Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
105/03.6GEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
MAL FUTURO
MAL EMINENTE
CONTEXTUALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20170628105/03.6GEGDM.P1
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 36/2017, FLS.54-57)
Área Temática: .
Sumário: Para se saber se estamos perante o anúncio de um mal futuro que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura ou antes diante de um mal iminente que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crime do catálogo legal é fundamental a contextualização da situação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 105/03.6 GEGDM.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 105/13.8 GBPRD, corre, agora, termos pela Secção Criminal (J1) da Instância Local de Gondomar, Comarca do Porto, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado que estava pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de ameaça previsto e punível pelo art. 153°, n.os 1 e 2, do Código Penal.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença, datada de 10.02.2005 e depositada na mesma data (mas notificada ao arguido B…, apenas, em 09.06.2016), que julgou, totalmente, improcedente a acusação e absolveu o arguido.
Inconformado, almejando a condenação do arguido, veio o Ministério Público interpor recurso da sentença absolutória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
“1. Pratica o crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153°, n° 1 e 2 do Código Penal, o arguido que dirigindo-se à ofendida afirma “eu mato-te a ti e à tua corja toda”.
2. Não existe eminência da prática do mal anunciado quando o arguido, no momento em que profere a expressão transcrita não pratica qualquer acto que demonstre o começo da execução do mal prenunciado, nem tem à sua disposição os meios de, naquele momento, praticar o crime que anunciou.
3. A experiência comum não é de natureza a fazer esperar que, logo após a prolação de tal ameaça, desacompanhada de qualquer outro facto, se lhe siga a prática de acto que integre a prática do crime anunciado, ou que seja idóneo a produzir o resultado típico.
4. Não é necessário que o agente do crime de ameaça concretize o momento temporal em que pretenderia cumprir o mal anunciado, sendo que o tempo verbal, usado no presente do indicativo é compatível com o prenúncio de um cometimento no futuro, não o excluindo.
5. Ao absolver o arguido da prática do crime violou a Mma. Juiz a quo o disposto no art. 153°, n° 1 e 2 do Código Penal”.
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Admitido o recurso e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, veio o arguido B… apresentar resposta à respectiva motivação, com a seguinte síntese conclusiva:
“1ª - A douta sentença recorrida fez a adequada aplicação do direito, pelo que não merece qualquer censura.
2ª - Como muito bem é dito pelo Meritíssimo Juiz “a quo”, não estão preenchidos os elementos objectivos do crime de ameaça, porquanto, além do mais, o mal ameaçado não foi futuro, mas antes iminente.
3ª - Da prova produzida em audiência de julgamento, não resultou minimamente provado que o arguido, aqui recorrido, tivesse a intenção ou pretendesse, num futuro próximo, “matar” a ofendida ou a sua família; apenas se tratou de um mero desabafo seu, sem qualquer fundamento sério, como se veio a constatar.
4ª - É posição unânime da Jurisprudência e da Doutrina que a ameaça é uma prenunciação de um mal futuro, contudo se o mal for presente, iminente e com consumação no momento em que é declarado, deixamos de estar perante um crime de ameaça.
5ª - Veja-se neste sentido o que, eloquentemente é entendido, nos comentários doutrinais, referentes aos elementos do tipo deste crime de ameaças, no Código Penal, de Manuel de Oliveira Leal Henriques (cfr. vol. 2, de 1986, a fls. 161, in Rei dos Livros): “… não devem ser considerados idóneos para o preenchimento do tipo legal os anúncios de “ameaças ilusórias, as basófias, o súbito assomo de ira …, a advertência, o aviso» M.P. – Coimbra”.
6ª - A expressão utilizada pelo arguido, mais não foi senão uma mera basófia ou um súbito assomo de ira, que não causou na ofendida qualquer temor e muito menos foi idóneo a causar-lhe perturbação ou intranquilidade na determinação da sua liberdade.
7ª - Não fez a acusação prova cabal de que o arguido, aqui recorrido, com tal expressão provocou na ofendida forte receio pela sua integridade física futura, com o intuito de provocar-lhe medo e inquietação.
8ª - Face à análise e interpretação inteligente dos dispositivos jurídicos e jurisprudenciais atinentes à matéria (cfr. Ac. R.P., de 24/10/01 – Proc. 0110560 publicado em www.dgsi.pt e Ac. de 17/11/2004, no proc. 0414654, publicado em www.dgsi.pt e doutrina in Comentário Conimbricense do Código Penal de Taipa de Carvalho, Tomo I, pág. 342), outra decisão não poderia ser proferida, que não a douta sentença que o M.P. pretende, infundadamente, colocar em crise.
Precisamente, naquele douto Ac. da R.P., de 17/11/2004, decidiu-se que a expressão “eu mato-te”, estando no presente não integra a prática do crime de ameaça.
9ª - A prova produzida e examinada em audiência é suficiente e bastante para dar por não provados, em relação ao arguido, os factos que preenchem os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal do crime de ameaça, de que vem acusado e de que foi absolvido, na, tão sabiamente proferida, decisão do Meritíssimo Juiz “a quo”.
10ª - Dúvidas não restam, por conseguinte, que a douta e incensurável sentença, não violou o dispositivo legal invocado no presente recurso pelo M.P., aplicando, correctamente, o dispositivo legal atinente à matéria.
11ª - Destarte, não merecendo a douta sentença qualquer censura, porquanto, face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, à Jurisprudência e Doutrina, impunha-se a absolvição do arguido, razão pela qual deverá a mesma ser mantida nos precisos termos em que foi proferida, com o que se fará justiça”.
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Ordenada a subida dos autos a esta Relação, e já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que sufraga a posição do Ministério Público na 1.ª instância e conclui no sentido da procedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta do arguido a reafirmar o seu ponto de vista expresso na contra-motivação do recurso.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
IIFundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso[2]. Naturalmente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
O recorrente não impugnou a decisão sobre matéria de facto e não se vislumbra no texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, qualquer dos vícios decisórios contemplados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo penal.
O seu inconformismo cinge-se à matéria de direito, pois considera que “a matéria de facto dada como provada importa decisão diferente, ou seja a condenação do arguido como autor material do mencionado crime”.
A única questão a apreciar e decidir consiste, pois, em saber se o tribunal fez uma correcta valoração jurídico-penal dos factos provados ou se, como defende o recorrente, devia ter condenado o arguido pela prática do crime que lhe foi imputado na acusação.
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Identificada a quaestio decidendi, importa conhecer a factualidade considerada provada.
Factos Provados:
1 - No dia 10 de Março de 2003, cerca das 13:00 horas, na entrada da residência da sua senhoria sita na Travessa …, n.º .., em …, Gondomar, o arguido dirigiu-se à filha daquela, C…, e, com ar ameaçador, disse-lhe: “Eu mato-te a ti e à tua corja toda”.

2 - Tais palavras provocaram na ofendida forte receio pela sua integridade física e vida, pois o tom e as circunstâncias em que foram ditas levaram-na a pensar que o arguido tinha intenção de concretizar as suas ameaças.

3. - O arguido agiu com o intuito de provocar medo e inquietação na ofendida, bem sabendo que as suas palavras e conduta eram adequadas a tal.

4 - Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

5 - O arguido foi condenado nos autos de Processo Comum Singular n.º 729/99.4PBMAI do 2.º Juízo Criminal de Gondomar por sentença proferida em 11/3/04 e transitada em julgado em 28/3/04 pela prática, em 7/8/99, de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.º do Código Penal na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €2,50, num total de €275.
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Na organização sistemática do Código Penal, o crime de ameaça abre o capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal.
É um tipo legal que tutela a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação individual (liberdade de acção e de decisão), que são postas em causa mediante o constrangimento exercido sobre a vítima para que esta faça ou deixe de fazer algo, ou suporte uma actividade que não deseja.
Liberdade pessoal que, nas palavras de Nelson Hungria (citado por Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos in “Código Penal Anotado”, 2.º vol., Rei dos Livros, 1996, pág. 184) “compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à sua tranquila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa”.
Com a reforma do Código Penal de 1995, deixou de ser um crime material ou de resultado, passando a ter a natureza de crime formal, de mera actividade (ou de mera acção), não sendo, pois, necessário para a tipicidade que a conduta do agente cause um dano, ou seja, da estrutura do tipo não faz parte a lesão de qualquer bem jurídico concreto e individualizado. É um crime de perigo porque não se exige, como nos crimes de dano ou de resultado, uma efectiva lesão, mediante a destruição ou diminuição do bem jurídico, bastando o perigo de lesão, o dano provável, a potencialidade da acção para ocasionar a perda ou diminuição do bem, o sacrifício ou restrição de um interesse.
Exige-se que a acção ameaçadora seja susceptível de, idónea a lesar ou afectar, de modo relevante, a tranquilidade individual ou a liberdade de determinação do sujeito passivo, não sendo necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado.
É pacificamente aceite que o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objectivo-individual[3]. Objectivo, na medida em que a concreta acção (executada oralmente ou por escrito, que tanto pode traduzir-se num gesto, numa atitude, como em palavras ditas ou escritas ou por outro meio simbólico), de acordo com a normalidade das coisas e a experiência comum, há-de ter a virtualidade de ser tomada a sério pelo sujeito passivo (o ameaçado, que pode não ser o sujeito passivo do crime prometido), independentemente de este ficar, ou não, intimidado[4]. Há que não perder de vista o modo e o contexto em que foi produzida e, ainda, que o objecto da ameaça tem de constituir um dos crimes do catálogo legal (crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor). Individual, porquanto não podem deixar de ser ponderadas as características físicas e psicológicas do ameaçado (pense-se, v.g., na criança vítima de abuso sexual que é ameaçada pelo abusador), a sua sensibilidade e a sua personalidade, de tal modo que poderá ter de concluir-se pela idoneidade de um meio que, via de regra, é incapaz de afectar a generalidade das pessoas. O que não é dizer que se deva contar com o carácter exasperadamente medroso e tolhido, ou com uma hipersensibilidade, do ameaçado.
Neste conspecto, afigura-se-nos pertinente o paralelo estabelecido no acórdão desta Relação, de 07.12.2011, acessível em www.dgsi.pt (Des. José Piedade), entre a potencialidade intimidatória das expressões utilizadas quando a ameaça é verbal e a idoneidade ofensiva da honra e da consideração das palavras e dos juízos de valor nos crimes de injúrias e de difamação. Tal como o carácter difamatório ou injurioso de certas palavras ou juízos é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorrem, das pessoas entre quem ocorrem, do modo como ocorrem[5], também no crime de ameaça se deve considerar “a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do(s) ameaçante(s) e do(s) ameaçado(s)”.
O que pode ser uma conduta fortemente intimidatória em certas circunstâncias (de tempo, lugar, meio, etc.) ou para certas pessoas, pode não o ser noutras circunstâncias ou para outras pessoas.
Isto sem esquecer que a referência há-de ser sempre o homem comum, o cidadão normal que não menospreza uma ameaça verbal de morte, mas também é capaz de relativizar e de distinguir entre o que é uma ameaça séria e uma fanfarronice.
Volvendo ao caso concreto, importa recordar que o arguido se dirigiu a C…, filha da sua senhoria, e, sem que se saiba o motivo, disse-lhe: “Eu mato-te a ti e à tua corja toda”, assim lhe provocando forte receio pela sua integridade física e pela vida.
Nada permite sustentar que se tratou de uma fanfarronice do arguido, ou, como este diz na sua resposta, de uma mera manifestação de bazófia ou um assomo de ira.
As referidas palavras, traduzindo-se em anúncio de matar, eram adequadas a intimidar, como intimidaram, a ofendida, prejudicando a sua liberdade pessoal, pelo que, neste ponto, não podemos concordar com o arguido.
Coisa diversa é saber se as palavras proferidas pelo arguido configuram o elemento do tipo objectivo do crime de ameaça que pacificamente se aceita consistir no “anúncio de um mal futuro”.
Elemento objectivo que, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada”, UCE, 473), “consiste na comunicação de uma mensagem a um destinatário com significado da prática futura de um mal ao destinatário ou a um terceiro”.
Américo Taipa de Carvalho (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 1999, p. 343) explica que “o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal”.
Mal iminente é aquele que está em vias de, ou prestes a, ser infligido.
No crime de ameaça, o agente promete vir a cometer um crime num tempo que não aquele em que faz o anúncio (e, provavelmente, em circunstâncias outras que não aquelas que se verificam no momento do prenúncio do mal).
É a característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que distingue a ameaça da concretização do mal anunciado.
Como se frisa no acórdão desta Relação, de 02.05.2012 (Des. Lígia Figueiredo)[6], o mal integrador do crime de ameaça tem de “constituir o anúncio intimador de uma acção futura”.
As dificuldades surgem quando se trata de densificar ou concretizar o conceito de “mal futuro” e as decisões jurisprudenciais ilustram bem essa dificuldade.
Por exemplo, no acórdão da Relação de Lisboa de 03.11.2009 (Des. Luís Gominho) considerou-se que “se a afirmação «eu de ti não me esqueço» tem um sentido que se pretende projectar no futuro, sendo ela acompanhada de outras como «desfaço-te» e «enfio-te um tiro nos cornos» ao mesmo tempo que o agente parte uma garrafa e, empunhando-a pelo gargalo faz menção de atingir o ofendido, conclui-se que aquela referida afirmação mais não foi do que o acompanhamento e complemento verbal da acção física daí decorrendo a ausência de elementos constitutivos, de natureza objectiva, do crime de ameaça”.
Identicamente, no acórdão da Relação de Coimbra, de 30.05.2012 (Des. Jorge Dias), entendeu-se que “quando o arguido, de forma súbita, pega numa sachola e dirige à ofendida as expressões «eu mato-te, eu mato-te» e «não há-de comer mais pão que Deus crie», não está a anunciar um mal futuro”.
No entanto, no acórdão da Relação de Guimarães, de 18.05.2009 (Des. Cruz Bucho) foi decidido que “aquele que, com o propósito de causar temor no ofendido, exclama «vou-te acabar com a vida filho da puta» ao mesmo tempo que lhe aponta uma arma à cabeça, comete um crime de ameaças p. e p. pelo artigo 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”, argumentando-se que “o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer”.
Na decisão recorrida considerou-se que não estava preenchido o tipo objectivo deste ilícito e justificou-se assim essa conclusão:
“Analisados estes factos e as considerações já expendidas quanto aos elementos objectivos do crime de ameaça teremos que concluir que esses elementos não se mostram preenchidos uma vez que o mal ameaçado não foi futuro, mas antes iminente.
Na verdade, visando situação em tudo semelhante à agora em causa, decidiu o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/2004 que a expressão “eu mato-te”, estando no presente, não integra a prática do crime de ameaça.
Efectivamente, tratando-se como se trata, de um mal a consumar no momento, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, porque não acompanhado de quaisquer outros actos susceptíveis de integrarem a prática de actos de execução do crime de homicídio, não preencheu o arguido o crime de ameaça que lhe vem imputado.
Assim, a conduta do arguido constante dos factos provados o anúncio de mal iminente não integra o crime de ameaça, impondo-se a sua absolvição”.
Contrapõe o recorrente que “não existe eminência da prática do mal anunciado quando o arguido, no momento em que profere a expressão transcrita não pratica qualquer acto que demonstre o começo da execução do mal prenunciado, nem tem à sua disposição os meios de, naquele momento, praticar o crime que anunciou” (conclusão 2.ª).
Não parece que a disponibilidade dos meios para praticar o crime anunciado no momento em que o é (anunciado) seja critério a seguir.
No nosso caso, aparentemente, o arguido não dispunha desses meios. No entanto, se, realmente, fosse sua intenção matar a ofendida C…, bem podia fazê-lo de imediato. Bastaria munir-se de uma pedra ou de outro objecto suficientemente contundente para provocar lesões letais.
Temos para nós que, para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coarctar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal, é fundamental a contextualização da situação.
Afirmações como «limpo-te o sebo», «é hoje que te vou matar», «enfio-te um tiro nos cornos», «vou-te acabar com a vida filho da puta» ou outras do mesmo jaez tanto podem ser entendidas como anúncio de mal futuro como a manifestação de violência que está prestes a concretizar-se.
Depende do contexto, do circunstancialismo em que as afirmações são proferidas.
Ora, no nosso caso, não se apurou em que contexto foi manifestado aquele propósito de tirar a vida à ofendida e à sua “corja”. Sabemos, apenas, que o arguido se dirigiu à ofendida e disse-lhe: “Eu mato-te a ti e à tua corja toda” e não é descabido interpretar tais palavras como querendo significar que o mal anunciado pelo arguido seria infligido nesse exacto momento e não no futuro, ainda que próximo.
Por isso propendemos para considerar, tal como se considerou na decisão recorrida, que não está verificado o elemento do tipo objectivo do crime de ameaça «anúncio de um mal futuro».
III Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 28.06.2017
Neto de Moura
Ana Bacelar
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Como já ensinava o Professor Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, Coimbra Editora, p. 308), “o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objecto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objectiva que haja sido dada ao recurso, quer no requerimento de interposição, quer no corpo da alegação”.
[3] É, geralmente, seguido o ensinamento de Américo Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 348.
[4] Bem elucidativo é o exemplo dado pelo Professor Figueiredo Dias no âmbito da Comissão Revisora do Código Penal (de 1995): preenche o tipo o indivíduo que ameaça outro com uma arma, embora este último esteja no interior de uma casa perfeitamente defendido da acção, pois tal acção é normalmente adequada quer do ponto de vista do agente, quer do que é geralmente reconhecido.
[5] Isto, é claro, para além daquele mínimo de dignidade cujo respeito é exigência comum a todos os meios e países.
[6] Acessível em www.dgsi.pt