Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3017/18.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP201912103017/18.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
Decisão: RECURSO NÃO ADMITIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que a Relação conclua pela admissibilidade do recurso a título extraordinário na consideração de tal se afigurar “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito”, não basta ao recorrente formular requerimento autónomo e limitar-se a invocar esse fundamento, antes se lhe impondo que nele alegue as razões concretas e precisas que evidenciem a existência desse fundamento, dado que a apreciação e decisão dessa pretensão constituem questão prévia relativamente à apreciação do recurso.
II - A manifesta necessidade “à melhoria da aplicação do direito” prevista no n.º2, do art.º 49.º da Lei 100/2009, só se verifica quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, não se destinando, pois, a corrigir eventuais erros de julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3017/18.5T8AVR.P1
Recurso de Contra-ordenação laboral
4.ª SECÇÃO

I. RELATÓRIO
I.1 “B…, Ld.ª”, notificada da decisão administrativa da Autoridade Para as Condições do Trabalho, proferida no âmbito dos processos de contra-ordenação n.ºs 021800259, 021800260, 021800261, 021800262, 021800263, 021800329, 021800330, 021800331, 021800332,021800333 e 021800334, aplicando-lhe uma coima única de € 2.750,00, com ela não se conformando veio impugná-la judicialmente, mediante a interposição de recurso, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo do Trabalho de Aveiro - Juiz 1.
Aquela coima única de € 2.750,00, foi aplicada em cúmulo jurídico das coimas seguintes:
- Quatro coimas, no valor de € 250,00 cada, pela prática, a título negligente, de quatro contra-ordenações leves, previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas dos arts. 4º, al. g) e 8º, n.ºs 1, 2 e 4 do Regulamento (CE) n.º 561/06, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03 e 14º n.ºs 1 e 2, al. a) e 20º n.º 2, al. a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08 (Processos n.ºs 021800259, 021800260, 021800261 e 021800262);
- Uma coima no valor de € 650,00, pela prática, a título negligente, de uma contra-ordenação grave, prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos arts. 7º do Regulamento (CE) n.º 561/06, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03 e 14º n.ºs 1 e 3, al. a) e 19º n.º 2, al. b), da Lei n.º 27/2010, de 30/08
(Processo n.º 021800263);
- Seis coimas, no valor de € 650,00 cada, pela prática a título negligente de seis contra-ordenações graves, previstas e punidas nos termos das disposições conjugadas dos arts. 6º n.º 5 e 15º do Decreto-Lei (DL) n.º 237/2007, de 19 de Junho e 554º n.ºs 1 e 3, al. a) do Cód. do Trabalho (Processos n.ºs 021800329, 021800330, 021800331, 021800332, 021800333 e 021800334).
I.2 A impugnação judicial dirigida à 1.ª instância apresenta as conclusões seguintes:
«20.º A Requerente no dia 21 de fevereiro de 2018, pelas 10 horas e 50 minutos, na EN … Rot. Acesso à … - …, Concelho de Estarreja, Distrito de Aveiro, foi autuada, em virtude de alegadamente o condutor Sr. C…:
Processo n.º 0218900259:
1. “O condutor não respeitou o período de repouso diário reduzido (9H), entre as 03H:49 do dia 25/01/2018 e as 03H49 do dia 26/01/2018 efetuou somente cerca de 08H047 de repouso diário conforme folhas/impressões dos dias 25/01/2018 e 26/01/2018 que se anexam.”
Processo n.º 021800260:
2. “O condutor não respeitou o período de repouso diário reduzido (9H), entre as 04H:05 do dia 14/02/2018 e as 04H05 do dia 15/02/2018 efetuou somente cerca de 08H 15 de repouso diário conforme folhas/impressões dos dias 14/02/2018 e 15/02/2018 que se anexam.”
Processo n.º 021800261:
3. “O condutor não respeitou o período de repouso diário reduzido (9H), entre as 03H:34 do dia 06/02/2018 e as 03H34 do dia 07/02/2018 efetuou somente cerca de 08H32 de repouso diário conforme folhas/impressões dos dias 06/02/2018 e 07/02/2018 que se anexam.”
Processo n.º 021800262:
4. “O condutor não respeitou o período de repouso diário reduzido (9H), entre as 03H:34 do dia 06/02/2018 e as 03H34 do dia 07/02/2018 efetuou somente cerca de 08H32 de repouso diário conforme folhas/impressões dos dias 06/02/2018 e 07/02/2018 que se anexam.”
