Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
614/07.8TYVNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
QUALIDADE DE CONSUMIDOR
Nº do Documento: RP20170328614/07.8TYVNG-C.P1
Data do Acordão: 03/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 760, FLS.54-60)
Área Temática: .
Legislação Nacional: AUJ N.º 4/2014
Sumário: I - O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 tornou a qualidade de consumidor elemento constitutivo essencial do direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil nas situações de insolvência do promitente-vendedor.
II - Se o crédito foi reclamado em 2007, muito antes da prolação do referido AUJ nº 4/2014, sem que o credor reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidor, cuja essencialidade para o reconhecimento do direito de retenção nestes casos não era então previsível, e não tendo as partes nem a 1ª instância tomado posição expressa sobre tal questão, que só surgiu suscitada no recurso de apelação, terá esta que ser entendida como questão nova não estritamente jurídica, a que está vedado o conhecimento por parte do tribunal de recurso.
III - O AUJ nº 4/2014 não incluiu o conceito de consumidor no seu segmento uniformizador, devendo considerar-se excluído deste conceito apenas aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 614/07.8 TYVNG-C.P1
Comarca do Porto – Vila Nova de Gaia – Instância Central – 2ª Secção de Comércio – J3
Apelação
Recorrente: “B…”
Recorridos: C…; D… e E…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Na sequência da sentença que declarou a sociedade “F…, Lda.” em estado de insolvência e fixou prazo para a reclamação de créditos e em que se encontram apreendidos nos competentes autos de apreensão os bens aí identificados, foram reclamados diversos créditos.
Foi junto parecer pelo Exm.º Administrador Judicial no tocante à existência e características jurídicas dos créditos reclamados.
Foram apresentadas duas impugnações quanto à qualificação dos créditos por parte de C… e por parte de D… e E….
Proferiu-se despacho saneador, com seleção da matéria de facto assente e organização da base instrutória.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo e seguidamente foi proferida sentença, na qual se procedeu à graduação de créditos pela seguinte forma:
Pelo produto da venda das frações D, E, F e G:
1º) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;
2º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos por direito de retenção dos credores D… (e mulher);
3º) - Do remanescente, será dado pagamento aos créditos garantidos por hipoteca do “B…”;
4º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional;
5º) -Do remanescente, será dado pagamento aos créditos comuns.
Pelo produto da venda da fração A:
1º) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;
2º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos por direito de retenção dos credores G… (e mulher);
3º) - Do remanescente, será dado pagamento aos créditos garantidos por hipoteca do “B…”;
4º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional;
5º) - Do remanescente, será dado pagamento aos créditos comuns.
Pelo produto da venda dos remanescentes bens imóveis:
1º) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;
2º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos hipotecários do “B…”;
3º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional;
4º) - Do remanescente, será dado pagamento aos créditos comuns.
Bens Móveis
1º) - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem móvel;
2º) - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional;
3º) - Do remanescente, será dado pagamento aos créditos comuns.
Inconformada com o decidido, interpôs recurso de apelação a credora reclamante “B…”, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) A Recorrente encontra-se processualmente habilitada, nos termos e para os efeitos do art. 262.º, al. a), e 356.º, ambos do CPC, no âmbito do Apenso O dos presentes autos principais, por sentença proferida em 16.03.2016, já transitada em julgado, na qualidade de cessionária da Consulteam, esta cessionária da credora hipotecária Banco H… e oportunamente habilitada para prosseguir na causa em sua substituição, por sentença de 07.07.2009, proferida no âmbito do Apenso M.
B) Por tal razão, deverá a sentença de verificação e graduação ser rectificada e substituída por outra, da qual passe a constar a referência à identificação da Recorrente (B…) em substituição do Banco H….
C) Entende, ainda, a Recorrente, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo não logrou fazer uma correcta graduação para efeitos de pagamento pelo produto da venda das fracções D, E, F, G, e da fracção A, nem quanto à interpretação e aplicação da protecção legal e jurisprudencialmente atribuída através da figura do direito de retenção.
D) Com efeito, o regime legal constante do art. 755.º, n.º 1, do CC, teve na sua génese o propósito de tutelar os particulares, maxime o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, actualmente pelos arts. 65.º, 70.º, e 72.º da Lei Fundamental.
E) Tendo o legislador atribuído preferência aos beneficiários das promessas de venda em face dos direitos decorrentes da hipoteca, prevalecendo o direito de retenção, ainda perante hipoteca registada em data anterior, nos termos do art. 759, n.º 2, do CC, numa lógica da defesa do consumidor.
F) A interpretação restritiva do art.º 755, n.º, 1, do CC, atribuída aos consumidores para efeitos de prevalência dos respectivos créditos relativamente aos créditos dos credores hipotecários, foi perfilhada no AUJ de 20.03.2014 numa lógica de protecção dos primeiros na medida em seja feita uma utilização pessoal e habitacional do imóvel envolvido, o que aqui não ocorre.
G) Com efeito, e no que respeita às fracções D, E, F e G, as mesmas correspondem a diversos apartamentos, conjuntamente transaccionados numa lógica de investimento, não podendo os Recorridos D… e mulher, residir ou ter pretendido adquirir, simultaneamente, um rol de 4 apartamentos independentes para efeitos de habitação própria e permanente.
H) Já no que respeita à fracção A, a mesma corresponde a um estabelecimento comercial (fracção que nem se destina à habitação, mas antes ao comércio), valendo as considerações já tecidas também para os Recorridos G… e mulher.
I) Sendo que nenhum dos Recorridos é consumidor para os efeitos de protecção e prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, deixando a mesma, em situações como a presente, de ter qualquer fundamento de proporcionalidade ou justiça.
J) Extravasando, em caso de reconhecimento, por completo a lógica com que o direito de retenção, atribuído ao promitente-comprador, foi introduzido no nosso ordenamento jurídico e avançando, até, contra a doutrina do citado AUJ, utilizado pelo Tribunal a quo na fundamentação da graduação efectuada.
K) Não se afigurando de qualquer sentido de justiça, a prevalência de pagamento atribuída pelo Tribunal a quo ao investimento efectuado pelos Recorridos, e o cariz oculto do direito de retenção, em detrimento do investimento efectuado pela Recorrente e de valores como os da confiança e segurança jurídica ou da efectiva justiça material.
L) Devendo a sentença, no que respeita à graduação especial relativa ao produto resultante da liquidação da venda das fracções D, E, F, G, e da fracção A, ser inteiramente revogada, substituindo-se por outra que gradue o crédito hipotecário da Recorrente em 2.º lugar, para ser pago logo a seguir às dívidas da massa insolvente.
A recorrida C… apresentou contra-alegações, nas quais se pronuncia pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
*
A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se os créditos dos credores C… e D… e mulher gozam de direito de retenção nos termos do art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil, devendo ser graduados antes dos créditos garantidos por hipoteca.
*
OS FACTOS
É a seguinte a matéria de facto dada como provada:[1]
- A listagem apresentada pelo Exmo. AI ao abrigo do estatuído no art. 129º nº 4 do CIRE, considerando, desde já, como reconhecidos, para ulterior graduação na sede própria, os créditos aos quais é feita alusão no art. 136º nº 4/nº 5 do CIRE, tudo à míngua de expressa contestação aos mesmos, listagem esta que, “brevitatis causa”, dou ora por reproduzida e integrada [alínea A) da matéria de facto assente].
- A insolvente não cumpriu os termos do contrato-promessa que em 21/2/2001 celebrou com a D. C… (e ex-marido) ao nunca se mostrar disponível para a outorga do contrato translativo definitivo, tendo tal Senhora a haver da massa insolvente o montante de €149.639,36 a título de “sinal” em dobro visto tal inadimplemento [resposta ao nº 1 da base instrutória].
- Sendo que tal Senhora tem na sua disponibilidade física a fracção “A” pelo menos desde os primeiros dias de Janeiro de 2005 [resposta ao nº 2 da base instrutória].
- E os Snrs. D… e a D. E… têm na sua disponibilidade física, das mesmas fruindo em exclusivo, as quatro fracções autónomas que a insolvente construiu no prédio sito na Rua …, nº …, Porto [resposta ao nº 3 da base instrutória].
- A insolvente não cumpriu os termos do contrato-promessa que celebrou com o Sr. D… (e esposa) ao nunca se mostrar disponível para a outorga do contrato translativo definitivo, tendo estes impugnantes a haver da massa insolvente o montante de €581.099,55 a título de “sinal” em dobro visto tal inadimplemento [resposta ao nº 4 da base instrutória].
*
O DIREITO[2]
O art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil estabelece que goza do direito de retenção «o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º».
Por outro lado, o art. 106º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) diz-nos que «no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador
Tem-se discutido se, recusado o cumprimento do contrato-promessa sem eficácia real, o promitente-comprador que tenha a tradição da coisa conserva o direito de retenção que a lei civil comum lhe atribui para a defesa do seu crédito.[3]
E sobre esta questão, perante a diversidade de entendimentos, o Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20.3.2014 (proc. 92/05.6 TYVNG-M.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.) fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”
Por conseguinte, face à jurisprudência entretanto uniformizada, para que o promitente-comprador, em graduação de créditos em processo de insolvência, goze de direito de retenção terá que ser incluído no conceito de consumidor.
É, porém, de discutir qual o alcance a dar ao conceito de consumidor para efeitos de aplicação daquela orientação jurisprudencial, mais precisamente, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.4.2015 (proc. 1187/08.0 TBTMR-A.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.): “se deverá ser considerado um conceito restrito, em conformidade com a definição dada no art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96 (Lei da Defesa do Consumidor), de 31/07, com as alterações subsequentes e republicado pela Lei n.º 47/2014, de 28-07, ou mesmo com a definição dada na alínea c) do artigo 3.º do Dec.-Lei n.º 24/2014, de 14/02, que estabelece o regime legal aplicável aos contratos celebrados à distância; ou se, porventura, se deverá adotar ainda um conceito de consumidor mais alargado no sentido de compreender [designadamente] entes coletivos que não disponham de competência específica para o negócio em causa e, portanto, nessa medida, equiparáveis a pessoas singulares, como o assumido nos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.º 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.”
No sentido de um conceito mais amplo de consumidor se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014 (proc. nº 1092/10.0 TBLSD-G.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.).
Aí se escreveu o seguinte:
“A inclusão do consumidor no texto uniformizante apoiou-se, como da fundamentação consta, no que defende Miguel Pestana de Vasconcelos, em Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 3 e seguintes.
Este autor dedica ali a extensa nota de pé de página n.º 25 à noção de consumidor, sustentando que é ponderada e equilibrada, devendo «orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito», a definição resultante dos artigos 10.º, n.º 1, e 11, n.ºs 1 e 2, do anteprojeto do Código do Consumidor.
É, então, «consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional».
Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade e às pessoas singulares que atuem na prossecução de fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, se provarem o que acaba de ser referido relativamente às pessoas coletivas.
O próprio texto fundamentante do Acórdão Uniformizador fornece na nota 10 elementos que permitem vislumbrar o que se quis incluir e excluir quando se inseriu o conceito na parte da uniformização.
Ali se refere que:
«…não sofre dúvida que o promitente-vendedor é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para o seu uso próprio e não com escopo de revenda».
E no acórdão do STJ de 29.5.2014, que temos vindo a seguir, conclui-se:
«Deste texto, conjugado com o que vimos referindo em abstrato, cremos poder concluir que [do] conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.»
Percorrendo os autos, que tiveram o seu início em 2007, verifica-se, desde logo, que os reclamantes C… e D… e mulher não alegaram a qualidade de consumidores, nem tal questão foi suscitada até à realização da audiência de julgamento.
Apenas na sentença recorrida, na qual se entendeu que os créditos dos reclamantes gozam do direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil, fez o Mmº Juiz “a quo” uma breve alusão ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, para se referir que o mesmo depõe no sentido da decisão que se perfilhou.
Ora, a não invocação oportuna por parte dos credores reclamantes C… e D… e mulher da sua eventual qualidade de consumidores, que à luz da posterior jurisprudência uniformizada surge como vital para o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel ao abrigo do art. 755º, nº 1, al. f) coloca o problema que foi devidamente equacionado pelo Sr. Conselheiro Lopes do Rego no voto de vencido aposto ao mencionado AUJ nº 4/2014.
Escreveu o seguinte:
“Saliente-se, aliás, que a orientação ora adotada pelo Plenário, ao erigir a qualidade de consumidor em verdadeiro elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao reclamante o ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade de consumidor, vem criar uma situação delicada nos processos pendentes, em que o reclamante não curou naturalmente de alegar, em termos processualmente adequados, tal qualidade jurídica, cuja essencialidade não era razoavelmente previsível – estando ultrapassado o momento processual próprio para completar ou corrigir a petição insuficiente.»
Assim, no caso dos autos, os credores reclamantes C… e D… e mulher não perspetivaram as suas reclamações de créditos no sentido da invocação da qualidade de consumidores, de tal forma que a sentença recorrida, embora aluda juridicamente ao AUJ nº 4/2014, é totalmente omissa em termos factuais quanto a essa questão.
Aliás, datando as reclamações destes créditos de 2007, não seria minimamente expectável que, nessa data, os reclamantes viessem alegar essa qualidade, uma vez que a sua essencialidade só surge com a referida uniformização de jurisprudência, em 2014.
E se em 2007 era já reconhecida uma significativa divergência jurisprudencial quanto à concessão de direito de retenção e prevalência do crédito respetivo sobre crédito garantido por hipoteca, nos casos de incumprimento de contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, em que houve tradição da coisa, com decisões em sentido afirmativo e negativo[4], a questão desse direito de retenção ser, nestes casos, concedido apenas ao promitente-comprador que tenha a qualidade de consumidor só principiou a ser colocada jurisprudencialmente com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.2011 (proc. nº 6132/08.0 TABRG-J.G.A1, disponível in www.dgsi.pt.).
Não se impunha, pois, a nenhum dos credores aqui em causa que nas suas reclamações invocasse a qualidade de consumidor e na sentença recorrida, independentemente do reconhecimento dessa qualidade, foi-lhes reconhecido direito de retenção e a consequente prevalência dos créditos respetivos sobre os garantidos por hipoteca.
Porém, em sede de recurso, a recorrente, apesar da inexistência de factualidade estabelecida na sentença recorrida quanto a tal questão, veio sustentar que os credores D… e mulher e também C… não revestem a qualidade de consumidores.
Os primeiros porque adquiriram as quatro frações – D, E, F e G – numa lógica de investimento e nunca terão residido nelas. A segunda, porque a fração A corresponde a um estabelecimento comercial, não se destinando a habitação, mas sim ao exercício do comércio.
No que toca aos credores D… e mulher, como já se referiu, nenhuma factualidade existe donde seja possível extrair que estes adquiriram as referidas frações D, E, F e G para investimento e que nunca habitaram nelas, sendo ainda que, face à data em que apresentaram as suas reclamações de créditos, não lhes era exigível que alegassem a sua eventual qualidade de consumidores.
Por isso, não havendo factualidade alegada, nem provada sobre a qualidade de consumidores dos credores reclamantes D… e mulher, tratando-se de uma questão que, em bom rigor, só agora foi suscitada pela recorrente, nas suas alegações, não se devendo relevar a pronúncia meramente superficial por parte do Mmº Juiz “a quo” sobre a aplicabilidade “in casu” do AUJ nº 4/2014, estamos perante uma autêntica questão nova, que não é estritamente jurídica.
É certo que ao tribunal de recurso compete conhecer das normas de direito aplicáveis às questões que constituem objeto do recurso, mesmo que não convocadas pelas partes, ao abrigo do nº 3 do artº 5º do Cód. do Proc. Civil, mas apenas o deve fazer na medida em que tais disposições interfiram com a solução a dar às questões a decidir.
Todavia, a questão, só agora levantada em sede de apelação, sobre a falta de qualidade de consumidores dos credores reclamantes D… e mulher não se integra no núcleo de questões que foram invocadas na 1ª instância e aí discutidas, além de que não se trata, como já se referiu, de uma questão estritamente jurídica, envolvendo também uma componente factual que não fora, oportunamente, trazida aos autos e cujo relevo não era então razoável supor.
Deste modo, está vedado a este tribunal de recurso conhecer de tal questão.[5] [6]
Contudo, no que concerne à credora C… a situação é diversa porquanto esta nunca pôs em causa a destinação da fração a atividade de natureza comercial/industrial, conforme decorre das próprias contra-alegações que apresentou, onde escreveu, citando a sua reclamação de créditos, “desde esse mês (Janeiro de 2005) e até ao presente, a reclamante e seu ex-marido têm utilizado e fruído a indicada fração desenvolvendo a atividade industrial no anexo, como já vinha a fazer há vários anos, cultivando o terreno que lhe está afeto e utilizando a garagem para guardar viaturas e o estabelecimento para armazenar bens da sua pertença.”
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.5.2014 (proc. nº 1092/10.0 TBLSD-G.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.), sustentou-se que do conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis, entendimento este que, perante a argumentação que atrás se deixou transcrita, consideramos ser de seguir.[7]
Ora, como a credora C…, bem como o seu ex-marido, não se dedica a atividade relacionada com o comércio de imóveis, há então que englobá-la no conceito de consumidor para os efeitos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, assim lhe reconhecendo o direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil e a consequente prevalência do seu crédito sobre os créditos garantidos por hipoteca.
Deste modo, o recurso interposto será julgado integralmente improcedente.
*
Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 tornou a qualidade de consumidor elemento constitutivo essencial do direito de retenção previsto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil nas situações de insolvência do promitente-vendedor.
- Se o crédito foi reclamado em 2007, muito antes da prolação do referido AUJ nº 4/2014, sem que o credor reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidor, cuja essencialidade para o reconhecimento do direito de retenção nestes casos não era então previsível, e não tendo as partes nem a 1ª instância tomado posição expressa sobre tal questão, que só surgiu suscitada no recurso de apelação, terá esta que ser entendida como questão nova não estritamente jurídica, a que está vedado o conhecimento por parte do tribunal de recurso.
- O AUJ nº 4/2014 não incluiu o conceito de consumidor no seu segmento uniformizador, devendo considerar-se excluído deste conceito apenas aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis.
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela credora “B…”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Porto, 28.3.2017
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
_____
[1] Na descrição da factualidade provada teve-se em atenção que o Mmº Juiz “a quo”, por manifesto lapso, trocou as respostas dadas aos nºs 1 e 2 da base instrutória.
[2] Refira-se, desde já, que a retificação a que se reportam as conclusões A) e B) já se encontra efetuada por despacho de fls. 270.
[3] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, “CIRE Anotado”, 2ª ed., pág. 497.
[4] Conforme se mostra evidenciado na nota (1) ao AUJ nº 4/2014.
[5] Cfr. Ac. STJ de 30.4.2015, proc. 1187/08.0 TBTMR-A.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Em sentido contrário, com que não concordamos, de que ao decidir se existe ou não direito de retenção, se deveria aplicar a doutrina emergente da uniformização, mesmo não tendo sido alegada a qualidade de consumidor pelos promitentes-compradores, não essencial ao tempo da reclamação, cfr. Ac. STJ de 17.11.2015, proc. 1999/05.6 TBFUN-I.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[7] No sumário do Acórdão do STJ de 24.5.2016, proc. nº 3374/07.9 TBGMR-G.G2.S1, disponível in www.dgsi.pt, depois de se assinalar que o AUJ nº 4/2014 não incluiu no segmento uniformizador o conceito de consumidor, escreveu-se que o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja de utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adotado pelo ordenamento jurídico português.