Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
250/18.3GAETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
DEFICIÊNCIA NÃO SUPRÍVEL
OMISSÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
NULIDADE SANÁVEL
PRAZO PARA ARGUIÇÃO
CRIME
NEGLIGÊNCIA
PRESSUPOSTOS
PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"
Nº do Documento: RP20230301250/18.3GAETR.P1
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELOS ASSISTENTES.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – Contrariamente ao que sucedia anteriormente, com a publicação da ei n.º 48/2007, de 29/08, passou a ser obrigatória a documentação de toda a prova produzida oralmente na audiência de julgamento.
II – A deficiente gravação da referida prova, quando não permita ou impossibilite captar o que foi dito pelo declarante, é equiparada à sua total omissão, configurando um vício procedimental cometido durante a audiência, e não o da nulidade da sentença, conforme decorre de jurisprudência fixada nesse sentido.
III – Atento o princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades constante do art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a nulidade prevista no art.º 363.º do CPP também não constitui nulidade insanável, dado não se encontrar elencada no art.º 119.º, nem estar expressamente classificada como tal, pela própria norma, tratando-se, pois, de uma nulidade sanável, que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º do CPP.
IV – Assim sendo, o vício da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência tem, pois, de ser arguido perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, no prazo geral de 10 dias, a partir do momento em que dele se toma conhecimento.
V – O agente apenas será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, concretamente uma ofensa à integridade física ou homicídio negligente que era objectivamente previsível e passível de ser evitada.
VI – Significa isto que, para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a omissão dum dever de cuidado e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à omissão descuidadamente praticada, sendo que, em caso de dúvida, a mesma deverá ser valorada tendo presente o principio “in dubio pro reo”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 250/18.3GAETR.P1


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I - RELATÓRIO
Por sentença de 15 de outubro de 2022 proferida nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular, os arguidos AA e BB foram absolvidos da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 137.º, al. a) do artigo 15.º, e n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, todos do Código Penal.
*
Inconformados, recorreram os assistentes CC e DD.
Terminam a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]:
a) Os Assistentes apresentam o presente recurso da Sentença proferida em 15.09.2022 (cfr. Ref.ª CITIUS 123411946), que absolveu os Arguidos da prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art. 137.º, n.ºs 1 e 2, art. 15.º, al. a) e art. 10.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, do qual haviam sido acusados pelo Ministério Público;
b) Acontece que os Assistentes têm o seu recurso em matéria de facto largamente inviabilizado, em virtude das deficiências que se verificam na gravação das declarações e dos depoimentos prestados em julgamento, que, por não obedecerem ao disposto nos arts. 363.º e 364.º, n.º 1 do CPP, impossibilitam os Assistentes de cumprirem com o preceituado no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP;
c) A arguição do vício da nulidade estipulado nos aludidos arts. 363.º e 364.º, n.º 1 do CPP é perfeitamente tempestiva, pois é arguida no prazo de recurso, já que não é exigível ao recorrente que proceda à audição das gravações no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a gravação quando pode fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso;
d) Neste sentido decidiram, entre outros e a título de exemplo, o Tribunal da Relação de Lisboa no seu Acórdão proferido em 30 de abril de 2019 no âmbito do Processo n.º 824/11.3ECLSB.L1-5, bem como no seu Acórdão proferido em 9 de junho de 2010 no âmbito do Processo n.º 189/06.5JELSB.L1; o Tribunal da Relação de Évora no seu Acórdão proferido em 26 de fevereiro de 2013 no âmbito do Processo n.º 445/12.3GDPTM.E1; o Tribunal da Relação de Coimbra no seu Acórdão proferido em 1 de junho de 2011, no âmbito do Processo n.º 1/06.5IDGRD.C1; e o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão proferido em 3 de novembro de 2010, no âmbito do Processo nº 6751/06.9TDLSB);
e) Os Assistentes consideram incorretamente julgados os seguintes pontos de facto:
(i) O segmento final do facto dado como provado n.º 22: “(…) e mesmo assim iniciaram o seu percurso de automóvel visualizando o arguido, condutor do mesmo, as crianças através do espelho retrovisor até que efetuassem a travessia das vias de trânsito.”;
(ii) O facto provado n.º 30: “A recomendação e treino das regras de segurança foram devidamente acautelados, não ao longo do ano e antes do Acampamento, com atelier respetivo, como também em Campo, antes do raid e durante todo o percurso.”; e
(iii) O facto provado n.º 36: “Os arguidos procederam como referido em 12. após analisarem o fluxo de trânsito e por se tratar de uma reta com boa visibilidade.”;
f) No que respeita ao segmento final do facto provado n.º 22, os Assistentes consideram não resultar da prova produzida em julgamento ter o Arguido visualizado, a partir do seu carro, a travessia das crianças na sequência da qual se verificou o atropelamento da EE;
g) A prova que imporia decisão diversa neste caso corresponde aos depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, que afirmaram em audiência, uns nem sequer terem chegado a ver os Arguidos, escuteiros que acompanhavam a EE, e outros apenas os terem visto bastante tempo depois do atropelamento. Mas grande parte desses depoimentos é incompreensível e/ou inaudível;
h) No tocante a FF, este prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 9 horas e 59 minutos e termo pelas 10 horas e 15 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’01:28 ao minuto ’01:50; do minuto ’01:59 ao minuto ’02:20; do minuto ’02:35 ao minuto ’03:10; do minuto ’04:02 ao minuto ’04:25; do minuto ’05:20 ao minuto ’05:30; do minuto ’06:46 ao minuto ’07:00; e do minuto ’08:05 ao minuto ’08:07;
i) No que respeita a GG, esta prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 10 horas e 56 minutos e termo pelas 11 horas e 15 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’01:37 ao minuto ’01:44; do minuto ’01:50 ao minuto ’02:05; do minuto ’02:18 ao minuto ’02:55;
j) No que toca a HH, este prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 11 horas e 52 minutos e termo pelas 12 horas e 08 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’01:54 ao minuto ’02:00; do minuto ’02:27 ao minuto ’02:38; do minuto ’03:10 ao minuto ’03:15; do minuto ’03:45 ao minuto ’03:50; do minuto ’05:15 ao minuto ’05:22; do minuto ’05:42 ao minuto ’05:50; do minuto ’06:18 ao minuto ’06:27;
k) Na verdade, apenas é possível aos Assistentes indicar as seguintes concretas passagens como prova que imporia decisão diversa da recorrida:
l) Nas suas declarações no início do julgamento, o Arguido referiu o seguinte (cfr. declarações prestadas na sessão de 30.06.2022, com início pelas 10 horas e 10 minutos e fim pelas 11 horas e 07 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122566628):
Do minuto ’07:27 ao minuto ’07:40:
Mma. Juiz a quo: Entretanto, sabe quem é que atravessou primeiro?
Arguido: Quem atravessou primeiro foi o II, juntamente com uma rapariga que na altura não me apercebi que passaram os dois juntos;
m) Veja-se igualmente as declarações do Arguido na última sessão de julgamento decorrida no dia 15.07.2022 (cfr. declarações a que alude a Ata com a Ref.ª CITIUS 122844902):
Do minuto ’02:26 ao minuto ’03:02 da gravação respeitante às declarações do Arguido:
Arguido: Naquela altura eu não sabia quem tinha sido a vítima. Vi a JJ do lado da terra, a chorar.
O senhor que vinha do lado da ria, também a correr disse para baixo «saiam daí, saiam daí». Eu vi a KK a sair e percebi que a vítima teria sido a EE;
n) Veja-se também o excerto do depoimento de FF do dia 14.07.2022, com início pelas 9 horas e 59 minutos e termo pelas 10 horas e 15 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412:
Do minuto ’11:20 ao minuto ’11:35:
Defensora dos Arguidos: Peço-lhe o favor de olhar para trás, para o senhor que está trás e de me dizer se as suas feições, se a sua cara, lhe é familiar?
Testemunha: Não.
Defensora dos Arguidos: Não se recorda?
Testemunha: Não.
o) E atente-se ao seguinte excerto do depoimento prestado por GG no dia 14.07.2022, com início pelas 10 horas e 56 minutos e termo pelas 11 horas e 15 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412:
Do minuto ’04:55 ao minuto ’05:08:
Procurador da República: Não houve em algum momento algum adulto que se intitulasse ser dos escuteiros e que lhe perguntasse por que motivo estaria a levar as crianças para sua casa?
Testemunha: Não, mais tarde chegou um carro.
p) E vejam-se por fim 4 excertos do depoimento prestado por LL no dia 14.07.2022, com início pelas 11 horas e 29 minutos e termo pelas 11 horas e 49 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412:
Do minuto ’05:40 ao minuto ’05:47:
Procurador da República: Quando chegaram, encontrava-se mais algum adulto presente?
Testemunha: Não.
Do minuto ’06:42 ao minuto ’07:14:
Procurador da República: No momento em que a sua mãe levou as crianças para casa, estaria alguém que se intitulasse ou que estivesse vestida com trajo típico dos escuteiros?
Testemunha: Entretanto chegou uma pessoa que nós viemos a perceber que era dos escuteiros, não sei se foi quando a minha mãe levou as crianças ou não. Acho que foi depois, porque nós dissemos que os meninos estavam dentro de casa.
Do minuto ’14:00 ao minuto ’14:20:
Defensora dos Arguidos: Quando estava a EE na estrada ao lado recorda-se se algum senhor estava com ela, ao dela?
Testemunha: Não. depois é que chegou.
Defensora dos Arguidos: O que é isto do depois?
Testemunha: Quando a criança não reagia.
Do minuto ’14:28 ao minuto ’14:56:
Defensora dos Arguidos: A senhora professora chega, com o seu marido, com o seu cunhado. Já lá estava alguma senhora antes?
Testemunha: Não. Nós fomos os primeiros a chegar ao local. O meu marido e o meu cunhado chegaram e eu cheguei a seguir. Eles tiraram a criança de dentro de água, puseram-na na beira da estrada.
q) Portanto, não obstante as provas identificadas que depõem em sentido diverso da recorrida, as mesmas são insuficientes para colocar em causa o segmento final do facto provado n.º 22, razão pela qual se requer a V. Exas. sejam declarados nulos, nos termos e para os efeitos dos arts. 123.º, n.º 2, 363.º, 364.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, todos do CPP, os depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, com as devidas consequências legais que, à luz do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, aplicável ex vi o disposto no art. 4.º do CPP, sempre incluirão a sua repetição;
r) Conforme referido, os Assistentes consideram também que o facto dado como provado n.º 30 foi incorretamente julgado, pese embora também para impugnar devidamente este ponto de facto necessitassem lançar mão de prova cuja gravação não foi devidamente realizada;
s) Estamos a referir-nos às declarações do Assistente CC (que referiu não ter conhecimento de terem sido transmitidas à EE quaisquer regras de segurança para atravessar estradas nacionais), que prestou declarações em audiência no dia 30.06.2022, com início pelas 11 horas e 33 minutos e termo pelas 11 horas e 52 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122566628, sendo inaudível o seguinte segmento: do minuto ’02:13 ao minuto ’02:20;
t) Referimo-nos também às declarações da Assistente DD (que referiu não ter também ela conhecimento de terem sido transmitidas à EE quaisquer regras de segurança para atravessar estradas nacionais), prestadas em audiência no dia 30.06.2022, com início pelas 11 horas e 55 minutos e termo pelas 12 horas e 09 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122566628, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’02:55 ao minuto ’03:01; do minuto ’05:56 ao minuto 06:03; do minuto ’06:21 ao minuto 06:25; do minuto ’08:15 ao minuto 08:23; do minuto ’10:40 ao minuto ’10:47; do minuto ’12:50 ao minuto ‘12:55; do minuto ’13:10 ao minuto ’13:24; do minuto ‘14:00 ao minuto ‘14:07; do minuto ’15:25 ao minuto ’15:30; do minuto ’16:23 ao minuto ’16:28; e do minuto ’18:03 ao minuto ‘18:10;
u) Referimo-nos também à testemunha MM (à data dos factos,Chefe do Agrupamento frequentado pela EE), que prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 12 horas e 16 minutos e termo pelas 12 horas e 48 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’00:40 ao minuto ’00:50; e do minuto ’04:10 ao minuto 04:33;
v) E referimo-nos também à testemunha NN (dirigente do Agrupamento de escuteiros ...), que prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 13 horas e 51 minutos e termo pelas 14 horas e 26 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’11:50 ao minuto ’11:57; e do minuto ‘14:22 ao minuto ’14:24;
w) E referimo-nos ainda à testemunha OO (dirigente do Agrupamento de escuteiros ...), que prestou depoimento em audiência no dia 14.07.2022, com início pelas 13 horas e 52 minutos e termo pelas 15 horas e 21 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, sendo inaudíveis os seguintes segmentos: do minuto ’08:10 ao minuto ’08:26; do minuto ’19:28 ao minuto ’19:33; do minuto ’24:08 ao minuto ’24:13; e do minuto ‘24:25 ao minuto ‘24:31;
x) Nenhuma destas últimas três testemunhas, todas elas ligadas ao Corpo Nacional de Escutas, souberam explicar em que consistiam os tais «ateliers de segurança» a que é feita referência no facto considerado provado n.º 30 e que aqui se visa impugnar, mas os Assistentes não podem prevalecer-se delas, em virtude da sua ininteligibilidade;
y) Na verdade, para impugnar o facto considerado provado n.º 30, os Assistentes dispõem apenas das provas seguintes:
z) Do depoimento de II (cfr. depoimento prestado na sessão de 30.06.2022, com início pelas 14 horas e 11 minutos e fim pelas 14 horas e 39 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122566628):
Do minuto ‘07:37 ao minuto ’07:41:
Procurador da República: A pergunta que eu lhe coloco é se naquele local vos foram dadas algumas instruções. E disse que não, é isso?
Testemunha: Não.
aa) Do depoimento de PP, dirigente do Agrupamento de escuteiros ... (cfr. depoimento prestado na sessão de 14.07.2022, com início pelas 15 horas e 22 minutos e fim pelas 15 horas e 53 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412):
Do minuto ’22:30 ao minuto ’23:08:
Procurador da República: É ensinado às crianças que devem atravessar a faixa de rodagem inseridas em grupos de quatro, duas a duas ou todas ao mesmo tempo?
Testemunha: Eu acho que isso depende da situação em que se encontram, mas é assim, por norma.
Procurador da República: [impercetível] Estou a perguntar se nos ateliers de segurança que são dados às crianças, se lhes é ensinado como devem atravessar quando estão em grupos, todos ao mesmo tempo, ou atravessam dois e depois atravessam mais dois?
Testemunha: Atravessam conforme esteja a situação a decorrer.
Do minuto ’25:48 ao minuto ’26:11:
Procurador da República: esteve presente em algum atelier de segurança?
Testemunha: Sim, estive mas, não sei.
Procurador da República: E é, o que me está a transmitir foi o que transmitiram a uma criança de dez anos?
Testemunha: Não me lembro agora ao certo. Não me recordo ao certo o que é que damos no atelier.
bb) Do depoimento de MM (cfr. depoimento prestado na sessão de 14.07.2022, com início pelas 12 horas e 16 minutos e fim pelas 12 horas e 48 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412):
Do minuto ’17:05 ao minuto ’17:33
Mandatário dos Assistentes: Qual é a forma correta de atravessar uma estrada nacional? De uma criança atravessar uma estrada nacional?
Testemunha: Olhar para ambos os lados, ver se vêm carros.
Mandatário dos Assistentes: Então é igual aos adultos? É igual aos adultos, olhar para um lado, olhar para o outro e seguir em frente, é isso? Testemunha: Acaba por ser igual aos adultos.
cc) E do depoimento de NN (cfr. depoimento prestado na sessão de 14.07.2022, com início pelas 13 horas e 51 minutos e fim pelas 14 horas e 26 minutos, conforme Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412):
Do minuto ’25:00 ao minuto ’25:34:
Mandatário dos Assistentes: A Senhora referiu, em três ou quatro ocasiões, “regras para atravessar a estrada”. Que regras são essas?
Testemunha: Olhar para os dois sentidos de trânsito, ver se não estão a aproximar-se viaturas, fazer a travessia o mais rápido possível, não parar a meio do percurso.
Mandatário dos Assistentes: Portanto, são iguais às para os adultos?
Testemunha: São iguais, sim.
dd) Consideram os Assistentes que da prova devidamente identificada resulta não ter sido prestada qualquer formação que dotasse a EE de capacidades para atravessar sem adultos uma estrada nacional cujo limite máximo de velocidade é de 70 km/h, razão pela qual deverá o facto considerado provado n.º 30 passar a integrar a lista de factos não provados, o que se requer seja declarado por V. Exas., com as devidas consequências legais;
ee) Caso V. Exas. assim não entendam, e por se considerar que os Assistentes não dispõem da gravação da totalidade dos depoimentos dos Assistentes e de todas as testemunhas identificadas de forma a lhes ser possível colocar em causa o facto considerado provado n.º 30, requer-se a V. Exas. sejam declarados nulos, nos termos e para os efeitos dos arts. 123.º, n.º 2, 363.º, 364.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, todos do CPP, as declarações prestadas por ambos os Assistentes e os depoimentos das testemunhas MM, NN e OO, com as devidas consequências legais que, à luz do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, aplicável ex vi o disposto no art. 4.º do CPP, sempre incluirão a sua repetição;
ff) Por fim, os Assistentes consideram também que o facto considerado provado n.º 36 foi incorretamente julgado, mas estão novamente impossibilitados de o impugnar devidamente, em virtude de os depoimentos das três testemunhas que discorreram sobre a visibilidade daquela zona da estrada (QQ, RR e SS) serem, em grande parte, ininteligíveis;
gg) Quanto ao depoimento prestado por QQ na sessão de julgamento de 14.07.2022, com início pelas 9 horas e 21 minutos e termo pelas 9 horas e 35 minutos, cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, verificamos que da gravação do mesmo não é possível escutar e/ou compreender praticamente nada das suas respostas;
hh) Do depoimento de SS na sessão de julgamento de 14.07.2022, com início pelas 9 horas e 36 minutos e termo pelas 9 horas e 57 minutos, cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, não é possível escutar as seguintes passagens: do minuto ’03:30 ao minuto ’03:37; do minuto ’05:55 ao minuto ’06:05; e do minuto ’07:15;
ii) Do depoimento de RR na sessão de julgamento de 14.07.2022, com início pelas 10 horas e 19 minutos e termo pelas 10 horas e 55 minutos, cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412, não é possível escutar as seguintes passagens: do minuto ’05:10 ao minuto ’05:15; do minuto ’06:05 ao minuto ’06:12; do minuto ’07:00 ao minuto ’07:09; do minuto ’12:30 ao minuto ’12:50; do minuto ’14:00 ao minuto ’14:14; do minuto ’16:30 ao minuto ’16:46; do minuto ’18:38 ao minuto ’18:45; do minuto ’10:02 ao minuto ’19:10; do minuto ’21:55 ao minuto ’22:10; do minuto ’22:54 ao minuto ’23:05; do minuto ’23:33 ao minuto ’23:45; do minuto ’24:29 ao minuto ’24:40; do minuto ’31:31 ao minuto ’31:41; e do minuto ’33:02 ao minuto ’33:10;
jj) Aos Assistentes é efetivamente apenas possível identificar a prova seguinte, para tentar impugnar o facto considerado provado n.º 36 – aquando do seu depoimento, RR afirmou o seguinte (cfr. depoimento prestado na sessão de 14.07.2022, com início pelas 10 horas e 19 minutos e termo pelas 10 horas e 55 minutos, cfr. Ata com a Ref.ª CITIUS 122742412):
Do minuto ’06:34 ao minuto ’06:49:
Procurador da República: E não as crianças por que motivo?
Testemunha: Porque o carro abaixo, o carro abaixo [impercetível] e eles estavam por trás do carro.
Detrás de, quando passa o carro e eles passam.
kk) Sendo manifesta a impossibilidade de impugnar o aludido facto considerado provado n.º 36, requer-se a V. Exa. sejam declarados nulos nos termos e para os efeitos dos arts. 123.º, n.º 2, 363.º, 364.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, todos do CPP, os depoimentos das testemunhas QQ, RR e SS, com as devidas consequências legais que, à luz do disposto no art. 9.º do Decreto- Lei n.º 39/95,de 15 de Fevereiro,aplicável ex vi o disposto no art.4.º do CPP, sempre incluirão a sua repetição;
ll) Sem prejuízo do acabado de expor, o recurso dos Assistentes versa também matéria de direito, pois consideram que a interpretação correta do disposto nos arts. 137.º, n.ºs 1 e 2, 15.º, al. a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, impõe a condenação dos Arguidos pela prática do crime de homicídio por negligência pelo qual tinham sido acusados, em face dos factos considerados provados na Sentença a quo, especialmente os factos n.º 12, n.º 21 e n.º 22 (excluindo o segmento final deste último facto, que os Assistentes pretendem impugnar);
mm) Com efeito, mal andou o Tribunal recorrido nas conclusões que extraiu acerca das consequências das atividades perigosas e do princípio da confiança como limites à negligência;
nn) Sendo a circulação rodoviária uma atividade perigosa, isso implica um reforço da prudência e do cuidado, não uma conformação com os riscos acrescidos para a vida que a mesma representa;
oo) Quando os Arguidos levam a EE, que tinha 10 anos e estava em processo de crescimento, para uma estrada nacional sem passadeiras cujo limite de velocidade é de 70 km/h, estão cientes de que a estão a colocar numa situação de maior perigo do que se estivesse a realizar uma atividade numa zona, por exemplo, com passadeiras, ou num descampado onde não circulam carros;
pp) Assim, impunha-se aos Arguidos que tivessem adotado medidas de segurança capazes de garantir que a EE atravessaria a estrada em segurança, sendo que a conduta levada a cabo pelos Arguidos e descrita nos factos considerados provados n.ºs 12 e 22 foi, considerando a atividade perigosa que ela realizava e ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, manifestamente insuficiente;
qq) No que respeita ao princípio da confiança, também andou mal o Tribunal recorrido, pois o agente só estará livre de responsabilidades se tiver efetivamente cumprido o dever de cuidado a que está adstrito;
rr) Efetivamente, é verdade que os Arguidos podiam confiar que os condutores que circulavam na estrada nacional em causa o fariam cumprindo as regras rodoviárias, mas esses condutores também tinham o direito de confiar que os responsáveis por crianças de 10 anos como a EE não as deixariam à sua sorte à beira de uma estrada nacional para a atravessarem;
ss) Com efeito, a interpretação correta dos arts. 137.º, n.ºs 1 e 2, 15.º, al. a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, leva-nosa concluir, ao contrário do plasmado na Sentença de que ora se recorre, que os Arguidos agiram em violação do princípio da confiança, praticando um crime de homicídio por negligência por omissão, pois violaram um dever objetivo de cuidado que foi causa direta da produção do resultado típico morte e, podendo agir de outra maneira, adotando o comportamento necessário a evitar aquele resultado, os Arguidos, de forma livre e consciente, optaram por nada fazer, confiando que nada de mal aconteceria;
tt) Assim, o Tribunal a quo errou na interpretação que fez do art. 137.º, n.ºs 1 e 2, art. 15.º, al. a) e art. 10.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, nos termos expostos, cuja correta interpretação e aplicação obriga, em face da factualidade dada como provada, à condenação dos Arguidos pela prática de um crime de homicídio por negligência, o que se requer seja declarado por V. Exas., com as devidas consequências legais.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO,REQUER-SE:
a) Sejam declaradas nulas as declarações e os depoimentos acima identificadas e nos termos supra expostos, com as devidas consequências legais;
b) Sejam os Arguidos condenados pela prática de um crime de homicídio por negligência, nos termos supra expostos e com as devidas consequências legais.
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O Ministério Público apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se a sentença recorrida.
Sem formular conclusões, alega em síntese que:
a) No que respeita à invocada nulidade - na sequência da já assumida falta de qualidade/deficiência da gravação das sessões de audiência de discussão e julgamento que, em diversos momentos, implica efectivamente a imperceptibilidade da prova - concede-se que a mesma acarreta a verificação de uma nulidade processual. Não obstante, somos a entender que não estamos na presença de uma qualquer nulidade insanável - cujo elenco se encontra taxativamente previsto no artigo 119.° do Código de Processo Penal sendo, nessa medida, o seu conhecimento dependente de arguição, arguição essa que, em nosso entendimento, é intempestiva.
b) No que respeita à impugnação da matéria de facto, importa ter presente em matéria de apreciação da prova produzida em audiência de julgamento e da documental constante dos autos, o disposto no artigo 127.°, do Código de Processo Penal, o qual estatui que a prova é valorada e apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, o que, todavia, não deve ser confundido com o livre arbítrio ou discricionariedade.
c) Da análise da motivação, podemos concluir que os considerandos explanados pelo Recorrente sobre o que deveria ou não ter sido dado como provado, fundam-se na sua própria e compreensivelmente interessada valoração das provas produzidas, não podendo proceder em detrimento da convicção crítica, isenta, imparcial e objectiva que entendemos ter presidido à apreciação e valoração da prova feita pelo Tribunal.
d) No que concerne à matéria de facto que o Recorrente impugna, parece-nos que foi devidamente alicerçada a formação da convicção do Tribunal, não ocorrendo qualquer erro na apreciação da prova.
e) Já no que respeita à matéria de direito, julgamos igualmente que nenhuma censura nos merece a apreciação feita pelo Douto Tribunal. Na verdade, aderindo à fundamentação aduzida, entendemos que atento o circunstancialismo em que ocorreu o atropelamento e, com particular ênfase, a actividade que se encontrava em execução - que de forma alguma podem ser desconsiderados na apreciação global da situação subjudice e, em particular, na decisão sobre a existência ou não de uma violação de do dever de cuidado que inequivocamente recaía sobre os arguidos - andou bem o Douto Tribunal ao decidir pela inaptidão da omissão imputada para evitar a lesão que afinal se veio a verificar e pela imprevisibilidade de tal resultado para os arguidos (bem como para qualquer um colocado naquelas mesmas condições).
f) Em face do exposto e num balanço conclusivo, somos a entender nenhum reparo há a fazer quanto à matéria de facto e de direito dada como provada na sentença e bem assim quanto às consequências jurídicas daí extraídas, com a evidência de que a motivação da sentença assenta num juízo de convicção diferente do formulado e defendido pelos Recorrentes quanto à prova produzida em audiência de julgamento. E tal firmação de convicção pelo julgador, recorde-se, é livre, nos termos do disposto no artigo 127.° do Código de Processo Penal, contanto que se mostre, como se mostra, devidamente fundamentada.
g) Assim, consideramos que a sentença recorrida não merece qualquer censura, mostrando-se devidamente fundamentada, justa e adequada, motivo pelo qual deverá a mesma ser mantida integralmente.
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Os arguidos também apresentaram resposta ao recurso interposto pelos assistentes, pugnando no sentido de que dever ser negado provimento ao mesmo e confirmada a sentença absolutória
Terminam com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. A Meritíssima Senhora Dra. Juiz titular do processo conduziu as várias sessões de julgamento de forma correcta e adequada.
2. Não foi suscitada a recusa da Meritíssima Senhora Dra. Juiz titular do processo, pelo que as suas decisões são plenamente válidas.
3. Todas as considerações dos Assistentes sobre a actuação da Meritíssima Senhora Dra. Juiz titular do processo devem ser desconsideradas na apreciação do presente recurso.
4. As gravações das declarações e depoimentos não são totalmente inaudíveis e/ou ininteligíveis.
5. O mero uso de um programa de melhoramento do aúdio permite a audição normal de todas as declarações e depoimentos.
6. Não existe assim, qualquer deficiência das gravações.
7. A nulidade invocada deve, assim, considerar-se não existente.
8. A matéria de facto dada como provada pela Meritíssima Senhora Dra. Juiz titular do processo foi alicerçada na conjugação das declarações, depoimentos e prova documental junta aos autos.
9. Os princípios da livre apreciação da prova, da imediação da prova e da apreciação pelas regras da experiência foram tidos em conta e não podia ter havido decisão diversa da tida pela douta sentença recorrida, em relação à matéria de facto.
10. O Direito foi correctamente aplicado a toda a prova dada como provada e não provada.
11. Impunha-se, por não estarem preenchidos todos os elementos do tipo de crime “Homicídio por Negligência”, a absolvição dos arguidos, como (e bem!) aconteceu.
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O Ministério Público junto desta Relação emitiu exaustivo parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, reponderam os assistentes, no sentido da revogação da sentença e da condenação dos arguidos.
Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que os recorrentes extraem da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando as conclusões que constam do recurso interposto pelos assistentes, as questões a decidir são as seguintes:
- Nulidade das declarações prestadas na audiência de julgamento por deficiente gravação.
- Impugnação da decisão de facto;
- Enquadramento jurídico dos factos.
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Factos relevantes provados e não provados na sentença recorrida [transcrição]:
Factos provados:
1. No dia 30.07.2018, o Agrupamento de escuteiros ..., encontrava-se acampado no Campo ..., sito Av...., em S. Jacinto.
2. Os arguidos AA e BB, faziam parte da equipa de Animação responsável pela segurança e vigilância de um grupo de 21 escuteiros, de idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos, subdivididos em 4 subgrupos/ Patrulhas.
3. Um desses subgrupos era constituído pelas crianças KK, nascida .../.../2006, II, nascido a .../.../2004, JJ, nascida a .../.../2004, e a vítima EE, nascida .../.../2007.
4. Pelas 15h00 do dia 30.07.2018, o referido subgrupo regressava das atividades que decorreram na ... para o Campo ....
5. Para o efeito, caminhavam sozinhos na berma da Estrada Nacional (EN) 307, no sentido Torreira para São Jacinto, em sentido oposto ao trânsito dos veículos e em fila indiana.
6. JJ seguia na frente do grupo e II fechava o mesmo, na qualidade de guia e sub guia do grupo, respetivamente.
7. Apenas JJ e II faziam uso de colete refletor.
8. Atento o sentido de marcha do referido subgrupo de escuteiros a Ria de Aveiro situava-se à esquerda destes.
9. Por seu turno, os arguidos seguiam no veículo automóvel de apoio aos escuteiros.
10. Cerca das 17h15, os arguidos estacionaram o veículo em que seguiam num parque em terra, localizado ao Km 49.750 da EN 307, no sentido Torreira para S. Jacinto, ou seja, do lado oposto ao sentido de marcha do referido subgrupo de escuteiros, por forma a medirem os níveis de glicémia de JJ.
11. Por sua vez, o referido subgrupo de escuteiros atravessou as vias de trânsito, para ali se dirigirem e onde permaneceram com os arguidos sensivelmente 45 minutos.
12. Após os escuteiros se terem alimentado e descansado, isto pelas 18h00, os arguidos prosseguiram viagem no referido veículo em direção a S. Jacinto, sem antes terem assegurado que o subgrupo de escuteiros atravessara as vias de trânsito e bem assim retomara o sentido de marcha pela berma do lado da Ria de Aveiro.
13. Simultaneamente o subgrupo de escuteiros posicionou-se na berma da EN, junto da linha longitudinal contínua delimitadora da faixa de rodagem e, logo após a passagem do veículo conduzido pela testemunha SS, que circulava no sentido Torreira/S. Jacinto, iniciaram a travessia das vias de trânsito pela seguinte ordem.
14. As crianças II e KK foram as primeiras a iniciar a travessia da via ao mesmo tempo, e na perpendicular em direção à berma da Ria de Aveiro.
15. De seguida, a criança a vítima e a JJ iniciaram a travessia, na perpendicular.
16. No momento em que se aproximam do eixo da via, II que já se encontrava na berma do lado oposto, aos gritos disse para pararem, pois surgia um veículo naquela faixa de rodagem.
17. JJ parou no eixo da via e recuou.
18. A vítima, pelo contrário, avançou e entrou na faixa de rodagem onde circulava o veículo ..-..-NS, conduzido pela testemunha RR, no sentido S. Jacinto/Torreira.
19. A vítima foi colhida pela parte frontal direita do veículo NS e, ato contínuo, tombou sobre o capô daquele, colidindo de seguida no vidro para-brisas e após é projetada na diagonal para o lado direito, acabando por cair na Ria de Aveiro.
20. Por consequência direta e necessária das lesões traumáticas dos membros inferiores e encefalopatia hipóxico-isquémica, complicadas de doença alveolar aguda difusa em fase exsudativa, causadas exclusivamente pelo atropelamento, a vítima pereceu na Unidade dos Cuidados Intensivos do Hospital Pediátrico de Coimbra às 21h50 do dia 31.07.2018.
21. Naquelas circunstâncias cabia, em primeira linha, aos arguidos a responsabilidade pela vigilância e segurança daquele grupo de crianças.
22. Os arguidos tinham pleno conhecimento das características da via, nomeadamente que a EN 307, naquele local é constituída por uma reta sem qualquer travessia para peões e onde a velocidade máxima permitida é de 70 km/h, bem como que as crianças tinham necessariamente que atravessar as vias de trânsito para retomarem a caminhada na berma oposta e mesmo assim iniciaram o seu percurso de automóvel visualizando o arguido, condutor do mesmo, as crianças através do espelho retrovisor até que efectuassem a travessia das vias de trânsito.
MAIS SE PROVOU QUE:
(da contestação)
23. Ambos os arguidos são tidos como pessoas de bem, inseridos social, familiar e profissionalmente, respeitados e estimados por todos quantos consigo interagem.
24. O arguido AA é professor de Educação Moral e Religiosa Católica e é ainda Dirigente do Corpo Nacional de Escutas desde o ano 2001.
25. A arguida BB é profissional independente na área dos Espetáculos e iniciou funções de Dirigente do Corpo Nacional de Escutas no ano 2017, que cessou após o sinistro em causa nos autos.
26. Além do referido em 2. faziam parte da Equipa de Animação, num total de 5 elementos, ainda PP, TT e UU. Sendo na altura o arguido Chefe de Unidade e a arguida Animadora da Expedição.
27. O Acampamento referido em 1. tratava-se de uma actividade que estava inserida num Acampamento de Agrupamento – o Agrupamento ..., do Corpo Nacional de Escutas – e que era já habitual na planificação de actividades do Agrupamento e comunicado a todos os encarregados de educação dos elementos.
28. A referida equipa de Animação teve em conta na preparação da actividade a segurança de todo o grupo de exploradores, incluindo as necessidades particulares de cada um dos elementos.
29. No dia 30.07.2018, as 4 Patrulhas referidas em 2., como planeado, estavam a fazer uma caminhada – raid entre São Jacinto e a Torreira. Tratou-se de um raid com Postos, almoço num jardim na Torreira, jogo de vila, acção ambiental de limpeza da praia e regresso ao Campo ....
30. A recomendação e treino das regras de segurança foram devidamente acautelados, não só ao longo do ano e antes do Acampamento, com atelier respectivo, como também em Campo, antes do raid e durante todo o percurso.
31. Os Postos foram assegurados por Animadores, que controlavam e monitorizavam a progressão de caminhada dos elementos, o seu estado físico e anímico e serviam como tempo de repouso, fazendo os elementos jogos e actividades de testagem de conhecimentos e técnicas escutistas.
32. Após o almoço, as Patrulhas regressaram a Campo, sendo a patrulha da EE (patrulha ...) a última a sair da Torreira, por estar muito calor e por ter um elemento – JJ –, a quem tinha sido diagnosticado Diabetes tipo 1, há menos de um mês e, assim, além de os Animadores poderem medir a sua glicémia antes de partir, poderem ir com um clima mais fresco.
33. A paragem referida em 10. visava cumprir com as informações recolhidas junto da médica da JJ para esta mesma actividade (raid).
34. A escolha para a paragem no local referido em 10. foi por, no sentido Torreira-São Jacinto, não haver locais do lado esquerdo para estacionar. Assim, os arguidos estacionaram o carro de apoio do lado direito da EN327, no sentido Torreira-São Jacinto, escolhendo um local com boa visibilidade e que fosse seguro.
35. Havia ao longo da tarde, e no sentido de marcha de onde vinha o condutor do veículo NS (São Jacinto - Torreira) grupos de escuteiros a caminhar pela berma da EN 327 no sentido Torreira - São Jacinto.
36. Os arguidos procederam como referido em 12. após analisarem o fluxo de trânsito e por se tratar de uma reta com boa visibilidade.
Factos não provados:
a) que aquando do referido em 14. e 15. as crianças o fizeram a correr;
b) que além do referido em 21., o atropelamento seguido da morte da vítima, adveio da imprevidência, falta de cuidado, e de zelo por parte dos arguidos;
c) que além do referido em 22., os arguidos não tomaram as devidas providências de segurança para que as crianças efetuassem a travessia das vias de trânsito em segurança, deixando-as entregues à sua sorte.
d) que os arguidos não procederam com o zelo que segundo as regras da experiência se impunha e a que estavam adstritos, omitindo ações e cuidados que eram capazes de adotar e que deveriam ter adotado para evitar o resultado que previram e que era previsível e evitável, mas com o qual não se conformaram.
e) que sabiam os arguidos que ao agir da forma descrita, o que o fizeram de forma livre e consciente, poderia resultar a morte da vítima, mas confiaram que as mesmas não se verificariam.
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Quanto à motivação, na sentença consta a seguinte fundamentação da decisão de facto (transcrição):
A convicção do Tribunal para a matéria de facto dada como provada, resultou da análise crítica das declarações dos arguidos e dos Assistentes, dos depoimentos das testemunhas e ainda da sua conjugação com a prova documental e pericial constante dos autos, tudo analisado à luz das mais elementares regras de experiência comum. Tendo presente que a motivação não visa a transcrição dos depoimentos das testemunhas, para isso existe aliás a gravação, importa debruçarmo-nos sobre a análise crítica da prova produzida e conclusões da mesma extraída.
Desde logo quanto ao descrito em 1.-13. e 23.-33. e 35. tal resultou das declarações dos arguidos e bem assim da maioria da prova testemunhal produzida, os quais na sua globalidade foram unívocas e confirmaram de forma transversal o descrito.
Quanto ao mais, na verdade, das declarações dos arguidos e da generalidade da prova testemunhal e documental produzida, analisada igualmente à luz das mais elementares regras de experiência comum, resultou que efetivamente a actividade escutista visa acompanhar e promover o crescimento e desenvolvimento saudável das crianças e jovens ao longo da sua vida nas suas dimensões, quer físicas e afectivas quer intelectuais e sociais, em termos individuais e colectivos, estimulando a sua capacidade de cooperação, autonomia, liderança, aprendizagem com e ao próximo através das diversas actividades desenvolvidas no seu agrupamento ao longo de todo o ano escutista e não apenas concentrado num único momento.
Relativamente à paragem e razões da mesma no local onde se veio a dar o sinistro, aqui igualmente tal resultou quer das declarações dos arguidos quer da prova testemunhal produzida, nomeadamente dos depoimentos de II, KK e JJ que as razões da mesma se prenderam com a necessidade de ser medida a glicémia a JJ, seguindo as recomendações da médica da mesma, atento o recente diagnóstico daquela de diabetes e a necessidade de se acompanhar os seus níveis em tal percurso, testando o impacto do esforço físico, tendo inclusive previamente a própria arguida BB acompanhado a menor JJ e sua mãe a uma consulta com a médica onde lhe foram explicados todos os cuidados a ter atentas as actividades programada para o Acampamento em causa.
Depois, quanto à escolha concreta do local, igualmente tal resultou que tal foi determinado exclusivamente pelos arguidos. É certo que o Acampamento e actividades nele desenvolvidas foram sendo planeadas ao longo do ano, tratando-se esta de uma decisão colectiva dos membros do agrupamento, conforme referido pelos arguidos e também pela prova testemunhal e documental junta. Mas já quanto à paragem no local onde se veio a dar o sinistro, a mesma foi determinada em função da progressão do grupo na caminhada e no período temporal decorrido desde a última medição de glicémia, sopesando ainda as condições de segurança que o percurso apresentava. Ora, aqui resultou desde logo que a EN 307, no sentido Torreira para S. Jacinto, não apresentava do lado esquerdo berma suficiente para a paragem da viatura e do grupo em causa, permitindo apenas que os mesmos efectuassem o percurso a pé em fila indiana. Já no mesmo sentido mas do lado direito apresentava pontualmente reentrâncias em terra batida que permitiam a paragem de veículos, sendo que os arguidos tiveram ainda em conta na escolha do local a visibilidade do mesmo para permitir a travessia de um lado para o outro das faixas de rodagem.
Igualmente temos que as características de visibilidade da via em causa, quer num sentido quer noutro, para quem se encontre na recta daquela reentrância de terra batida, resulta aliás inequívoca das imagens juntas aos autos do local e constantes dos autos.
Depois, é certo que igualmente os arguidos, após aquele grupo de escuteiros se ter alimentado e descansado e estabilizados os níveis de glicémia da menor JJ, arrancaram no interior do seu veículo enquanto os menores se preparavam para atravessar a via e assim retomar o sentido de marcha Torreira-S. Jacinto, percurso que efectuavam a pé.
Dos depoimentos dos menores e da testemunha SS (que tripulava um veículo automóvel sentido Torreira-S. Jacinto) foi referido que a presença dos menores junto à berma para iniciar a travessia era bem visível para todos quantos ali tripulassem, o que inclusive encontra respaldo nas imagens juntas aos autos do local. Aliás, note-se que no sentido Torreira-S. Jacinto a estrada apresenta uma curva fechada à direita, mas depois apresenta-se em patamar e daí em linha reta com plena visibilidade para quem ali circula (cfr. relatório fotográfico fls. 280 ss, concretamente fotos 3, 4, 8, 15). Inversamente, no sentido contrário, a estrada apresenta uma curva à direita menos acentuada e que inclusive permite a quem ali circula no sentido S. Jacinto-Torreira ainda antes da curva alguma visibilidade para as hemifaixas de rodagem e bermas que se apresentam em patamar após o final da curva e onde após completar a curva se tem em linha reta plena visibilidade para quem ali circula nas hemifaixas de rodagem e nas bermas (cfr. relatório fotográfico fls. 280 ss, concretamente fotos 3, 5, 6, 10, 16, 17; bem como fotos 4 e 5 de fls. 472).
Aqui chegados temos que o local onde os menores ficaram para atravessar era dotado de boas condições de visibilidade, bem como tratava-se de local com reduzida intensidade de trânsito, conforme referido pelas testemunhas e pelos arguidos. Acresce que quer pelos arguidos quer pelas testemunhas inquiridas que integravam o agrupamento de escuteiros em causa (uns como escuteiros outros como monitores e dirigentes) foi referido que ao longo de todo o ano são discutidas e relembradas as regras de circulação na via pública, quer em contexto de ateliers quer em contexto de conversa em actividades, descrevendo ainda como são os grupos divididos, regras de circulação dos grupos com uso de colete por parte do guia e sub-guia, seguindo assim as regras de segurança que eram treinadas e praticadas ao longo do ano. Depois, igualmente pelo menor II foi assegurado que iniciaram a travessia apenas após se ter certificado de que era possível fazê-lo em segurança, aliás vendo o veículo da testemunha SS que vinha da Torreira para S. Jacinto não atravessaram, fazendo sinal para que continuasse, o que esta fez e apenas após iniciou a travessia por, tendo visibilidade para tal, nada o impedir e referindo que apenas quando já ia a meio da travessia viu que o carro branco da curva (sentido S. Jacinto-Torreira) vinha muito rápido e sem abrandar, momento em que gritou para pararem.
Igualmente a testemunha SS (condutora do veículo no sentido Torreira-S.Jacinto) refere que estaria a 100 metros de distância quando vê os menores, que não precisou de travar porque eles abrandaram ao verem-na retrocedendo no que lhe pareceu a intenção de atravessarem ao verem o seu veículo. Denotando pois, conforme resultou do depoimento da testemunha II que os mesmos estavam atentos à circulação do trânsito no local onde pretendiam fazer a travessia.
Finalmente, a testemunha RR, condutor do veículo NS, que circulava no sentido S. Jacinto- Torreira, prestou depoimento algo confuso, referindo que o evento é para si traumático, o que diga-se se mostra compreensível, e não se recordar de tudo o que efetivamente se passou. Descreve que não viu ninguém para atravessar, mas que apenas se apercebeu da presença de peões que saíram de trás dum carro que vinha de frente para si, apenas no exacto momento em que se cruza com esse carro, o que diga-se se mostra algo incompreensível quando em confronto com a testemunha SS, desde logo a dois níveis: - primeiro quando esta refere que avistou logo os menores, embora viesse da Torreira só após a curva teria visibilidade para o local, e sua intenção de atravessaram e se atentarmos no trajecto do veículo NS este tinha um campo de visibilidade ainda maior, atento o sentido S.Jacinto-Torreira e reta em patamar, pelo que mal se compreende que igualmente não se tenha apercebido da presença dos menores antes de se cruzar com a referida SS; - depois, quando aquele refere que apenas viu o veículo da referida SS, quando do depoimento desta e dos arguidos resultou que também ali circulava ainda que mais na berma o veículo dos arguidos. Enfim, a forma confusa e insegura com que depôs não foi de molde a abalar a demais prova produzida, nomeadamente assumindo particular relevo a forma como depôs a testemunha SS, isenta, segura e assertiva.
Aqui chegados, considerando a globalidade da prova produzida, não podemos concluir que os arguidos tenham deixado menores entregues à sua sorte, nem que o atropelamento tenha advindo da sua imprevidência, falta de cuidado e de zelo. É certo que aguardaram no local de terra batida a chegada dos menores e que ali estavam já aparcados quando lhes ordenaram que ali parassem e supervisionaram então a travessia que estes ali fizeram das hemifaixas de rodagem no sentido ria-terra, o que se compreende pois que se tratava de paragem determinada naquele momento em função da progressão no percurso e tempo decorrido, para então procederem como referido em 10 e 11, para medirem os níveis de glicémia e tendo detectado que estavam elevados, seguindo-se a necessidade de alimentação e descanso dos mesmos até normalização da glicémia da JJ.
Após esse período e por terem percebido que era reduzido o trânsito, que os menores cumpriram durante todo o dia no raid que efectuaram as regras de segurança para a actividade, avançaram na viatura enquanto os menores se preparavam e faziam a travessia, o que diga-se fizeram sem terem em momento algum perdido o contacto visual com os menores conforme resultou aliás inequívoco do depoimento das testemunhas II, KK e SS, esta última referiu que mal ouviu o embate parou e logo se cruzou com o arguido que viu no local de imediato e que aliás identificou em sede de julgamento.
A descrição do menor II quanto ao aparecimento inopinado do veículo branco, que por todos referido circulava rápido no local, é de molde tal que mesmo com a presença dos arguidos no local no momento da travessia cremos o resultado seria o mesmo, por não ser previsível aquando do início da travessia como referido pelo II que o referido carro chegasse junto dos menores antes de estes completaram a travessia. Igualmente note-se que a descrição da testemunha SS e do menor II é consentânea noutro dado, é que a primeira tentativa de travessia encetada foi abortada pelo grupo por verem o veículo daquela, o que nos leva a concluir que os mesmos apenas iniciaram a travessia por naquele momento tal ser previsivelmente possível concluir em segurança.
Importa ainda referir que tendo sido audível, como aliás o asseveraram as testemunhas FF, GG, LL, HH, primeiro o embate e pelo que a travagem teria ocorrido depois, mal se compreendem os resultados da perícia de velocidade, que como referido na mesma se baseou entre o mais no pressuposto de que o veiculo não se apresentava em aceleração (cfr. pág. 4 do relatório), o que não se mostra plausível face aos depoimentos de II e SS e bem assim atentas as características do local (reta). Perícia aliás que igualmente não teve em consideração o estado dos pneus (que segundo o condutor do NS eram novos e com os quais não havia percorrido sequer 1000km até à data), o que necessariamente tem influência também na análise do rasto de travagem encontrado.
Tudo visto e ponderado, e analisado à luz das mais elementares regras de experiência comum temos que o local em causa reunia boas condições de visibilidade, o tráfego de trânsito era reduzido, os menores haviam efectuado a primeira travessia em segurança e sem reparos a fazer, os menores cumpriam as regras de segurança implementadas quanto ao uso de colete refletor pelo primeiro e último elementos a fazer a travessia, não era a primeira vez que efetuavam a travessia de faixas de rodagem que aliás treinavam ao longo do ano e nas actividades que iam desenvolvendo nos escuteiros, nada fazia prever aos arguidos responsáveis que naquele momento não estivessem reunidas as condições para que os mesmos levassem a cabo a travessia em causa e aliás o resultado bem seria o mesmo caso ali estivessem, como referido pelo menor II a presença do veículo NS tão rápida no local foi inesperada, pois quando iniciou a travessia aquele mostrava-se longe e permitia que a travessia tivesse sido efectuada.
Depois, a verdade é que ainda que após o sucedido, por todos tenham sido adoptadas medidas mais redobradas quanto ao planeamento de actividades que envolvessem circulação em vias de trânsito e travessia de faixas de rodagem, não menos certo é que tal é necessariamente reflexo do sucedido. Sem que daí se possa concluir sem mais que volvendo às condições iniciais, e sem conhecimento do infeliz desfecho que veio a ocorrer, se impunha a adopção de outro comportamento. Não estamos a falar de um grupo de jovens de 25-28 alunos (uma turma completa) em contexto de visita de estudo, sem que haja por parte dos adultos que os acompanham conhecimento do seu comportamento e cumprimento das regras de circulação na estrada. Ao invés falamos de um grupo reduzido (4 crianças) que, ao longo de todo o ano escutista, haviam já desenvolvido, em contexto de actividades de campo (incluindo na localidade onde vivem), actividades relacionadas com a circulação nas estradas e inclusive eram alertadas para o cumprimento dessas mesmas regras no contexto em causa. Aliás, os próprios arguidos haviam, precisamente ao longo do ano escutista, acompanhado o crescimento daquelas crianças e ministrado as regras de segurança que se impunham para o desenvolvimento daquela actividade em concreto, bem como ao longo de todo o dia as acompanharam e percepcionaram que as mesmas cumpriram as regras ministradas. Igualmente, como acima referimos, a testemunha II descreveu que o surgimento do veículo branco de forma tão célere foi para si uma surpresa e apenas aí gritou para pararem. Quanto aos arguidos atentas as condições da via (pouco trânsito), da boa visibilidade, com reta em ambos os sentidos, bem como da preparação daquele reduzido grupo de 4 para a travessia em causa, inclusive ao longo de todo o ano, e bem assim aliás que presidiu à escolha do local da paragem precisamente tais valores, não podemos daí sem mais concluir que não procederam com o zelo e que deixaram os menores à sua sorte. Nem, tão pouco que segundo as regras da experiência se impunha a adopção de outras ações e cuidados que eram capazes de adotar e que deveriam ter adotado para evitar o resultado, nem que previram e que era previsível e evitável tal resultado, mas com o qual não se conformaram. Desde logo, porque importa ter presente que, como supra expendemos, não estamos a falar de um grupo em visita de estudo em contexto escolar, normalmente numa média de 25 alunos e num contexto em que não desenvolvem habitualmente com os professores actividades no exterior, mas apenas em contexto de sala de aula. Há que ter presente que estes arguidos acompanharam aquelas 4 crianças (e bem assim as outras que integravam os demais sub grupos) ao longo de todo um ano escutista (e algumas inclusive há mais anos), em que desenvolviam precisamente actividades de campo e em contexto de circulação e vias de tráfego de veículos automóveis, ministrando ainda as regras de segurança necessárias, que inclusive aplicavam na prática nas diversas actividades que iam desenvolvendo, não os conhecendo apenas em contexto de sala de aula, mas conhecendo-os e preparando-os para tal actividade em contexto real.
Aqui chegados, temos que resultou do acima referido pois como não provada a factualidade descrita sob alíneas b) a e). Já quanto ao descrito sob alínea a) tal resultou do depoimento da testemunha II que asseverou isso mesmo.
Por último, e quanto às condições sócio-económicas e pessoais dos arguidos, atentou-se ainda no teor das declarações prestadas pelos mesmos, nesta parte integralmente convincentes até porque não infirmadas por outros meios de prova. Igualmente se atentou no teor do CRC dos mesmos.
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Quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos, na sentença consta o seguinte [transcrição]:
Os arguidos mostram-se acusados da prática, em autoria paralela e na forma omissiva e consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelas disposições conjugadas do n.os 1 e 2 do artigo 137.º, alínea a) do artigo 15.º, n.º 1 e 2 do artigo 10.º, todos do Código Penal.
Dispõe o artº 137º nº1 do Código Penal que "Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa"
Estamos, assim, perante um crime negligente. Este tipo de crimes tem como característica o facto de a conduta típica não aparecer definida na lei, são tipos abertos, cabendo à jurisprudência completá-los.
O conceito de negligência vem plasmado no artº 15º do Código Penal que preceitua o seguinte: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actua sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Por seu turno o art.º 10.º do Código Penal dispõe sobre a comissão por acção e por omissão: “1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. 2 - A comissão de um resultado por omissão é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado. 3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”.
Neste tipo de crimes, contrariamente ao que acontece nos tipos dolosos, continua a discutir-se se deve distinguir-se entre um tipo objectivo e um tipo subjectivo de ilícito.
A este propósito Teresa Beleza citando Fragoso e Stratenwerth, refere: " O que é característico dos crimes negligentes, ao contrário dos crimes dolosos, é justamente a incongruência entre a situação objectiva e a situação subjectiva. Na negligência, a pessoa não representa uma situação objectiva, ou se a representa como uma possibilidade, não se convence dela, e, portanto, essa incongruência, essa oposição, essa contradição entre a realidade objectiva e a representação duma pessoa é justamente aquilo que é característico dos crimes negligentes; e por isso talvez não se deva falar no elemento subjectivo do tipo de crime" (in Direito Penal Vol. II, pág. 573, AAFDL).
Em termos dogmáticos a negligência tem sido tratada de diversas formas pelas diversas teorias que foram sendo construídas, sempre dentro da concepção tripartida de crime enquanto acção típica, ilícita e culposa.
Para a escola clássica (Liszt-Beling) a negligência tal como o dolo, são apenas formas de culpa. Entendia-se a culpa como uma ligação psicológica entre o facto e o agente. Na negligência consciente não é difícil admitir esta ligação, na medida em que pode não se ter pretendido um certo resultado, mas não se teve o cuidado de o evitar, prevendo-o ou podendo-o prever. Esta teoria, contudo, terá muita dificuldade em explicar a negligência inconsciente, uma vez que nesta, faltará, inevitavelmente, a ligação psicológica entre o agente e o facto.
O sistema neo-clássico baseado nas ideias do neo-kantismo, introduz um conceito normativo de culpa, no sentido de que culpa é censurabilidade. Tenta ultrapassar a dificuldade da ligação psicológica entre o agente e o facto, dizendo que a essência da culpa está na censurabilidade do acto. Ou seja, a ligação psicológica entre o agente e o facto e um resultado que se pretende atingir, é apenas um juízo de culpa que pode nem existir no caso da negligência consciente.
Por último o sistema finalista, parte de um conceito de acção final dirigida para um fim, pré-ordenado mentalmente.
Esta concepção afasta os elementos psicológicos da culpa que são absorvidos na análise da tipicidade. Ou seja, a culpa é um juízo de censura, mas fundado apenas em elementos normativos. A valoração é apenas formal.
Hoje é doutrina dominante que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa. Isto é, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa. Tal é, aliás, consagrado na própria definição legal de negligência, plasmada no artº 15º do Código Penal: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado." isto é violação do cuidado objectivamente devido, que corresponde ao tipo de ilícito e ".. e de que é capaz", ou seja capacidade instrumental (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo o seu conhecimento e capacidades pessoais), que corresponde ao tipo de culpa. (No mesmo sentido Figueiredo Dias in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora – 2001, pág. 352).
Também Jorge Barreiro[1] entende que “É necessário distinguir entre as características da conduta contrária à norma de cuidado (problema do tipo de ilícito) e a capacidade individual de evitar essa conduta (questão da culpabilidade). Tem, assim, que haver sempre a violação de um dever de cuidado e capacidade instrumental. Esta capacidade instrumental é a capacidade que detém o "homem médio". Em termos de previsibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um certo acontecimento se desse.
Assim e seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias[2], podemos dizer, que legalmente imposta pelo supra referido artº 15º do Código Penal, a opinião largamente maioritária da dogmática do crime negligente é a chamada doutrina do “duplo escalão”, que se exprime:
a) Pelo tipo de ilícito do facto negligente: “ .. considera-se preenchido por um comportamento sempre que esta discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídido-penalmente relevantes, para desse modo se evitar um violação juridicamente indesejada. (..) Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente.
b) Pelo tipo de culpa do facto negligente: - que se considera preenchido quando se conclui que “. o mandato geral de cuidado e previsão podia também ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades “individuais”, isto é, rigorosamente, da inteligência, da formação e da experiência de vida dos homens como agente agindo na circunstância”.
Do exposto resulta que o elemento que confere especificidade ao tipo de ilícito é a “violação objectiva de um dever de cuidado” ou no dizer de Claus Roxin a “criação pelo agente, de um perigo não permitido”.[3]
Utilizando uma ou outra formulação, o que está em causa neste tipo de crime é o “desvalor da acção” ao qual acrescerá o “desvalor do resultado”, traduzido na produção, causação e previsibilidade daquele.
O resultado é o efeito danoso para a vítima. Entre a conduta inicial, infractora do dever de cuidado e o resultado produzido tem de haver um nexo causal.
Este nexo deve ser conforme aos critérios da teoria da causalidade adequada – “. para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta: é necessário que, em abstracto, a acção seja idónea para causar o resultado. (...) O processo lógico deve ser o de uma prognose póstuma, ou seja de um juízo de idoneidade, referido ao momento em que uma acção se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, o de um juízo « ex ante». (..) segundo as leis, as regras gerais da experiência comum aplicado às circunstâncias concretas da situação”[4].
Conforme referimos, as diversas teorias sobre a negligência foram construídas dentro da concepção tripratida de crime enquanto acção típica, ilícita e culposa.
No que concerne à acção, comissiva ou por omissão, o fundamento de todo o facto punível é um comportamento humano voluntário socialmente relevante, traduzido numa violação do dever objectivo de cuidado, dever esse que pode ser de ordem legal, regulamentar, profissional ou de mera experiência.
Depois é necessário um nexo causal entre esse comportamento e o resultado e finalmente pressupõe, ainda a ausência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Nos termos do art.º 15.º do CP, a negligência será consciente quando o agente tenha representado como possível a realização de um facto que preencha um tipo de crime, mas tenha actuado sem se conformar com essa realização, e será inconsciente quando nem sequer chegue a representar a possibilidade de realização do facto.
Estas duas categorias não são hierarquizáveis, no sentido de ser uma mais grave que outra.
Conforme refere Maia Gonçalves em anotação ao Ac. STJ de 12 de Outubro de 1966, BMJ 160, a negligência inconsciente abarca dois tipos de casos:
- aqueles em que a lei, para evitar certos resultados, quer que o agente represente a possibilidade de produção dos mesmos, a fim de que se abstenha de condutas que os podem produzir;
- os casos em que a lei, "rendendo tributo ao progresso", aceita a prática de condutas perigosas, mas quer que aqueles que as pratiquem prevejam os resultados antijurídicos que delas possam advir e tomem cuidados especiais com vista a evitá-los (ex: domínios da circulação terrestre, da industrialização, etc.)
Corresponde ao último caso o ora "sub juditio". E isto porque os crimes de homicídio por negligência cometidos nas nossas estradas, resultam na sua quase totalidade, da elevada perigosidade que a circulação rodoviária acarreta e, consequentemente, da violação de deveres de cuidado estabelecidos por lei com vista a evitar que essa perigosidade não se concretize.
Como já acima referido, este crime também pode ser cometido por omissão – crime omissivo impróprio ou impuro -, sendo que para a sua verificação se exige a ausência de acção, como ato voluntário, a capacidade fáctica de acção (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.
No domínio da circulação rodoviária, há que referir um princípio fundamental desenvolvido pela jurisprudência, denominado "princípio da confiança", o qual retira o desvalor da acção quando o agente tenha actuado, confiando que os outros tenham cumprido os seus deveres de cuidado. Ou seja, uma pessoa pode legitimamente esperar que as outras pessoas tenham sucessivamente cumprido, os seus deveres de cuidado, que lhes impunham, a eles próprios, um certo comportamento. Se um condutor circular pela sua mão de trânsito, tem o direito de partir do princípio que o condutor que circula em sentido contrário também o faz. O condutor que vai na rua e vê um peão, para quem o sinal está vermelho, tem o direito de presumir que o peão não vai atravessar a rua. etc.
Prosseguindo, o ilícito em análise imputado tanto pode ser cometido por acção, ao desencadear um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão, como por omissão, consubstanciada na circunstância de não desencadear ou interromper um processo causal que evite ou diminua a concretização de um perigo preexistente de lesão. Como refere Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, “Nos crimes comissivos por acção o agente cria o perigo para o bem juridicamente relevante tutelado ou lesa esse bem, nos delitos por omissão impura (como em todos os crimes omissivos), por via de regra, tal perigo é anterior à acção esperada e estranho ao agente e é tal perigo que origina a espera de uma conduta que o esconjure.
Assim, para que o agente possa ser punido temos que averiguar se se verifica:
- violação do dever de cuidado (imprudência ou criação de um risco não permitido) que é aquele que é apto a causar a lesão e for exigível e possível ao agente a sua evitação. “(...) para que o resultado possa ser atribuído ao agente (médico) (...) é necessário, no plano objectivo, que o resultado a imputar constitua a realização ou um aumento de um risco juridicamente relevante ou risco proibido (...) cuja evitabilidade do resultado nefasto seja, precisamente, a finalidade (...) da norma infringida pelo agente, nisto se traduzindo a doutrina do âmbito de tutela da norma. Em caso de dúvida razoável, a questão decide-se pela regra universal do direito probatório in dubio pro reo (...)”;
- a representação ou representabilidade do facto (previsão ou previsibilidade do facto): “(...) de resto, é justamente em função dessa previsibilidade que se poderá falar de imputação subjectiva nos crimes negligentes de resultado (homicídio negligente, ofensas à integridade física por negligência, ...) havendo tal imputação nos casos em que o concreto resultado seja previsível, com a qualificação do agente e colocado nas mesmas circunstâncias deste”.
- a não aceitação do resultado (evitabilidade do facto ilícito previsível), sendo exigível ao agente todo o esforço possível e adequado a evitar o resultado danoso, o que equivale a dizer que ao mesmo apenas se exige a diligência necessária a evitar o evento desde que seja evitável de acordo com a lei e demais normas jurídicas e extrajurídicas, universalmente aceites, de cautela, prudência e ponderação.
Em suma, o agente será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física ou homicídio negligente que era objectivamente previsível e passível de ser evitada.
Dos factos provados resulta que aos cuidados dos arguidos, na qualidade de membros do Agrupamento de escuteiros ..., e parte integrante da equipa de animação. estavam entregues várias crianças, concretamente o grupo de 4 crianças referidas em 3., incluindo a vítima EE. Todavia, não temos que quanto àquela travessia em concreto a omissão imputada seja aquela que é apta a evitar a lesão que afinal se veio a verificar ou que para os arguidos (bem como para qualquer um colocado naquelas mesmas condições) aquele resultado fosse previsível.
Tratava-se de um grupo reduzido (4 crianças) que, ao longo de todo o ano escutista, haviam já desenvolvido, em contexto de actividades de campo (incluindo na localidade onde vivem), actividades relacionadas com a circulação nas estradas e inclusive eram alertadas para o cumprimento dessas mesmas regras no contexto em causa. Aliás, os próprios arguidos haviam, precisamente ao longo do ano escutista, acompanhado o crescimento daquelas crianças e ministrado as regras de segurança que se impunham para o desenvolvimento daquela actividade em concreto, bem como ao longo de todo o dia as acompanharam e percepcionaram que as mesmas cumpriram as regras ministradas. Como já referimos, não estamos a falar de um grupo em visita de estudo em contexto escolar, normalmente numa média de 25 alunos e num contexto em que não desenvolvem habitualmente com os professores actividades no exterior, mas apenas em contexto de sala de aula. Há que ter presente que estes arguidos acompanharam aquelas 4 crianças (e bem assim as outras que integravam os demais sub grupos) ao longo de todo um ano escutista (e algumas inclusive há mais anos), em que desenvolviam precisamente actividades de campo e em contexto de circulação e vias de tráfego de veículos automóveis, ministrando ainda as regras de segurança necessárias, que inclusive aplicavam na prática nas diversas actividades que iam desenvolvendo, não os conhecendo apenas em contexto de sala de aula, mas conhecendo-os e preparando-os para tal actividade em contexto real.
Para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a omissão dum dever de cuidado e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à omissão descuidadamente praticada. Em caso de dúvida, como referido a mesma deverá ser valorada tendo presente o princípio do in dúbio pro reu.
Ora, todavia, e da factualidade apurada, não resulta que os Arguidos tenham preenchidos os elementos do crime em causa, nem que a sua presença no momento da travessia fosse por si só impeditiva do resultado que lamentavelmente se veio a verificar.
Assim, em face da matéria de facto dada por assente bem como atentos os factos não provados, e que supra se expôs, dúvidas inexistem, a nosso ver, que não se mostram preenchidos todos os elementos, do tipo em apreço pelo que, in dubio pro reu, devem os arguidos ser absolvidos do crime pelo qual se mostra acusados.
v
Questão prévia:
A título introdutório, os assistentes alegam em síntese querer parecer-lhes que a Senhora Juiz a quo tinha já mesmo, antes da produção de prova, tomado a sua decisão, não o tendo sequer conseguido esconder ao longo do julgamento
Alicerçam essa sua percepção convocando três frases que apelidam de afirmações ou “desabafos” da Senhora Juiz.
Como refere o Ministério Público na resposta ao recurso, tal alegação extravasa o objecto dos presentes autos, limitando-se os assistentes a tecer considerações sobre a actuação da Meritíssima Juiz. De todo o modo, sempre se dirá, acompanhando o referido pelos arguidos na sua resposta, que se os assistentes tinham algo a apontar à condução dos trabalhos, tinham mecanismos e institutos jurídicos para reagir atempadamente. Não o tendo feito, mostra-se completamente despropositado o alegado no recurso.
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Decidindo as questões objeto do recurso
Da nulidade das declarações prestadas na audiência de julgamento por deficiente gravação
Em síntese, considerando incorretamente julgados os pontos 22., 30. e 36. dos factos provados, os assistentes alegam, todavia, não lhes ser possível indicar os concretos excertos de declarações de arguido e de depoimento de testemunhas que impunham decisão diversa, em virtude de serem, quer absolutamente inaudíveis, quer de audição deficiente. Sustentam que se mostra assim violado o disposto no art.º 363.º do CPP, com a consequente inviabilização de poderem exercer o direito e lançar mão do meio de recurso correspondente à impugnação da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Entendem não ser defensável que a arguição da nulidade prevista naquela primeira norma esteja sujeita ao prazo geral de arguição de 10 dias a contar da entrega dos suportes técnicos, decorrente do disposto no art.º 105.º, n.º 1, do CPP, defendendo ser tempestiva desde que arguida no prazo de recurso.
Requerem, quanto ao facto 22., que sejam declarados nulos, nos termos e para os efeitos dos arts. 123.º, n.º 2, 363.º, 364.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, todos do CPP, os depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, com as devidas consequências legais que, à luz do disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, aplicável ex vi o disposto no art. 4.º do CPP, sempre incluirão a sua repetição.
Quanto ao facto 30., nos mesmos termos, requerem que sejam declarados nulos, as declarações por eles prestadas e os depoimentos das testemunhas MM, NN e OO.
Quanto ao facto 36., também nos mesmos termos, requerem que sejam declarados nulos os depoimentos das testemunhas QQ, RR e SS.
Vejamos.
Dispõe o art.º 363.º do CPP, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, que as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade. Contrariamente ao que sucedia anteriormente, passou, pois, a ser obrigatória a documentação de toda a prova produzida oralmente na audiência de julgamento[5]. A forma da documentação é a prevista no art.º 364.º do mesmo diploma. A deficiente gravação da referida prova, quando não permita ou impossibilite captar o que foi dito pelo declarante, é equiparada à sua total omissão, configurando um vício procedimental cometido durante a audiência. Como refere o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2014, de 23 de setembro[6], não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. As nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2). Atento o princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades, constante do art.º 118.º, n.º 1, do CPP, a nulidade prevista no art.º 363.º do CPP também não constitui nulidade insanável, dado não se encontrar elencada no art.º 119.º nem estar expressamente classificada como tal, pela própria norma. Trata-se, pois, de uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º. O vício da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência tem, pois, de ser arguido perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, no prazo geral de 10 dias, a partir do momento em que dele se toma conhecimento.
No caso concreto, não consta dos autos que os recorrentes tenham arguido a alegada nulidade perante o Tribunal a quo. Apenas a invocaram agora em sede de recurso, muito depois de esgotado o prazo de que dispunham para a arguir na Primeira Instância. Assim, ainda que se verificassem as apontadas deficiências, a correspondente nulidade encontra-se sanada.
Efetivamente, dispõe o n.º 3 do art.º 101.º do CPP, na redação dada pela Lei n.º 48/2007, que sempre que for realizada a gravação, o funcionário entrega no prazo de quarenta e oito horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira e forneça ao tribunal o suporte técnico necessário. Como observa o citado acórdão do STJ n.º 13/2014, a novidade está na cessação do dever de transcrição dos registos gravados, em consonância com o novo regime de documentação das declarações prestadas na audiência e com o novo regime de impugnação da matéria de facto. A regra da transcrição foi substituída pela regra do acesso dos sujeitos processuais aos suportes técnicos que contenham a gravação da prova (15). Quando a prova seja registada por gravação magnetofónica ou audiovisual não deve ser transcrita pois, em caso de recurso da matéria de facto, o tribunal superior procede ao controlo da prova por via da audição ou da visualização dos registos gravados (n.º 6 do artigo 412.º), com base na indicação pelo recorrente das passagens da gravação em que funda a impugnação (n.º 4 do artigo 412.º), sendo, para esse efeito, postas à disposição dos sujeitos processuais que o requeiram cópias da gravação(16). No caso de uma audiência que se prolonga por várias sessões, as cópias podem/devem ser pedidas pelos sujeitos processuais interessados logo após cada uma das sessões, devendo as cópias ser facultadas dentro do prazo de quarenta e oito horas contado da apresentação do requerimento acompanhado do suporte técnico.
Em suma, se de alguma coisa os assistentes se podem queixar é apenas da sua própria inércia e falta de diligência.
Com efeito, como observa o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 24.02.2010[7], citado no referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência, dando a lei às partes acesso imediato à documentação atribui-lhes concomitantemente a responsabilidade de um controlo em tempo oportuno dos vícios. O interessado deverá, pois, solicitar atempadamente cópia das gravações e proceder de imediato à audição das mesmas. Caso o não faça, adopta um procedimento negligente que não recebe protecção legal.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade da referida interpretação com a Constituição no Ac. de 291/2017, de 8 de junho de 2017[8], decidindo não julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 363.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.
Em suma, não se verifica a invocada nulidade, nos termos e para os efeitos dos arts. 123.º, n.º 2, 363.º, 364.º, n.º 1 e 410.º, n.º 3, todos do CPP, das declarações dos assistentes e dos depoimentos das testemunhas FF, GG, HH, MM, NN, OO, QQ, RR e SS.
Improcede, pois, o recurso no que concerne à primeira questão
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Da impugnação da matéria de facto
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Do enquadramento jurídico dos factos
Independentemente da alteração da decisão de facto, os assistentes entendem que os factos considerados provados pelo Tribunal a quo, sempre se imporia a condenação de ambos os Arguidos pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pela conjugação das disposições contidas no art.137.º, n.ºs 1 e 2, art. 15.º, al. a) e art. 10.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP.
Para o efeito e em síntese, chamando à colação a factualidade dos pontos 12., 21. e 22. dos factos provados, concluem que a circunstância de se estar perante uma atividade perigosa impunha um patamar superior aos cuidados a adotar pelos Arguidos que foram, em face da factualidade considerada provada pelo Tribunal a quo, manifestamente insuficientes. Discordam também dos argumentos expendidos na sentença recorrida acerca do princípio da confiança.
Não lhes assiste razão.
Efetivamente, improcedendo o recurso no segmento relativo à impugnação da matéria de facto, considerando o factualismo provado e não provado, mostra-se corretamente efetuado por parte do Tribunal a quo o enquadramento jurídico dos factos. Na verdade, muito embora o factualismo dado como provado nos pontos 12., 21. e 22., que o Tribunal a quo não deixou de considerar, importa não olvidar o que consta da factualidade não provada, que, aliás, os assistentes não impugnaram, concretamente:
b) que além do referido em 21., o atropelamento seguido da morte da vítima, adveio da imprevidência, falta de cuidado, e de zelo por parte dos arguidos;
c) que além do referido em 22., os arguidos não tomaram as devidas providências de segurança para que as crianças efetuassem a travessia das vias de trânsito em segurança, deixando-as entregues à sua sorte.
d) que os arguidos não procederam com o zelo que segundo as regras da experiência se impunha e a que estavam adstritos, omitindo ações e cuidados que eram capazes de adotar e que deveriam ter adotado para evitar o resultado que previram e que era previsível e evitável, mas com o qual não se conformaram.
e) que sabiam os arguidos que ao agir da forma descrita, o que o fizeram de forma livre e consciente, poderia resultar a morte da vítima, mas confiaram que as mesmas não se verificariam.
Não provada essa factualidade, como resulta de elementar clareza, nunca os arguidos poderiam ser condenados pelo crime de que foram acusados, pois não estão preenchidos os respetivos elementos típicos. Como refere a sentença recorrida, o agente apenas será responsável penalmente se, através de uma acção ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física ou homicídio negligente que era objectivamente previsível e passível de ser evitada. Ora, sendo certo que o grupo de crianças se encontrava aos cuidados dos arguidos, concordando com os fundamentos da sentença recorrida, nada permite concluir que quanto àquela travessia em concreto a omissão imputada seja aquela que é apta a evitar a lesão que afinal se veio a verificar ou que para os arguidos (bem como para qualquer um colocado naquelas mesmas condições) aquele resultado fosse previsível. Tratava-se de um grupo reduzido (4 crianças) que, ao longo de todo o ano escutista, haviam já desenvolvido, em contexto de actividades de campo (incluindo na localidade onde vivem), actividades relacionadas com a circulação nas estradas e inclusive eram alertadas para o cumprimento dessas mesmas regras no contexto em causa. Aliás, os próprios arguidos haviam, precisamente ao longo do ano escutista, acompanhado o crescimento daquelas crianças e ministrado as regras de segurança que se impunham para o desenvolvimento daquela actividade em concreto, bem como ao longo de todo o dia as acompanharam e percepcionaram que as mesmas cumpriram as regras ministradas. Como já referimos, não estamos a falar de um grupo em visita de estudo em contexto escolar, normalmente numa média de 25 alunos e num contexto em que não desenvolvem habitualmente com os professores actividades no exterior, mas apenas em contexto de sala de aula. Há que ter presente que estes arguidos acompanharam aquelas 4 crianças (e bem assim as outras que integravam os demais sub grupos) ao longo de todo um ano escutista (e algumas inclusive há mais anos), em que desenvolviam precisamente actividades de campo e em contexto de circulação e vias de tráfego de veículos automóveis, ministrando ainda as regras de segurança necessárias, que inclusive aplicavam na prática nas diversas actividades que iam desenvolvendo, não os conhecendo apenas em contexto de sala de aula, mas conhecendo-os e preparando-os para tal actividade em contexto real.
Em suma, como refere o Tribunal a quo, para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a omissão dum dever de cuidado e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à omissão descuidadamente praticada. Em caso de dúvida, como referido a mesma deverá ser valorada tendo presente o principio do in dúbio pro reu.
Ora, todavia, e da factualidade apurada, não resulta que os Arguidos tenham preenchidos os elementos do crime em causa, nem que a sua presença no momento da travessia fosse por si só impeditiva do resultado que lamentavelmente se veio a verificar.
Improcede, pois, o recurso também quanto à última questão.

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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça.
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1 de março de 2023
José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
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[1] In “La imprudencia punible”, citado por Tomás Garcia Hernandez "Elementos De Derecho Sanitario En La Responsabilida Civil Y Penal De Los Médicos Por Mala Praxis" – Edisofer SL. Madrid 2002, pág. 24
[2] Ob. Citada pág. 353 e 354
[3] Citado por Figueiredo Dias ob. Citada pág. 355
[4] Eduardo Correia in Direito Criminal Vol. I Almedina 2001 (reimpressão) pág. 258.
[5] A Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X não deixa dúvidas a esse nível, referindo que a audiência de julgamento passa a ser sempre documentada, não se admitindo que os sujeitos processuais prescindam de tal documentação, seja qual for o tribunal materialmente competente (artigos 363.º e 364.º).
[6] Diário da República n.º 183/2014, Série I de 2014.09.23.
[7] Relatado pelo Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt.
[8] Relatado pelo Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/ acordaos/20170291.html