Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
353/15.6JAAVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: SEGREDO FISCAL
Nº do Documento: RP20160407353/15.6JAAVFR-A.P1
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 673, FLS.403-406)
Área Temática: .
Sumário: I - O sigilo fiscal previsto no art.º 64.º LGT encontra-se relacionado com a situação tributária do contribuinte, designadamente com a sua capacidade contributiva e justifica-se com o principio constitucional da reserva da intimidade da vida privada (art.º 26.º CRP).
II - O segredo fiscal não é absoluto e situando-se fora do núcleo da intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar garantias efetivas contra a utilização abusiva à dignidade humana, deve ceder perante o interesse público do Estado de realização da justiça penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 353/15.6JAAVR-A.P1
Águeda
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
- 2ª secção criminal –
Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Elsa Paixão

I. RELATÓRIO:
No âmbito dos autos de inquérito com o nº 353/15.6JAAVR, a correr termos na instrução central de Águeda, 2ª secção de instrução criminal, juiz 1, da comarca de Aveiro, por despacho fundamentado do senhor juiz de instrução, datado de 29 de fevereiro de 2016, foi suscitado o presente incidente de quebra de sigilo profissional da Administração Fiscal, ao abrigo do disposto no artigo 135.º do Código Processo Penal, com vista à obtenção de informações sobre a identificação de dois contribuintes e envio das respetivas declarações de IRC e seus anexos, nos últimos três anos.
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O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no qual conclui que deve ser quebrado o sigilo profissional, a fim de ser prestada a informação requerida, que se mostra imprescindível para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, tendo em conta a natureza do investigado crime de burla tributária.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Com relevo para a decisão do incidente resultam os seguintes factos e ocorrências processuais:
A. No inquérito nº 353/15.6JAAVR que corre termos no DIAP de Oliveira do Bairro, secção única, da comarca de Aveiro, investigam-se factos relativos ao uso de métodos fraudulentos de acesso a dados bancários, através dos quais foram efetuadas compras on-line com recurso aos elementos do cartão bancário do ofendido, de que resultou a débito na conta associada, de um valor de € 403,95 em 06.08.2015 e de um valor de € 705,66 em 13.08.2015, o que consubstancia a possível realização de um crime de burla informática sob a forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 221.º, n.º 1 e 30.º, n.º 2, do Código Penal.
B. Para investigação dos referidos factos foram efetuadas diligências de prova pelo Ministério Público, com a notificação da Autoridade Tributária – Direção de Serviços de Registo dos Contribuintes – informações sobre a identificação dos sujeitos tributários com os NIF ……… e ……… e envio das respetivas declarações de IRS e seus anexos, nos últimos três anos, de molde a aferir se as compras mencionadas em A. se mostravam refletidas nas aquisições efetuadas por tais contribuintes.
C. A autoridade tributária negou-se a prestar tais informações a coberto do sigilo fiscal e profissional.
D. O Ministério Público, alegando a imprescindibilidade da aludida informação fiscal e a ponderação de interesses em confronto, promoveu então a quebra do sigilo fiscal dos funcionários da autoridade tributária.
E. O senhor juiz de instrução considerou legítima a recusa e mandou instruir o presente incidente.
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APRECIAÇÃO DO INCIDENTE

Regulado no artigo 135.º do Código de Processo Penal, o incidente da quebra do segredo profissional está dividido em duas fases distintas, uma referente à questão da legitimidade da escusa[1] e a outra referente à questão da justificação da escusa[2], competindo ao tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado apreciar e decidir esta última questão.[3]
Incumbe assim a este tribunal da Relação decidir sobre a prestação de informações pela autoridade tributária, com quebra de sigilo sobre a situação tributária dos contribuintes.
A decisão sobre a justificação da escusa assenta no princípio da prevalência do interesse preponderante, tendo em conta nomeadamente a imprescindibilidade da informação para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos[4]. Numa criteriosa ponderação dos valores em conflito, com vista a determinar se a salvaguarda do sigilo deve ou não ceder perante os interesses ou valores conflituantes.
In casu estão presentes, por um lado, o sigilo fiscal, legalmente tutelado e consagrado no artigo 64.º da Lei Geral Tributária, e, por outro lado, o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu jus puniendi e realizar a justiça penal.[5]
Do referido artigo 64.º da Lei Geral Tributária resulta que o dever de sigilo fiscal recai sobre “dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária”, encontrando-se estes “obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributário dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado”.
O sigilo fiscal encontra-se assim necessariamente relacionado com a situação tributária do contribuinte, designadamente com a sua capacidade contributiva, encontrando a sua razão de ser no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada garantida pelo artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa
Importa, pois, avaliar se existem motivos justificados para a quebra do sigilo fiscal da autoridade tributária, que se recusou a prestar informações relativas ao envio de declarações de dois contribuintes, posto é que tais elementos estão manifestamente abrangidos pelo sigilo fiscal, já que eles permitem o conhecimento da capacidade contributiva desses contribuintes.
No que respeita à imprescindibilidade das informações pretendidas para a descoberta da verdade nos autos de inquérito em causa, o contributo probatório decorrente do seu conhecimento revela-se essencial para a descoberta do autor ou autores do crime em investigação, não se reconhecendo outros meios de obtenção de prova menos invasivos que possam permitir o mesmo resultado pretendido.
É certo que o ilícito em investigação, de burla informática sob a forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 221.º, n.º 1 e 30.º, n.º 2 do Código Penal, não apresenta uma elevada gravidade objetiva, já que é punido com uma pena de multa em alternativa a uma pena de prisão, sendo que esta última vai do mínimo legal de 1 mês a um máximo que não ultrapassa os 3 anos.
De todo o modo, também não podemos olvidar que a intensidade que a proteção constitucional do sigilo fiscal assume na ordem jurídica portuguesa é manifestamente inferior quando comparada à de outros segredos, como é o caso do médico ou religioso. Quanto ao sigilo fiscal e inversamente do que acontece relativamente a outros segredos legalmente consagrados, é a própria lei que o faz ceder perante vários outros interesses. É o que resulta, desde logo, do n.º 2, do artigo 64.º da Lei Geral Tributária, que enuncia as circunstâncias em que o dever de sigilo fiscal cessa e, de forma muito contendente, do n.º 5 da mesma norma, designadamente da sua alínea a), onde o legislador vai ao ponto de permitir a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada.
O segredo fiscal não é pois tutelado entre nós como um segredo absoluto, enquadrando-se os interesses que com ele se pretendem proteger numa dimensão da privacidade do cidadão situada fora do núcleo da intimidade privada e familiar que a lei protege para proporcionar «garantias efetivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana»[6], como são o caso dos já referidos segredos médico e religioso[7].
Neste contexto, ponderando por um lado o dever de sigilo fiscal nos termos em que se encontra legalmente tutelado e consagrado e, por outro, o interesse público do Estado de realização da justiça penal, afigura-se-nos que, in casu, este último interesse prevalece manifestamente sobre o dever de sigilo fiscal.
Pelo que se determinará a quebra do sigilo fiscal e profissional, invocado pelos funcionários da autoridade tributária, relativamente às informações pretendidas.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam as juízas da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em autorizar a quebra do sigilo fiscal e profissional dos funcionários da Administração Fiscal – Direção de Serviços de Registo dos Contribuintes – informações sobre a identificação dos sujeitos tributários com os NIF ……… e ……… e envio das respetivas declarações de IRS e seus anexos, nos últimos três anos.
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Sem custas, em face da natureza do incidente em apreço.
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Porto, 7 de abril de 2016
(Processado por computador e revisto pela primeira signatária)
Fátima Furtado
Elsa Paixão
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[1] Cfr. n.º 2 do artigo 135º do Código de Processo Penal.
[2] Cfr. n.º 3 do artigo 135º do Código de Processo Penal.
[3] Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Processo Penal, 2.ª ed., pág. 361-362.
[4] Cfr. artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
[5] Cfr. artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa.
[6] Cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
[7] Cfr., neste sentido, Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, 2007, p. 414.