Processo n.º 021800263:
5. “O condutor entre as 06h:27 e as 11h:51 do dia 16/02/2018, conduziu aproximadamente 04h:37m, porém não respeitou os períodos de pausa na condução obrigatórios (45m ou 15m + 30m). O condutor efetuou uma pausa de 33m, às 09h:42, totalizando assim 12m, inferior ao regulamentar, conforme talão do dia 16/02/2018 que se anexam”
Processo n.º 021800329:
6. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 25/01/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 03:49 e terminou pelas 19h:45. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 13h: 12m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 25/01/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão.”
Processo n.º 021800330:
7. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 20/02/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 03:35 e terminou pelas 18h:22. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 11 h: 59m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 20/02/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão."
Processo n.º 021800331:
8. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 12/02/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 04:00 e terminou pelas 19h:03. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 11h:23m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 12/02/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão.”
Processo n.º 021800332:
9. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 08/02/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 04:35 e terminou pelas 17h:52. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 10h:58m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 08/02/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão.”
Processo n.º 021800333:
10. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 07/02/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 04:03m e terminou pelas 19h. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 11h:00m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 07/02/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão.”
Processo n.º 021800334:
11. “Verifiquei que o condutor não respeitou a duração do tempo de trabalho no dia 06/02/2018, tendo excedido o período de trabalho diário de 10 horas. O condutor iniciou o trabalho pelas 03:34m e terminou pelas 19h:02. Abrangendo assim o intervalo entre as 00:00 e as 05:00 e perfazendo um total de 13h:45m de trabalho nesse dia conforme se pode comprovar através de análise do talão do dia 06/02/2018 e qual se anexa ao auto após descarga/leitura dos dados do cartão.”
21º Ocorre, porém que em sede de defesa foi arrolado o motorista em causa nos processo de contraordenação,
22º Este último já não se encontrava a laborar para a ora arguida, e por não se saber o seu paradeiro, foi substituído por outra testemunha, Sr. F…, motorista ao serviço da empresa à 9 (nove) meses, e motorista há mais de 20 anos.
23º Declarações estas prestadas sem qualquer interesse, como ficou patente na decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho.
24.º No depoimento do funcionário da empresa ficou claro que o condutor detinha um comportamento desadequado com a entidade patronal, não acatando ordens, acrescendo ainda um problema de álcool.
25.º Desde já começou por referir o seguinte: "C… que foi trabalhador da arguida até meados do mês de maio de 2018, momento a partir do qual não mais foi visto na empresa da qual se ausentou sem ter avisado previamente e não mais deu qualquer notícia.”
26.º Deslindou ainda o seguinte sobre o mesmo: "Disse que o condutor nos autos trabalhou numa empresa da localidade antes de ingressar na arguida onde então evidenciou problemas ao nível do álcool, submetendo-se a tratamento a essa problemática que terá então debelado. Posteriormente, ingressou durante cerca de meio ano na arguida, onde não cumpriu aparentemente por descuido os horários determinados pelo patrão. Mais tarde o Sr. D… apercebeu-se do não cumprimento dos horários por aquele condutor (C…), com a notificação dos autos, porque ele ficava com as notificações do órgão policial e não as entregava na entidade patronal. Mais disse que durante o meio ano em que o colega (C...) trabalhou na arguida veio a revelar novamente comportamentos recidivos ao nível do álcool, tanto mais que num domingo em que o mesmo tinha de iniciar uma viagem foi barrado pelo Sr. B… ao que tudo indica porque evidenciava não estar em condições. Ainda neste âmbito a testemunha disse ter ido conhecimento que aquele condutor já teve problemas com as autoridades ao nível criminal e está a cumprir penas suspensas por violência doméstica e desacatos. (....) Disse ainda que a quantidade de autos e a tipologia dos mesmos e horários em questão geram confiança das reais intenções daquele motorista, tanto mais que a empresa em dez anos de actividade e até ao momento não tinha qualquer averbamento por contraordenação inclusivamente de natureza leve.
A empresa na pessoa do Sr. D… transmite ordens diretas a cada motorista para que os mesmos cumpram as normas e regulamentos vigentes e que lhe dêem conhecimento imediato de qualquer possível transgressão. Mais disse que todos os motoristas e o próprio patrão têm formação de Cam e de tacógrafos a última das quais frequentada pelo próprio na E…, ainda este ano.(…)
Por fim a testemunha afirmou que não compreende as razões dos incumprimentos assinalados, tanto que no caso do próprio não seria nem foi a primeira vez que o patrão (Sr. D…) o teve que ir buscar à estrada porque atingiu o limite de horário, podendo o condutor (C…), recorrer a essa possibilidade, como aliás o fez depois de terem sido notificados dos autos.
