada no colo do Recorrente, no jantar de Natal de 2018, evidenciando perfeito à-vontade, e no comportamento da Sra. CC que, ao despedir-se do Recorrente, antes de férias, coloca o braço sobre os ombros daquele, dizendo que gosta muito dele e dando-lhe dois beijinhos no rosto) – estes comportamentos não são consentâneos com a estatuto de vítima, não sendo irrelevante que os mesmos são praticados por iniciativa daquelas e evidenciando à-vontade e nenhum constrangimento.
76) As circunstâncias pessoais de cada uma não podem ser também ignoradas – a Sra. BB com problemas familiares e tendo sofrido um aborto, que muito a abalou, e a Sra. CC, sempre preocupada com regimes alimentares, ingerindo bebidas/chás com o propósito de emagrecer e com graves problemas ao nível da saúde mental advindos da perda da Mãe, 17 anos antes.
77) O Recorrente não pode ser condenado no pagamento de qualquer quantia a título de indemnização civil a qualquer uma das Sra. BB e Sra. CC, o que justifica a modificação do douto Acórdão recorrido nestes precisos termos.
78) Em síntese, a douta decisão sob recurso fez uma apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento totalmente desconforme com as regras da experiência comum, que se traduziu em erro notório na apreciação da prova, como resulta das passagens transcritas relativas aos depoimentos prestados, o que determinou a aplicação de normativos que não são aplicáveis ao caso em apreço (nomeadamente, os arts. 163º, 170º, 177º do Código Penal, bem como os normativos respeitantes à indemnização devida a vítimas especialmente vulneráveis – arts. 16º do Estatuto da Vítima, arts. 67º-A/nº 3, 82º-A, 1º/j) do Código de Processo Penal, art. 271º/2 e 5 do Código Penal e arts. 483º/1, 494º e 496º do Código Civil.
79) É linear que na hipótese de a matéria de facto provada não venha a ser alterada, tal como propugnado no presente recurso, os crimes imputados ao Recorrente revestem natureza semi-pública, dependendo da apresentação de queixa pelo ofendido dentro do prazo legal, o qual, no caso da Sra. BB, já expirara (como reconhece o douto Acórdão e vale tanto para o crime de importunação sexual, como para o crime de coação sexual, na sequência do disposto no art. 178º do Código Penal quando à dependência da apresentação de queixa relativamente aos crimes previstos nos arts. 163º e 170º do CP).
80) No caso da Sra. CC não consta do douto Acórdão, por total ausência de indicação nos factos provados, quando foi praticado o crime de importunação sexual imputado ao Recorrente e, quanto aos crimes de coação sexual, não consta a data em que os mesmos hipoteticamente ocorreram, faltando em ambos casos a queixa apresentada, elemento fundamental para determinar da tempestividade do processo.
81) O douto Acórdão recorrido deve ser substituído por outro que julgue o Recorrente absolvido da prática dos crimes de importunação sexual e coação sexual em relação às Sra. BB e Sra. CC e, consequentemente, o absolva do pagamento de qualquer quantia a título de indemnização civil, custas processuais e demais encargos com o processo.
82) O douto Acórdão recorrido violou o disposto no art. 283º e art. 32º do CPP, arts. 115º, 163º, 170º, 177º, 178º do CP, Lei do Estatuto da Vítima, arts. 67º-A e 82º-A do CPP, art. 483º, 494º e 496º do Código Civil.
Termina propugnando dever ser dado provimento ao presente recurso e por via disso:
- ser a acusação proferida pelo Ministério Público considerada nula e de nenhum efeito, em virtude de se verificar a violação do disposto no art. 283º/3/d) e no art. 32º/1 ambos do Cód. de Processo Penal,
- caso assim não se entenda, ser revogado o Acórdão a quo e, em consequência, ser o recorrente absolvido da prática dos crimes em que foi condenado relativamente a BB e CC e, consequentemente, do pagamento de qualquer quantia a título de indemnização cível.
Caso assim não se entenda, deve o recorrente ser absolvido, em virtude de o prazo para apresentação da queixa estar já expirado quanto ao crime de coacção sexual consumado e na forma tentada relativo a BB (arts. 115º, 163º e 178º do Cód. Penal) e, quanto a CC, em virtude de não haver registo da apresentação de queixa pela mesma (tanto no processo electrónico, como no processo físico) – sendo os crimes imputados de natureza semi-pública (coação sexual art. 163º do Cód. Penal, e importunação sexual art. 170º do Cód. Penal), ou seja, dependentes da apresentação atempada de queixa (art. 178º do Cód. Penal), sem queixa, não há procedimento.

