Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
172/13.4TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
RISCO
DECLARAÇÕES INEXACTAS
ANULABILIDADE
Nº do Documento: RP20150914172/13.4TBMAI.P1
Data do Acordão: 09/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O tomador do seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador, ainda que as mesmas não sejam solicitadas em questionário fornecido pelo segurador-art. 24º, nºs 1 e 2, do novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (LCS).
II - O cumprimento do dever de declaração do risco não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta. Ele acompanha toda a fase de formação do contrato e o seu cumprimento terá de aferir-se pelas circunstâncias que venham ao conhecimento do proponente até à conclusão do contrato.
III - Contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429.º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do art. 25º da LCS.
IV – Para a anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS não é exigível a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, tal apenas acontece para as omissões ou inexactidões negligentes [artigo 26.º, nº 4 al. b) da LCS].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 172/13.4TBMAI.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-Póvoa de Varzim-Inst. Central-2ª Secção Cível-J1
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Rita Romeira
2º Adjunto Des. Caimoto Jácome
Sumário:
I- O tomador do seguro está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador, ainda que as mesmas não sejam solicitadas em questionário fornecido pelo segurador-art. 24º, nºs 1 e 2, do novo regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (LCS).
II- O cumprimento do dever de declaração do risco não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta. Ele acompanha toda a fase de formação do contrato e o seu cumprimento terá de aferir-se pelas circunstâncias que venham ao conhecimento do proponente até à conclusão do contrato.
III- Contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429.º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do art. 25º da LCS.
IV – Para a anulabilidade do contrato de seguro prevista no art. 25º, nº 1, da LCS não é exigível a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, tal apenas acontece para as omissões ou inexactidões negligentes [artigo 26.º, nº 4 al. b) da LCS].


I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, mulher C…, residentes na …, .., .º Esquerdo, Maia intentaram a presente acção declarativa com processo ordinário contra D…, S.A., com sede na Rua …, .., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia € 123.572,96 actualizando-se tal importância à data em que for proferida a sentença, bem como a pagar-lhes a quantia correspondente aos montantes despendidos e entretanto efectuados a título de pagamento do prémio de seguro a título de estorno.
Alegam, em resumo, tendo celebrado com a Ré um contrato de seguro de vida crédito à habitação cujo objectivo era garantir o pagamento do crédito à habitação, caso ocorresse algum risco que impedisse a sua capacidade de ganho.
Acontece que, tendo a segurada Autora, em meados do ano de 2010, já depois da celebração sido acometida de uma invalidez absoluta e definitiva para o exercício da sua profissão, a Ré declinou a sua responsabilidade alegando “incumprimento nas declarações de saúde prestadas”.
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Devidamente citada, a Ré contestou invocando a anulabilidade do contrato de seguro objecto da acção por terem sido prestadas declarações inexactas, pugnando, assim, pela improcedência da acção.
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Foi requerida a intervenção do E…, S.A. e F…, Lda e, admitidas, apenas esta última veio contestar, concluindo pela improcedência da acção.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais.
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A final foi proferida sentença que julgou improcedente, por não provada, a presente acção e consequentemente improcedente e consequentemente absolver a Ré D…, S.A., e os intervenientes, E…, S.A. e F…, Lda., do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
1º Os recorrentes celebraram com a Ré D…, S.A., em 7 de Agosto de 2009, um contrato de seguro de vida crédito à habitação.
2º O intermediário deste contrato de seguro foi o Sr. G…, mediador de seguros da empresa F…, Lda., entidade responsável de fornecer todas as informações aos aqui recorrentes.
3º Este seguro visava garantir o pagamento do crédito à habitação, caso ocorresse algum risco que impedisse a capacidade de ganho dos recorrentes.
4º A recorrente C… em meados do ano de 2010 foi acometida de uma invalidez absoluta e definitiva por doença, padecendo de retina diabética, a qual constituiu uma doença irreversível, que lhe provoca cegueira.
5º Ficou totalmente incapacitada para o exercício da sua actividade profissional de motorista de pesados, que até então desempenhava.
5º Tendo-lhe sido atribuída um grau de incapacidade parcial de multiuso de 89,8 %, desde 11 de Novembro de 2011.
6º Encontra-se de forma permanente e definitiva incapaz para o exercício de qualquer profissão, necessitando do apoio de terceira pessoa.
7º Por via dessa inaptidão, ficou a recorrente de imediato reformada por incapacidade absoluta e definitiva com referência a 26 de Maio de 2011, pelo valor € 303,23 (trezentos e três euros e vinte e três cêntimos).
8º Participada a situação à Ré D…, S.A., esta declinou a sua responsabilidade alegando “incumprimento nas declarações de saúde prestadas” e “prestou declarações inexactas nomeadamente relativas à patologia”.
9º Ora a recorrente é diabética há mais de 20 anos, todavia apenas toma insulina desde o ano de 2011, sendo que aquando da subscrição do seguro, apenas controlava a doença com a toma diária de comprimidos, situação que nunca omitiu ao seu mediador de seguros, Sr. G….
10.º Alias o próprio G…, refere nunca ter perguntado directamente à recorrente se padecia de diabetes.
11º Como pode prestar declarações inexactas, se nunca lhe foi perguntado se tinha diabetes!
12º O próprio questionário não faz qualquer pergunta a esse respeito.
13º A recorrente respondeu com absoluta verdade às questões da proposta de seguro, nunca sendo advertida que as informações deveriam ser mais o completas possível.
14º Nunca o Sr. G… a alertou para esse facto, aliás foi o próprio que preencheu os questionários, sendo que durante o preenchimento dos mesmos, nunca a recorrente omitiu ser portadora de diabetes, por ser tratar de uma doença não limitativa do exercício da sua actividade.
15º A recorrente exercia uma actividade profissional, considerando-se uma pessoa saudável, desconhecendo em absoluto ser portadora de qualquer problema a nível visual, sendo que tal patologia, imprevisível, se veio a manifestar mais tarde.
16º A seguradora declinou pagar o prémio à recorrente de forma abusiva, pois esta não omitiu qualquer informação, confiando que os esclarecimentos prestados pelo intermediário G… eram fidedignos.
17º O tribunal a quo não logrou esclarecer a existência de duas propostas de seguro, ambas referentes aos recorrentes.
18º Uma das propostas não foi considerada pelo tribunal a quo, em benefício da outra.
19º Ora, a proposta de seguro não considerada pelo tribunal a quo, era aquela que os recorrentes tinham na sua posse, e que consideram como válida, era a proposta que atenta as respostas dadas, culminaria, na execução de exames médicos complementares.
20º Nessa proposta, a recorrente mencionou, ter consultado cardiologista.
21º Segundo os depoimentos das testemunhas Dr. H… (médico da ré Seguradora D…, S.A) e técnica de Seguros, I…, respondendo-se afirmativamente à pergunta “já consultou um cardiologista”, a seguradora solicitaria exames médicos complementares.
22º Ora, desconhecemos os motivos pelos quais a Seguradora não requereu à recorrente tais exames complementares.
23º Também não foi dada relevância pelo tribunal a quo, ao facto de os recorrentes terem mudado de seguradora, ou seja, os recorrentes tinham um seguro de vida numa companhia de seguros, e mudaram tal seguro, para a ré.
24º Os recorrentes não subscreveram um seguro novo.
25º Não faz qualquer sentido a tese defendida pela ré de que os recorrentes a enganaram, pois se assim fosse, estes manter-se-iam a sua seguradora originária.
Face a tudo exposto,
26º Não considera a recorrente haver suporte fáctico, testemunhal ou documental para que o Tribunal a quo tivesse julgado improcedente a presente acção, uma vez que o próprio tribunal considera que “não ficou provado que a A. omitiu ser portadora de Diabetes.”
27º A sentença ora recorrida, em nosso entender, violou ainda o disposto nos artigos 271º, 280º, 334º do Código Civil.
28º Violou ainda o princípio da livre apreciação pelo tribunal, nos termos do artigo 607º nº 5 do CPC, a qual se baseia na sua prudente convicção sobre a prova produzida.
29º A sentença recorrida tendo violado os preceitos indicados não deverá ser mantida.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal fez, ou não, de forma correcta a subsunção jurídica da factualidade que nos autos resultou demonstrada.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada:
1. Os Autores celebraram com a Ré, em 7 de Agosto de 2009, um contrato de seguro de vida titulado pela apólice número I-……., documento junto a fls. 65 a 66 cujo teor se dá por reproduzido, no qual são segurados, sendo o E…, S.A. a entidade terceira ou beneficiária.
2. Por intermédio de tal seguro, sujeito às condições especiais e gerais juntas a fls. 69 a 91, a Ré obrigou-se ao pagamento da importância segura até ao montante de € 129.085,00 caso ocorresse algum dos riscos contratualmente previstos.
3. O montante do crédito hipotecário dos AA. junto do E…, S.A., ascendia, à data de 26 de Maio de 2011, a €123.572,96, sendo o valor actual da prestação mensal de € 478,00, a qual não está a ser suportada pelos AA. por dificuldades financeiras para o efeito.
4. Esse contrato foi celebrado por intermédio de G…, mediador de seguros da “F…, Lda.” através da elaboração da proposta de seguro de vida n.º …….. subscrita pelos AA. e que constitui o documento junto a fls. 67 a 68.
5. A A. passou a padecer de retinopatia diabética desde meados do ano de 2010, o que lhe provoca cegueira, tendo ficado totalmente incapacitada para o exercício da sua actividade profissional habitual de motorista, e de uma incapacidade permanente parcial de 89,8% desde 11/11/2011.
6. Desde 11/11/2011, a A. encontra-se de forma permanente e definitiva incapaz para o exercício de qualquer profissão no mercado concorrencial, necessitando do apoio de terceira pessoa.
7. Por via dessa incapacidade a A. ficou reformada por incapacidade absoluta e definitiva com referência a 26 de Maio de 2011, auferindo uma reforma no valor mensal € 303,23.
8. Tais lesões, sequelas e incapacidade de que a A. ficou a padecer são consequência causal da evolução da doença natural, diabetes, de que sabia ser portadora desde que lhe foi diagnosticada em 1986.
9. A diabetes de que a A. padecia constitui uma doença natural adequada a produzir frequentemente, embora em momento imprevisível, as referidas lesões e sequelas de que ficou a padecer.
10. À data da subscrição do contrato de seguro, em Agosto de 2009, a A. controlava tal doença com a toma diária de comprimidos e posteriormente de insulina, não tendo outros sintomas ao nível da acuidade visual.
11. Aquando da subscrição da proposta de seguro que veio a ser aceite pela Ré dando origem à referida apólice I-……., a A. não comunicou por qualquer forma, quer à seguradora quer ao mediador de seguros junto do qual subscreveu e entregou tal proposta, que era portadora de diabetes.
12. Aquando do preenchimento de tal proposta de seguro que assinou e se encontra junta a fls. 67 e 68, a A. não mencionou e omitiu deliberada e conscientemente no formulário de saúde dele constante, ser portadora de diabetes, tendo, além do mais constante em tal documento cujo teor se dá por reproduzido, nele dado a resposta “não” no local em que aí era perguntado se “nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença”.
13. Em 21.12.2011 a A. participou à Ré a situação de incapacidade de que ficou a padecer para efeitos de accionamento do seguro, tendo esta, por carta de 26.7.2012 que constitui o documento junto a fls. 24 cujo teor se dá por reproduzido, respondido declinando a sua responsabilidade alegando “incumprimento nas declarações de saúde prestadas pela Pessoa Segura” (…) “nomeadamente relativas à patologia diagnosticada em 1986, que era do seu conhecimento (…)”.
14. À data da subscrição do seguro a autora desconhecia que a diabetes de que padecia lhe iria causar os referidos problemas de saúde que lhe determinaram a incapacidade permanente de que padece, pese embora soubesse ser tal incapacidade uma consequência possível de tal doença de que era portadora.
15. As condições gerais do contrato de seguro, que constituem os documentos juntos a fls. 69 a 91, foram remetidas à A. pela Ré D… em momento posterior ao da subscrição e aceitação da proposta de seguro.
16. A Ré aceitou celebrar o contrato de seguro em causa tendo por base a referida proposta de seguro e formulário de saúde juntos a fls. 67 e 68.
17. Caso soubesse, aquando da subscrição e aceitação da proposta de seguro, que a autora padecia de diabetes, a Ré não teria celebrado tal contrato ou, pelo menos, sujeitá-lo-ia a um agravamento do respectivo prémio.
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Factos não provados:
O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
“− A A. nunca omitiu ser portadora de diabetes;
− A A. comunicou ao G…, mediador de seguros da “F…, Lda.”, que era diabética.
− Aquando da subscrição da proposta de seguro o G…, mediador de seguros da “F…, Lda.”, tinha conhecimento de que a A. era diabética.
− No questionário de saúde junto com a proposta de seguro que lhe foi exibido, apenas se solicitava a resposta SIM ou Não às perguntas colocadas, às quais a A. respondeu com absoluta verdade.”
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a única questão colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido fez ou não a correcta subsunção dos factos que nos autos resultaram demonstrados.

Importa, contudo, antes demais, que se diga que os factos que iremos ter em conta para a apreciação do recurso são apenas aqueles que o tribunal recorrido deu como provados e não quaisquer outros.
Na verdade, nas alegações recursivas os Autores não impugnam a decisão da matéria de facto dada como assente pelo tribunal recorrido, pois que, muito embora façam alusão aos depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas em sede de audiência, o certo é que em nenhures, quer do corpo alegatório quer das respectivas conclusões, os recorrentes referem que factos deveriam ter sido considerados provados e não o foram ou que factos foram dados como provados e não o deveriam ter sido.
Acresce que, como também se lhe impunha pretendendo fazer uso de tal desiderato, não deram cumprimento aos ónus estatuídos no artigo 640.º do CPCivil referentes à impugnação da decisão da matéria de facto.
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Isto dito, vejamos então se o tribunal a quo fez, ou não, a correcta subsunção jurídica da factualidade provada.
Na sentença sob censura, julgou-se procedente a excepção invocada pela apelada-seguradora a que se refere o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril, em vigor à data da outorga do contrato de seguro, concluindo-se pela invalidade do contrato de seguro, com fundamento na prestação de declarações inexactas pela Autora segurada e ora apelante.
Deste entendimento dissentem os Autores apelantes por entenderem que a segurada Autora não prestou qualquer declaração inexacta.
Quid iuris?
Na presente acção os apelantes Autores visam obter o reconhecimento da validade de um contrato de seguro de grupo “Ramo Vida” celebrado entre eles e a apelada Ré seguradora e a consequente condenação desta, no pagamento do valor devido ao Banco pelo empréstimo contraído junto dessa instituição para aquisição de habitação.
A apelada Ré em sede de contestação veio suscitar a invalidade do referido contrato por terem sido prestadas, por banda da Autora, declarações inexactas aquando da sua subscrição.
Portanto, tal como a acção vinha estruturada pelas partes nos respectivos articulados, a questão que importava resolver consistia em apurar-se se o pagamento da quantia peticionada incumbe à Ré, ou se, como esta alega, foram prestadas declarações inexactas, que geram a nulidade do contrato de seguro ramo vida.
Em termos doutrinais, contrato de seguro é o contrato pelo qual uma pessoa (seguradora) se obriga, mediante remuneração (prémio), a realizar a favor de outra pessoa (segurado ou outra pessoa: beneficiário), no caso de um evento futuro e remoto (risco), uma prestação que pode consistir numa indemnização pelos danos sofridos em consequência de um sinistro ou, no caso de evento relativo à pessoa humana, num capital ou rendas.[1]
Por outras palavras, o contrato de seguro é aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, no caso da realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos, ou, tratando-se de um evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de prestação a realizar em data determinada. [2]
O risco constitui, portanto, um elemento essencial do contrato e pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro[3].
Do exposto, é patente que o contrato de seguro é um contrato bilateral, no qual as duas partes se obrigam reciprocamente: o segurado a pagar o prémio e a seguradora a cobrir o risco (é uma prestação de facto positivo, assunção de um risco e pagamento de um capital).
A seguradora não responde por todos e quaisquer riscos, mas somente pelos riscos seguros, pelo que, para cada risco é necessário um seguro.
Isto dito e para o que agora aqui nos interessa, dispõe o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 que:
1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
Por sua vez estatuiu o artigo 25.º do mesmo diploma legal que:
1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.
5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.
Na economia do contrato de seguro, recai sobre o segurado a obrigação de não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato.
O questionário ou formulário sobre a situação pessoal do proponente, revela-se determinante na formação do contrato, por ser este o meio ou instrumento criado para avaliar o risco que a seguradora vai assumir.
Como se refere no acórdão do STJ, de 17.10.2006[4], é através do “questionário” que a seguradora dá conhecimento ao candidato sobre “as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco”[5].
No acórdão de 27.05.2008[6], o mesmo Supremo Tribunal atribui particular relevo ao “questionário”, referindo: “consoante o conteúdo das respostas ao questionário sobre o estado de saúde do potencial segurado, a seguradora decide se, em definitivo, apresenta uma proposta de seguro e, na hipótese afirmativa, as condições que propõe para que seja celebrado o contrato de seguro, sendo que só então, nessa segunda fase, poderemos dizer que estamos perante um contrato de adesão”.
Também em recente acórdão o STJ de 02.12.2013[7] anota que: [e]lemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar. É através de tal questionário que a seguradora faz saber ao candidato “as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco”.
Deste modo, no que respeita ao tomador do seguro, este deve, pois, responder com absoluta verdade ao questionário/minuta do contrato de seguro, informando a empresa de seguros de todos os elementos necessários, para que esta possa avaliar o risco, decidir sobre a sua aceitação ou não e em que condições e, finalmente, estabelecer o respectivo prémio de seguro.
Como se referiu, é com base nas declarações prestadas pelo tomador que a seguradora vai decidir a sua vontade de contratar ou não e em que condições.
A necessidade dessa proposta-questionário resulta, portanto, da circunstância de o segurador não poder proceder a minuciosas indagações, sempre que efectua qualquer seguro, sendo por isso levado a confiar na lealdade do segurado e ficando aquela a fazer parte integrante do contrato.
Por virtude dessa confiança, o contrato assenta, essencialmente, na boa fé-a uberrima bona fides-a que seguradora e tomador do seguro estão especialmente vinculados, sendo este, aliás, o principal critério de interpretação das suas cláusulas.
Importa, contudo, realçar que o cumprimento do dever (de declaração do risco) não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta. Ele acompanha toda a fase de formação do contrato e o seu cumprimento terá de aferir-se pelas circunstâncias que venham ao conhecimento do proponente até à conclusão do contrato.[8]
Repare-se, porém, que contrariamente ao que sucedia com o revogado artigo 429º do Código Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre inequivocamente do nº 1 do artigo 25.º da LCS.
Nos termos do art. 253º do Código Civil, “[e]ntende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante” (nº 1), mas “[n]ão constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções” (nº 2).
Como se sabe e tem sido posto em relevo pela doutrina, o dolo é uma espécie agravada de erro, é um erro provocado, de tal modo que, como salientou o Prof. Menezes Cordeiro, citando Castro Mendes, “a relevância do dolo depende duma dupla causalidade: é preciso que o dolo seja determinante do erro e o erro determinante do negócio”.[9]
Como ensinam Antunes Varela e Pires de Lima[10], “[o] dolo supõe um erro que é induzido ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro. Para que haja dolo são necessários os seguintes requisitos:
a) Que o declarante esteja em erro;
b) Que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) Que o declaratário ou terceiro (deceptor) haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.”.
Posto estes considerandos será que no caso concreto houve um comportamento doloso da Autora?
A resposta não pode deixar de ser positiva.
Com efeito está provado nos autos que a Autora recorrente aquando da subscrição da proposta de seguro que veio a ser aceite pela Ré, dando origem à referida apólice I-……., não comunicou por qualquer forma, quer à seguradora quer ao mediador de seguros junto do qual subscreveu e entregou tal proposta, que era portadora de diabetes (facto descrito em 11. da fundamentação factual).
Para além disso, aquando do preenchimento de tal proposta de seguro a Autora não mencionou e omitiu deliberada e conscientemente no formulário de saúde dele constante, ser portadora de diabetes, tendo, além disso, nesse documento dado a resposta “não” no local em que aí era perguntado: “nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença?” (facto descrito em 12. da fundamentação factual).
E de nada releva o facto de, como referem os recorrentes, não terem sido eles a preencher os questionários mas sim o mediador Sr. G….
Na verdade, pré-elaborado está o questionário, que não as respostas, e destinatário destas é a seguradora. O segurado não adere ao questionário, responde-lhe para fornecer à seguradora elementos em função dos quais esta estabelece as condições de aceitação do contrato.
Acresce que, quem subscreve um determinado documento sem o ter lido nem tomado conhecimento do seu conteúdo não pode posteriormente, em princípio, alegar erro na declaração (artigo 247.º, do CCivil), pois se assinou é porque quis admitir o conteúdo do documento, seja qual for o seu teor, a não ser que contenha regulamentação que não podia em nenhum caso prever. A vinculação do subscritor do documento sem prévia leitura decorre do princípio da responsabilidade, sendo que se assinou sem ler fez de qualquer forma seu o contexto do documento.[11]
Como assim, não se entende o argumento esgrimido pelos recorrentes de que não ficou provado que a A. tenha omitido ser portadora de diabetes.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que existe aqui algum equívoco por parte dos recorrentes.
Efectivamente, o que tribunal deu como não provado é que: “− A A. nunca omitiu ser portadora de diabetes”.
Portanto, não se provou que a Autora nunca tenha omitido que era portadora de diabetes, aliás, o que se provou é que, como ficou assente, omitiu ser portadora de tal doença.
Da mesma forma que também se revela inócuo o argumento alinhado pelos Autores recorrentes, de que o próprio questionário não faz qualquer pergunta a respeito dos diabetes.
Com feito, como decorre do nº 2 do artigo 24.º da LCS acima transcrito a exactidão é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
É que, como ficou demonstrado à data da subscrição do contrato de seguro, em Agosto de 2009, a Autora já sabia que padecia de diabetes, doença, aliás que controlava com a toma diária de comprimidos e, portanto, era-lhe exigível que tivesse informado a Ré recorrida dessa circunstância, pois que, como noutro passo já se referiu, o cumprimento do dever (de declaração do risco) não se esgota no preenchimento do eventual questionário que acompanha a proposta ou com a entrega desta, ele acompanha toda a fase de formação do contrato.
Para além disso, e ao contrário do que referem os recorrentes não ficou provado que:
-A A. tivesse comunicado ao G…, mediador de seguros da “F…, Lda.”, que era diabética.
− Aquando da subscrição da proposta de seguro o G…, mediador de seguros da “F…, Lda.”, tinha conhecimento de que a A. era diabética.
− No questionário de saúde junto com a proposta de seguro que lhe foi exibido, apenas se solicitava a resposta SIM ou Não às perguntas colocadas, às quais a A. respondeu com absoluta verdade.”
No que se refere à questão da existência de duas propostas de seguro, ambas referentes aos recorrentes, pese embora, tal como já se referiu, não tenha sido impugnada a matéria de facto, sempre se dirá que o tribunal recorrido, na motivação da decisão da matéria de facto, abordou a referida questão tendo discorrido do seguinte modo:
Acrescente-se ainda que pese embora pelo referido G… tenha sido confirmado que os AA. também subscreveram a proposta de adesão junta a fls. 12 a 13 e que por motivos que disse não se recordar ficou sem efeito, o que é certo é que aquela que que foi enviada para a seguradora foi a que se encontra junta a fls. 67 a 68, sendo que, de qualquer modo, na proposta de fls. 12 a 13 é também omitido, conforme resulta do seu teor, que a A. padecesse de diabetes.”
Importa por último referir que, ao contrário do que se refere na sentença recorrida, no caso sub judice não era imprescindível à anulabilidade a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar.
De facto, a anulabilidade do contrato de seguro prevista no artigo 25.º, nº 1, da LCS não exige a verificação de tal nexo.
Basta, para tanto, confrontar aquele preceito com o que se prescreve no nº 4 do artigo 26.º no caso de incumprimento da declaração inicial de risco por negligência: “[s]e, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes (…)”.
Se fosse intenção do legislador exigir essa influência tê-lo-ia, seguramente, exigido de forma expressa, como fez em relação às omissões ou inexactidões negligentes.
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Assim, tendo a Autora recorrente prestado dolosamente falsas declarações, antes da celebração do contrato de seguro constante dos autos, é o mesmo anulável nos termos das disposições conjugadas dos artigos 24.º, nº 1, 25.º, nºs 1 e 3, da LCS e 287º do Código Civil, não merecendo, por isso, a decisão recorrida qualquer censura.
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Por último, também não se vislumbra que a Ré recorrida tenha actuado com abuso de direito ao excepcionar a referida invalidade, declinando, por isso, a sua responsabilidade.
Refere o artigo art. 334° do C. Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito”.
Como anotam os Profs. P. Lima e A. Varela [12], “para que haja abuso de direito basta que, objectivamente, o exercício do direito feito, ou pretendido, exceda manifestamente os limites postos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Importa, portanto, que a forma como o titular do direito invocado se proponha exercê-lo em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. No mesmo sentido-Prof. Menezes Cordeiro.[13]
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e, para os impostos pelo fim social ou económico do direito, “deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei”.
Como assinala o Prof. A. Varela [14] “para que o exercício de um direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. E preciso que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.[15]
Também Vaz Serra,[16] refere que se aplica “ às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensivo do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição
Portanto, com a norma do artigo 334.º não se pretende, em certas circunstâncias, suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que o seu titular use dele numa direcção ilegítima, manter o seu exercício em moldes adequados a um salutar equilíbrio de interesses, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito; pretende-se que, em certas circunstâncias concretas, um direito não seja exercido por forma a ofender gravemente o sentimento de justiça dominante na sociedade. A censura do abuso do direito visa evitar o exercício anormal, em termos reprováveis, do direito próprio, só formalmente adequado ao direito objectivo.
Ora, a Ré ao invocar a invalidade do contrato não está a exercer essa sua faculdade de forma ilegítima e ofensiva, ou seja, não está a extravasar os limites estatuídos na lei ao tornar actuante o seu direito, verificadas, claro está, as circunstâncias da factie species da norma respectiva.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelos Autores apelantes e, com elas, o respectivo recurso.

IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos Autores apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 14 de Setembro de 2015.
Manuel Domingos Fernandes
Rita Romeira
Caimoto Jácome
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[1] Cfr. neste sentido, Luís de Brito, Polis Enciclopédia, 5, 662, e Arnaldo Pinheiro Torres, in Ensaio Sobre o Contrato de Seguro, pág.17.
[2] Vide, Moitinho de Almeida, in Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado.
[3] José Vasques, Contrato de Seguro-Notas para uma Teoria Geral, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pag. 127.
[4] Proferido no Proc. 06A2852, acessível em http://www.dgsi.pt.
[5] No mesmo sentido, vide acórdão do STJ, de 6.07.2011, Proferido no Proc. 2617/03.2TBAVR.C1.S1, acessível no mesmo site.
[6] Proferido no Proc. n.º 08A1373, acessível no mesmo site. Consta do citado aresto: “É elemento decisivo para a celebração do contrato o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são feitas aí perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar”.
[7] Ac. STJ 02.12.2013 – Proc. 2199/10.9TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[8] Cfr. neste sentido Luís Poças in “O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro”, colecção “Teses” da Almedina, pág. 332.
[9] Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo I, pág. 550; Teoria Geral do Direito Civil II, p. 112
[10] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição revista e actualizada, p. 236.
[11] Cfr. Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, p. 71, nota 156 e pp. 71-72, nota 157.
[12] C. Civil Anotado, vol. I, 4ª Ed. pág. 298
[13] In “Da Boa Fé no Direito Civil”, 01.11, pág. 661, Dr. Cunha de Sá, in “Abuso de Direito”, pág. 454, Dr. Coutinho de Azevedo, in “Do Abuso de Direito”, pág. 56 e os Acs. do ST J de 7.10.88, in BMJ, 380-62 e de 21.9.93, in CJ-STJ Ano I, Tomo III, pág. 19.
[14] Cfr. os Profs. P. Lima e A. Varela, ob. cit. pág. 299 e o Prof. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, Vol. I, págs. 65 e 845..
[15] Cfr. os Acs. do ST J de 3.4.86, in BMJ 356-315, de 25.7.86, in BMJ 358- 70 e de 7.10.88, in BMJ 380-362)
[16] Abuso do Direito, BMJ, n.º 85, pág. 253