27.º Deste vasto relato da realidade na esfera do dia-a-dia da arguida, entre funcionários e patrões, retira-se claramente que a ora arguida não deteve qualquer culpa, ou sequer, actuou de forma negligente, com os seus deveres enquanto entidade patronal de uma profissão como a de motorista.
28.º Bem sabendo que o Regulamento CE n.º 561/06, e 15 de março, releva a segurança rodoviária e protege o motorista, por estar numa posição infra na hierarquia.
29.º Não se deve debelar a presente querela, tapando os olhos e imputando a infracção à ora arguida, por ser o mais fácil e por esta deter, quiçá, um património mais alargado para abarcar tal coima.
30.º Mais, contrariamente ao que a douta decisão refere, foi apresentada prova, sendo que a prova testemunhal é a prova, digamos, "Rainha", no processo penal.
31º O que aqui não foi tida em nota por esta entidade, referindo que esta não produziu prova nos autos da existência de qualquer nexo de casualidade da exclusão da responsabilidade da arguida.
32.º Foi enunciado pela testemunha que a arguida sempre se pautou por informar os seus colaboradores e transmitir ordens no sentidos do cumprimento da lei, assegurando desta forma a segurança rodoviária e laboral.
33º Temos que a lei também é bem clara quando refere que a arguida terá que demonstrar que assegurou e deteve um comportamento adequando e cumpridor, para que seja possível que a infração não lhe seja imputada, o que a mesma logrou face à prova testemunhal produzida.
34.º No que mais concerne a arguida em nada colaborou na presente situação dos autos, pelo contrário, conseguindo-se retirar que a mesma nunca teve qualquer contraordenação durante a sua existência, e agora com o mesmo motorista tem 11 (onze) sucessivas, estranho pelo menos.
35.º Tendo em conta o ora explicitado, e nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da CRP, o principio in dubio pro reu, dúvidas há da existência de um comportamento desvalioso, ou, violador do dever de cuidado que a arguida tem que se pautar.
36.º Em suma, consideramos que não se verificaram os elementos necessários para imputar objetiva (e também, necessariamente, subjetivamente) este procedimento contraordenacional à Arguida, nada mais restando do que a absolver desta contraordenação.
37.º Não se vendo que a conduta praticada pela Arguida seja suficiente para a sua condenação por este ilícito (laboral) de mera ordenação social, uma vez também que, como reza o brocardo, minima non curat praetor.
38.º A Requerente nunca foi condenada pela prática de crime rodoviário, sendo uma empresa prestigiada e que está atravessar graves dificuldades financeiras.
39.º É uma empresa íntegra, e respeitadora dos seus deveres.
Se assim não se entender e sem prescindir,
40.º Ainda à luz do disposto no artigo 51 do DI n.º 433/82, de 27 de Outubro, que quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação, seguindo neste caso, a arguida, os trâmites legais.
Concluiu pugnando pela sua absolvição da presente contra ordenação, consequentemente:
a) Aceitar-se a inconsciência da ilicitude, a exclusão da culpa e do dolo, ordenando-se o arquivamento dos autos, prevalecendo assim o princípio do in dubio pro reo, ou
Se assim não se entender,
b) Que entidade competente se limite a proferir uma admoestação, porquanto a ora arguida estar de boa fé. (…)».
I.3 Recebido o recurso, foi designada data para a realização da audiência de julgamento, a qual veio a realizar-se com observância do formalismo legal.
Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
- «Termos em que se decide julgar improcedente o recurso, mantendo-se em consequência a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, tendo em conta a gravidade do ilícito e o grau de complexidade das questões suscitadas no processo – arts. 93º n.º 3 do DL n.º 433/82, de 27/10 e 8º n.ºs 7, 8 e 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
Notifique e comunique a sentença, de imediato, ao Centro Local do Baixo Vouga da Autoridade Para as Condições do Trabalho - cfr. art. 45º n.º 3 da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
(…)».
I.4 Inconformada com essa decisão a arguida interpôs recurso ao abrigo do veio “ao abrigo do disposto nos artigos 49.º, número 2 e 50.º da Lei 107/2009, de 14 de Setembro”, iniciando as alegações dirigidas a este Tribunal de recuso, nos termos seguintes:
«A – DA PERTINÊNCIA DO RECURSO
1.Resulta do artigo 49.º número 1, alínea a) da Lei 107/2009, de 14 de Setembro: “1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;”
2. E acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal: “Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
3.Ora, é certo que da arguição de tudo quanto se expõe infra, resulta, com o que se recorre, na melhor aplicação do Direito, designadamente na defesa e preservação da aplicação do direito de forma correta e justa.
B - DOS FACTOS PROVADOS
4. A douta Sentença objeto de sindicância por via do presente recurso, considerou como provados, com interesse para a Decisão, factualidade que, s.m.o., que levou a uma condenação injusta e excessiva, a nosso ver, será colocada em crise por força dos seguintes aspetos em análise crítica.
5. Resulta da sentença recorrida ter ficado provado:
C – DAS ALEGAÇÕES
[…]»
Prossegue com as alegações (artigos 6.º a 40.º), para as encerrar com as conclusões seguintes:
D – DAS CONCLUSÕES
I. A ora Arguida sempre pugnou pelo cumprimento das diretivas e lei, em vigor, no que diz respeito ao transporte rodoviário de mercadorias, sempre zelando para com a segurança tanto do condutor, como da mercadoria, e, também da segurança rodoviária em geral.
II. Em sede de audiência de julgamento foi referido pela testemunha, motorista à data dos factos constantes nos autos de contraordenação, que a causa das infrações detetadas se deviam a incúria do próprio motorista, afastando de todo a responsabilidade da ora Arguida, quer a título de dolo, como negligência, pois nem sequer se concebe aqui a omissão do dever de cuidado.
III. Consequentemente, perante a deficiência na construção da fundamentação da presente decisão, por existirem dúvidas da responsabilidade existente por parte da ora requerente, deve ser aplicado o artigo 32.º, n.º 2 da CRP, levando assim à absolvição da ora arguida, aqui recorrente.
Se assim não se considerar, sempre se dirá que:
IV. Como já referido na defesa e impugnação judicial apresentadas, estaríamos sempre no âmbito do erro sobre a ilicitude, nos termos do artigo 17.º do Código Penal.
V. Saliente-se que, embora o legislador tenha consagrado as mesmas soluções teóricas neste ramo do direito e no direito penal, dúvidas não há de que a aplicação prática das normas recorrerá a critérios de exigência menos apertados no direito de mera ordenação social, atendendo ao seu carácter secundário e à axiologia e sentimentos jurídicos que lhe subjazem, e ainda à especificidade normativa que o caracteriza.
VI. Na verdade, o juízo de censura no Direito de mera ordenação social, nomeadamente aquele que em sede de erro sobre a ilicitude permite distinguir o erro dirimente da responsabilidade, do erro que não possui esse efeito não se deve fundar ou reportar à atitude ética do sujeito perante os valores do sistema jurídico (nomeadamente, à luz de uma ética universal da pessoa humana),
VII. Porquanto, deve antes funcionar com um referente social que sirva de auxiliar (e de reforço) em relação às finalidades preventivas das sanções neste ramo do Direito.
VIII. Nesta perspetiva, tomam-se mais relevantes para formular o juízo de censura em causa elementos de outra natureza como, por exemplo, a inserção socioprofissional do agente e as exigências próprias do circuito económico, laboral ou social em que os factos ocorrem.
IX. No caso ora em apreço, foi o próprio motorista que por incúria não cumpriu a legislação em vigor, tendo conhecimento da mesma decidiu ignorar, não podendo a Recorrente prever tal acontecimento.
X. Assim sendo, também o mesmo não lhe pode ser censurável, o erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente.
XI. Sendo que, se exclui o dolo e a ilicitude, não dando lugar a qualquer contraordenação.
XII. Através dos supra mencionados factos, pode-se verificar que a mesma: “não obteve qualquer benefício económico pela prática da contraordenação, nem dela resultou qualquer dano ou prejuízo para o Estado”.
XIII. Importa ainda referenciar que nos termos do artigo 18º do Código Penal, que diz respeito à determinação da medida da coima, a mesma faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
XIV. Pelo exposto, pode-se verificar que nenhum dos pressupostos se verificou no presente caso. É patente, a conclusão de que não é censurável o erro sobre a ilicitude em que a arguida agiu.
XV. Ademais, a conduta da ora arguida é imputada a título de negligência no caso em apreço, nos termos do artigo 8º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro.
XVI. E o artigo 8º, n.º1 do RGCO, diz que: “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
XVII. Um dos princípios basilares do código penal e do RGCO é o princípio da culpa e para que exista culpabilidade do agente no cometimento de um facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou de negligência, como claramente resulta da estatuição em causa.
XVIII. O dolo consiste no propósito de praticar o facto descrito na lei contraordenacional ou no conhecimento e vontade de praticar o facto.
XIX. O que na presente situação não ocorreu, a Arguida estava ciente da não transgressão!
XX. A negligência consiste na atuação do agente sem que proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas está obrigado e de que é capaz.