O recurso, em 09/01/2023, foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 12/02/2023, concluindo da seguinte forma:
1. Inconformado com o douto acórdão condenatório, vem o presente recurso interposto pelo arguido, alegando que a acusação deduzida pelo Ministério Público é nula, que houve preterição das regras e competência territorial ; insurge-se contra a apreciação que Tribunal fez da prova ; entende que o um beijo não é considerado acto sexual de relevo porque não é zona erógena ; pugna pela absolvição entendendo inexistir lugar ao pagamento de qualquer indemnização e por fim, alega também que as queixas foram extemporâneas, pelo que deverá o arguido ser absolvido.
2. Não se encontrando prevista no art. 119.º do Código de Processo Penal, a nulidade de acusação é sanável, pelo que não tendo sido tempestivamente arguida, no prazo geral de 10 dias, nem tendo sido suscitada no momento de saneamento do processo (art. 311.º do Código de Processo Penal), ou no momento previsto no art. 338.º do mesmo diploma, não poderá ser conhecida enquanto tal em momento posterior.
3. Mesmo que assim não fosse, não podemos deixar de sublinhar a nossa perplexidade com tal alegação, pois a falta de fundamento legal é tão gritante, que o recorrente não a deveria ignorar, evidenciando um uso manifestamente reprovável do presente recurso.
4. Qualquer pessoa que leia a acusação, e não, não precisa de ser jurista, compreende que o Ministério Público imputou ao arguido: “6 crimes de coacção sexual agravada em relação à ofendida BB, previstos e punidos nos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 30.º, n.º1, 163.º, n.º 2, 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, e com a pena acessória, prevista nos artigos, 66.º, n.º1, a, b), 386.º, n.º1, d) do Código Penal; 7 (sete) crimes de coacção sexual agravada em relação à ofendida CC, previstos e punidos nos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 30.º, n.º1, 163.º, n.º 2, 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal , previstos e punidos nos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 30.º, n.º1, 163.º, n.º 2, 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal”. No entanto, o Ministério Público não se limitou a cumprir o que diz a Lei. Teve o especial cuidado de especificar cada crime que imputava por remissão a artigos da acusação, pelo que, é manifesto que inexiste qualquer nulidade.
5. É extemporânea a arguição da incompetência territorial, pois, apenas poderia ter sido deduzida até ao início da audiência de discussão e julgamento (cfr. art. 32.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal). Mesmo que assim, não fosse, por despacho de 15.05.2021, emanado pelo Conselho Superior da Magistratura, renovado em 19.07.2022, foi homologada a proposta da MM.ª Juiz Presidente da Comarca do Porto, de serem afectados para tramitação até julgamento de 1/2 dos processos distribuídos no JCC de Vila Nova de Gaia, aos juízes do JCC do Porto (cfr. processo 2021/DSQMJ/1223, do CSM), pelo que inexiste razão ao recorrente.
6. Por se tratar a uma questão de procedibilidade do procedimento criminal, avançamos, desde já, que a questão de falta de queixa, suscitada subsidiariamente pelo recorrente não tem no caso qualquer fundamento legal.
7. Com efeito, in casu, o Ministério Público deu início ao procedimento nos termos do disposto no art. 178.º, n.º 2, do Código Penal, cumprindo-se o prazo de seis meses da data do conhecimento do facto e porque o interesse da vítima o aconselhava.
8. Após tão acesa discussão sobre a natureza pública ou semi-pública do crime de coação sexual e violação, optou o legislador por esta solução híbrida que permite, por um lado, proteger a vítima que conscientemente não pretende expor a sua intimidade, e por outro, salvaguardar situações em que, em virtude de qualquer vicissitude, não tenha a vítima apresentado formal e tempestivamente queixa.
9. Citamos, porque pertinente, a posição de José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro: “sublinha-se que é apenas nas situações em que o Ministério Público percepciona que a vítima se sente coagida a não expressar a sua livre vontade, e é do seu interesse a descoberta da verdade e punição do agente, que deve dar-se início ao processo sem queixa.” Ora, foi precisamente o caso dos autos, em virtude da relação laboral mantida pelas vítimas com o agressor.
10. Entende o recorrente que o Tribunal teve dualidade de critérios na valoração da prova testemunhal e impugna praticamente toda a factualidade dada como provada e que a matéria de facto era insuficiente para a decisão tomada.
11. Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Como é pacífico, o Tribunal Superior só pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
12. No caso em apreço, sobressalta, com meridiana clareza, que o Tribunal a quo enumerou exaustivamente todos os factos suficientes para a decisão de condenação do arguido (já transcritos supra), pelo que inexiste insuficiência da matéria de facto.
13. Ao contrário do que sustenta o recorrente, o Tribunal não usou de dualidade de critérios, mas apreciou livremente a prova, explicando de forma sustentada o motivo pelo qual atribuiu credibilidade à versão das ofendidas (que explicaram de forma isenta e muito credível o contexto em que os factos ocorreram), e como entendeu não se verificar a teoria da “cabala” alegada pelo arguido.
14. A única “dualidade” que existiu foi de depoimentos. Foi muito perceptível perceber que foram trazidas a juízo dois tipos de testemunhas: os que nada viram (e que ainda mantinham relação laboral como arguido), e os que explicaram o que viram, sendo consentâneos com as versões das vítimas (na sua maioria já não trabalhavam com o arguido e estavam de relações cortadas com este).
15. O Ministério Público bastava-se com o depoimento da vítima e as testemunhas inquiridas que suportavam a versão destas, mas o Tribunal, zelando pela cabal descoberta da verdade material, foi mais longe e determinou a inquirição de EE que, não obstante já não trabalhar no Lar, tinha saído sem ser de relações cortadas com o arguido.
16. E esta, digamos, foi a pedra de toque que permitiu ao Tribunal, sem qualquer dúvida, dar como provados os factos supra elencados.
17. Da prova resulta que os factos ocorriam à frente de todos, os quais ora desculpavam a conduta do arguido, ora, perdoem-se a expressão, faziam “vista grossa”, assim, discordamos da conclusão do recorrente, quando refere que não é credível que o arguido tivesse os comportamentos descritos em 13.º a 16.º de porta aberta, pois outras pessoas trabalhavam no local.
18. Pelos mesmos motivos, também não faz sentido a invocação de que existiram testemunhas que relataram nada ter visto.
19. Invoca o recorrente que existem factos sem indicação das concretas circunstâncias temporais em que os mesmos ocorreram. Ora, nesta parte, também o Tribunal explicou o seu motivo, referindo que e atenta a difusão dos acontecimentos, é extremamente difícil às vítimas concretizar precisamente o que o arguido fez em cada data e lugar.
20. Não se nos afigura pertinente a tomada de esclarecimento de peritos para dar como provados facto que decorrem da prova pericial junta.
21. Não é “arbitrário” o número de 20 vezes referido pelo Tribunal para concretizar os momentos de contacto físico sexualizado. Na verdade, esse foi o número mínimo que com a certeza e segurança suficiente se entendeu dar como assente. Terão decorrido muitas mais vezes.
22. Assim, nenhuma censura merece a apreciação pelo Tribunal da prova produzida.
23. O recorrente entende que o beijo não deverá ser considerado acto sexual de relevo.
Vejamos.
24. Após a revisão do Código Penal de 2007, a construção dos crimes sexuais passou a assentar essencialmente em três patamares distintos com dignidade penal, que traduzem 3 níveis de afronta ao bem jurídico protegido: o mais grave: acto sexual de relevo na forma qualificada (com introdução); o intermédio: acto sexual de relevo e o mínimo coactivo: o contacto integrador de importunação sexual.
25. Importa no caso traçar a fronteira entre o acto sexual de relevo e o contacto integrador de importunação sexual. Citamos, Sénio Alves que entende que ato sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas; e Paulo Pinto de Albuquerque entende que «o contacto de natureza sexual é a ação com conotação sexual realizada na vítima, que não tem a gravidade do ato sexual de relevo. O contacto de natureza sexual pode incluir o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima (…)”.
26. Parece-nos evidente que a boca é uma zona erógena, carregada de sexualidade. É consensual que os beijos de boca são preliminares do sexo e, em nosso entender, atingem um ponto de intimidade tal que não se pode considerar sexualmente inócuo, como pretende o recorrente.
27. Obviamente que devemos atentar ao tipo de beijo e ao contexto em que o mesmo ocorreu para perceber se há um acto sexual de relevo. Contudo, no caso em apreço, não temos qualquer dúvida em considerar que se trata de acto sexual de relevo.
28. Bastará ao Tribunal superior ouvir o depoimento da vítima BB para perceber o nojo e asco que a conduta do recorrente lhe causou, o que nos permite concluir que a conduta não se tratou de um mero ou simples beijo, mas um beijo na boca de modo que colocou em causa da sua liberdade de determinação sexual.
29. O arguido ao beijar na boca da forma como o fez, “coisificou” a vítima e privou-a da sua liberdade de decidir e actuar, como ofenderia a qualquer outra pessoa colocada na posição daquela.
30. Obviamente que o tipo de ilícito é amplo o suficiente para, dentro da moldura penal se graduar a sua ilicitude no ponto médio baixo, como aliás bem fez o Tribunal.
31. Caso assim não se entendesse, integrar-se-ia o beijo na boca no “contacto” integrador de importunação sexual a par do simples toque integrador de importunação sexual, circunstância que nem o Ministério Público nem a comunidade em geral poderá aceitar.
32. Pelo exposto, nenhuma censura nos merece o Tribunal a quo no que concerte à subsunção dos factos ao conceito típico de acto sexual de relevo.
33. A provada conduta do arguido dá lugar a indemnização das vítimas, mesmo como no caso, estas não tenham deduzido PIC.
34. Sendo indubitável que as ofendidas BB e CC assumem a qualidade de vítimas especialmente vulneráveis, nos termos conjugados do disposto nos arts. 67.º-A, n.º 3, 82.º-A e 1.º, al. j), do Código de Processo Penal, bem andou o Tribunal a quo ao atribuir a referida indemnização, nos termos da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, e arts. 483.º, 494.º e 496.º do Código Civil.
35. Por todo o exposto, bem andou o Tribunal a quo ao condenar o arguido, não merecendo qualquer reparo o acórdão ora colocado em crise.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 01/03/2023, no parecer que emitiu propugna pela total improcedência do recurso, considerando que as questões a dirimir no presente recurso foram adequadamente equacionadas e debatidas na resposta do Ministério Público junto da 1ª Instância, que por inteiro sufraga, aditando extensa análise – com profusa referenciação jurisprudencial e doutrinal - sobre os fundamentos do recurso, cuja pertinência afasta pontual e integralmente, e concluindo nos seguintes termos :
«Em jeito conclusivo, com o devido respeito, que para além de sincero é superlativo, os elementos de racionalidade jurídica, factual e intelectual em que se apoiam os alicerces da retórica argumentativa utilizada pelo recorrente na presente instância recursória, não obstante a inteligência, argúcia, elegância e erudição que manifestamente apresentam, são francamente assépticos, estruturalmente frágeis, globalmente estéreis, tendencialmente omissos e todos sem cabimento legal, razões pelas quais, o recurso está votado ao insucesso e não merece provimento.
Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais pertinentes, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, no empoderamento de um acto prudencial de eliminação, esbatimento ou minimização do risco para patamares socialmente suportáveis inerente a qualquer decisão judicial cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias como aquela que criteriosamente se proferirá, afigura-se-me que se deverá julgar o presente recurso improcedente e manter-se o Acórdão recorrido nos seus precisos e exactos termos, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas.»

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, vindo nessa sequência o arguido pronunciar–se quanto ao mesmo, no essencial reiterando os fundamentos substanciais do seu recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, e pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:
1. saber se o Ministério Público carecia de legitimidade para desencadear o procedimento penal por falta de adequado exercício do direito de queixa;
2. saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é nula, nos termos do art. 283º/3/d) do Cód. de Processo Penal, por não indicar as disposições legais aplicáveis a cada concreta conduta atribuída ao arguido;
3. saber se houve preterição das regras e competência territorial para o julgamento dos autos;
4. saber se a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º/2/a) do Cód. de Processo Penal;
5. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal e se foi violado o princípio da livre apreciação da prova;
6. saber se estão preenchidos os pressupostos típicos dos crimes de coacção sexual pelos quais o arguido vem condenado com relação à ofendida BB;
7. saber se estão preenchidos os pressupostos do art. 82º–A do Cód. de Processo Penal para a fixação de uma indemnização às ofendidas.
*
Antes de passarmos a analisar as questões assim suscitadas, comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, no que tange à matéria de facto considerada na mesma e à respectiva motivação, à qualificação jurídico–penal, e à determinação das consequências penais e indemnizatórias no caso.

