Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2408/17.3T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PRAZO DE VOTAÇÃO DO ACORDO
APROVAÇÃO DO ACORDO DE PAGAMENTO
HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RP201807112408/17.3T8STS.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 678, FLS 544-554)
Área Temática: .
Sumário: I - O processo especial para acordo de pagamento - PEAP - destina-se a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.
II - Quanto às negociações e aprovação do acordo de pagamento, seguiu o artigo 222º-F o regime do anterior PER de apresentação e aprovação do acordo de pagamento dentro do prazo das negociações.
III - Do cotejo do nº 1 deste artigo 222º-F com o nº 1 do artigo 17º F na sua redação inicial se conclui pela sua total similitude, apenas com a substituição do “plano de recuperação conducente à revitalização do devedor” por “acordo de pagamento”.
IV - Do nº 2 deste artigo 222º F resulta claro que à semelhança do que ocorria no nº 2 do artigo 17º F (redação inicial), está prevista a possibilidade de aprovação do acordo de pagamento com a conclusão das negociações, sem a prevista unanimidade do nº 1.
V - Sendo pressuposto da remessa a tribunal do acordo de pagamento (e não plano, conforme consta na letra da lei do segundo segmento deste nº 2 em análise) a prévia sujeição do mesmo a votação, resulta a nosso ver incompreensível e contrário à lógica do regime definido, a menção (no caso de votação sem unanimidade) à publicação do acordo de pagamento (e não plano) para votação no prazo de 10 dias a contar de tal publicação, bem como a possibilidade de em tal prazo poder qualquer interessado solicitar a não homologação desse mesmo acordo de pagamento nos termos e para efeitos do artigo 215º e 216º. Pois que o acordo de pagamento já foi votado.
Havendo apenas, após observância do nº 3 do artigo 222º-F que proceder à sua homologação ou recusar a mesma, nos termos previstos no nº 5 deste mesmo artigo.
VI - Assim entende-se necessária uma interpretação ab-rogante deste artigo 222ºF nº 2 ao abrigo do artigo 9º do CC, por forma a conferir coerência ao regime instituído no PEAP, nomeadamente no que respeita à votação do acordo do pagamento que sempre ocorrerá em momento prévio à sua remessa a tribunal. Implicando que após a remessa cabe apenas ao tribunal verificar os pressupostos de que depende a sua homologação ou recusar a mesma.
VII - Não há lugar à apresentação em tribunal da versão final do acordo que será sujeito a votação findas as negociações, nem a publicação deste mesmo acordo com vista a definir o início de prazo para votação, tal como previsto no atual artigo 17º-F nºs 1 a 3 para o PER.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 2408/17.3T8STS
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juiz Desembargador Oliveira Abreu
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Comércio de Santo Tirso
Apelante/B...
Apelada/”C..., S.A.” e outros

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
B..., melhor id. a fls. 2, instaurou Processo Especial Para Acordo de Pagamento (PEAP) ao abrigo do disposto nos artigos 222º-A e seguintes do CIRE, a este aditados pelo DL 79/2017 de 30/06. Processo este (PEAP) que visa permitir ao devedor que não seja uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento (vide 222º-A nº 1 e 222º-C do CIRE, diploma legal a que faremos referência salvo menção expressa em contrário).
Recebido o requerimento nos termos do artigo 222º-C nº 4 e nomeado AJP (Administrador Judicial Provisório), foi publicado o respetivo despacho no portal CITIUS em 28/07/2017 (vide fls. 29 dos autos).
Por seu turno a lista provisória de créditos foi apresentada pelo AJP em 25/08/2017 (a fls. 74 e segs.) e publicada a 28/08/2017 no portal Citius (fls. 85), suscetível de impugnação no prazo de cinco dias úteis. Findo o prazo de impugnações, dispondo os declarantes do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, com possibilidade de prorrogação por uma só vez e por um mês nos termos do artigo 222º-D nº 5, mediante acordo a ser igualmente publicado no portal Citius.
A 07/11/2017 (fls. 208) foi publicado o acordo com vista à prorrogação por 30 dias do prazo de negociações, na sequência de despacho que deferiu tal prorrogação nos seguintes termos:
“Prorrogo por um mês o período de negociações, mas sem prejuízo do prazo máximo se contar (…) do fim das impugnações” (fls. 207 dos autos).
Em 03/12/2017 o devedor fez juntar aos autos a versão definitiva do “Plano de Recuperação com vista a que o mesmo seja publicado e concedido prazo para votação de dez dias, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 222º-F do CIRE”.
Na sequência deste requerimento, foi ordenada a publicação a que respeita o artigo 222ºF nº 2 do CIRE, publicando-se em 13/12/2017 anúncio do “Acordo de Pagamento” onde se fez constar “Foram concluídas as negociações, com aprovação de acordo de pagamento sem observância do disposto no nº 1 do artigo 222º-F do CIRE, ficando todos os interessados advertidos que tal acordo foi junto ao processo correndo desde a presente publicação o prazo de votação de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano (nº 2 do artº 222º-F do CIRE)” (fls. 224/225).
Em 26/12/2017 o devedor B..., tendo por referência a publicação de 13/12/2017, veio requerer a “prorrogação do prazo para emissão dos correspondentes votos de forma a permitir que todos os credores participem ativamente na decisão a tomar sobre o plano aprovado” convocando para o efeito o facto de tal prazo decorrer “durante a época natalícia, altura em que especialmente às entidades bancárias, como a grande maioria dos credores nestes autos, é difícil comunicar uma intenção de voto, o que foi expressamente comunicado ao devedor por alguns dos seus credores” (vide fls. 238 dos autos).
Por requerimento de 27/12/2017 (fls. 239 a 258), o AJP remeteu aos autos o documento com o resultado da votação nos termos do artigo 222ºF nº 4, de onde consta para além do mais:
“Ata da abertura dos Votos (…)
Ao vigésimo sétimo dia do mês de dezembro do ano de dois mil e dezassete (…)
(…) foram abertos e analisados os votos remetidos pelos credores reclamantes e reconhecidos nos autos, pelo que, tomando em consideração a totalidade dos votos emitidos, aferiu-se que os votos emitidos perfazem 72,90% do total de credores relacionados com direito de voto, representando os votos desfavoráveis 53,846% dos votos emitidos (…).
(…) a proposta de plano de recuperação apresentada pelo devedor não se encontra aprovada por não se ter verificado a maioria de votos emitidos favoravelmente (…)”
Após e sobre o requerimento do devedor foi proferida a seguinte decisão:
“Fls. 238: Indefiro ao requerido por falta de fundamento legal. Não só se deve ter em consideração que a lei não prevê a prorrogação do prazo por se tratar do Natal, como se deve considerar que a natureza especialmente urgente deste tipo de processos não se coaduna com a prorrogação pretendida.
Notifique.”
Seguidamente e tendo por referência o resultado da votação comunicada ao tribunal tendo sido proferida a seguinte decisão:
“Fixo à presente ação o valor de 30.000,01€.
Notifique.
*
Neste processo especial de acordo de pagamentos intentado por B... foi junto o acordo de pagamentos proposto e o resultado da votação, conforme termos dos documentos de fls. 210 a 222 e 240 a 243, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Resulta desses documentos que votaram 72,90% dos credores, dos quais 53,86% desses votaram desfavoravelmente, tendo votado favoravelmente 46,15%, conforme melhor informa o Senhor AJP a fls. 240.
Ora, prevê o artigo 222.º-F, 3, do CIRE, no que para aqui interessa, que se considera aprovado o acordo de pagamentos que:
a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 222.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou
b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
Neste sentido, não estando reunido os quóruns de votação e aprovação exigidos pelo artigo 222.º-F, 3, do CIRE, conclui-se por não ter sido aprovado o plano de recuperação junto.
Desta forma, nos termos do artigo 222.º-G, 1, do CIRE, determino o encerramento do processo, cessando todos os efeitos da apresentação do PER.
As custas correm pelo requerente (artigo 536.º, 3, do CPC).
Notifique.
*
Notifique ainda o Senhor AJP para, em dez dias, se pronunciar nos termos e para os efeitos do artigo 222.º-G, 4, do CIRE.”
*
***
Do assim decidido foi interposto recurso de apelação pelo devedor, oferecendo alegações e formulando as seguintes

Conclusões:
“A. Por força do anúncio publicado no dia 13 de Dezembro de 2016, ao abrigo do disposto no art. 222.º-F, nº2 do CIRE iniciou-se o prazo de 10 (dez) dias, no decurso do qual pode ser solicitada a não homologação do plano
B. Ora tal prazo decorria entre os dias 14 e 26 de Dezembro de 2016, período de férias judiciais.
C. No decurso de tal período o devedor recebeu informações, designadamente da parte de algumas instituições bancárias que eram credores no processo que atento o período natalício seria praticamente impossível conseguir um parecer acerca do sentido de votação antes do término do prazo concedido para o efeito.
D. Por esse motivo, no dia 26 de Dezembro de 2016, o aqui Devedor apresentou requerimento aos autos, no qual requereu o seguinte: Nesse sentido e de forma a que todos possam emitir o seu voto, requer-se a V. Exa. que autorize uma prorrogação do prazo para emissão dos correspondentes votos de forma a permitir que todos os credores participem ativamente na decisão a tomar sobre o plano aprovado
E. Como se pode aferir do requerimento com o resultado da votação junta aos autos pelo Exmo. Sr. Administrador Judicial Provisório, credores representativos de cerca de 30% dos votos não emitiram o seu voto, praticamente todos entidades bancárias, confirmando precisamente o alegado e requerido pelo Devedor no seu requerimento de 26 de Dezembro de 2016.
F. Sobre este requerimento pronunciou-se o Tribunal a quo no sentido de que "a lei não prevê a prorrogação do prazo por se tratar do Natal, como se deve considerar que a natureza especialmente urgente deste tipo de processos não se coaduna com a prorrogação pretendida."
G. Salvo o devido e maior respeito, da mesma forma que a lei não prevê a prorrogação do prazo em causa, também não prevê expressamente a proibição de tal prorrogação.
H. O principal objetivo do processo especial para acordo de pagamento é alcançar a obtenção de um acordo junto dos seus credores com vista à aprovação e homologação de tal acordo/plano.
I. Sendo, de privilegiar tudo o que não contrarie o interesse público, ligado ao funcionamento da economia e à satisfação dos interesses do coletivo de credores, de evitar a liquidação de património e o desaparecimento de agentes económicos.
J. E a verdade é que estes interesses não se mostram acautelados nos presentes autos, considerando a sentença proferida.
K. O que se pretende fundamentalmente é a conclusão do processo com a aprovação, pela maioria dos credores, de um plano que permita a manutenção sustentada do devedor, que se traduza em perdas mais reduzidas para os credores, evitando-se os efeitos sociais e económicos negativos que advêm da insolvência do devedor.
L. Devendo o Tribunal, salvo o reiterado respeito, neste tipo de processo, ter em conta o favor debitoris e a finalidade do processo de recuperação do tecido empresarial, apenas sendo de obstar à violação de normas imperativas e a resultados de todo não autorizados pela lei, o que não era efetivamente o caso.
M. Neste seguimento, não obstante a natureza e a finalidade do processo, acresce que, a interpretação de uma qualquer norma jurídica, seja ela de natureza substantiva ou adjetiva, tem forçosamente que obedecer aos critérios consubstanciados nos três números do art. 9º, do Código Civil, aos quais acrescem, para a construção do conceito “solução mais acertada”, o que não foi respeitado pelo Tribunal a quo (e neste sentido, vide, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/03/2014, tirado do Recurso n.º 3175/13.5TBSXL.L1-1).
N. Além da natureza e dos efeitos do PEAP, este processo, está consagrado em termos muito flexíveis, embora fixando um determinado procedimento e publicidade, bem como prazos curtos, num processo de natureza urgente (art. 222º-A, nº 3, do C.I.R.E.) que se pretende de rápida conclusão, tendo em conta, nomeadamente, os efeitos da sua instauração previstos no art. 222º-E, do C.I.R.E.
O. No caso em concreto, com o devido respeito, não existe qualquer fundamento legal, nem factual, para que não tivesse sido autorizada a prorrogação requerida.
P. Enfatize-se que os prazos de negociação e apresentação do Plano foram inequivocamente cumpridos, pelo que só o facto do prazo de votação ter coincidido com uma época festiva, tradicionalmente de férias para muitos dos intervenientes processuais, é que conduziu ao pedido formulado.
Q. As circunstâncias eram extraordinárias e o deferimento da prorrogação não acarretaria quer para o processo, quer para os seus credores, quaisquer consequências.
R. Não se poderá deixar de ter presente que estamos, perante um PEAP, que se rege pelo disposto nos artigos 222º-A a 222º-I do C.I.R.E, e que constitui um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, sob a orientação e fiscalização do Administrador Judicial Provisório.
S. Neste caso em concreto, acresce ainda que, a recuperação deste devedor, aqui Recorrente está intimamente relacionada com a recuperação da sociedade da qual foi sócio e gerente, atendendo a que o Plano de Recuperação junto aos autos foi negociado e aprovado pelos Credores numa perspetiva conjunta.
T. Aliás e com aplicação ao presente caso embora referindo-se às disposições legais aplicáveis ao processo especial de revitalização, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 10.04.2014, processo nº 8972/13.9T2SNT.L1 – 7, Relator Maria do Rosário Morgado, no qual se refere que: “(…) O prazo previsto no artº 17º - D, nº5, do CIRE não tem natureza perentória. Por conseguinte, prolongando-se as negociações, justificadamente, para além do prazo inicialmente previsto, e alcançado o pretendido acordo com os credores, esta circunstância não constitui fundamento para a recusar a homologação do plano de recuperação aprovado.”
U. Nos presentes autos, como já se referiu, o prazo para as negociações não foi ultrapassado, apenas foi requerida uma prorrogação do prazo de votação, para os todos os Credores votarem o Plano elaborado, que resultou das negociações entre Devedor e seus Credores.
V. Assim, tendo sido concluídas as negociações junto dos Credores dentro do prazo dos três meses estipulados pela lei e um Plano de Recuperação apresentado em no prazo também previsto para o efeito, afigura-se a decisão aqui recorrida contrária ao espírito da lei e aos objetivos do legislador permitir que apenas por razões de ordem formal obstam à sua aceitação e, eventual, homologação.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência ser a decisão recorrida de não prorrogar o prazo de votação e consequente não homologação do Plano seja objeto de revogação.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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Prevenindo o entendimento de a aplicação do artigo 222ºF pressupor sempre a aprovação do acordo de pagamento no decurso do prazo das negociações, entendimento que a ser seguido afastaria a pretensão do recorrente pela não aplicação deste mesmo artigo, foi observado o prévio contraditório, notificando-se as partes para querendo sobre esta questão se pronunciarem.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelos apelantes ser questão a apreciar:
Erro na aplicação do direito por errada interpretação das normas relativas ao prazo de votação de 10 dias a que alude o artigo 222º-F nº 2.
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III- Fundamentação.
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As vicissitudes processuais com relevo para o conhecimento do objeto do recurso, são as que constam do relatório já supra elaborado.
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Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, resulta das mesmas ser fundamento deste o desacordo do recorrente quanto ao decidido pelo tribunal a quo, ao indeferir o pedido de prorrogação do prazo de 10 dias a que alude o artigo 222º F nº2.
Consequentemente tendo sido proferida decisão de não homologação do plano de recuperação junto por não estar reunido os quóruns de votação e aprovação exigidos pelo artigo 222º F nº 3 do CIRE.

Cumpre apreciar.
Conforme no início mencionado, o PEAP é um processo especial para acordo de pagamento destinado a permitir ao devedor, que não sendo uma empresa[1] e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento.
Beneficiando para o efeito do regime jurídico introduzido no CIRE através do DL 79/2017 de 30/06 e regulado nos artigos 222º-A a 222º-J.
Na verdade este PEAP resulta da restrição (introduzida pelo mesmo DL 79/2017) do Processo Especial de Revitalização (PER) aprovado pela Lei 16/2012 às empresas, com a consequente autonomização do regime aplicável, no que ora releva, às pessoas singulares. Pondo assim fim à controvérsia jurisprudencial e doutrinal sobre a aplicação do PER (na redação inicial) às pessoas singulares não titulares de empresas.
Do confronto entre estes dois processos especiais evidencia-se, desde logo, o facto de o PEAP não pressupor a recuperação do devedor, ao contrário do que acontece no PER, o que se compreende atento o facto de os seus destinatários não serem empresas cuja continuidade depende da possibilidade de economicamente serem recuperáveis.
Assim, no PEAP define-se como objeto do mesmo o estabelecimento de negociações com vista a concluir um acordo de pagamento com os credores (222º-A nº 1).
Ao invés, no PER, declara-se ser fim do mesmo permitir à empresa que se encontre em situação economicamente difícil ou em situação de insolvência meramente eminente mas “ainda suscetível de recuperação” estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com eles acordo conducente à sua revitalização[2].
Existindo diferenças de regime estabelecidas entre o atual PER e o PEAP, no confronto entre este último e o regime inicial do PER constata-se corresponder o primeiro (PEAP), na sua quase totalidade, a um decalque das normas daquele inicial PER. Menção que releva, pelos motivos que infra explicitaremos para a interpretação do artigo 222º F convocado pelo recorrente.
No PER, no regime anterior ao DL 79/2017 dispunha o artigo 17º F [este em concreto tendo merecido uma nova redação introduzida pelo DL 26/2015 de 06/02 em alteração à redação inicial introduzida pelo DL 16/2012] sob a epígrafe “Conclusão das negociações com a aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor”:
“1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa da mesma pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal plano de recuperação, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos.
2 - Concluindo-se as negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, sem observância do disposto no número anterior, o devedor remete o plano de recuperação aprovado ao tribunal.
3 - Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o plano de recuperação que:
a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou
b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
4 - A votação efetua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211.º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora um documento com o resultado da votação.
5 - O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º
(…)”.
Ou seja, deste artigo resultava que a aprovação do plano – por unanimidade (nº 1) ou por maioria (nºs 2 e 3) – embora não tivesse prazo definido para o início da votação, tinha de decorrer dentro do prazo das negociações, sendo pelo AJP remetido a tribunal dentro de tal prazo o plano aprovado.
Diversamente, na atual redação do artigo 17º F é definido que até ao último dia do prazo das negociações a empresa deposita no tribunal a versão final do plano de revitalização (nº 1 deste artigo).
Publicada esta versão, pode a mesma ser sujeita a alterações nos termos previstos no nº 2, sendo oportunamente efetuada publicação sobre a apresentação ou não de novo plano.
Correndo desde esta publicação, prazo para a votação do plano – vide nº 3 deste artigo 17ºF o qual dispõe: “3 - Findo o prazo previsto no número anterior é publicado no portal Citius anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano, correndo desde a publicação referida o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações.”
Assim nesta nova versão do PER, distinguiu o legislador duas fases autónomas, uma primeira para a apresentação do plano proposto.
Uma segunda fase para a sua votação – com prazo de dez dias e com data de início definida por referência à publicação do plano “definitivo”.
Analisando agora o regime do PEAP a que se reportam os artigos 222º-A e segs. já supra referenciados, verifica-se no cotejo com a inicial redação do PER uma grande similitude.
No que releva e quanto às negociações e aprovação do acordo de pagamento, seguiu o artigo 222º-F o regime do anterior PER, de apresentação e aprovação do “acordo de pagamento” dentro do prazo das negociações (denominado no PER na redação inicial como “plano de recuperação”)
Assim o define de forma clara o nº 1 deste artigo 222º-F para as situações em que existe aprovação unânime do plano, cuja redação aqui se reproduz:
“1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa do mesmo pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal acordo de pagamento, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos.”
Do cotejo do nº1 deste artigo 222º-F com o nº 1 do artigo 17º-F na sua redação inicial se concluindo pela sua total similitude, apenas com a substituição do “plano de recuperação conducente à revitalização do devedor” por “acordo de pagamento”.
Do nº 2 deste artigo 222º-F, resulta claro que à semelhança do que ocorria no nº 2 do artigo 17º-F (redação inicial), está prevista a possibilidade de aprovação do acordo de pagamento com a conclusão das negociações, sem a unanimidade mencionada no nº 1.
Com efeito, assim dispõe a 1ª parte deste nº 2 “2 - Concluindo-se as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância do disposto no número anterior, o devedor remete-o ao tribunal (…)”.
Temos assim e aliás como seguimento do nº 1, que a aprovação do acordo de pagamento há de ser sujeita a votação até ao fim do prazo das negociações, podendo em função de tal votação merecer aprovação por unanimidade (nº1) ou por maioria (nº 2, computada nos termos indicados no nº 3).
Não obstante, pode ler-se no segundo segmento deste nº 2 o seguinte:
“(…) sendo de imediato publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do plano e correndo desde a publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações.”
Este segundo segmento é uma parcial transposição do regime previsto para o atual PER (nomeadamente do nº 3 do atual 17ºF já supra reproduzido), no qual e conforme já referido se cindiu a fase das negociações e remessa do plano a tribunal, da fase da votação e possibilidade inclusive de alteração ao plano inicialmente apresentado.
Ora, sendo pressuposto da remessa a tribunal do acordo de pagamento (e não plano, conforme consta na letra da lei deste segundo segmento em análise) a prévia sujeição do mesmo a votação, resulta a nosso ver incompreensível e contrário à lógica do regime definido, a menção (no caso de votação sem unanimidade) à publicação do acordo de pagamento (e não plano) para votação no prazo de 10 dias a contar de tal publicação, bem como a possibilidade de em tal prazo poder qualquer interessado solicitar a não homologação desse mesmo acordo de pagamento nos termos e para efeitos do artigo 215º e 216º. Pois que o acordo de pagamento já foi votado.
Havendo apenas, após observância do nº 3 do artigo 222º-F que proceder à sua homologação ou recusar a mesma, nos termos previstos no nº 5 deste mesmo artigo.
Assim entende-se necessária uma interpretação ab-rogante[3] deste artigo 222º-F nº 2 ao abrigo do artigo 9º do CC, por forma a conferir coerência ao regime instituído no PEAP, nomeadamente no que respeita à votação do acordo do pagamento que sempre ocorrerá em momento prévio à sua remessa a tribunal. Implicando que após a remessa cabe apenas ao tribunal verificar os pressupostos de que depende a sua homologação ou recusar a mesma.
Concorda-se, como tal, com Catarina Serra quando, in “Lições de Direito da Insolvência”, edição 2018 Almedina, p. 588, nota 906, afirma ser de interpretar este preceito à luz do anterior PER em que se não definia prazo para a votação, consequentemente à norma atribuindo apenas o sentido de com a conclusão das negociações e votação do acordo, restar ao tribunal proceder à sua homologação ou recusar a mesma[4].

Sendo este o sentido a retirar do normativo em análise e convocando agora as vicissitudes processuais no início elencadas constata-se que:
- o requerimento de 03/12/2017 através do qual o devedor fez juntar aos autos a versão definitiva do “plano de recuperação” [na verdade em causa está um acordo de pagamento] para publicação nos termos do artigo 222º-F nº 2 do CIRE não encontra apoio legal, porquanto e para além da interpretação ab-rogante por nós defendida, claramente resulta do 1º segmento deste nº 2 que o devedor deve remeter ao tribunal não a versão definitiva do acordo apresentado [o depósito da versão final do plano apresentado está previsto, sim, mas para o PER no artigo 17º F nº 1], mas antes o acordo de pagamento aprovado sem unanimidade, após conclusão das negociações;
- ordenada pelo tribunal a quo a publicação a que respeita o artigo 222º F nº 2 [publicação que conforme já referido entendemos não ser de efetuar] verifica-se que da mesma, em 13/12/2017, consta que foram concluídas as negociações com aprovação do acordo de pagamento.
No entanto e conforme de igual modo resulta dos autos, a votação apenas foi verificada em auto lavrado pelo AJP em 27/12/2017 (em cumprimento do disposto no artigo 222º-F nº 4) e de tal auto mais resulta que o acordo não foi aprovado.
Consequentemente a publicação de 13/12/2017, para além de efetuada sem apoio legal para tal, retrata ainda substantivamente uma realidade sem correspondência às vicissitudes processuais;
- quando em 26/12/2017 o devedor vem requerer a prorrogação do prazo para emissão dos votos, fá-lo por referência à publicação de 13/12/2017.
Publicação que padece dos vícios acima já aludidos.
Concluindo, não há lugar à apresentação em tribunal da versão final do acordo que será sujeito a votação findas as negociações, nem a publicação deste mesmo acordo com vista a definir o início de prazo para votação, tal como previsto no atual artigo 17º-F nºs 1 a 3 para o PER.
Implica o exposto que o requerimento do devedor de 26/12/2017 não encontra suporte legal.
Não só por que à data ainda não havia aprovação do plano, mas também por que e uma vez votado o mesmo, não há lugar a publicação para início de (novo) prazo de votação.
A pretensão formulada de prorrogação de prazo em 26/12/2017 e que é objeto deste recurso, tem como pressuposto uma interpretação e aplicação do artigo 222ºF nº 2 que pelos motivos expostos supra está afastada.
Consequentemente e na não aplicação do normativo convocado pelo recorrente para a sua pretensão, impõe-se concluir pela improcedência do recurso apresentado, ainda que por outros fundamentos.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente se mantendo a decisão recorrida, ainda que por fundamentos diversos.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

Porto, 2018-07-11
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
António Eleutério
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[1] Devedor pessoa singular ou pessoa jurídica não titular de empresa, conforme se infere do âmbito de aplicação definido no artigo 1º nº 3 por contraposição ao nº 2 que define o âmbito de aplicação do PER por referência a “empresa”. De igual forma o indicando o artigo 222º-D nº 11, do qual resulta abranger este regime as pessoas coletivas.
[2] Subjacente à criação do PER e conforme se depreende da leitura da Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012 (publicada in DRE 1ªS de 03/02/2012) que invoca ainda o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal, esteve a intenção de criar apoios e incentivos à reestruturação e revitalização do tecido empresarial, promovendo a revitalização de empresas e assegurando a produção de riqueza e a manutenção de postos de trabalho.
[3] Oliveira de Ascensão in O Direito, Introdução e Teoria Geral, 3ª edição Fundação Calouste Gulbenkian (p. 334/335) fala em interpretação ab-rogante lógica quando o intérprete conclui pela impossibilidade prática da solução, hipótese que se pode verificar não só quando uma lei nova remete para um regime que não existe, mas também quando no mesmo diploma há “disposições inconciliáveis”. Distinguindo da interpretação ab-rogante a revogação, na medida em que esta se verifica se ocorrer por diploma publicado posteriormente.
Também Calvão da Silva, in Sinal e Contrato-Promessa, edição de 1988, a p. 87 e analisando a 2ª parte do nº 3 do artigo 442º do CC convoca a interpretação ab-rogante na medida em que este segmento do nº 3 permite na interpretação uma “contradição e plena incongruência com os restantes números do mesmo artigo e regras do incumprimento e resolução”.
[4] Catarina Serra in ob. cit., p. 588, nota 906 afirma «Esta norma é um dos exemplos mais flagrantes dos resultados/acidentes decorrentes da “costura” legislativa (…). Transpondo-se sem grande atenção parte da norma do art. 17ºF nº 3 para a norma do art. 222ºF nº 2, esta além de se referir indevidamente a “plano”, refere-se ao início do prazo de votação quando o pressuposto desta norma é que o acordo de pagamento já tenha sido aprovado. A única possibilidade de atribuir sentido ao preceito é interpretá-lo à luz do regime anterior do PER em que, pura e simplesmente, não se definia prazo para a votação (não havia possibilidade de junção de nova versão de plano nem havia por isso prazo que corresse desde a publicação do anúncio da junção ou não junção) e se entendia que ela tinha lugar no decurso (e até ao final) do prazo previsto para as negociações. A única parte realmente proveitosa do art. 222ºF nº 2 é a determinação de que, concluindo-se as negociações com aprovação de acordo de pagamento sem unanimidade, o devedor remete o acordo ao tribunal para homologação ou recusa dela, sendo pois a única que deve e pode ser aproveitada. Tal como antes, mesmo que a lei o não diga expressamente, deve continuar a admitir-se que, no decurso da votação e até ao final do prazo das negociações, os credores solicitem a não homologação do acordo nos termos e para os efeitos dos arts. 215º e 216º.»