XXI. O dolo do tipo é constituído por dois elementos: o intelectual e o volitivo.
XXII. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente, no momento em que pratica a conduta, de todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito objetivo e da proibição legal, quando o conhecimento desta proibição for indispensável para que o agente possa ter consciência da ilicitude do facto.
XXIII. No momento da prática da conduta, a Recorrente não detinha consciência de todos os elementos constitutivos do tipo ilícito.
XXIV. Ou seja, no que ao erro sobre a valoração diz respeito, este é um erro sobre a lei.
XXV. O agente supõe que está a agir em plena conformidade com o direito, ou com um direito, que ele erroneamente considerava existir.
XXVI. Assim, os factos vão no sentido da total exclusão do dolo, por falta de representação da recorrente dos elementos integrantes do facto ilícito, nomeadamente por desconhecimento material de circunstâncias essenciais de facto que pertencem ao tipo legal.
XXVII. Termos em que, a ora arguida está convicta que não praticou a contraordenação de que vem acusada, pelas razões que aponta, ou pelo menos não tinha a consciência da ilicitude!!
XXVIII. Reforça-se de novo o facto de o douto Tribunal considerar a prática da infração a título de negligência e, que nos termos do artigo 22.º, n.º 2 do Decreto-Lei 257/2007, de 16-07, em que os limites mínimos e máximos relativos à coima são reduzidos para metade, e o douto Tribunal não apresentou qualquer justificação para que não tenha reduzido o valor da coima de 2.750,00 € (dois mil setecentos e cinquenta euros).
XXIX. Desenhados que estão os argumentos conclui-se, assim, que a pretensão do recorrente é válida, o que perante a parca ou nula fundamentação, por existirem dúvidas que a recorrente tenha praticado as infrações em apreço, deve ser aplicado o princípio in dúbio pro reo, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da CRP.
XXX. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a coima aplicada, uma vez que a Recorrente é primária, está atravessar um crise económico-financeira, em que qualquer despesa extra, poderá acarretar graves prejuízos, esta é completamente cumpridora dos seus deveres e obrigações legais, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias de lhe ser imputada uma contraordenação a título de negligência, em que os valores são reduzidos para metade.
XXXI. Por todo o exposto, deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a procedendo-se à absolvição da recorrente, de acordo com o princípio in dubio pro reo, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da CRP.
XXXII. Ademais, se assim não se entender, deverá a coima aplicada, ser reduzida, tendo em conta o grau de culpa da aqui recorrente, pugnando-se pela sua diminuição para o valor, que fará jus à prevenção geral e especial que se faz sentir em concreto.
NORMAS VIOLADAS
XXXIII. O Tribunal fez incorreta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 32.º, n.º 2 da CRP; artigo 17.º do Código Penal; artigo 18.º do RGCO; artigo 22.º, n.º 2 do Decreto-Lei 257/2007, de 16-07.
PEDIDO
XXXIV. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: Perante a inexistente fundamentação, dúvidas existem na efetiva prática das contraordenações por que vem imputada, sendo que deverá ser a Recorrente ser absolvida, de acordo com o princípio in dubio pro reo, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da CRP.
XXXV. Se assim não se entender, deverá considerar-se sempre o instituto do erro sobre a ilicitude patente no artigo 17.º do Código Penal, que levará à exclusão do dolo, e, consecutivamente afasta a culpa e a censurabilidade da mesma, levando à absolvição da arguida.
XXXVI. Ademais, se assim não se entender, deverá a coima aplicada, ser reduzida, tendo em conta o grau de culpa da aqui recorrente, pugnando-se pela sua diminuição para o valor, que fará jus à prevenção geral e especial que se faz sentir em concreto, nos termos do artigo 22.º, n.º 2 do Decreto-Lei 257/2007, de 16-07.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
I.5 Notificado do requerimento do recurso e respectivas alegações, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações, contrapondo que o recurso não é admissível em razão da recorrente não ter sido condenada em coima superior a 25 UC, nem dever ser admitido nos termos do n.º2, do art.º 49.º da Lei n.º 107/2009, dado que para “melhoria da aplicação do direito” ou “promoção de uniformidade da jurisprudência” nada vem alegado pela recorrente. Embora a recorrente aflore a questão em sede inicial da apresentação do seu recurso nada requer ou alega para fundamentar eventual apreciação nos termos referidos.
I.6. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a admissibilidade do recurso, admitindo-o na consideração do requerimento apresentado invocar o previsto no art.º 49.º, n.º 2, da Lei 107/2009, de 14 de Setembro, e por ser tempestivo, ordenando a remessa dos autos a esta Relação nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art.º 50.º do diploma legal referido.
