Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0822226
Nº Convencional: JTRP00041287
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INVENTÁRIO
DISPENSA DE COLAÇÃO
DOAÇÃO POR CONTA DA QUOTA DISPONÍVEL
DOAÇÃO MANUAL
INOFICIOSIDADE
Nº do Documento: RP20080422082226
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 271 - FLS 68.
Área Temática: .
Sumário: I - Dispensar a colação ou doar por conta da quota disponível são afirmações que se equivalem, havendo nesse caso apenas que considerar a redução por inoficiosidade.
II - Por doação manual entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse, revela vontade de aceitar a liberalidade.
III - Apesar da dispensa de colação e não obstante as ditas verbas não integrarem o acervo hereditário, a respectiva integração na relação de bens em inventário é necessária a fim de verificar a eventual inoficiosidade da doação ou doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo especial de inventário, por óbito de B………. e de C………., nº…/06.4TBMTR do Tribunal da Comarca de Montalegre.
Agravante/Cabeça-de-Casal – D………. .
Agravada/Interessada – E………. .

Reclamação apresentada pela ora Recorrida (artº 1348º nº1 C.P.Civ.):
A herança possui um crédito sobre o cabeça-de-casal, no montante de € 9.000, proveniente de mútuo efectuado pelo inventariado ao cabeça-de-casal.
O cabeça-de-casal procedeu à venda de um tractor do inventariado a um comerciante, em 2005, pelo preço de € 8.500.
O cabeça-de-casal vendeu as alfaias que acompanhavam aquele tractor por € 500.
Resposta do Cabeça-de-Casal
O valor em dinheiro referido não foi mutuado, antes doado pelo inventariado ao ora cabeça-de-casal, por conta da quota disponível.
O tractor em causa foi igualmente doado pelo inventariado ao cabeça-de-casal, em vida daquele, e foi vendido por € 7.500.
As alfaias agrícolas foram vendidas pelo referido valor, mas pertenciam ao cabeça-de-casal.

Despacho Recorrido
O Mmº Juiz “a quo”, com apoio no disposto nos artºs 2104º nº1 e 2113º nº1 C.Civ., entendeu caber ao donatário e cabeça-de-casal fazer prova de que as doações que invocou haviam sido feitas por conta da quota disponível.
Não tendo o cabeça-de-casal logrado tal desiderato, determinou se cumprisse o disposto no artº 2104º C.Civ. e o consequente relacionar de tais quantias.

Conclusões do Recurso de Agravo (resenha):
1 – As doações em causa nos autos, que não as alfaias agrícolas (sobre as quais o Recorrente não invocou doação do inventariado), trataram-se de doações manuais, doações de mão em mão, efectuadas por forma verbal, discretamente, mediante pura entrega ou tradição da coisa móvel doada.
2 – As doações em causa foram também remuneratórias, uma vez que o inventariado pretendeu agradecer o ter sido o cabeça-de-casal a cuidar de si nos derradeiros anos da sua vida (a outra filha reside em França).
3 – Ao abrigo do disposto no artº 2113º nº3 C.Civ., a colação, nestas doações, presume-se sempre dispensada, não incumbindo ao cabeça-de-casal a prova de que as mesmas haviam sido feitas por conta da quota disponível.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

Factos Julgados Provados em 1ª Instância
Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual e ao despacho impugnado, supra resumidamente elencados.

Fundamentos
Em função das conclusões apresentadas pelo Recorrente, as questões em apreciação são apenas as de saber se o cabeça-de-casal se encontrava obrigado a relacionar os bens acerca dos quais confessou doação do inventariado, mas não demonstrou doação por conta da quota disponível.
Vejamos pois.
I
Num primeiro ponto podemos assentar, conferindo razão ao Agravante – na verdade, se se provou no processo que determinadas alfaias agrícolas foram vendidas, conforme aceita o cabeça-de-casal (e consta do despacho recorrido), não menos verdade é que o dito cabeça-de-casal sempre alegou serem esses concretos bens sua pertença.
Ora, o despacho recorrido inclui na confissão do ora Recorrente determinados factos efectivamente não confessados – i.é, a anterior pertença das alfaias agrícolas ao património dos inventariados.
Assim, não existindo a demonstração do pressuposto de que partiu o despacho recorrido – a confissão do cabeça-de-casal – inexiste a obrigação de restituição à massa hereditária e de consequente relação (por força do artº 2104º C.Civ.) de bens cuja titularidade não foi efectivamente apurada no processo.
II
A questão substancial do presente recurso, porém, gira à volta da necessidade de relacionar dois bens – uma determinada quantia em dinheiro, alegadamente mutuada ao cabeça-de-casal, e uma outra quantia em dinheiro, proveniente da venda de um tractor, em vida do inventariado marido.
O cabeça-de-casal invocou terem sido tais bens (a quantia em dinheiro e o tractor) objecto de doação, a ele cabeça-de-casal, por parte do inventariado, em vida deste.
O despacho recorrido entende porém que o cabeça-de-casal não demonstrou que as doações que invoca se encontrassem dispensadas de colação, ou seja, de restituição à massa da herança para igualação da partilha (artºs 2113º nº1 e 2104º nº1 C.Civ.) e de consequente imputação na quota disponível – artº 2114º nº1 C.Civ. (cf. Baptista Lopes, Das Doações, pg. 212: “dispensar da colação ou doar por conta da quota disponível são afirmações que se equivalem, havendo nesse caso apenas que considerar a redução por inoficiosidade”; no mesmo sentido, Lopes-Cardoso, Partilhas Judiciais, II/4ª ed./pg. 370, nota 2607).
Já o Recorrente invoca agora que a dispensa de colação sempre resultaria do disposto no artº 2113º nº3 C.Civ., de acordo com o qual a colação se presume sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias.
Por liberalidades remuneratórias entendem-se as contrapartidas de serviços recebidos pelo doador – artº 941º C.Civ.
Sobre este ponto, cumpre-nos sublinhar que nenhuma alegação relevante sobre a matéria de facto susceptível de integrar uma tal figura foi efectuada em 1ª instância, designadamente nos requerimentos efectuados pelas partes, confrontando o respectivo teor.
E, sendo assim, é tarde agora para invocar uma doação remuneratória, posto que, como é consabido, os recursos visam apenas a impugnação de decisões judiciais, nos termos colocados pelas partes (artº 676º nº1 C.P.Civ.), desta forma excluindo as questões novas.
Por doação manual entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso, determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade – neste sentido, artºs 940º nº1, 945º nº1 e 947º nº2 C.Civ. e Ac.R.P. 7/3/96 Col.II/179.
Neste sentido, o ora Recorrente invocou duas doações manuais, acompanhadas de tradição da coisa – dinheiro ou veículo (neste último caso, ainda, acompanhada do título representativo que constitui o registo a favor dele, ora Recorrente – artº 945º C.Civ.). Não existe pois qualquer espécie de dúvida quanto à invocação de uma doação manual e à respectiva aceitação pelo donatário; e isto é assim porque, em matéria de dispensa de colação, sempre incumbiria à outra parte provar o facto contrário – artº 350º C.Civ., isto é, a inexistência de dispensa de colação rectius de inexistência de doação por conta da quota disponível.
E desta forma, devemos estabelecer que, nos autos, se encontra adquirido que os bens referenciados na reclamação como omissos à relação de bens (com excepção das já citadas alfaias agrícolas) foram doados com dispensa de colação.
III
Significa isto que tais verbas não deveriam ter sido objecto da relação de bens?
Não o cremos porque, pese embora as ditas verbas não integrem o acervo hereditário, a respectiva relacionação é necessária a fim de permitir verificar a eventual inoficiosidade da doação ou doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado – cf. artºs 2162º nº1 e 2168ºss. C.Civ. (em sentido idêntico, também o já citado Ac.R.P. 7/3/96 e Lopes-Cardoso, op. cit., I/4ª ed./pg. 429 e nota 1232 – “no caso em referência, cumprirá relacionar as liberalidades feitas pelo inventariado a seus descendentes – artº 2110º nº1 – mesmo quando a colação seja dispensada ou quando a lei presume a dispensa – artº 2113º nºs 1 e 3, casos em que serão imputadas na quota disponível do doador – artº 2114º nº1”).
E assim, entendemos que o despacho recorrido é de manter, na parte mais substancial, pese embora o pressuposto diverso da decisão.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Dispensar da colação ou doar por conta da quota disponível são afirmações que se equivalem, havendo nesse caso apenas que considerar a redução por inoficiosidade – artºs 2113º nº3 e 2114º nº1 C.Civ..
II – Por doação manual (artº 2113º nº3 C.Civ.) entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso, determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse, revela a vontade de aceitar a liberalidade – neste sentido, artºs 945º e 947º nº2 C.Civ.
III – Apesar da dispensa de colação e não obstante as ditas verbas não integrarem o acervo hereditário, a respectiva integração na relação de bens em inventário é necessária a fim de permitir verificar a eventual inoficiosidade da doação ou doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado – cf. artºs 2162º nº1 e 2168ºss. C.Civ.

Decisão que se toma neste Tribunal da Relação, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República:
No parcial provimento do agravo, julgar improcedente a reclamação por omissão de bens a relacionar, na parte referente a alfaias agrícolas vendidas pelo cabeça-de-casal, que assim não deverão integrar a relação de bens.
No mais, confirmar o despacho recorrido, embora com a ressalva de fundamentação diversa.
Custas por cada um dos Agravante e Agravada, na proporção de metade.

Porto, 22/04/2008
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa