Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
611/12.1TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MULTA
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20190326611/12.1TYVNG.P1
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 882, FLS.54-61)
Área Temática: .
Sumário: I - A condenação em multa por litigância de má fé não depende de pedido da parte contrária, podendo ter lugar oficiosamente.
II - A indemnização a favor da parte contrária terá de ser pedida por esta.
III - A indemnização tem natureza sancionatória e compulsória, podendo coexistir com a indemnização por responsabilidade civil.
IV - Ainda que a parte não tenha feito a prova das despesas que suportou, o tribunal pode fixar-lhe uma indemnização com base na equidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 611/12.1TYVNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório.
B…, solteira, residente, à data, na Rua …, n.º …, …, Lisboa, instaurou a presente acção de anulação de deliberações sociais, sob a forma de processo sumário, contra “C…, Lda.”, com sede no … pedindo que seja declarada a nulidade das deliberações adoptadas na assembleia geral de sócios da ré ocorrida no dia 23 de Março de 2012, exaradas em documento denominado de “acta n.º 14” – declarando-se nulo e de nenhum efeito tal documento – ou, quando muito, sem prescindir ou conceder, a anulação de tais deliberações.
Alegou, para o efeito, que, sendo sócia da ré, não recebeu, nem lhe foi remetida, qualquer convocatória para a referida assembleia geral, tendo apenas tido conhecimento da sua realização a 20 de Abril de 2012, por ter recebido, por carta, a acta correspondente.

A ré contestou, impugnando a versão apresentada pela autora e alegando que expediu, por carta registada com aviso de recepção, a convocatória destinada à autora para o seu domicílio, a qual foi devolvida ao remetente a 19 de Março de 2012, por não ter sido reclamada, pugnando pela efectiva e regular convocação da autora. Concluiu, pedindo a condenação da autora em multa e indemnização a seu favor, como litigante de má-fé.

A autora respondeu com os fundamentos constantes do articulado de fls. 50 a 55, os quais damos aqui por reproduzidos.

Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se fixou à acção o valor de 30.000,01 euros, foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância de todas as formalidades legais.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:”a) Julgo improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo a ré do pedido; b) Condeno a autora, como litigante de má-fé, na multa de 5 (cinco) unidades de conta e na indemnização, a favor da ré, no montante de 2.000,00 euros.“

A autora B… veio interpor recurso, concluindo:
B1. O presente recurso vem interposto da decisão proferida pela primeira instância que condenou a ora recorrente como litigante de má fé, a qual não se pode conceder, por um lado porque a recorrente não foi notificada para se pronunciar sobre a sua eventual condenação e, por outro lado (mas sem prescindir) porquanto se entende que a recorrente não actuou com negligência grave.
B2. Do cotejo dos autos resulta, clara e sem margens para dúvidas, que a decisão sob escrutínio, emergiu como causa de profunda estupefacção para a ora recorrente constituindo, assim, uma decisão – surpresa, posto que não foi notificada para sobre ela se pronunciar.
B3. Sem mais, não tendo sido dada possibilidade à recorrente de se pronunciar sobre a possibilidade de ser condenada como litigante de má fé, a decisão recorrida incorre em nulidade, por violação do princípio do contraditório e do artigo 3°, do CPC.
B4. Destarte, conclui-se assim que a decisão recorrida é violadora do disposto nos art.sº 3º e 7º do CPC (princípio do contraditório) e dos princípios constitucionais de acesso ao direito e da proibição da indefesa.
B5. Inobservada uma regra processual crucial, geradora de nulidade – que se invoca para os legais e devidos efeitos – deve a decisão recorrida ser revogada e ordenar-se o cumprimento do disposto no art.º 3 .º do CPC.
B6. Resta referir que a interpretação do art.º 542º do CPC no sentido de não ser necessária a notificação do condenado, previamente à decisão da sua condenação como litigante de má fé, para, querendo se pronunciar sobre essa possibilidade ou com a interpretação de que basta a notificação da parte para se pronunciar em termos abstractos (nada referindo expressamente quanto à possibilidade da sua condenação como litigante de má fé) sobre teor de documento junto, é inconstitucional por violadora dos princípios do contraditório, acesso ao direito e proibição de indefesa, todos com assento constitucional (art. 20º- 5 da CRP), inconstitucionalidade esta que desde já se invoca. Sem prescindir,
B7. A apelante não concede a interpretação do acervo probatório constante dos autos pelo que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do CPC passa a elencar os pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados como não provados: A A. não recebeu qualquer convocatória para qualquer assembleia-geral/reunião de sócios da R. a ocorrer no dia 23.03.2012; Sendo falso que qualquer aviso tenha sido depositado na caixa postal da A. e que esta se tenha eximido de levantar a respectiva correspondência junto do expedidor postal; Sendo certo que a A. teve, mais do que uma vez, problemas com o distribuidor postal, que a levaram, inclusive, há alguns meses a esta parte, a apresentar reclamação junto dos CTT.
B8. Nos termos da alínea b) do já mencionado n.º 1 do artigo 640º do CPC passam a elencar-se os meios probatórios susceptíveis de determinar uma assunção factual diversa da propugnada pela decisão sob escrutínio: - Depoimento da testemunha D… (audiência de julgamento no dia 16.03.2017, pelas 9h30 e gravado através do sistema integrado H@bilus Media Studio, com a duração de 13minutos e 36egundos com o ficheiro n.º 20170316102841_6631473_2871617); - Declarações de parte da A. (audiência de julgamento no dia 16.03.2017, pelas 9h30 gravadas através do sistema integrado H@bilus Media Studio, com a duração de 17minutos e 41egundos, ficheiro 20170316105315). Ora,
B9. Da prova produzida resulta inequívoco que, quer a A. quer a testemunha D…, só tiveram conhecimento da realização da Assembleia-Geral através da carta posteriormente remetida e que continha a acta; que os respectivos avisos não foram depositados na caixa de correio de um e outro; que a R. teve conhecimento de que quer a A. quer a testemunha D… não foram notificados da convocatória e, ainda assim, não procedeu a uma segunda convocatória para a mencionada morada da A. e / ou a profissional, que bem conhecia; que a A., acaso tivesse sido depositado o respectivo aviso, tê-lo-ia levantado como sempre fez, de resto; a R. é uma sociedade familiar na qual os sócios estão em permanente conflito.
B10. A A., perante todas estas evidências – o facto de a testemunha D… também não ter recebido a carta contendo a convocatória nos mesmos termos que a aqui apelante, de aquela testemunha apenas ter tido conhecimento da assembleia com a notificação da acta – tal qual a A. – de ser uma sociedade familiar e em guerra – convenceu-se de que não havia sido efectivamente notificada – como não foi, dado que a carta foi devolvida. Posto isto:
B10. Face às circunstâncias em causa, é perspícuo concluir que a A. agiu com o cuidado e diligência que lhe eram devidos e, bem assim, que não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade pela não recepção da carta. Efectivamente, a A. confrontou a testemunha D… que lhe referiu também não ter recebido qualquer convocatória e dado o estado litigioso dos sócios da R. e, bem assim, a circunstância de esta ter outras moradas da A. (designadamente aquela profissional), ficou esta convicta que não lhe fora remetida qualquer convocatória.
B11. Nesta confluência, ao decidir deste jeito, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 542.º do CPC motivo pelo qual, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva os recorrentes do pedido da sua condenação como litigante de má fé. Todavia, ad cautelam,
B12. O art. 457º do Código de Processo Civil estatui quanto ao conteúdo da indemnização à parte contrária àquela que foi condenada como litigante de má fé, dispondo que a indemnização a atribuir consistirá no reembolso das despesas a que a má fé do litigante tenha imposto à parte contrária, incluindo os honorários de mandatários, bem como os prejuízos directamente sofridos pela parte em consequência da má fé.
B13. Ora, atenta a falta de elementos, os valores em que a recorrente foi condenada se mostram desadequados quanto a esta matéria.
B14. Nesta confluência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que altere, em conformidade, os valores em que a recorrente foi condenada. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em apurar se a autora/recorrente deve ser condenada em multa e indemnização como litigante de má-fé.
II – Fundamentação de facto.
O tribunal recorrido deu como provados e não provados os seguintes:
FACTOS PROVADOS
a) A ré “C…, Lda.” está registada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ………., tendo por objecto a importação, comercialização e distribuição de materiais acrílicos e derivados, bem como o comércio de representações nacionais e estrangeiras, a sua importação e exportação, com o capital de 5.000,00 euros;
b) Foi constituída a 29 de Setembro de 2003, tendo como sócios: “C…, Lda.”, com uma quota no valor nominal de 1.250,00 euros, “C1…, Lda.”, com uma quota no valor nominal de 1.250,00 euros, E…, B…, D…, F… e G…, cada um com uma quota no valor nominal de 500,00 euros;
c) São gerentes H… e os sócios F… e G…;
d) Através da inscrição de 30 de Outubro de 2012, mostra-se registada a transmissão da quota pertencente à autora a favor de I…;
e) No dia 23 de Março de 2012 realizou-se a assembleia geral ordinária com a seguinte ordem de trabalhos: “1. Apreciação e votação do Relatório de Gestão e das Contas do exercício de 2011; 2. Deliberar sobre a proposta da gerência de aplicação de resultados de 2011; 3. Apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade; 4. Deliberação sobre as medidas a adoptar visando proteger a sociedade e sócios das iniciativas de terceiros estranhos à sociedade para prejudicar a empresa e denegrir a imagem dos seus corpos gerentes e sócios; e 5. Outros assuntos.”;
f) Estiveram presentes os sócios F…, G…, E… e as sócias “C…, Lda.” e “C1…, Lda.”, representadas por H…, representando 80% do capital social;
g) A assembleia geral foi presidida por H…, na qualidade de representante da sócia “C1…, Lda.”;
h) A ré enviou à autora uma carta registada com aviso de recepção, datada de 11 de Abril de 2012, dirigida para a Rua …, n.º …, Lisboa, remetendo-lhe a acta n.º 14, relativa à assembleia geral realizada no dia 23 de Março de 2011, cuja cópia se encontra junta a fls. 23 a 25, cujo teor se dá aqui por reproduzido; i) Tal carta foi recebida pela autora a 20 de Abril de 2011;
j) Da referida acta consta o seguinte: “O Presidente informou os presentes que os sócios ausentes B… e D…, ainda que regularmente convocados para esta Assembleia-Geral, por carta registada com aviso de recepção expedida 26 de no dia seis de Março último, não procederam ao seu levantamento/reclamação junto dos CTT pelo que as mesmas vieram devolvidas à procedência como melhor consta nos respectivos sobrescritos que o presidente rubrica e manda arquivar na pasta da AssembleiaGeral.”;
k) Relativamente ao primeiro ponto da ordem de trabalhos, foi o Relatório de Gestão e as Costas do exercício de 2011 aprovados por unanimidade, sendo também aprovadas as gratificações aos sócios gerentes, com a abstenção dos beneficiados;
l) Foi aprovada por unanimidade a proposta de aplicação dos resultados de 2011 [“que os resultados líquidos apurados fossem levados a resultados transitados, fundamentado a sua proposta na necessidade sentida de manter a sociedade dotada dos meios financeiros que lhe permitam desenvolver a sua actividade numa conjuntura desfavorável, o que se confirma, (…), atento que nas Contas existir 983.668,94€ (…) a receber de clientes. Mais disse que para fazer face a essa necessidade, propõe e coloca à deliberação dos sócios que o montante de 300.000,00€ (…) seja levado à conta de Reservas Livres”];
m) Relativamente ao terceiro ponto, “os sócios manifestaram, por unanimidade, numa apreciação global, o seu apreço pela Administração e bem assim pela fiscalização da sociedade no exercício findo, o que determinou a atribuição das gratificações acima deliberadas”;
n) Quanto ao quarto ponto, “tomou a palavra o sócio F… informando os sócios presentes de que tem conhecimento de iniciativas de vária ordem, visando obter informações sobre assuntos do foro interno da sociedade, designadamente: disponibilidades bancárias, listagens de clientes, negócios em curso, etc.. A par destas iniciativas, tomadas também por estranhos à sociedade, são feitas, por diversas vezes, afirmações consideradas desrespeitosas para com os sócios e os gerentes da sociedade.”, sendo que, “Face ao exposto e à gravidade do assunto, a Gerência solicita aos sócios que se pronunciem e a mandatem para poder usar de todas as medidas que se considerem adequadas e necessárias à defesa da integridade e bom nome da sociedade e dos corpos sociais”;
o) Foi proposto, em conjunto por todos os sócios, “que a gerência da sociedade tome todas as medidas que entender adequadas, e mesmo, se disso for caso, recorrendo à via judicial, ainda que visando sócios desta sociedade, cônjuges ou pessoas com eles conviventes, sem necessidade de nova deliberação prévia à propositura dos respectivos processos.”;
p) Quanto ao quinto ponto da ordem de trabalhos, “o representante da sócia C1…, Lda.”, H…, assumiu o compromisso de durante este exercício económico, vir a esta Assembleia apresentar um projecto, propondo um novo modelo de organização da empresa.”;
q) A ré, por carta datada de 6 de Março de 2012, registada com aviso de recepção, dirigida à autora e remetida para a Rua …, n.º …, …, em Lisboa, expediu, na mesma data, a convocatória para a assembleia geral a realizar no dia 23 de Março de 2012, onde se lê o seguinte: “Nos termos do artigo duzentos e quarenta e oito do Código das Sociedades Comerciais, convoco V. Exa., na qualidade de sócia da sociedade por quotas “C…, Lda.”, para a sua Assembleia Geral anual a realizar no próximo dia 23 de Março de 2012, às 16 horas, no …, …, em Sesimbra, para apreciação da seguinte ordem de trabalhos: 1. Apreciação e votação do Relatório de Gestão e das Contas do exercício de 2011; 2. Deliberar sobre a proposta da gerência de aplicação de resultados de 2011; 3. Apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade; 4. Deliberação sobre as medidas a adoptar visando proteger a sociedade e sócios das iniciativas de terceiros estranhos à sociedade para prejudicar a empresa e denegrir a imagem dos seus corpos gerentes e sócios; e 5. Outros assuntos.”.
r) A referida carta foi devolvida ao remetente a 19 de Março de 2012, com a menção “objecto não reclamado”;
s) Na face posterior do envelope, junto a fls. 176, consta: “Não atendeu às 10:30. 08/03/2012”, data em que foi depositado o aviso no receptáculo postal correspondente;
t) Nas datas referidas nas alíneas h) e q) a autora residia na Rua …, n.º …, em Lisboa;
u) A autora tem domicílio profissional na Rua …, n.º …, em Lisboa, o que é do conhecimento da ré.
FACTOS NÃO PROVADOS. Não se provaram os demais factos alegados, designadamente, nos artigos 15º, 16º, 19º, 20º e 22º da petição inicial e no artigo 10º da resposta.
*
A demais matéria constante dos articulados constitui matéria de direito ou conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa.
III – Do mérito do recurso
Alega a recorrente que:
- não foi notificada para se pronunciar sobre a sua eventual condenação como litigante de má-fé e entende que não actuou com negligência grave.
- a interpretação do artigo 542º do CPC no sentido de não ser necessária a notificação do condenado, previamente à decisão da sua condenação como litigante de má fé, para, querendo se pronunciar sobre essa possibilidade ou com a interpretação de que basta a notificação da parte para se pronunciar em termos abstractos é inconstitucional por violadora dos princípios do contraditório, acesso ao direito e proibição de indefesa, todos com assento constitucional (art. 20º- 5 da CRP), inconstitucionalidade que invoca.
- não concede a interpretação do acervo probatório constante dos autos pois do depoimento da testemunha D... e das suas declarações de parte resulta inequívoco que, quer a recorrente quer a testemunha D…, só tiveram conhecimento da realização da Assembleia-Geral através da carta posteriormente remetida e que continha a acta e que os respectivos avisos não foram depositados na caixa de correio de um e outro.
Perante todas estas evidências: do facto de a testemunha D… também não ter recebido a carta contendo a convocatória nos mesmos termos que a apelante, de aquela testemunha apenas ter tido conhecimento da assembleia com a notificação da acta, de ser uma sociedade familiar e em guerra, convenceu-se de que não havia sido efectivamente notificada.
Vejamos.
Logo na contestação a ré requereu a condenação da autora como litigante de má fé e pediu uma indemnização suficiente a ressarci-la de todas as despesas que, por via da acção, suportou e que quantifica em 2.000,00€.
A autora notificada da contestação apresentou resposta.
Tanto basta para que se considere que a recorrente foi notificada para se pronunciar sobre a sua eventual condenação como litigante de má-fé e, mais precisamente, dos concretos fundamentos e até do montante pedido a título de indemnização, ou seja, não se tratou aqui de uma notificação para se pronunciar em termos abstractos pelo que prejudicada fica a questão da inconstitucionalidade.
A reforma do processo de 95/96 veio alargar a figura da litigância de má-fé, abarcando não só a lide dolosa mas também a lide temerária.
Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006, veio caracterizar a litigância de má fé como um instituto processual de tipo público que visa o imediato policiamento do processo.
A particular gravidade que assume o abuso processual acontece porque lesa não apenas a contra-parte, mas, devido ao carácter publicístico do processo, também e sobretudo, a própria administração da justiça, sendo por isso designado por vários autores como abuso pluriofensivo.
O artigo 542 º do CPC (artigo 456.º CPC 1961) censura três tipos de actuação substancial e um de conduta processual.
A actuação substancial sancionável pode consistir em:
i) deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deva ignorar (artigo 542.º, n.º 2, alínea a));
ii) alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (artigo 542.º, n.º 2, alínea b));
iii) omitir gravemente o dever de cooperação (artigo 542º, n.º 2, alínea c)).
No âmbito da actuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de:
i) conseguir um objectivo ilegal;
ii) impedir a descoberta da verdade;
iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)).
Refere PAULA COSTA E SILVA, in A litigância de má-fé, Almedina, 2008, pág. p. 620, que a ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC), não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo analiticamente as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal.
O litigante tem de actuar já imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjectivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade.
Só releva a má-fé subjectiva, isto é, quando a parte tenha consciência de que lhe não assiste razão. E, em face das dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante, essa consciência deve manifestar-se pela inobservância das mais elementares regras de prudência.
Se, pelo contrário, o comportamento objectivamente preencha alguma das alíneas do artigo 542º, nº 2 mas não for modulado por esse elemento subjectivo, não será já considerado de má-fé. Não haverá lide dolosa nem temerária.
Refere-se na sentença o seguinte:” No caso em apreço, a autora fundamentou o seu pedido no facto de não ter sido convocada para a assembleia geral da ré realizada a 23 de Março de 2012. No entanto, sabemos que a ré expediu carta registada com aviso de recepção para a residência da autora, convocando-a para a referida assembleia geral. Por outro lado, sabemos que a ré enviou à autora outra carta, registada com aviso de recepção, datada de 11 de Abril de 2011, dirigida para a sua residência, remetendo-lhe a acta n.º 14, relativa à assembleia geral realizada no dia 23 de Março de 2011, a qual foi recebida a 20 de Abril de 2011, constando da acta, para além do mais, o seguinte: “O Presidente informou os presentes que os sócios ausentes B… e D…, ainda que regularmente convocados para esta Assembleia-Geral, por carta registada com aviso de recepção expedida no dia seis de Março último, não procederam ao seu levantamento/reclamação junto dos CTT pelo que as mesmas vieram devolvidas à procedência como melhor consta nos respectivos sobrescritos que o presidente rubrica e manda arquivar na pasta da Assembleia-Geral.”. Ora, a autora, ao receber a carta datada de 11 de Abril de 2012, tomou conhecimento da menção descrita, relativa à expedição da convocatória e à devolução do expediente, bem como ao arquivamento de tais elementos em pasta própria, circunstâncias que impunham, cremos, que a mesma, previamente à propositura da presente acção, tivesse diligenciado no sentido de melhor esclarecer a questão, o que não se verificou, limitando-se a propor a presente acção e a invocar a falta de convocatória, o que, como já vimos, não se verificou, não podendo ser imputada à ré a sua ausência na assembleia geral. Temos, assim, que a autora agiu com negligência grave, uma vez que não tomou as precauções exigidas no caso concreto, impondo-se, por isso, a sua condenação como litigante de má fé. Nos termos do disposto no art. 27º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 e 100 UC, pelo que, tendo em conta o que a autora pretendia obter com a propositura da presente acção, julgamos adequado e razoável fixar a mesma em 5 (cinco) unidades de conta.”
Efectivamente, a recorrente propôs a presente acção sabendo que constava da acta n.º 14, relativa à assembleia geral realizada no dia 23 de Março de 2011 que “….os sócios ausentes B… e D…, ainda que regularmente convocados para esta Assembleia-Geral, por carta registada com aviso de recepção expedida no dia seis de Março último, não procederam ao seu levantamento/reclamação junto dos CTT pelo que as mesmas vieram devolvidas à procedência como melhor consta nos respectivos sobrescritos que o presidente rubrica e manda arquivar na pasta da Assembleia-Geral.”
Assim, é perfeitamente irrelevante o que agora alega quanto ao seu convencimento baseado nas circunstâncias de a testemunha D… também não ter recebido a carta contendo a convocatória, de o mesmo apenas ter tido conhecimento da assembleia com a notificação da acta, e de se tratar de uma sociedade familiar e em guerra.
A recorrente actuou com manifesto atropelo das mais elementares regras de prudência no fundamento invocado para a pretendida anulação das deliberações sociais, denotando sim este seu comportamento um avivar da dita guerra da sociedade familiar.
A recorrente deduziu, assim, pretensão cuja falta de fundamento se não devia ignorar.
Também se considera perfeitamente ajustada a fixação da multa em 5 (cinco) unidades de conta.
Na verdade, a litigância de má fé conduz à aplicação ao litigante de duas sanções: multa e uma indemnização à parte contrária.
Resulta do disposto no artigo 542º.nº 1, do C.P.C. que a condenação em multa como litigante com má fé não depende de pedido da parte, podendo/devendo o Tribunal efectuá-la desde que se verifiquem os respectivos pressupostos.
No que respeita à indemnização, a tese mais avisada é a de que ela terá de ser pedida pela parte
Posto isto, para que o crédito indemnizatório se constitua na esfera jurídica do lesado é necessária a verificação cumulativa de dois indispensáveis pressupostos: por um lado, a demonstração de um ilícito perpetrado pelo lesante, traduzido na sua litigância censurável; por outro, que o lesado com essa conduta, formule o pedido indemnizatório.
A indemnização pode ser simples ou agravada.
A indemnização simples é aquela que se encontra prevista na al. a) do nº 1 do artigo 543 do CPC, compreendendo todas as despesas que a má fé do litigante haja obrigado a parte contrária a suportar, incluindo os honorários ao seu mandatário ou aos técnicos.
A indemnização agravada é aquela que se encontra prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 543º, incluindo todas aquelas despesas e ainda todos os demais prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má fé do litigante.
A responsabilidade processual e litigância de má fé assentam num princípio de natureza puramente processual: “princípio da cooperação” (artigo 7.º do CPC).
Com efeito, em nenhuma das alíneas do nº 2 do artigo 542.º se indica uma qualquer situação em que na base da litigância de má fé esteja a ofensa a um direito ou outra posição jurídica subjectiva concedida ou protegida pelo direito substantivo.
Por isso, pode dizer-se que a finalidade visada pela indemnização em sede de litigância de má fé não é ressarcitória, como sucede com a responsabilidade civil mas sim meramente sancionatória e compensatória.
A ilicitude processual assenta num exercício disfuncional do direito, por manifesto atentado à boa-fé processual e, consequente, desvio do processo e dos meios processuais do interesse e da finalidade que o legislador tinha em mente ao consagrá-los.
O artigo 543.º, nº 3 do CPC dispõe que “se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, serão ouvidas as partes e fixar-se-á depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte”
Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil, Anotado, Vol. II, pág 281, explica que:”a apreciação da má fé e a condenação em multa e indemnização não pode o juiz relegá-las para depois da sentença; (…) o que pode e deve deixar para depois da sentença é a fixação do quantitativo da indemnização, que resolverá, ouvidas as partes e pedidas as informações ou esclarecimentos ou ordenadas as diligências indispensáveis, usando de prudente arbítrio”.
Podemos dizer que são elementos distintos o âmbito e o montante da indemnização, aquele tem de ser a sentença a definir-lhe os contornos; este será decidido ou não pela sentença, consoante os elementos disponíveis. Não os havendo ou sendo insuficientes, impõe-se a respectiva recolha, que até poderá decorrer oficiosamente, para ser tomada, então, posição.
O nº 2 do artigo 543º do CPC comanda que “O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.”
Esta opção reporta-se às alíneas do nº 1, ou seja, à indemnização simples, ou à indemnização agravada, de acordo com o grau de má fé, com a maior ou menor gravidade da conduta dolosa.
No caso, a indemnização pedida e arbitrada reporta-se ao ressarcimento de todas as despesas que a ré suportou por via da acção, o que se traduz na caracterizada indemnização simples.
De entre estas despesas assumem particular relevância as referentes aos honorários, retribuição do contrato de mandato forense, os quais devem ser adequados, como é consabido, à quantidade, complexidade e qualidade (aferida esta também pelo resultado/sucesso obtido) do serviço prestado pelo mandatário judicial, um especialista em matérias jurídicas/processuais. – Vide n.º 3 do artigo 105.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, na redacção da Lei nº. 145/2015, de 09 de Setembro
Como se disse, a litigância de má fé não é ressarcitória pois tem um escopo punitivo e público por contraposição à responsabilidade civil em que predomina um escopo ressarcitório.
A este respeito, refere PAULA MEIRA LOURENÇO, em Os Danos Punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa», Vol. XLIII, nº 2, 2002, p. 1075, que o cálculo da indemnização a comporta um montante que visa a punição do agente.
Daí que se defenda que não obstante a alegação e prova das despesas e prejuízos sofridos não terem sido feitas pela parte alegadamente prejudicada com a litigância de má fé, sempre mesmo assim o tribunal lhe deverá fixar uma indemnização de acordo com um prudente arbítrio.
É que, reitera-se, estamos perante uma responsabilidade com cunho próprio, podendo perfeitamente co-existir com a responsabilidade civil - Vide Menezes Cordeiro in da Boa Fé no Direito Civil, Tomo I, pág. 382.
E tendo como parâmetro o prudente arbítrio, traduzido em juízos de proporcionalidade e adequação, julga-se correcta a fixação da indemnização nos termos ponderados na sentença.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 26 de Março de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília Agante