I.7 Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (art.º 416.º do CPP), sustentando, no essencial, que o recurso não pode ser admitido, dado o valor individual das coimas não o permitir, nem ser admissível a título extraordinário por não se fundar em erro grosseiro ou grave, não tendo sido sequer cumprido o n.º 2 do art.º 50.º da Lei 107/2009.
I.8 Foi cumprido o disposto no art.º 418.º do CPP, remetendo-se o processo aos vistos e projecto de acórdão por via electrónica.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso (art.ºs 403, nº 1, e 412º, n.º 1, do CPP), as questões colocadas para apreciação são as seguintes:
i) Como questão prévia, a de saber se o recurso é admissível ao abrigo do disposto no art.º 49.º n.º2, da Lei 107/2009, de 14 de Setembro.
ii) Caso, seja admitido, as de saber:
a) Se a Recorrente dever ser absolvida, de acordo com o princípio in dubio pro reo, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 da CRP.
b) Ou, assim não se entendendo, se deverá a coima aplicada, ser reduzida.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O tribunal a quo, fixou o elenco factual seguinte:
(todos os processos)
1. No dia 21/02/2018, pelas 10h50m, na EN …, Rotunda de Acesso à …, …, Estarreja, a arguida mantinha em circulação o veículo pesado de mercadorias de serviço de aluguer, com a matrícula ..-LO-.., conduzido por C…, trabalhador ao seu serviço.
2. No referido circunstancialismo de tempo e lugar, o Motorista foi alvo de acção de fiscalização por parte da Guarda Nacional Republicana - Destacamento de Trânsito de São João da Madeira.
(Processo n.º 021800259)
3. No período de 24 horas compreendido entre as 03h:49m do dia 25/01/2018 e a mesma hora do dia seguinte (26/01/2018), o Motorista efectuou vários períodos de condução, intercalados com períodos de “pausa” e de “outros trabalhos”, tendo beneficiado de um período de repouso de 08h04m.
(Processo n.º 021800260)
4. No período de 24 horas compreendido entre as 04h05m do dia 14/02/2018 e a mesma hora do dia seguinte (15/02/2018), o Motorista efectuou vários períodos de condução, intercalados com períodos de “pausa” e de “outros trabalhos”, tendo beneficiado de um período de repouso de 08h15m.
(Processo n.º 021800261)
5. No período de 24 horas compreendido entre as 04h00m do dia 12/02/2018 e a mesma hora do dia seguinte (13/02/2018), o Motorista efectuou vários períodos de condução, intercalados com períodos de “pausa” e de “outros trabalhos”, tendo beneficiado de um período de repouso de 08h57m.
(Processo n.º 021800262)
6. No período de 24 horas compreendido entre as 03h34m do dia 06/02/2018 e a mesma hora do dia seguinte (07/02/2018), o Motorista efectuou vários períodos de condução, intercalados com períodos de “pausa” e de “outros trabalhos”, tendo beneficiado de um período de repouso de 08h32m.
(Processo n.º 021800263)
7. Entre as 06h27m e as 11h51m do dia 16/02/2018, o Motorista registou um período de condução acumulada de 04h37m, tendo efectuado apenas uma pausa, de 33 minutos (entre as 09h42m e as 10h15m).
(Processo n.º 021800329)
8. No dia 25/01/2018, entre as 03h49m e as 13h12m, o Motorista efectuou um total de 13h12m de trabalho.
(Processo n.º 021800330)
9. No dia 20/02/2018, entre as 03h35m e as 18h22m, o Motorista efectuou um total de 11h59m de trabalho.
(Processo n.º 021800331)
10. No dia 12/02/2018, entre as 04h00m e as 19h03m, o Motorista efectuou um total de 11h23m de trabalho.
(Processo n.º 021800332)
11. No dia 08/02/2018, entre as 04h55m e as 17h52m, o Motorista efectuou um total de 10h58m de trabalho.
(Processo n.º 021800333)
12. No dia 07/02/2018, entre as 04h03m e as 19h00m, o Motorista efectuou um total de 11h00m de trabalho.
(Processo n.º 021800334)
13. No dia 06/02/2018, entre as 03h34m e as 19h02m, o Motorista efectuou um total de 13h45m de trabalho.
(todos os processos)
14. A arguida apresentou no relatório único respeitante ao ano de 2017 um volume de negócios de € 239.485,00.
15. A arguida facultou ao Motorista 35 horas de formação em matéria de tempos de condução e repouso, em Janeiro ou Fevereiro de 2018, na E….
II.2 QUESTÃO PRÉVIA: admissibilidade do recurso
Aplica-se ao caso o regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. E, por determinação do art.º 60.º, subsidiariamente, desde que o contrário não resulte daquela lei, “(..), com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra –ordenações”, isto é, no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
Conforme o disposto no n.º 1, do artigo 49.º, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença, além do mais, quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC.
Para além dos casos enumerados no citado n.º 1, «pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência» - n.º 2, do mesmo normativo.
Nestes casos, cabe ao recorrente justificar a admissibilidade do recurso, em requerimento autónomo, constituindo questão prévia a apreciação e decisão do mesmo (art.º 50.º n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 107/2009).
No caso em apreço, a impugnação judicial foi julgada improcedente, tendo sido mantida a decisão da autoridade administrativa – ACT – impugnada.
Por conseguinte, sendo certo que todas as coimas que deram origem, em cúmulo jurídico, à aplicação de uma coima única, são de montante inferior 25 UC, o recurso só será admissível a título excepcional, nos termos previstos no n.º2, do art.º 49.º da Lei 107/2009, caso se verifiquem os necessários requisitos.
A recorrente iniciou o articulado dirigido a este Tribunal ad quem com um requerimento, sob o título “A – DA PERTINÊNCIA DO RECURSO”, crendo-se pretender desse modo dar cumprimento à exigência do n.º2, do art.º 50.º da Lei 107/2009, alegando.
«1.Resulta do artigo 49.º número 1, alínea a) da Lei 107/2009, de 14 de Setembro: “1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;”
2. E acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito legal: “Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
3.Ora, é certo que da arguição de tudo quanto se expõe infra, resulta, com o que se recorre, na melhor aplicação do Direito, designadamente na defesa e preservação da aplicação do direito de forma correta e justa».
Imediatamente a seguir procede à enunciação da matéria de facto que foi considerada provada pelo Tribunal a quo, para depois prosseguir com as alegações de recurso, finalizando-as com as conclusões acima transcritas.
II.2.1 Vejamos então se é de admitir o recurso excepcionalmente, ao abrigo do disposto no n.º2, do artigo 49.º da Lei n.º 107/2017.
Como decorre do acima mencionado, a recorrente procura justificar a admissibilidade do recurso limitando-se a dizer ser “(..) certo que da arguição de tudo quanto se expõe infra, resulta, com o que se recorre, na melhor aplicação do Direito, designadamente na defesa e preservação da aplicação do direito de forma correta e justa”.
Em face desta alegação, só pode concluir-se estar imediatamente arredada a possibilidade da recorrente pretender ver o recurso admitido extraordinariamente por manifestamente necessário promoção da uniformidade da jurisprudência. Da exígua formulação usada não resulta sequer minimamente que a recorrente pretenda estribar-se nesse fundamento para procurar assegurar o recebimento do recurso.
Resta, pois o outro fundamento previsto na lei, ou seja, o conhecimento do recurso afigurar-se manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito. E, embora dito por outras palavras, percebe-se ser esse o propósito da recorrente.
Acontece, porém, que a recorrente apresenta requerimento autónomo e formula o pedido de admissão do recurso extraordinário com aquele fundamento, mas para além disso nada mais se encontra, isto é, não são alegadas quaisquer razões para justificar a manifesta necessidade da aceitação do recurso por tal ser necessário à melhor aplicação do direito.
Na verdade, a recorrente faz depender o juízo sobre a alegada “melhor aplicação do Direito, designadamente na defesa e preservação da aplicação do direito de forma correta e justa”, do resultado da apreciação do recurso, ao remeter para “tudo quanto se expõe infra”.
Conclui-se, pois, que a recorrente limita-se a invocar este fundamento, um dos dois previstos no n.º2, do artigo 49.º, da Lei 100/97, mas sem estribar essa invocação com argumentos concretos que possam ser submetidos à apreciação deste Tribunal.
Ora, para que a Relação conclua pela admissibilidade do recurso a título extraordinário na consideração de tal se afigurar “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito”, não basta ao recorrente formular requerimento autónomo e limitar-se a invocar esse fundamento, antes se lhe impondo que nele alegue as razões concretas e precisas que evidenciem a existência desse fundamento, dado que a apreciação e decisão dessa pretensão constituem questão prévia relativamente à apreciação do recurso. O recurso só será admitido a título extraordinário se as razões invocadas convencerem pela sua consistência e pertinência, levando a concluir justificar-se a sua apreciação por tal se afigurar “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito”.
É entendimento pacífico e unânime da jurisprudência dos Tribunais das Relações que aquela manifesta necessidade prevista no n.º2, do art.º 49.º da Lei 107/2009, só se consubstancia quando da decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, não se destinando, pois, a corrigir eventuais erros de julgamento [cfr. Ac. Rel. Évora, de 27-05-2008, proc.º 883/08-1, Desembargador Ribeiro Cardoso; Ac. Rel. Coimbra, de 9-12-2010, Proc.º 51/10.7TTTMR.C1, Desembargador Azevedo Mendes; Ac. Rel. Porto de 24-09-2012, proc.º 426/11.4TTBGC.P1; Ac. Rel. Coimbra, de 13-10-2016, roc.º 2368/15.5T8CBR.C1, Desembargadora Paula Paço; (todos disponíveis em www.dgsi.pt)].
A esse propósito escreve-se no Acórdão desta Relação, de 5 de Janeiro de 2017 [proferido no Recurso n.º 5426/15.2T8OAZ.P1, Desembargador Nelson Fernandes (aqui 1.º adjunto)] o seguinte:
não esclarecendo a lei o que deve entender-se por “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência”, importa desde já assinalar, por manifesto, e em primeira abordagem, que o objectivo perseguido da melhoria da aplicação do direito não poderá traduzir-se na possibilidade de ser sindicada toda e qualquer decisão de que discorde o arguido ou o Ministério Público. Por outro lado, ainda, estando de facto em causa a melhoria na aplicação do direito, a recurso fica no entanto limitado às situações em que tal se apresente “manifestamente necessário”.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, Lisboa, 2011, pág. 303), a questão, jurídica da “melhoria da aplicação do direito”, tendencialmente preencherá três requisitos: (i) ser relevante para a decisão da causa, (ii) ser uma questão que necessita de esclarecimento e (iii) ser passível de abstração no sentido de que permita o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a casos similares.
Tratando-se de um recurso de natureza extraordinária, já que apenas tem lugar quando não for admissível a interposição de recurso ordinário, visa essencialmente preservar a correcção do direito e a uniformidade da sua aplicação, sendo que após o RGCOC passou a estar também consagrado primeiro no Código do Processo dos Tribunais Administrativos, através do artigo 150.º, e depois no Código de Processo Civil, mediante o artigo 721.º-A (aditado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto) – actualmente artigo 672.º, n.º 1, al. a), com a ressalva neste último, que não assume aqui relevo, de que se utiliza o advérbio claramente em vez de manifestamente, sendo que, então, ao abrigo dessa norma, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que questão com relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito “é a que seja manifestamente complexa, de difícil resolução, na doutrina e na jurisprudência, e cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercício de exegese, com o objetivo de se vir a obter um consenso quanto à provável interpretação das normas à mesma aplicáveis” (cf. sumário do acórdão de 19-01-2012, revista excecional n.º 837/09.5TBMAI.P1.S1, disponível em www.stj.pt, sumários de acórdãos de apreciação liminar-revista excecional). Aliás, dentro do citado objectivo se podem enquadrar, afinal, no domínio criminal, os acórdãos de fixação de jurisprudência (artigo 437.º e seguintes do Código de Processo Penal)».
Em suma, cabia à recorrente, no requerimento autónomo a que alude o n.º2, do art.º 50.º, da Lei 107/2009, alegar as razões necessárias para apontar à decisão da 1.ª instância, com o necessário sustento, um erro grosseiro, notório ou incomum, ou uma errónea aplicação do direito bem visível, que tornasse manifestamente necessário para a melhoria da aplicação do direito a admissibilidade do recurso, não lhe bastando remeter para as alegações de recurso, o que vale por dizer, para as razões da sua discordância da sentença por eventual erro de julgamento.
Por conseguinte, é forçoso concluir, desde logo, que a recorrente nem sequer cumpriu cabalmente o que lhe era exigido pelo n.º2, do art.º 50.º da Lei 107/2009.
Mas para além disso, percorrendo as conclusões de recurso, constata-se também que no essencial reiteram a posição já defendida na impugnação judicial da decisão administrativa, sendo inequívoco que em parte alguma se usa como fundamento, indicando-se as razões, para invocar um qualquer erro grosseiro, notório ou incomum, ou uma errónea aplicação do direito bem visível.
Conclui-se, pois, pela inadmissibilidade do recurso.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em rejeitar o recurso interposto.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC [artigos 513º, n.º 1 do CPP, ex vi do artigo 74º, nº 4 do RGCO e 59º e 60º, ambos da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro e 8º, nº 4 e 5 e Tabela III do RCP].

Porto, 10 de Dezembro de 2019
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes