Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
167/18.1T9STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: ASSISTENTE
CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Nº do Documento: RP20190209167/18.1T9STS-A.P1
Data do Acordão: 02/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º788, FLS.310-316)
Área Temática: .
Sumário: I - Tem legitimidade para se constituir assistente, em processo relativo a crime de falsidade de testemunho agravado, p. e p. pelos artigos 360.º e 361.º, n.º 1, a), do Código Penal, a pessoa potencialmente prejudicada pela falsidade do depoimento prestado por testemunha.
II - Esse crime configura um crime de perigo abstrato ou de mera atividade, sendo irrelevante que a falsidade das declarações tenha provocado um prejuízo efetivo para a pessoa visada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 167/18.T9STS-A.P1
Secção Criminal
Conferência
Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Tribunal Recorrido: Santo Tirso/Juízo Local Criminal-J2
Comarca: Porto
Recorrentes: B…, L.da
C…
D…

Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
a) Na sequência do despacho de arquivamento proferido no inquérito n.º 167/18.1T9STS que corria termos nos Serviços do Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca do Porto, DIAP - Secção de Santo Tirso, os denunciantes “B…, L.da”, C… e D…, com os demais sinais dos autos, requereram a abertura de instrução visando a pronúncia dos participados pelo crime de falsidade de testemunho agravado, previsto e punível pelos arts. 360º e 361º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.
b) No mesmo acto, concomitantemente, requereram a sua constituição como assistentes, mas viram tal pretensão rejeitada, por despacho proferido a 13 de Julho de 2018, com os seguintes fundamentos:
Da constituição como assistentes
B…, L.da, C… e D…, denunciantes nos autos, notificados do despacho de arquivamento do inquérito vieram requerer a sua constituição como assistentes nos presentes autos (e bem assim a abertura de instrução).
Notificados, os denunciados pediram a rejeição do pedido de constituição como assistentes, por falta de legitimidade, nos termos que melhor constam de fls.2983 e ss.
O Ministério Público pronunciou-se contra o deferimento da aludida pretensão, aderindo ao requerimento dos suspeitos, nos termos que melhor constam de fls.2989.
Factos a considerar
1 - No inquérito n.º 461/17.9 T9STS que correu termos no DIAP de Santo Tirso investigava-se a prática de um crime de difamação em que figurava como queixosa E…, SA e como denunciados B…, L.da e seus gerentes C… e D….
2 - Nesse inquérito F…, G…, H…, I…, J…, O…, L… e M…, todos funcionários da E…, S.A., prestaram declarações na qualidade de testemunhas.
3 - Esse inquérito foi arquivado, por falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal, uma vez que notificada a sociedade E…, SA, ali assistente, para deduzir acusação particular com menção de que não foram recolhidos indícios suficientes para acusar os arguidos e sociedade denunciada pelos crimes de difamação participados, a mesma não o fez.
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Motivação
O tribunal fundou a sua decisão no conjunto dos indícios recolhidos nos autos, nomeadamente toda a documentação neles inserta a fls. 3 e ss, 10 e ss., 51 e ss., 68-69.
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Do Direito
O artigo 68º, nº 1, do Código de Processo Penal estabelece o regime de acesso ao estatuto de assistente como se segue:
1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
Na situação em apreço, o preceituado nas alíneas b) a e) não tem aplicação, pelo que o pedido será apreciado unicamente com referência ao disposto na alínea a) do indicado preceito legal.
Desta feita, do aludido fragmento normativo resulta que o estatuto de ofendido se encontra circunscrito ao titular do interesse especialmente protegido pelo tipo legal de crime, pelo que se conclui que o conceito legal de ofendido é estrito (por semelhança com o do titular do direito de queixa previsto pelo art.113º do Código Penal).
Tem-se verificado, contudo, um alargamento jurisprudencial do entendimento da legitimidade para a constituição de assistente, para além da natureza individual ou supra- individual do bem jurídico tutelado pela incriminação dos vários tipos de crime, reconhecendo-se que, em determinados tipos de crime público que protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, abuso de poder, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular.
A respeito do assunto o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência, nomeadamente através do assento n.º 1/03, in DR I-A, n.º 49, de 27 de Fevereiro de 2003 pela seguinte forma: “no procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.”
Como se lê na fundamentação de tal aresto: “recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça começou a inflectir o caminho anteriormente percorrido… e decidiu que «sendo o objecto mediato da tutela penal sempre de natureza pública (sem o que não seria justificada a incriminação), o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular». Posição que vai no sentido..., de que «especial» não significa «exclusivo», mas sim «particular», e que um só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado”.
Mais tarde veio a ser proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 10/2010, publicado no Diário da República nº 242/2010, I, de 16.12.2010 que decidiu que: “em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391.º do Código de Processo Civil e 348.º, n.º 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente.”
Porém, como se refere na sua fundamentação, “só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares.”
Ora, a matéria em discussão nos presentes autos prende-se com a eventual prática de crimes de falsidade de depoimento p. e p. pelo art. 360º e 361º, n.º 1, al. a) do Código Penal por parte de F…, G…, H…, I…, J…, O…, L… e M… no âmbito do inquérito n.º 461/17.9 T9STS.
O bem jurídico que naquele artigo o legislador penal visa proteger é a boa realização da justiça enquanto função do Estado. Daí a razão de ser da reprovação penal dos agressores da verdade, por via do falso testemunho.
Visa-se incriminar a conduta atentatória do interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão.
O ilícito criminal em causa configura um crime de mera actividade pois que se esgota tal comportamento ilícito na efectivação da conduta proibida, não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta.
No entanto, em consequência de falso depoimento, pode efectivamente ocorrer relevante prejuízo na esfera jurídica de um particular/pessoa colectiva.
Vejamos se tal acontece no presente caso.
Ora, o procedimento criminal no âmbito do qual foram prestados os depoimentos alegadamente falsos foi arquivado na fase de inquérito, por não ter sido deduzida acusação particular, impulso de que dependia o seu prosseguimento.
Não se vê, portanto, que os aludidos depoimentos tenham causado dano algum à esfera jurídico-patrimonial de qualquer um dos denunciantes.
Portanto, estes não podem ser tidos por ofendidos em consequência da actuação imputada aos visados com o presente procedimento e como tal titulares de interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, pelo que se entende que os mesmos estão desprovidos de legitimidade para se constituírem como assistentes neste inquérito.
Por conseguinte, REJEITO o aludido pedido de constituição como ASSISTENTES quanto ao procedimento pelo crime indiciado nos autos, nos termos e ao abrigo do preceituado no art.68º, n.º 1, al. a) a contrario sensu, do Código de Processo Penal.
Custas pelos requerentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 2 UC.
c) Inconformados, os requerentes “B…, L.da”, C… e D… interpuseram recurso terminando a sua motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
1. Por despacho datado de 13.07.2018, rejeitou o Tribunal a quo o pedido de constituição de assistentes formulado pelos ora Recorrentes no âmbito dos presentes autos, por no entendimento do Tribunal recorrido:
a) O procedimento criminal no âmbito do qual foram prestados os depoimentos alegadamente falsos foi arquivado em fase de inquérito;
b) Por não ter sido deduzida acusação particular, impulso de que dependia o seu prosseguimento;
c) Os aludidos depoimentos não terem causado dano algum à esfera jurídico-patrimonial de qualquer um dos denunciantes.
2. O tipo de falsidade de testemunho não visa apenas proteger a administração da justiça mas também acautelar os interesses, os prejuízos, que as condutas possam causar a particulares, daí resultando, a legitimidade da pessoa que o agente visou prejudicar, causou ou procurou causar prejuízo para intervir como assistente no respectivo processo penal, enquanto titular dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger.
3. Em suma, impõe-se concluir que, se, em primeira linha, o bem jurídico protegido pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, p. e p. pelo art. 360º do CP é essencialmente a realização da justiça ou administração da justiça como função do Estado, ele não se esgota nessa definição, pois como refere o TRC no seu acórdão datado de 07.06.2016, "todos os tipos de crime do capítulo "dos crimes contra a realização da justiça" protegem simultaneamente a realização e a administração da justiça como função do Estado e o direito individual à justiça que faz desde logo parte da noção de Estado de Direito democrático constante do artigo 2º da CRP e expressamente previsto no art. 20º.
4. A par da protecção da administração da justiça, o tipo legal de crime de falsidade de testemunho visa igualmente proteger o direito individual à justiça constitucionalmente consagrado no art. 20º da CRP e no art. 6º, n.º 1, da CEDH, bem como outros interesses jurídicos dos particulares prejudicados com o falso depoimento, pelo que, a interpretação restritiva feita pelo Tribunal recorrido do art. 68º do CPP viole o art. 20º, n.º 1 e 4 da CRP e 6º do CEDH, preceitos legais que, embora em planos jurídicos diversos, consagram o direito individual à tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo equitativo.
5. No caso concreto não pode negar-se aos ora Recorrentes o direito de se constituírem como assistentes nos presentes autos usando como argumento o facto de o inquérito no âmbito do qual foram produzidas declarações que os Recorrentes entendem serem falsas ter sido arquivado, e como tal não ter causado qualquer dano na esfera jurídico-patrimonial dos ora Recorrentes, porque:
a) O crime de falsidade de testemunho é um crime de mera actividade, e,
b) Basta que o agente procure causar prejuízo aos interesses particulares de uma determinada pessoa para que ela possa constituir-se como assistente num processo em que está em causa a prática do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º do CP.
6. Atenta a documentação já junta aos presentes autos, é manifesto que o processo movido pela sociedade comercial denominada E…, SA, a que corresponde o n.º 461/17.9T9STS surge em retaliação, ao facto de a sociedade comercial denominada B…, L.da ter lançado mão dos instrumentos legais ao seu dispor por forma a ser paga das quantias que considera serem-lhe devidas em virtude dos sobrecustos pela execução da obra denominada N…, decorrentes de erros de projecto, e cujo valor ultrapassa o milhão e setecentos mil euros, decidiu mover contra os ora Recorrentes um processo-crime imputando aos ora Recorrentes um crime de difamação, tendo concluído a sua queixa-crime pedindo a condenação dos ora Recorrentes numa indemnização por danos não patrimoniais no valor de €1.000.000,00 e por danos patrimoniais que a mesma não quantificou nem na queixa-crime nem em qualquer outro momento processual.
7. E é igualmente manifesto que para lograr alcançar os seus intentos, a E…, SA, não se absteve de arregimentar um conjunto de trabalhadores, os ora denunciados, para afirmarem perante oficial de justiça, que as acções movidas pela Recorrente B…, L.da contra a E…, SA tiveram elevados custos financeiros e operacionais, ou então, que à Recorrente B…, L.da não assistia qualquer direito de exigir do Consórcio responsável pela construção do N… decorrente de sobrecustos de execução da obra resultantes de erro do projecto, quando abundante documentação junta aos demais processos, e igualmente junta aos presentes autos, alguma dela da lavra dos denunciados, nomeadamente os relatórios financeiros elaborada pela denunciada F…, os emails trocados entre dono da obra, in casu, a REN e o denunciado O… onde este último solicita documentação para obtenção de licença para o uso de maior quantidade de explosivos, dada a discrepância entre o tipo de solo descrito no projecto e o encontrado in situ, a reclamação feita pelo Consórcio relativamente aos sobrecustos resultantes dessa desconformidade, as actas lavradas durante a execução da obra.
8. Em virtude da conduta dos ora denunciados, os ora Recorrentes foram constituídos arguidos no âmbito dos autos de inquérito n.º 461/17.9 que correu termos no DIAP de Santo Tirso, desta Comarca, e, por forma a defender os seus próprios interesses dada a natureza do referido processo decidiram constituir mandatário que os acompanhou aquando do respectivo interrogatório realizado pelo órgão de polícia criminal e que remeteu aos referidos autos diversa documentação que contrariava o alegado pela E…, SA e as declarações prestadas em sede de inquérito pelas testemunhas por si indicadas, os ora denunciados.
9. Além das despesas suportadas pelos ora Recorrentes, com os honorários pagos à sua mandatária, os Recorrentes C… e D… sofreram um enorme desgaste emocional causado pela incerteza acerca do desfecho do referido processo e suas consequências no futuro dos ora Recorrentes, desgaste emocional esse mais acentuado na D… que não tem sequer qualquer papel activo na sociedade, e nem sequer outorgou aa procurações que suportam as ações movidas contra a E…, SA.
10. Resumindo, as declarações prestadas pelos denunciados no âmbito dos autos de inquérito nº 461/17.9T9STS, e cujo conteúdo é infirmado pela abundante documentação junta aos presentes autos, visaram prejudicar os interesses dos ora denunciantes, e consequentemente, obter um locupletamento ilegítimo para a sociedade de que os mesmos são trabalhadores e administrador, no caso, de M…, tendo os ora denunciados, em parte logrado alcançar os seus intentos, dadas as despesas suportadas pelos Recorrentes com a defesa na referida acção e os danos não patrimoniais por eles sofridos.
11. Do supra exposto, resulta assim claramente que os denunciados com as declarações por si prestadas no âmbito do Proc. n.º 461/17.1T9STS, procuraram, e lograram prejudicar os interesses particulares dos ora Recorrentes, pelo que deve admitir-se a constituição como assistentes nos presentes dos ora Recorrentes, e, consequentemente, ordenar o prosseguimento dos presentes autos, com a declaração de abertura da sua fase instrutória.
d) Admitido o recurso, por despacho datado de 9/10/2018, respondeu o Ministério Público pugnando pela sua improcedência e manutenção do decidido, concluindo a motivação nos seguintes termos:
“Deve considerar-se que o despacho proferido a 13/7/2018 não incorreu em erro de direito nem violou qualquer disposição legal, devendo, a final, ser integralmente confirmado, com a improcedência do recurso”.
e) Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a aludida resposta.
f) Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, responderam os recorrentes insistindo na sua tese.
g) Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
1. Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 20/12/2006, Processo n.º 06P3661, in dgsi.pt, e de 3/2/1999 e 25/6/1998, in B.M.J. 484 e 478, págs. 271 e 242, respectivamente], sem prejuízo das questões de conhecimento oficiosos, as conclusões do recurso delimitam o respectivo objecto e âmbito do seu conhecimento.
Assim, no presente caso, a única questão suscitada é a da verificação dos requisitos para a constituição dos recorrentes como assistentes nos autos.
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2. Decidindo
É ponto assente que os factos objecto do processo se reportam à verificação do crime de falsidade de testemunho, cuja matriz se mostra inscrita no art. 360º, do Cód. Penal.
Existe também sintonia no tocante à circunstância desta infracção se integrar no capítulo dos crimes contra a realização da justiça e de que o bem jurídico protegido é a realização ou administração da justiça como função do Estado, ou seja é o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais, enquanto fundamento para a decisão[1], prescindindo de queixa já que reveste natureza pública.
Por outro lado, entre os sujeitos processuais admitidos pelo direito processual português, destaca-se a figura do assistente, densificado na veste de um “colaborador do Ministério Público” – art. 69º, do Cód. Proc. Penal - na promoção da aplicação da lei ao caso concreto e a quem são conferidos importantes e, por vezes, autónomos poderes de conformação da tramitação processual, mesmo fora do âmbito específico dos crimes de natureza particular[2].
Todavia, a constituição na qualidade de assistente, para além dos casos expressamente regulados e ainda os previstos em lei especial, pressupõe um requisito de verificação de legitimidade material[3], estatuindo o art. 68º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, que “podem constituir-se assistentes no processo penal (…) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, definição correspondente à vertida no art. 113º, n.º 1, do Cód. Penal, para efeitos de identificação do titular do direito de queixa.
Assim sendo, pela associação ao bem jurídico tutelado pela norma penal, a figura do ofendido e, concomitantemente, do assistente, assume recorte mais restrito e menos abrangente que o conceito de lesado, entendido este como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime”- v. art. 74º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
Porém, não tão restrito que a possibilidade de constituição como assistente resulte cabalmente esclarecida pela simples identificação da natureza (pública) da infracção e do bem jurídico tutelado, pois que tanto a doutrina como a jurisprudência dominantes vêm sufragando que um único tipo legal destinado a proteger um interesse de ordem pública pode albergar ainda a tutela de um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador e, por consequência, acautelar os interesses, e/ou os prejuízos que as condutas possam causar a particulares.
Logo, o vocábulo «especialmente» usado para a legitimação material da qualidade de ofendido/assistente não terá o significado de “exclusivo”, sendo antes utilizado no sentido de “particular” ou “de modo especial” e se não basta uma ofensa indirecta, mediata ou reflexa a um determinado interesse, para que o seu titular se possa constituir assistente também não pode arredar-se, sem mais, tal possibilidade só porque a incriminação visa, em si mesma, a protecção de um interesse público, importando antes apurar se a par deste coexiste alguma finalidade de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular.
Tal entendimento patenteia-se, entre o mais, do Acórdão do STJ n.º 8/2006, publicado no DR, n.º 299, I Série, de 28/11/2006, o qual, a propósito do crime de denúncia caluniosa, igualmente atinente a infracções contra a realização da justiça, como o de falsidade de testemunho em causa nos presentes autos, fixou jurisprudência no sentido do caluniado ter legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador.
Consequentemente, importa analisar se, in casu, o suporte fáctico da inobservância/violação normativa invocada pelos recorrentes comporta algum prejuízo para a sua esfera jurídica que se mostre igualmente acautelado pelo tipo incriminador e, assim, justifique a pretendida constituição na qualidade de assistente.
Do cotejo do requerimento que apresentaram - visando a abertura de instrução e simultânea intervenção como assistentes - facilmente se constata que os aqui recorrentes logo invocaram que os participados “não se coibiram de narrar factos que sabiam não corresponder à verdade, imputando-os aos ora participantes com o claro propósito de os responsabilizar por danos à imagem, bom nome e até prejuízos financeiros que os mesmos sabiam não existir resultantes do pedido de insolvência formulado pela 1ª participante” (ponto 4 do RAI), sendo irrelevante que não tenham logrado tal desiderato, porquanto a falsidade de testemunho é um crime de perigo abstracto ou de mera actividade, bastando para a sua concretização a existência de declaração falsa.
Além do mais, a qualificação jurídica da factualidade descrita foi feita por referência à circunstância agravante prevista no art. 361º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal [intenção lucrativa], pressupondo o benefício (ou a intenção) do património societário da queixosa “E…”, com o prejuízo correspondente ao património dos aqui recorrentes.
Neste conspecto, não se vislumbra que seja possível negar que a falsidade de testemunho, para além da tutela penal de bem jurídico de natureza pública, comporta igualmente protecção imediata às esferas jurídicas individuais dos particulares que sofrem prejuízo em resultado dos comportamentos proibidos pela norma incriminadora, ou que o agente do delito visasse prejudicar.
Deste modo, à semelhança do que se verifica no tocante à jurisprudência estabelecida relativamente ao crime de denúncia caluniosa, cremos que também a falsidade de testemunho terá que contemplar a possibilidade de constituição como assistente do particular potencialmente prejudicado pela falsidade das declarações prestadas, sendo irrelevante, nesta sede, apurar se as declarações têm ou não a virtualidade e finalidade que os recorrentes lhe atribuem.
O que importa destacar, para já e relativamente à questão controvertida, é que o preceito incriminador para além da tutela do interesse público da realização da justiça, no contexto descrito nos autos, admite igualmente a protecção de um interesse passível de ser materializado num sujeito concreto, ou seja os recorrentes, estando verificado o requisito da legitimidade material essencial à aquisição da qualidade de assistente[4].
Assim sendo, não pode subsistir o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, nada mais havendo que obste à pretensão dos recorrentes, os admita a intervir nos autos como assistentes.
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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, nada mais obstando a tal efeito, admita os recorrentes “B…, L.da”, C… e D… a intervirem como assistentes nos autos.
Sem tributação – arts. 520º, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP[5]]
Porto, 6 de Fevereiro de 2019
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Figueiredo Dias, Tomo III, pág. 460.
[2] V., Damião da Cunha, “A Participação dos Particulares no Exercício da Acção Penal”, RPCC, Ano 8, Fasc. 4º, Outubro-Dezembro1998, pág. 593 e segs., e Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. I , pág. 242 e segs.
[3] Damião da Cunha, ob. cit., pág. 630.
[4] V., a propósito, Ac. STJ, de 12/7/2005, Proc. n.º 05P2535, rel. Simas Santos, in dgsi.pt.
[5] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.