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
«2 - Fundamentação
2.1. - Os factos provados
1.º O arguido AA é presidente da direção da associação de direito privado e de utilidade pública, Lar ..., com instalações na Rua ..., em Vila Nova de Gaia.
2.º O Lar ... tem como fins e principais actividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente, no apoio a pessoas idosas e, por exemplo, na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas.
3.º De acordo com o Estatuto do Lar ... o arguido na qualidade de presidente tem, entre outras funções, a de superintender na administração do Lar, e de fiscalizar os respectivos serviços respeitantes à instituição.
4.º Por sua vez, compete à direcção do Lar ..., da qual o arguido é presidente, organizar o quadro do pessoal e contratar e gerir o pessoal da instituição.
5.º A ofendida BB iniciou funções no Lar ... em 20 de Maio de 2015, como auxiliar dos serviços gerais, tendo prestado sempre serviço na área da lavandaria, coordenada pela encarregada de sector, FF.
6.º Em dia não determinado do mês de Julho de 2017, de regresso ao serviço, após ter estado ausente por uns dias, a ofendida BB foi chamada pelo arguido ao seu gabinete, alegando precisar de lhe falar por questões ligadas ao funcionamento da lavandaria.
7.º Já estando a ofendida BB no interior do gabinete do arguido, estando este sozinho e fechando a porta do gabinete à chegada daquela, acionando-se do lado exterior de imediato um dispositivo vermelho na porta, com indicação de ocupado, o mesmo transmitiu-lhe que estava descontente com o trabalho da encarregada de sector FF e que gostaria que a ofendida ocupasse aquele lugar, o que a ofendida rejeitou.
8.º Volvidos mais uns dias, mas ainda em Julho de 2017, novamente a dia da semana, o arguido voltou a chamar a ofendida BB ao seu gabinete, fechando novamente a porta após a sua chegada, do modo já descrito.
9.º Nessa altura, e estando mais uma vez os dois sozinhos no gabinete, e cada um sentado numa cadeira, mantendo-se a porta fechada, o arguido voltou ao assunto da possível colocação da ofendida BB no lugar da encarregada de sector, FF.
10.º A dado momento, e nessa mesma ocasião, o arguido levantou-se e aproximou-se da ofendida BB, interpretando esta esse comportamento como final da conversa, o que motivou que também se levantasse, proferindo o arguido nessa altura as seguintes palavras: « gosto muito de ti», e logo de seguida, o que impossibilitou uma reacção física por parte da ofendida BB, o arguido deu-lhe um beijo na boca, agarrando-a e encostando-a ao mesmo tempo à mesa ali existente,
11.º Logo depois, a ofendida BB conseguiu desviar o seu corpo do corpo do arguido e de imediato saiu do gabinete.
12.º Pelas funções exercidas pelo arguido, pela influência directa do mesmo na conservação do posto pela circunstância do arguido ter escolhido o seu espaço reservado, concretamente o seu gabinete, fechando a porta e sinalizando a situação de ocupado, e por agir de modo repentino e inesperado, não conseguiu a ofendida impedir o comportamento do arguido para consigo, não obstante a mesma rejeitar tais contactos físicos sexualizados.
13.º A partir dessa altura, a ofendida BB passou a sentir-se constrangida na presença do arguido e a temer a repetição por parte dele dos comportamentos acima descritos.
14.º Já durante o mês de agosto de 2017, em nada não concretamente apurada, devido às funções laborais de ambos, o arguido convocou a ofendida BB a comparecer no seu gabinete, escolhendo mais uma vez aquele espaço.
15.º Já no gabinete, e sem proferir qualquer palavra, o arguido aproximou-se corporalmente da ofendida BB, agarrando-a de imediato pelos braços e tentando beijá-la na boca, logrando desta vez a ofendida desviar a sua boca, o que levou a que o arguido só a tocasse numa das faces com os lábios.
16.º Logo de seguida, e ainda ambos no mesmo local, a ofendida BB disse ao arguido que não queria aqueles contactos físicos entre eles e que não tinha gostado daquele comportamento, reagindo o arguido dizendo que se a mesma apresentasse queixa negaria tudo.
17º Não obstante, embora sabendo que agia contra a vontade da ofendida BB, e sabendo da dependência funcional da mesma relativamente à sua pessoa, o arguido passou a deslocar-se quase diariamente ao sector da lavandaria onde a ofendida BB exercia funções, procurando o contacto físico com ela, cumprimentando-a sempre com beijos na face, ao mesmo que tempo que lhe colocava a mão na cintura, puxando-a para si de forma a tocarem-se os corpos.
18.º Dessa forma, o arguido de modo repetido e persistente, forçava o contacto físico com a ofendida BB, impossibilitando-a de impedir, conforme sua vontade, tais contactos.
19.º Da mesma forma, e sempre com o propósito de forçar a ofendida BB a contacto físico com ele de natureza sexual, sabendo que tais contactos físicos eram rejeitados pela ofendida BB, o arguido muitas das vezes em que com ela se cruzava nos corredores das instalações do Lar ..., na área da cantina onde são servidas as refeições e no balcão do café, provocava o contacto físico entre ambos, tocando-lhe com a mão na zona da anca e por vezes na zona dos glúteos, sem que a ofendida se pusesse opor, considerando a impossibilidade da ofendida de controlar e prever o aparecimento do arguido nesses espaços, integrantes das instalações onde ambos trabalhavam, assim como o modo rápido e simulado como tais gestos e toques físicos eram executados pelo arguido.
20.º Em Março de 2019, tendo a ofendida BB regressado ao trabalho, após uma situação de baixa médica, foi lhe entretanto sido mudado o seu horário das refeições, tornando-o rotativo entre as 12 horas e as 13 horas e as 13 horas e as 14 horas, sendo que a partir dessa data tinham já cessado os comportamentos supra referidos.
21.º A ofendida BB em virtude do cargo exercido pelo arguido de presidente e presidente da direcção do Lar ..., com influência directa na gestão do pessoal e da sua contratação e fiscalização, por temer perder o seu posto de trabalho entre julho de 2017 e em data anterior a Março de 2019, sentiu-se constrangida e limitada na sua liberdade de determinação e de autodeterminação sexual, suportando contactos de natureza sexual impostos pelo arguido que não queria e rejeitava.
22.º A ofendida em consequência, entre outros, dos factos acima descritos, entrou em baixa médica em 30-12-2019 por patologia de causa psíquica reactiva.
23.º Por sua vez, no mês de Julho de 2017, a ofendida CC, iniciou funções como porteira no Lar ....
24.º Um ano depois, a ofendida CC, que já nessa altura estava a fazer serviço de organização em vários sectores do Lar, passou a ser encarregada de serviços gerais, por intervenção direta do arguido, tendo o mesmo previamente aconselhado a ofendida CC a apresentar uma candidatura à direcção do Lar do qual é presidente, dando-lhe a entender que a mesma poderia ainda ascender a esse cargo.
25.º Ainda antes da ofendida CC tomar conhecimento oficial da aprovação das suas novas funções, o que equivalia a uma promoção, com melhor salário, estando o arguido no armazém têxtil do Lar, que se situa no 5.º piso, onde a ofendida CC nos últimos dias tinha estado a prestar serviços de organização do espaço, o mesmo chamou-a para ali se deslocar.
26.º Acontece que na altura em que a ofendida CC entrou no armazém, estando já no interior o arguido, este aproximou-se da mesma fisicamente e virando-se de frente para ela e colocando-lhe as mãos nos ombros, comunicou-lhe que tinha ficado com o lugar de encarregada geral.
27.º Logo de seguida, e sem que a ofendida CC contasse, o que a impossibilitou de se afastar, o arguido deu-lhe um beijo nos lábios.
28.º A ofendida CC perante o comportamento imprevisto do arguido, afastou-se de imediato dele, mostrando na sua postura física retraimento e dizendo que aquilo não poderia acontecer.
29.º A partir desse dia, e em virtude das novas funções da ofendida CC implicarem um acréscimo de trabalho e uma maior proximidade física com o arguido, este aproveitando-se de tais circunstâncias passou a procurar o contacto físico sexualizado com a ofendida, criando situações em que sabia que a ofendida não poderia opor-se.
30.º Assim, desde Julho de 2018 e até pelo menos Julho de 2019, em número não concretamente determinado, mas superior a 20 vezes, o arguido passou a forçar o contacto físico sexualizado com a ofendida CC, ora nos corredores das instalações do Lar quando se cruzavam, como no gabinete do arguido e estando os dois sozinhos, ou na área da cantina onde faziam as refeições, ou ainda no interior da carrinha pertencente ao Lar, concretamente, viajando habitualmente a ofendida CC no banco corrido da frente dessa carrinha e posicionada entre o motorista e o arguido.
31.º Desta forma, no interior da carrinha da marca Toyota, modelo ..., 9 lugares, ao serviço do Lar ..., durante as deslocações ao exterior, concretamente para a aquisição de bens de consumo em estabelecimentos comerciais muito próximos das instalações do Lar, o arguido viajando juntamente com a ofendida CC, sentando-se ambos no banco corrido da frente, ficando a ofendida CC posicionada entre o arguido e um dos dois motoristas da instituição que fosse a conduzir, colocava a sua mão esquerda na zona interior das pernas da ofendida CC, junto às virilhas, sem que esta pudesse reagir afastando o corpo, atento o espaço exíguo entre eles e o motorista que conduzia a carrinha e a rapidez com que tal acontecia, atentos os poucos minutos de duração do trajecto.
32.º Da mesma forma e com o mesmo desígnio, e por mais que uma vez, na área destinada à cantina, na mesa ocupada pelos membros da direcção, onde também passou a comer a ofendida CC, o arguido de modo disfarçado, por debaixo da mesa, tocava a ofendida CC na zona interior das pernas, junto às virilhas, sem que a visada tivesse possibilidade de reagir.
33.º Por sua vez, na zona da cantina onde ocorriam as refeições e se formavam por vezes filas de pessoas aguardando o respectivo tabuleiro, o arguido de modo frequente, procurava o contacto físico com a ofendida CC, colocando-lhe um dos seus braços por cima dos ombros, usando a ofendida bata de serviço, e descendo depois com a mão até à abertura do decote, tocando desse modo na parte de cima dos seios.
34.º Outras vezes, aproveitando a área dos corredores dos vários pisos das instalações do Lar ... onde inevitavelmente a ofendida CC tinha que circular por força das suas funções de encarregada geral e contando com a maior probabilidade de não ser visto por terceiros, o arguido não obstante saber que agia contra a vontade da ofendida CC, quando se cruzava com a mesma, impunha-lhe o contacto físico com ele, enlaçando-lhe a cintura e descendo a mão para a zona das coxas e glúteos daquela.
35.º Por último, no período temporal entre finais de 2018 e Julho de 2019, em número não concretamente determinado mas superior a 20 vezes, por iniciativa do arguido, a quem a ofendida CC como encarregada geral tinha que dar satisfações da sua atividade, e no interior do seu gabinete, estando sozinho com a ofendida CC, de porta fechada e sinal de ocupado para o lado de fora, o arguido sabendo sempre que agia contra a vontade daquela, forçava o contacto físico com a mesma, aproximando o seu corpo do dela e beijando-a na boca, forçando a entrada da sua língua na boca da ofendida CC, ao mesmo tempo que lhe metia a mão por baixo da farda, quer pelo decote quer pela parte encoberta das pernas, e chegando a pelo menos uma vez a puxar as calças da ofendida para baixo.
36.º No jantar de Natal de 2018, ocorrido nas instalações do Lar ..., com utentes, funcionários e os membros da direcção, e estando distribuídas várias mesas com vários grupos de pessoas, o arguido ao passar entre essas mesas e vendo que a ofendida CC estava a conversar em pé com alguém que estava sentado numa cadeira, colocou-lhe a mão nos ombros, encostou o seu corpo ao dela, “roçando-se”, causando-lhe imediato constrangimento.
37.ºA ofendida CC embora rejeitasse o contacto físico imposto pelo arguido e de lhe ter verbalizado o seu desagrado algumas das vezes em que tal acontecia, por temer o arguido, que sabia ser autoritário, e com poder e influência directa na direcção do Lar, da qual era também presidente, e por isso ter medo de perder o seu posto de trabalho, viu limitada e violada a sua liberdade de determinação e a sua liberdade de autodeterminação sexual.
38.º A partir desse dia a ofendida CC entrou de baixa médica, não tendo até hoje regressado, estando a ser acompanhada no Hospital Magalhães Lemos em situação de depressão e “burn-out”.
39.º O arguido agiu de forma livre e consciente, na qualidade de presidente da direçcão executiva do Lar ..., instituição declarada com utilizada pública, e com os poderes inerentes ao cargo de contratação e gestão do pessoal, bem sabia que os comportamentos acima descritos, de imposição às duas ofendidas, ambas funcionárias do Lar ..., sob as suas ordens e direcção, de contactos físicos de natureza sexual, não consentidos, obrigando-as desse modo, como bem sabia, a suportarem tais condutas, sob pena de poderem perder o seu posto de trabalho, e causando-lhes desse modo, como também tinha consciência, constrangimento e consequente limitação das suas liberdades de determinação e autodeterminação sexual.
40.ºAtenta a natureza das suas funções, presidindo à direcção de uma associação de natureza privada, considerada de utilidade pública, com funções de criar bem-estar às pessoas idosas aí acolhidas e de garantir condições dignas quer a essas pessoas, quer às pessoas que aí trabalham e que prestam cuidados de conforto e de sobrevivência humanas a outros, revelou com o seu comportamento forte indignidade para o exercício das funções que lhe estavam confiadas.
41.º Sabia ainda o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou em relação ao arguido:
42.º – Consta do seu relatório social “AA apresenta um percurso infantojuvenil decorrido em .../VN Gaia. Filho único, cresceu junto dos pais com adequadas condições socioeconómicas e com transmissão de valores cívicos, de acordo com a normatividade imperante. O pai era metalúrgico e a mãe trabalhava como operária numa fábrica de linhas de costura.
Frequentou o sistema de ensino na idade expectável, no Colégio (...) de ..., e com comportamento sem evidência de problemáticas. Mais acrescenta, que ainda ingressou no ISPGaya – Instituto Superior Politécnico, no curso de Administração Pública. Porém, desistiu no primeiro ano da mencionada licenciatura. AA cumpriu o serviço militar obrigatório, onde se manteve ao longo de quatro anos e meio, na zona sul do país. De realçar ainda que, de acordo com as fontes consultadas, entre os 16 e os 36 anos, o arguido foi atleta e por último treinador de equipa feminina de andebol no Grupo Desportivo .../VN Gaia.
Com 26 anos de idade, registou o primeiro casamento. Desta relação nasceram dois filhos, respetivamente em 1972 e 1979. Após cerca de catorze anos, sobreveio o divórcio, descrito como não litigioso. Entretanto, quando contava 40 anos, AA oficializou o segundo matrimónio e em 1987, fruto desta relação, nasceu o seu terceiro filho.
AA, ao longo de trinta e um anos, exerceu funções de Presidente da Junta de Freguesia ..., em VN Gaia. Em 2014, nas últimas eleições em que se candidatou, acabou por não sair vencedor e assim, progressivamente afastou-se da militância política. Concomitantemente, exercia funções labutares como bancário, no Banco 1..., principalmente na agência de VN Gaia, onde se manteve profissionalmente ativo durante trinta e seis anos consecutivos.
Há cerca de dezassete anos, AA também principiou responsabilidades como Presidente do Lar ..., Instituição de Solidariedade Social, outrora designada Associação ... com instalações na Rua ..., ... VN Gaia.
À data dos factos, AA vivia, tal como se mantém, com o cônjuge, na Praceta ..., .../VN Gaia, correspondente à morada dos autos. Exercia funções de Presidente, desde o ano de 2005, no Lar .... Foi reeleito, na última votação que ocorreu em 14-12-2019. Tal função não era remunerada, possuía isenção de horário, porém estava presente de segunda a sexta-feira nas instalações do referido Lar. Segundo as fontes consultadas, patenteava motivação e envolvimento pelas responsabilidades assumidas. Na fase da pandemia Covid-19, e sendo o Lar de idosos uma unidade de maior risco, AA passava muito do seu tempo nas instalações do supradito a tratar das necessárias diligências.
Em 27-12-2021, e no âmbito dos presentes autos, AA foi suspenso de tais funções. Desde tal data, encontra-se sem qualquer ocupação estruturada e tem estado sobretudo no espaço doméstico.
Apresenta uma inserção familiar sólida e com laços afetivos que perduram no tempo, além do convívio de proximidade com os três filhos e quatro netos. Expõe padecer de diabetes tipo II e hipertensão arterial, tomando medicação para o efeito. AA encontra-se reformado desde 2013. Aufere aproximadamente 1.100€/mês de reforma como ex-bancário, acrescidos de mais 260€/mês devido a descontos efetuados quando pertencia à juntade freguesia.
O cônjuge, sexagenário trabalha há mais de três décadas na Câmara Municipal ..., no departamento de aprovisionamento e compras, e recebe cerca de 800€/mês. Vivem em casa própria, no centro de VN Gaia, correspondente à morada dos autos. Possui como despesas principais, 60€/mês de condomínio, 90€/mês de crédito pessoal, 100€/mês de cartão de crédito e despesas de consumíveis domésticos, eletricidade, água e gás na ordem dos 400€/mês. Descreve condições económicas ajustadas face aos rendimentos e gastos assumidos. No meio sociocomunitário é identificado e não existe reatividade social pela sua presença.
AA refere vivenciar este confronto com o sistema de administração a justiça penal, de modo pesaroso, com indignação e revolta. Refere sentimentos de desânimo, mas expetativa num desfecho favorável. Acrescenta que soube da existência da queixa-crime, através dos meios de comunicação social, em 13-12-2019, e que tal lhe causou sofrimento intra e inter psíquico correlacionado com a crítica social que inicialmente sentiu por parte dos populares. Também a nível intrafamiliar tal notícia causou perturbação de relevo. Não obstante, com o passar do tempo, enfatiza que tal se dissipou e voltou a sentir-se acarinhado e envolvido pela comunidade que o circunda e além disso, beneficia de garantido apoio familiar.
No âmbito dos presentes autos, e como medida de coação, o arguido foi suspenso das funções de Presidente do Lar .... Deste modo, os respetivos hábitos e rotinas mudaram; atualmente em termos ocupacionais apresenta-se inativo e desmotivado no geral.
Em abstrato e tendo em conta a natureza dos factos subjacentes ao presente processo, o arguido revela indicadores de consciência da sua ilicitude e reconhece a gravidade deste tipo de conduta e danos associados às vítimas.
43.º - Não tem antecedentes criminais conhecidos.

2.2. Matéria de facto não provada:
Não se provaram quaisquer outros factos, com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente que estejam em oposição com os dados como provados e bem assim que:
1 - Que em Julho de 2017, em data não concretamente apurada, o arguido tenha dito à ofendida BB « não adianta fugir» .
2 - Que em Agosto de 2017, em data não concretamente apurada, estando a ofendida BB no gabinete do arguido, este tenha fechado a porta à chegada daquela, com o mesmo sinal de ocupado para o lado de fora.
3 - Que, em virtude da alteração do horário, o período de almoço da BB, esta tenha ficado com menos gente, aproveitando o arguido esse facto para se aproximar corporalmente da ofendida BB, provocando o contacto físico com a mesma da forma já descrita, tocando-lhe com as mãos na zona dos glúteos, ou colocando uma das suas mãos no bolso da bata usada pela ofendida BB de modo a tocar-lhe nos seios, o que acontecia.
4 - No início de Dezembro de 2019, em dia de semana, na hora do almoço, estando a ofendida BB na área da cantina do Lar ..., o arguido mais uma vez se aproximou dela, tocando com o seu corpo no corpo da ofendida BB e colocando-lhe uma das suas mãos na zona dos glúteos.»
(…)

Apreciemos então as questões suscitadas, como se disse pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.

1. De saber se o Ministério Público carecia de legitimidade para desencadear o procedimento penal por falta de adequado exercício do direito de queixa.

De acordo com o critério de prevalência processual assinalado, cumpre conhecer liminarmente da invocada falta de legitimidade do Ministério Público para instaurar o procedimento criminal dos autos.
Assim, assinala o arguido/recorrente que, nos termos do disposto no art. 178º do Cód. Penal, o procedimento criminal quer pelo crime de coacção sexual previsto no art. 163º do Cód. Penal, quer pelo crime de importunação sexual previsto no art. 170º do mesmo diploma, depende de queixa.
E, nessa consideração, alega, por um lado e com relação à ofendida BB, que mesmo considerando as datas de Julho de 2017 (facto provado 9º) e de Agosto de 2017 (facto provado 14º), certo é que quando a queixa foi apresentada (05/12/2019) o prazo de 6 meses imposto (cfr. art. 115º do Cód. Penal) para apresentação de queixa, havia expirado há muito.
Por outro lado, no que tange à ofendida CC, alega que, além de não resultar concretizado no Acórdão recorrido quando foi praticado o crime de importunação sexual pelo qual vem condenado o arguido/recorrente, também não se não descortina no processo quando foi pela ofendida apresentada a devida queixa.
Vejamos.

Como de início se relatou, o arguido AA vem condenado, e concurso real, pela prática:
– contra a ofendida BB, de 2 crimes de coacção sexual agravada (um deles na forma tentada), previstos nos arts.163º/2 e 177º/1/b) do Cód. Penal,
– e contra a ofendida CC, de 21 crimes de coacção sexual agravada, previstos pelos arts. 163º/2 e 177º/1/b) do Cód. Penal, e de 1 crime de importunação sexual agravado, previsto pelos arts. 170º/1 e 177º/1/b) do Cód. Penal.

Exactamente a propósito desta última imputação, cumpre desde já clarificar a dúvida suscitada pelo arguido/recorrente nesta parte do seu recurso, e que se reporta à alegada circunstância de não concretizar o Acórdão recorrido quando foi praticado o crime de importunação sexual pelo qual vem condenado e que terá sido praticado contra a ofendida CC.
Pois bem, ao contrário do alegado, e como melhor e mais desenvolvidamente veremos adiante – cfr. ponto 4. da presente decisão –, o acórdão recorrido esclarece em termos que se consideram adequadamente concretizados, à luz da natureza dos factos aqui em causa, a baliza temporal em que os factos em causa terão ocorrido.
Assim, em sede do exercício de qualificação jurídico–criminal da matéria de facto tida por demonstrada, resulta claro que o tribunal a quo considera que os contactos físicos que o arguido provocava nas «situações dadas como provadas, em relação à ofendida CC (factos nº29 a 34 e 36) (…), e que não se poderão rotular de actos sexuais de relevo», deverão integrar a tipicidade própria do crime de importunação sexual, previsto no art. 170º do Cód. Penal.
Ora, resulta da matéria de facto provada que todos os actos do arguido contra a ofendida CC ocorreram até Julho de 2019, vindo o tribunal a esclarecer em sede de fundamentação de direito que «É evidente que não poderemos determinar de forma concreta quais os factos que terão ocorrido entre 5 de Junho de 2019 a Julho de 2019, consubstanciados em crimes de importunação (únicos para os quais há queixa tempestivamente deduzida) mas sempre se poderá entender que tendo a ofendida dito que todas as condutas delituosas cessaram nesta última data, pelo menos, e sem o mínimo de duvida, uma situação destas terá ocorrido (pois só assim se compreende que nesta data as situações terminaram)» – sublinhado agora aposto.
E, em tal conformidade, conclui decidindo que «Face ao exposto, deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de importunação, p. e p. pelo art.170º do Código Penal».
Ou seja, resulta evidente da fundamentação jurídico–penal assim exarada pela primeira instância, que o factos relativo ao único crime de importunação sexual pelo qual o arguido vem condenado com relação á pessoa da ofendida CC, ocorreu (necessariamente) durante e até ao final do mês de Julho de 2019.
Isto esclarecido, prossigamos.

É verdade que, nos termos do nº1 do art. 178º do Cód. Penal, se estipula, por regra, a natureza semi–pública dos crimes aqui em causa, prevendo–se que «O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 170.º depende de queixa, salvo se forem praticados contra menor ou deles resultar suicídio ou morte da vítima» – sendo o segmento final da disposição irrelevante no caso, pois não apenas as ofendidas são maiores de idade, como não se verificou a funesta circunstância ali ademais prevista.
Assim, daqui decorre que – e, reitera–se, por regra – a legitimidade do Ministério Público para promover o processo e, consequentemente, deduzir acusação estava dependente dessas queixas formuladas pelas ofendidas (cfr. artigo 49º/1 do Cód. de Processo Penal).

Porém, a regra tem uma relevante excepção, no que em especial tange (para o que aqui importa) ao crime de coacção sexual tipificado no art. 163º do Cód. Penal.
Na verdade, a revisão do Código Penal operada pela Lei 83/2015, de 05 de Agosto veio alterar a redacção do nº2 do citado art. 178º do Cód. Penal, introduzindo uma reserva em relação à natureza semi–pública dos crimes de coacção sexual e de violação, passando a prever–se que «Quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe».
Ou seja, no caso de factos susceptíveis de integrar um crime de coacção sexual, ainda que tendo por vítima pessoa maior de idade, o impulso processual investigatório do Ministério Público é actualmente (desde aquela revisão penal) possível através da aludida formulação introduzida pelo legislador, a qual, assim, afasta a restrição normalmente imposta à autoridade judiciária titular da «legitimidade para promover o processo penal» (cfr. art. 48º/1 do Cód. Penal) nos casos em que tal crime investigando dependa de queixa.
Assim, o Ministério Público terá poderes para iniciar o procedimento criminal, desde que tenha a percepção de que a vítima não formalizou atempadamente queixa em virtude de circunstâncias que, de alguma forma, a dissuadiram de o fazer, mas que no caso não excluam o seu – da vítima, não do Ministério Público – interesse em que o procedimento criminal tenha lugar.
A única restrição objectiva colocada em tal caso, é a de que o procedimento deva seja desencadeado no prazo de 6 meses a contar do conhecimento, pelo Ministério Público, dos factos indiciados em causa e do agente suspeito dos mesmos.
Como refere Paulo da Costa Morgado, em “Crimes de Coação Sexual e de Violação contra adultos: a solução híbrida no n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal”, estamos em presença de «uma alteração relevante no que ao procedimento criminal destes ilícitos criminais contra adultos diz respeito, uma vez que se consuma uma transferência da titularidade do direito de queixa, exatamente com o mesmo prazo previsto para os crimes semipúblicos (seis meses), para o MP, que não sendo o verdadeiro titular do direito de queixa (continua a ser a vítima), se vê na posse de todas as consequências inerentes a esse direito “sempre que o interesse da vítima o aconselhe”, situação que se pode dizer híbrida (semipublicidade híbrida)».
Independentemente de quanto se possa discutir sobre o carácter híbrido de tal solução processual, certo é que se revela de tal modo clara a intenção do legislador de conceder ao Ministério Público a competência e prevalência na aferição, sempre casuística, desse «interesse da vitima» – José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, em “Crimes Sexuais, Análise substantiva e processual” (4ª Edição, 2023), pág. 334, assinalam que “todos estes casos ficarão ao abrigo da análise do Ministério Público” –, que inclusive não consta sequer do texto da lei penal a exigência que tal autoridade judiciária deva consignar formalmente, por despacho ou qualquer outro modo, que pretende determinar o impulso processual no interesse da vítima sem prévia queixa eficaz.
Não se antevendo, pois, a viabilidade de sindicância jurisdicional da decisão do Ministério Público de proceder criminalmente com base em tal critério, não deixará de se dizer, ainda assim, que as circunstâncias de a pessoa ofendida não manifestar a sua rejeição de que seja instaurado e prossiga o procedimento criminal, e participar no curso deste mostrando–se sempre disponível para qualquer intervenção que lhe seja solicitada ao longo das várias fases do processo – como, adianta–se, sucedeu precisamente no caso dos presentes autos e das ofendidas aqui em causa –, não deixarão de ser indícios sólidos de que a avaliação do Ministério Público terá sido adequada e criteriosa.

Seja como for, e retomando a nossa análise, certo é que actualmente (e à assim também data de todos os factos em causa nos presentes autos, assinala–se), enquanto o procedimento criminal pelo ilícito de importunação sexual previsto no art. 170º do Cód. Penal depende sempre da apresentação de queixa pela pessoa ofendida, já quanto ao procedimento pelo crime de coacção sexual previsto no art. 163º do Cód. Penal, independentemente do exercício eficaz e atempado dessa queixa pela pessoa ofendida (que não perde tal direito, naturalmente), o Ministério Público tem sempre legitimidade para desencadear o impulso processual com vista à respectiva investigação e imputação nos termos do nº2 do art. 178º do Cód. Penal.

Revertendo ao caso dos autos, é parcialmente verdade quanto o arguido/recorrente alega verificar–se na fase embrionária dos presentes autos, e por reporte à factualidade agora tida por assente em sede de acórdão, e com base na qual o arguido vem condenado.
Assim, e no que respeita à ofendida BB, da matéria de facto provada resulta que os factos integradores do crime de coacção sexual contra a mesma ocorreram, no limite, até Março de 2019 (cfr. facto provado sob o ponto 20º), sendo certo que a mesma ofendida vem a apresentar denúncia dos factos em 05/12/2019 (cfr. fl. 3 dos autos).
Já no que se refere à ofendida CC, sempre de acordo com a factualidade vertida no acórdão recorrido, os factos relativos aos imputados crimes de coacção sexual e de importunação sexual terão ocorrido até Julho de 2019 e neste mesmo mês, respectivamente (cfr. factos provados sob os pontos 30º e 35º), sendo certo que a mesma ofendida vem a apresentar queixa nos autos, manifestando o desejo de procedimento criminal contra o arguido, em 28/01/2020 (cfr. fl. 24 dos autos) – assim se esperando mostrar–se sanada também a falta de localização processual, por parte do arguido/recorrente, de tal actuação processual da ofendida.

Em tais termos – e desde logo, como bem decidiu, aliás, o tribunal a quo em sede de acórdão recorrido (onde, recorde–se, trata expressamente da questão da legitimidade processual do Ministério Público para o procedimento criminal dos autos) –, todos os factos susceptíveis de integrar crime de importunação sexual contra a ofendida BB, foram objecto de absolvição da instância, por ocorridos antes dos 6 meses anteriores à apresentação de queixa quanto aos mesmos ; assim como o foram todos os factos susceptíveis de integrar o mesmo crime contra a pessoa da ofendida CC, praticados anteriormente a Julho de 2019.
Mas já quanto aos factos susceptíveis de integrar o crime de importunação sexual contra a ofendida CC, e praticados pelo arguido (sempre de acordo com a decisão recorrida) em Julho de 2019, a queixa pela mesma ofendida – apresentada, como vimos, no limite do prazo de 6 meses previsto no art. 115º/1 do Cód. Penal – salvaguarda a legitimidade do Ministério Público para instaurar e prosseguir com o procedimento quanto aos mesmos.
E quanto ao factos integradores dos crimes de coacção sexual imputados ao arguido e praticados sobre qualquer das duas ofendidas, essa legitimidade procedimental do Ministério Público mostra–se desde logo salvaguardada nos termos do supra analisado nº2 do art. 178º do Cód. Penal, sendo certo e seguro que o procedimento criminal dos autos se iniciou em momento imediato à apresentação da queixa pela ofendida BB e à denúncia também daqueles cometidos contra a ofendida CC, seja por via de terceira pessoa (em 12/12/2019, cfr. fl. 13 dos autos), seja pela queixa da ofendida – tudo ocorrências processuais situadas entre 05/12/2019 e 28/01/2020 –, isto é, mostra–se indiscutivelmente salvaguardado o prazo de 6 meses após o conhecimento dos factos pelo Ministério Público para desencadear o procedimento pelos mesmos.

Em face do exposto, constata–se que o Ministério Público tinha efectivamente legitimidade para instaurar e prosseguir com o procedimento criminal contra o arguido relativamente aos factos pelos quais o mesmo vem agora condenado em primeira instância.

Improcede, pois, este primeiro segmento analítico do recurso interposto.


2. De saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é nula, nos termos do art. 283º/3/d) do Cód. de Processo Penal, por não indicar as disposições legais aplicáveis a cada concreta conduta atribuída ao arguido.

Vem também o recorrente invocar que a acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público é nula, porquanto não indica os concretos dispositivos legais aplicáveis ao elenco das condutas imputadas ao arguido.
Vejamos.

Sucintamente se dirá que resulta efectivamente do disposto no art. 283º/3/d) do Cód. de Processo Penal que a acusação contém sob pena de nulidade «a indicação das disposições legais aplicáveis».
A lei processual penal consagrou, em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
Sucede que as nulidades dividem-se em dois grandes grupos: as nulidades insanáveis (previstas no art. 119° do Cód. de Processo Penal e ainda as que como tal forem cominadas noutras disposições legais) e as nulidades sanáveis, ou dependentes de arguição, previstas no art. 120° do mesmo Código.
A nulidade que vem invocada nesta parte do presente recurso, não se mostrando elencada enquanto nulidade insanável, é, pois, uma das previstas no citado art. 120º do Cód. de Processo Penal.
Resulta do nº1 de tal disposição legal que «Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte», resultando especificado desde logo (e na parte que aqui releva) na alínea c) do respectivo nº3, que «As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas … Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito».
Na verdade, e no caso concreto, a alegação do ora recorrente reporta-se à omissão pelo Ministério Público de um pressuposto formal da acusação oportunamente deduzida nos autos, estando assim em causa a verificação de uma alegada nulidade relativa à fase do Inquérito.
Donde, e muito claramente, a invocação de tal nulidade nesta fase é desde logo ostensivamente extemporânea.
Tal pretensa invalidade processual deveria ter sido suscitada, por forma a validamente determinar a sua apreciação material, nos cinco dias subsequentes à notificação ao interessado (arguido) do despacho de acusação (aquele que encerrou o inquérito).
Donde, e assim não tendo sucedido, a alegada nulidade sempre se deveria ter por sanada nos termos do disposto no art. 121º/1/b) do Cód. de Processo Penal, de que resulta que « Salvo nos casos em que a lei dispuser de modo diferente, as nulidades ficam sanadas se os participantes processuais interessados … Tiverem aceite expressamente os efeitos do acto anulável».
O que, nos autos, sucedeu aliás de modo flagrante, tendo o arguido inclusive apresentado oportuna contestação escrita à acusação (cfr. requerimento refª 31493525, de 25/02/2022) – onde ofereceu o merecimento dos autos, negou a prática dos factos e arrolou testemunhas de defesa –, intervindo depois na audiência de julgamento – onde prestou declarações em sua defesa –, tudo sem que jamais haja invocado qualquer perturbação ou diminuição dos direitos de defesa que apenas nesta fase de recurso da decisão condenatória se lembrou de invocar.

Seja como for, sempre se dirá, seguindo aqui de perto o teor da resposta do Ministério Público nesta parte, que, ainda que a tempestividade da arguição em causa estivesse salvaguardada, seria manifesta a falta de razão material da mesma.
De facto, e como resulta claro da leitura da acusação oportunamente deduzida (cfr. fls. 166/179 dos autos), o Ministério Público, em sede de imputação jurídico–penal ao arguido, consigna o seguinte:
«Pelo exposto, cometeu o arguido em autoria material e em concurso real e ideal: - Ofendida BB) 6 (seis) crimes de coacção sexual agravada, artigos 6.º a 11.º da acusação/1 crime; artigos 14.º, 15.º da acusação/1 crime; artigos 17.º, 18.º acusação /1 crime; artigo 19.º acusação /1 crime; artigo 20.º acusação /1 crime; artigo 21.º, acusação /1 crime- , previstos e punidos nos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 30.º, n.º1, 163.º, n.º 2, 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal, e com a pena acessória, prevista nos artigos, 66.º, n.º1, a, b), 386.º, n.º1, d) do Código Penal e em concurso ideal, 1 crime de perseguição, perpetuado no tempo, previsto e punido no artigo 154.º-A, n.º1, do Código Penal, com aplicação da pena acessória, prevista no n.º2 do mesmo normativo legal. - (ofendida CC) 7 (sete) crimes de coacção sexual agravada- artigos 24.º a 98.º da acusação/1 crime; artigos 32.º da acusação/1 crime; artigo 33.º acusação /1 crime; artigo 34.º acusação /1 crime; artigo 35.º acusação /1 crime; artigo 35.º, acusação /1 crime-artigo 37.º acusação/1 crime-previstos e punidos nos artigos 14.º, n.º1, 26.º, 30.º, n.º1, 163.º, n.º 2, 177.º, n.º1, b), todos do Código Penal.
e com a pena acessória, prevista nos artigos, 66.º, n.º1, a, b), 386.º, n.º1, d) do Código Penal.
e em concurso ideal,
1 crime de perseguição, perpetuado no tempo, previsto e punido no artigo 154.º- A, n.º1, do Código Penal, com a aplicação da pena acessória, prevista no n.º2 do mesmo normativo legal.»
É, pois, evidente que o Ministério Público não apenas mencionou as disposições legais aplicáveis, como as referencia não apenas ao número de crimes (inclusive com relação àqueles que entendeu estarem em concurso ideal ou aparente) e normas do Código Penal, como também por reporte aos concretos núcleos de factos que integram cada crime – por remissão aos artigos da acusação.
Como bem se refere na aludida resposta ao recurso, seria flagrante inclusive a falta de razão material da alegação aqui em causa.

Em suma, improcede totalmente esta vertente do presente recurso.

3. De saber se houve preterição das regras e competência territorial para o julgamento dos autos.

Vem seguidamente o arguido/recorrente invocar a preterição das regras de competência territorial, pelo que existe, em seu entender, a nulidade «de todo o processado, inclusive, do Acórdão proferido», nos termos das disposições conjugadas dos arts. 19º e 32º/1 do Cód. de Processo Penal, e art. 118º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto. Argumenta que, sendo manifesto que os factos em causa nos autos e que foram imputados ao arguido/recorrente ocorreram em Vila Nova de Gaia, seria o respectivo Juízo Central Criminal – e não o do Porto – o territorialmente competente para o julgamento.

Apreciando se dirá que assiste razão ao arguido/recorrente no que tange àquela que seria a competência territorial para levar a cabo o julgamento dos presentes autos.
Na verdade, e tendo efectivamente os factos imputados ao arguido ocorrido em Vila Nova de Gaia, por aplicação das disposições conjugadas dos artigos 19º do Cód. de Processo Penal (onde se prevê que «É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação»), 118º/1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto [Lei da Organização do Sistema Judiciário] (onde se estipula que «Compete aos juízos centrais criminais proferir despachos nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri»), 93º do D.L. 49/2014, de 27 de Março [Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais] e Mapa III anexo a este último diploma, a competência territorial para o julgamento do presente processo seria o Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia – e não o Juízo Central Criminal do Porto.

Nos termos do art. 119º/1/e) do Cód. de Processo Penal, consubstancia nulidade insanável, e que por isso deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, «A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º».

Ora, é precisamente esta última ressalva processual – com sublinhado agora aposto – que faz soçobrar a alegação do arguido/recorrente nesta parte.

Na verdade, depois de no seu nº1 o art. 32º do Cód. de Processo Penal prever que «A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final», logo o nº2 excepciona de tal regime de arguição, restringindo–o, o caso da incompetência territorial, prevendo o seguinte :
«2 –Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada:
a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou
b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.»
Assim, de acordo com esta norma, a incompetência territorial pode na verdade ser conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente, mas tal só pode suceder até determinados momentos processuais: até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.
O regime da incompetência territorial apresenta, pois, especialidades quanto ao tempo e momento de dedução e declaração – início do debate instrutório no caso de instrução, ou, e no que aqui releva, início da audiência de julgamento.
A justificação do limite processual para a dedução ou declaração de incompetência territorial está, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/04/2016 (proc. 213/12.2TELSB.L1-9)[3], «no menor potencial de afectação de princípios essenciais estando em causa esta espécie de competência, (…) na conjugação equilibrada dos princípios processuais com a razoabilidade, a economia e a eficácia do processo».

Assim, logo que aberta a audiência de julgamento – acto procedimental que encontra expressa previsão no nº 3 do art. 329º do Cód. de Processo Penal, note–se – sem que seja arguida, ou inclusive apreciada e declarada oficiosamente, a incompetência territorial do tribunal para o julgamento, fica imediatamente precludida em definitivo a possibilidade de tal questão ser suscitada e conhecida nos autos, situação inclusive expressamente salvaguardada do vício de nulidade nos termos da parte final da alínea e) do art. 119º/1 do Cód. de Processo Penal, como vimos.

Donde, é manifestamente extemporânea a invocada arguição de incompetência territorial pelo arguido/recorrente nesta fase, pois há muito se mostra ultrapassado o termo processual limite para tal efeito.

Improcede, assim, também esta parte do presente recurso.

(…)

6.De saber se estão preenchidos os pressupostos típicos dos crimes de coacção sexual pelos quais o arguido vem condenado com relação à ofendida BB.

Vem ainda o arguido/recorrente impugnar a decisão recorrida agora no que se reporta a parte dos fundamentos de direito da mesma, considerando não se mostrarem reunidos os pressupostos típicos do preenchimento dos crimes de coacção sexual pelos quais vem condenado com relação à ofendida BB.
Assim, alega, as condutas atribuídas ao recorrente nos pontos 10º e 15º dos factos provados não são idóneas para serem integradas no tipo legal de crime de coacção sexual, previsto no art. 163º do Cód. Penal, uma vez que além de não serem susceptíveis de serem enquadradas no âmbito do conceito de acto sexual de relevo, não possuem nenhum dos elementos do tipo legal de crime previstos no nº 2 do mesmo normativo.
Quanto ao primeiro aspecto, defende que assim é porque se entende que certas zonas do corpo humano não têm conotação sexual (não são consideradas zonas erógenas), mas apenas conotação afectiva e carinhosa (p. ex., face, mãos, cabeça), pelo que são sexualmente inócuas. E quanto à segunda vertente, não está relatado o uso de qualquer forma de violência (não foi provada e nem sequer invocada), nem qualquer ameaça grave, sendo que a «alegadamente» ofendida BB passou a trabalhadora efectiva em Maio de 2018 e a lavadeira, em 01/02/20219, como alega resultar do documento junto aos autos.

Vejamos.

Como logo de início se relatou, o arguido/recorrente AA vem condenado, além do mais, pela prática de dois crimes de coacção sexual agravada, um deles na forma tentada, e por factos cometidos contra a ofendida BB.
Como se especifica em sede de acórdão recorrido, a actuação típica que consubstancia cada um dos crimes em causa é, nomeadamente, aquela consignada nos seguintes pontos da matéria de facto provada:
– quanto ao crime de coacção sexual agravada consumado, previsto pelos arts. 163º/2 e 177º/1/b) do Cód. Penal, no ponto 10º da matéria de facto provada, que é do seguinte teor:
10.º A dado momento, e nessa mesma ocasião, o arguido levantou-se e aproximou-se da ofendida BB, interpretando esta esse comportamento como final da conversa, o que motivou que também se levantasse, proferindo o arguido nessa altura as seguintes palavras: « gosto muito de ti», e logo de seguida, o que impossibilitou uma reacção física por parte da ofendida BB, o arguido deu-lhe um beijo na boca, agarrando-a e encostando-a ao mesmo tempo à mesa ali existente.
– e quanto ao crime de coacção sexual agravada na forma tentada, previsto pelos arts. 163º/2, 177º/1/b) e 23º do Cód. Penal, no ponto 15º da matéria de facto provada, que é do seguinte teor:
15.º Já no gabinete, e sem proferir qualquer palavra, o arguido aproximou-se corporalmente da ofendida BB, agarrando-a de imediato pelos braços e tentando beijá-la na boca, logrando desta vez a ofendida desviar a sua boca, o que levou a que o arguido só a tocasse numa das faces com os lábios.
Relativamente a esta situações, e após discorrer sobre a caracterização dos elementos típicos criminais aqui em causa – mormente no que tange à noção de «acto sexual de relevo» –, conclui o tribunal a quo o seguinte:
«Essa postura do arguido e a reação da ofendida também são sinais inequívocos de que em causa não estava uma simples “importunação” mas sim perante um “acto sexual de relevo” que ofendida foi constrangida a suportar, na primeira das situações, e que se queda na tentativa, na segunda das situações, já que esta logrou evitar o contacto directo com os lábios, mas sendo inequívoco que tal era o resultado pretendido pelo arguido.
Deverá assim, relativamente a estas situações, ser o arguido condenado pela prática de um crime de coação sexual e por um crime de coação sexual tentado, p. e p. pelo art. 163.º, n.º 2, do Código Penal, sendo certo que sempre se verificará a agravativa prevista pelo art.177º nº1 al.b) do mesmo diploma que refere que a mesma se verificará se a vítima “Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.”.
Ora, in casu, é inequívoco que o arguido se aproveitou da situação de ser presidente da instituição para quem a ofendida prestava funções, e por via dessa relação conseguiu “atrair” a mesma para um local que só a ela estava destinado, longe dos olhares de outros, e sabedor que a mesma sempre estaria fragilizada dada a relação hierárquica de trabalho que se verificava e que certamente a impediria de agir, diferentemente se a mesma não existisse.»

E julga–se isenta de qualquer censura a decisão recorrida nesta parte.

A previsão típica do crime de coacção sexual encontra–se no art. 163º do Cód. Penal, o qual, no seu nº2 – aquele aqui relevante [4]– estipula , que pratica este ilícito quem “por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo”, sendo punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Como em todos os tipos criminais previstos neste capítulo do Código Penal, o bem jurídico aqui protegido é prima facie, e como escreve o Prof. Jorge de Figueiredo Dias (in “Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Parte especial – Tomo I”, in pág. 445), “a autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa. (…) Cada pessoa tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou lugar em que a elas se entrega, ou ao(s) parceiro(s) com quem partilha” (…). Se e quando esta liberdade for lesada de forma importante, a intervenção penal encontra-se legitimada e, mais do que isso, toma-se necessária”.
Como vimos, por via do presente recurso, e nesta parte, vem desde logo questionado se estes concretos actos do arguido integram o conceito de acto sexual de relevo, primeiro, e depois se o mesmo foi cometido com violência ou por qualquer dos outros meios instrumentais tipificados.

Elemento típico essencial é, na verdade, o de a actuação objectivamente detectada por parte do agente dos factos deva consubstanciar aquilo que o art. 163º do Cód. Penal exige como acto sexual, e de relevo.
A lei penal não fornece uma densificação do conceito de acto sexual de relevo, nem sequer por meio de exemplos–padrão, situação que, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/05/2022 (proc. 95/17.8JASTB.E2)[5], «confere margem de apreciação a quem julga, em função das realidades sociais, das conceções dominantes e da própria evolução dos costumes».
Assim, e como vem sendo comumente aceite pela doutrina e jurisprudência, é desde logo necessário que a conduta levada a cabo pelo agente possa caracterizar-se como acto de natureza sexual, isto é, como um acto que emane do corpo e da intenção do mesmo agente – ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, agressor e ofendido –, cuja motivação seja a de satisfazer os seus impulsos sexuais e libidinosos, tendo reflexos directos no corpo e no comportamento da pessoa que é objecto desse comportamento e na sua liberdade de determinação sexual própria.
E esse acto deve ser relevante, sendo que será considerado como tal todo o acto que seja importante, que se saliente, que se evidencie - sendo essa relevância de cariz sexual quando ofenda, em maior ou menor grau, os sentimentos de timidez ou de vergonha relacionados com o instinto sexual comum à generalidade das pessoas. Como escreve Sénio Manuel dos Reis Alves (in “Crimes Sexuais, notas e comentários aos artigos 163º a 179º do Código Penal”, pág. 11), “a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade. E esta considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda com gravidade, ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas”.
Como bem se expressa no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2013 (proc. 204/10.8TASEI.C1)[6] «acto sexual de relevo, será todo aquele que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas», aditando–se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/01/2016 (proc. 53/13.1GESRT.C1)[7], «‘Acto sexual de relevo’ será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objectivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima». No mesmo sentido refiram–se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/05/2016 (proc. 73/12.3GAVNC.G1)[8], do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/05/2014 (proc. 362/09.4GDSNT.L1-9)[9], ou do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/09/2022 (proc. 81/18.0GILRS.L1-3)[10].
Do que se trata é, pois, de proteger a autodeterminação sexual face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga.
E estaremos perante a forma agravada do crime de coacção sexual do art. 163º/2 do Cód. Penal, se o acto relevante de cariz sexual for praticado utilizando o agente um meio violento ou que se traduza na coacção ou constrangimento activo da sua vítima a suportar aquele acto.
O crime de coacção sexual é, nesse caso, um crime de execução vinculada, na medida em que o constrangimento da vítima só pode ser praticado por meio de violência, ameaça grave, ou depois de o agente ter tornado a vítima inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.
O Professor Figueiredo Dias, ao tratar a violência como “meio típico de coacção”, afirma que deve «ser considerado, no contexto do artigo 163.º, apenas o uso da força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva) destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada (...).», prosseguindo depois que «Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso nos termos conhecidos da doutrina da adequação, a vencer a resistência efectiva ou esperada da vítima (...).» (vide “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, págs. 453/454).
Ou seja, e atenta desde logo a exigência típica de o meio ser empregue «para esse fim», essencial é que tal meio (nomeadamente a acção de violência ou de ameaça, coacção ou colocação em situação de irresistência física), deva ser adequado e especialmente dirigido ao resultado especificamente pretendido pelo agente – isto é, levar a vítima a uma acção ou à tolerância de uma actividade sexualmente relevantes.

In casu, a actuação do arguido traduz–se em beijar a boca da ofendida BB – objectivo concretizado numa das ocasiões, e frustrado na outra por motivo alheio à vontade do arguido.
Ora, entende–se que beijar a ofendida na boca nas circunstâncias de facto aqui em causa, é, claramente, um acto sexual de relevo.
É–o desde logo para qualquer pessoa, pois trata-se de um acto relevante para o envolvimento sexual, é praticado com esse fim, e é ofensivo da intimidade e sentimento de pudor de qualquer pessoa, no caso uma mulher, e quando praticado sem ou contra a sua vontade.
No comportamento concreto do arguido se divisam claramente as suas intenções: de facto, não se vislumbra outra motivação do arguido para proceder das formas descritas senão o de satisfazer os seus instintos e desejos sexuais na altura.
Seguindo aqui de perto o sentido da decisão adoptada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/01/2021 (proc. 115/17.6GAETR.P1)[11], dir–se–á que, no caso de um acto traduzido num beijo na boca, se espontâneo da parte do agente e indesejado pela pessoa ofendida, não estamos em face meramente de um «um gesto de cortesia e/ou afeto, mas perante um gesto de conotação sexual, uma forma de satisfação de um impulso sexual do arguido”, gesto esse que viola a intimidade da vítima, reduzindo esta «a simples objeto de satisfação desse impulso do arguido, a quem não a ligava qualquer relação afetiva ou de outro tipo» – de tal sorte que, em tal situação estaremos «perante aquela “coisificação” da vítima própria dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual».
Como muito bem se consigna na decisão recorrida, com integral respaldo na matéria de facto assente, e em termos que integralmente se subscrevem, «in casu, basta atentar na resposta da arguida BB teve perante a conduta do arguido para verificar como tais actos são perturbadores da sua intimidade, levando-a a um propósito de fuga, perante os avanços do arguido. (…) Por outro lado, também é significativa a atitude do arguido, conhecedor da gravidade da sua conduta, que logo lhe diz que se dissesse o que se tinha passado a alguém, o negaria. Tudo isto significa que a conduta do arguido não era, nem seria, nem por ele, nem pela ofendida, nem pela generalidade das pessoas, tida por inocente ou inócua.».
E como também com evidente a–propósito explana o Digno Procurador–Geral Adjunto no seu parecer, em termos que igualmente se subscrevem, «dos factos provados resulta de forma inequívoca que o arguido actuou sempre com o propósito e intenção de manter com as ofendidas uma relação carnal de cariz nitidamente sexual, e todos os actos que praticou foram marcadamente sexualizados e com o intuito especifico de satisfazer intenções libidinosas de sedução que depois exteriorizou em gestos e atitudes massacrantes e fortemente invasivas da liberdade e autodeterminação sexual das ofendidas. Só não foi mais longe, porque estas se opuseram às suas investidas. Não estamos assim a falar de actos cândidos meramente provocativos destituídos de intenções sem luxuria nem se trata de brincadeiras de gosto duvidoso, mas sim de condutas com uma finalidade especifica e bem determinada : estabelecer uma relação amorosa e sexualizada com qualquer das ofendidas e face à oposição verificada que aquelas acabassem por ceder aos “encantos” das suas sucessivas investidas que visavam exclusivamente o estabelecimento e manutenção de relações de sexo. Há assim uma acentuada conotação sexual em todo o comportamento do arguido que vitimizou as ofendidas repetida e frequentemente.».
Os beijos da boca em causa configuram, pois, condutas que devem caracterizar-se como actos sexuais evidentemente relevantes.

Depois, e como bem decidiu também a primeira instância, os actos em causa foram praticados pelo arguido com exercício de violência sobre o corpo da ofendida.
Assim, no primeiro caso, «o arguido deu-lhe um beijo na boca, agarrando-a e encostando-a ao mesmo tempo à mesa ali existente», e no segundo «o arguido aproximou-se corporalmente da ofendida BB, agarrando-a de imediato pelos braços e tentando beijá-la na boca».
Ou seja, em qualquer das situações, e para procurar vencer a resistência da ofendida, o arguido manietou-a fisicamente das formas descritas.
Estas actuações consubstanciam sem margem para quaisquer dúvidas exercício de violência que a ofendida foi obrigada a suportar, e por via da qual se viu impossibilitada de a priori resistir àqueles súbitos avanços de cariz sexual por parte do arguido.
Note–se não ser necessário que a violência em causa se traduza em actos de agressão ou sequer uma especial intensidade determinante de qualquer tipo de sequela corporal, antes sendo suficiente que o contacto físico executado pelo agente sobre o corpo da vítima seja tão só o adequado e suficiente para impedir a resistência deste último.
Como também com evidente acerto se caracteriza na decisão recorrida, «Deverá ser aqui considerado apenas o uso de força física destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada. Assim, à violência tem de assistir uma qualquer corporalidade do meio de coação. Não é necessário que a força usada deva qualificar-se de pesada ou grave, mas será em todo o caso indispensável que ela se considere idónea, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima, sendo certo que pode preceder o ato sexual de relevo ou ocorrer em simultâneo com ele ou intervir após o seu início, se, neste último caso, ela se destinar a vencer a oposição da vítima entretanto sobrevinda.».
Subscreve–se aqui quanto se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/10/2010 (proc. 150/07.2JAPDL.L1-3)[12], onde se consigna que «I – No crime de coacção sexual previsto no art. 163º, nº 1 do Código Penal para o preenchimento do elemento típico violência não bastará apenas a constatação da ausência de consentimento por parte da pessoa ofendida. Ao invés, «à violência tem de assistir uma qualquer corporalidade do meio de coacção». II – O que não significa que, necessariamente, para que possa ocorrer violência, tenha de existir um qualquer contacto físico entre a vítima e o autor. Essencial é a aptidão do acto, ou dos actos, para constranger (coagir, forçar, obrigar, compelir) a outra pessoa a sofrer ou a praticar o acto sexual de relevo».
Considera–se, pois, preenchido também o pressuposto típico da utilização de meios configuráveis como violência sobre a ofendida, por forma a – isto é, com o fim de – lograr praticar sobre ela aqueles actos de relevante natureza e conotação sexual.

Mostram–se assim, e contrariamente ao alegado pelo recorrente, preenchidos os pressupostos típicos do nº2 do art. 163º do Cód. Penal no que tange à ofendida BB.

Assim como, adianta–se, se mostram preenchidos os requisitos típicos da agravação penal estatuídos no art. 177º/1/b) do Cód. Penal, onde se prevê que a pena que seja aplicável pela prática designadamente do crime de coacção sexual previsto no art. 163º do Cód. Penal, é agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima «Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação».
A agravação aqui prevista encontra justificação numa perspectiva de reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais e de uma lógica de maior protecção da vítima, atenta a sua especial vulnerabilidade. Como escrevem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, em obra citada, pág. 320, «É esta conexão que emerge do aproveitamento que confere um maior grau de ilicitude à atuação do agressor. Aproveitar é o agressor saber da existência de uma relação que lhe confere algum ascendente sobre a vítima e, ciente dessa sua maior fragilidade, prosseguir os seus intentos criminosos».
No caso da dependência hierárquica, económica ou de trabalho, o âmbito da agravação tem em vista as situações em que está em causa o aproveitamento e abuso pelo agente, e na parte que aqui em concreto releva, de uma posição de autoridade ou da sua capacidade de influenciar a situação laboral da pessoa ofendida, retirando partido da natureza e dinâmica dessa relação, não obstante por via dela lhe ser mais exigível uma conduta especialmente adequada a essa sua autoridade, e assim ao respeito pelo direito – condição que aumenta o desvalor da acção, justificando, deste modo, a agravação
É quanto sucede no presente caso, em que, como vem decidido em primeira instância, resulta claro da matéria de facto provada que o arguido, presidente da direcção do Lar ..., entidade empregadora da ofendida à data dos factos aqui em causa, se precisamente de uma tal situação de ascendência hierárquica, sendo por via dela que conseguiu abordar a ofendida nos termos em que o fez, em local longe dos olhares de outros, e sabedor que a mesma sempre estaria fragilizada dada a aquela relação hierárquica de trabalho que se verificava e que a impediria de agir diferentemente se a mesma não existisse.
Nesta parte, aliás, não colhe liminarmente sequer a argumentação do recorrente segundo a qual ofendida BB teria passado a trabalhadora efectiva em Maio de 2018 e a lavadeira, em 01/02/20219, como alega resultar do documento junto aos autos, pelo que inexistiria aquela dependência subjacente também à actuação do arguido.
Na verdade, ainda que assim fosse, os factos concretos aqui em causa ocorreram em Julho e Agosto de 2017, portanto, sempre anteriormente a qualquer daqueles termos temporais a que o arguido apela.
Seja como for, reitera–se quanto acima já se disse a este propósito, isto é, que de acordo com elementares regras de experiência comum em situações de domínio laboral como esta presente, e atento o especial contexto dos factos, sempre o caracterizado ascendente do arguido se sobreporia na percepção da e na sua ponderação sobre a legalidade da forma como fosse gerida a sua situação laboral.

Não merece, pois, qualquer censura a qualificação jurídico–criminal que o tribunal a quo efectuou desta parte da conduta do arguido, improcedendo também por esta via o recurso interposto.


7. De saber se estão preenchidos os pressupostos do art. 82º–A do Cód. de Processo Penal para a fixação de uma indemnização às ofendidas.

A derradeira questão suscitada pelo arguido/recorrente tem a ver com a alegação de não estarem afinal reunidos os pressupostos de aplicação das normas relativas à fixação de uma indemnização às ofendidas enquanto vítimas especialmente vulneráveis ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 82º–A do Cód. de Processo Penal e 483º do Cód. Civil.
Assim, considera o recorrente que, procedendo a modificação do Acórdão recorrido nos termos propugnados a montante, e assim se impondo a absolvição do ora recorrente, é manifesto que inexiste qualquer fundamento para a fixação de um valor a título de indemnização.
Ou seja, não tendo afinal o arguido praticado os factos descritos na decisão recorrida, falham os pressupostos de toda a estrutura do instituto da indemnização por responsabilidade civil extracontratual, quais sejam a existência de um facto voluntário e ilícito do agente, dano, nexo de causalidade entre o facto e o dano e nexo de imputação do facto ao lesante.

Atentos os termos em que o recorrente estrutura este segmento da sua pretensão recursória, é fatal a respectiva improcedência.
Na verdade, e para que fosse ponderável o não preenchimento dos pressupostos indemnizatórios aqui em causa, e, assim, a absolvição do arguido nesta parte, necessário seria – como o próprio recorrente logo antecipa na sua alegação –, que, relativamente à matéria de facto provada em sede de Acórdão recorrido, se verificasse uma alteração relativa aos elementos típicos criminais que ali foram considerados assentes.
Ora, a matéria de facto provada nesta parte não se mostra susceptível de qualquer alteração.
Ou seja – e ao contrário do que, aqui chegados, pressuponha o recorrente –, os actos efectivamente praticados pelo arguido foram voluntários, tratando–se de acções controláveis pela sua vontade e capacidade de entendimento, revestindo–se ademais o seu comportamento de ilicitude, na vertente desta que consiste na violação de um direito de outrem – isto é, os direitos à integridade, dignidade e liberdade pessoal das ofendidas, na vertente da sua autodeterminação sexual, tudo direitos protegidos constitucional e legalmente, como dá boa nota a decisão recorrida –, e não se verificou qualquer circunstância que pudesse excluir essa ilicitude.
Ademais o recorrente agiu com dolo, isto é, actuou voluntariamente de certo modo quando podia ter agido de modo diferente.
Os factos por si praticados são–lhe, assim, plenamente imputáveis.
Verifica-se igualmente, e mais uma vez ao contrário do propugnando pelo recorrente, que a sua actuação foi causa adequada à produção de danos na esfera jurídica pessoal das ofendidas, danos esses que resultaram assim directa e necessariamente da actuação criminosa do ora recorrente que fica apurada nos autos.
Estão, assim, preenchidos também os pressupostos da responsabilidade indemnizatória do recorrente.

Improcede, pois, também esta derradeira parte do recurso interposto.
*

III. DECISÃO

Nestes termos, em face de tudo o exposto, acordam os Juízes que compõem esta 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em :

1º, alterar os pontos 20.º, 24º e 38º, da matéria de facto provada considerada em sede de acórdão, nos termos e no sentido consignados no ponto 5. da presente decisão;

2º, no mais, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, e, em conformidade, confirmar a decisão recorrida.

Custas da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 5 (cinco) UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).
*

Porto, 19 de Abril de 2023
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão


(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
___________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Relatado por Cristina Branco, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[4] Anotando–se que a actual redacção deste nº2 do art. 163º do Cód. Penal corresponde ipsis verbis – quer em termos de previsão típica, quer de estatuição penal – ao nº1 da mesma disposição artigo na versão (decorrente da Lei 83/2015, de 5 de Agosto) anterior à nova redacção do artigo em causa, introduzida pela Lei 101/2019, de 6 de Setembro – donde, e pese embora os factos aqui em causa se reportem ao ano de 2017, não se colocam no caso quaisquer questões relacionadas com sucessão no tempo de divergentes regimes penais.
[5] Relatado por Ana Bacelar, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[6] Relatado por Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[7] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[8] Relatado por João Lee Ferreira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[9] Relatado por Filipa Costa Lourenço, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[10] Relatado por Leonor Botelho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[11] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[12] Relatado por Telo Lucas, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf