Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9024/21.3T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DESPEJO IMEDIATO
EXCEPTIO NON RITE ADIMPLETI CONTRACTUS
FALTA DE REALIZAÇÃO DE OBRAS NO LOCADO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
Nº do Documento: RP202305049024/21.3T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A função da exceptio non rite adimpleti contractus não é sancionatória, antes tem por finalidade “salvaguardar o necessário equilíbrio prestacional”.
II - A exceptio non rite adimpleti contractus não opera sem mais, por arbitrária iniciativa do excipiens, antes estando sujeita aos seguintes pressupostos: relação de sucessão no incumprimento, de causalidade e de proporcionalidade.
III - No âmbito dum contrato de arrendamento, perante a falta de realização de obras do senhorio, ao inquilino apenas assiste o direito de reduzir o montante da renda, correspondente à falta verificada, atenta a exigência de proporção e equilíbrio das prestações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 9024/21.3T8VNG-A.P1


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I – Resenha histórica do processo
1. AA e BB, casados entre si, instauraram ação de despejo contra CC e DD, pedindo:
· Ser declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre os Autores e o Réus.
· Serem os Réus condenados a pagar aos Autores as rendas vencidas e não pagas, que ascendem a 4.060,00€, bem assim como as rendas que se continuarem a vencer até à efetiva entrega do locado.
· Ser a primeira Ré condenada a entregar a fração livre e desocupada de pessoas e bens.
Fundamentaram os seus pedidos alegando terem dado um imóvel de arrendamento à Ré CC, tendo o Réu DD intervindo como fiador. Os Réus deixaram de pagar as rendas (7 meses de renda). Acresce a violação de regras de sossego (queixas do Condomínio relativamente ao barulho constante feito pela Ré, mesmo em horário de descanso).
Em contestação, a Ré CC impugnou a falta de pagamento das rendas e excessionou com a falta de condições do locado (humidade) para nele habitar, o que lhe concede o direito de suspender o pagamento das rendas, dado que os Autores não procederam à reparação, apesar de interpelados.
Ao Autores responderam à exceção, sustentando a sua improcedência.
Em sede de despacho saneador, com delimitação do objeto do litígio e dos temas de prova, foi proferido ainda o seguinte despacho: «Ao abrigo do disposto no artigo 14.º n.º 4 e n.º 5 do NRAU, notifique a Ré para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder ao pagamento das rendas vencidas no período compreendido entre dezembro de 2021 a novembro de 2022, inclusive, no valor de €6.960,00€ (…), acrescidas da quantia indemnizatória correspondente a 20% do valor devido (artigo 1041.º n.º 1 do Código Civil), ou seja, 1.392,00€ (…), o que perfaz 8.352,00€ (…).»
Não foi feito qualquer pagamento pela Ré.
Atenta essa falta de pagamento, em 26/01/2023, os Autores deduziram incidente de despejo imediato.
A Ré não respondeu.

A M.mª Juíza proferiu então decisão no sentido de «julga-se procedente o incidente de despejo imediato e, em consequência, condena-se a Ré a despejar imediatamente a ação autónoma designada pela letra “D”, (…), que deverá entregar aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens.»


2. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Ré, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1º - O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
2º - A defesa da R. em sede de contestação da ação principal obsta ao deferimento do incidente de despejo imediato;
3º - Na pendência da ação de despejo mantém-se a obrigação do arrendatário de pagamento das rendas.
4º - Pretende-se, evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da ação sem a correspondente remuneração do locador.
5º - Contudo, tendo em conta a redação do nº 5, do art. 14º, do NRAU (introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto) – ao referir-se a “em caso de deferimento do requerimento” – conclui-se que, a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da ação não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato (cfr. Maria Olinda Garcia, cit., pág. 194).
6º - Nesse sentido, há que dar relevância ao teor da contestação apresentada pela R..
7º - Com efeito, a R. alegou a falta de condições de habitabilidade, que compromete seriamente o uso e fruição do locado; a existência de mora por parte dos AA., na realização das obras, o que obrigou a R. a invocar a exceção do não cumprimento do contrato.
8º - Ora, tal situação, carece naturalmente de ser provada, não só através de prova testemunhal já indicada na contestação, como também de Inspeção ao local, para se aquilatar dos defeitos e vícios invocados na contestação e que estão na base da suspensão do pagamento das rendas.
9º - Motivo pelo qual não deveria ter sido deferido o Incidente de Despejo imediato, antes de ser dada a possibilidade à R. de fazer a prova, como aliás requereu.
10º - Com efeito, a rapidez que se pretende que caracterize o incidente de despejo imediato não poderá jamais resultar na limitação dos direitos de defesa do arrendatário ao pagamento ou depósito das rendas vencidas e da indemnização devida pelo não pagamento atempado.
11º - Os tribunais superiores têm entendido que a limitação a estas duas hipóteses redundaria numa “privação absoluta” do direito ao contraditório dos arrendatários.
12º - A este propósito refere-se no douto Ac TC 327/2018 de 27 de Junho: «.., Mais chocante seria a situação que se verificaria por regra: como explica o Tribunal, o decretamento do despejo imediato teria como consequência a extinção da ação principal em virtude da inutilidade superveniente da lide – afinal de contas, o fim prosseguido pela ação já havia sido obtido. Ora, é manifesto que tal resultaria numa manifesta má administração da justiça, possibilitando a norma contida no número 4 do artigo 14.º do NRAU um efeito jurídico que com o qual o sistema na sua globalidade não pode compactuar.
Um outro argumento que foi na nossa ótica bem invocado pelo Tribunal e que depõe no sentido da decisão, prende-se não com a alteração levada a cabo no preceito contido no número 4 do artigo 14.º do NRAU pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, mas sim com a nova redação daquele contido no número 5 que, como explica MARIA OLINDA GARCIA, ao passar a referir a expressão “em caso de deferimento”, parece conduzir à conclusão de acordo com a qual o despejo imediato não é consequência direta e necessária do não pagamento ou depósito das rendas vencidas, carecendo antes de ponderação e análise do julgador…»
13º - É inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no art. 20º da Constituição, a interpretação do art. 14º, nº 4, do NRAU, no sentido de, no incidente de despejo imediato, apenas ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.
14º - Com efeito, o entendimento segundo o qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo imediato, apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das rendas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas e impeditivas do pagamento, viola os princípios do Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea h), da Constituição da República Portuguesa - CRP), da igualdade (artigo 13.º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP). Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efetividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da CRP.
15º - A este respeito, refere Maria Eduarda Borges, cuja posição, sufragamos, …Se é verdade que a admissão de comprovativo de pagamento ou depósito das rendas e indemnizações devidas como único meio de oposição do arrendatário conduziria a uma maior celeridade processual, também é verdade que tal poderia conduzir com frequência à tomada de decisões injustas ao arrepio dos princípios do Estado de direito democrático. A celeridade em causa seria, na verdade, meramente aparente.
Além disso, para que sejam pagas ou depositadas as rendas e outros montantes que a elas estejam associadas, é necessário que elas sejam, realmente, devidas e, consequentemente, existentes e exigíveis.
Em termos práticos, parece-nos que a interpretação da norma contida no número 4 do artigo 14.º do NRAU em conformidade com a CRP redundará na sua pouca aplicabilidade, uma vez que poucos serão os casos em que o julgador estará, no momento de dedução do incidente, apto a julgar as exceções que o arrendatário – muito bem – alegue para obstar ao pagamento ou depósito das rendas.»
16º - Deve assim julgar-se inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia se as rendas são ou não devidas se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
17º - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. art. 14º n.º 4 e 5 da NRAU e, artºs 2º, 9º, 13º, 18º e 20º da CRP.
Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o Douto Despacho recorrido.»

3. Os Autores contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Da inconstitucionalidade do art.º 14º nº 4 do NRAU, por violação do princípio da proibição da indefesa;
· Se a exceção de falta de condições de habitabilidade do locado ¯ invocada pela Ré na contestação a uma ação de despejo por falta de pagamento de rendas ¯, constitui obstáculo ao decretamento do despejo imediato.

4.1. Da inconstitucionalidade do art.º 14º nº 4 do NRAU, por violação do princípio da proibição da indefesa.
Na decisão recorrida, a M.mª Juíza começou por dar nota das 2 principais correntes jurisprudenciais e doutrinais sobre a questão de «saber se é legalmente viável decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência de ação de despejo/procedimento especial de despejo, quando ainda não se decidiu se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas peticionadas, tendo por base o incumprimento contratual que estes imputam aos autores”, assinalando autores e acórdãos para cada uma das vertentes».
E concluiu: «Pela nossa parte, consideramos que no âmbito do incidente de despejo imediato, o arrendatário apenas poderá obstar ao respetivo decretamento pagando ou depositando (ainda que a título condicional) o valor das rendas vencidas na pendência da causa e da indemnização legal, não lhe sendo consentido, por via de regra, um outro tipo de defesa para obstar ao decretamento do despejo imediato.»
Ou seja, a M.mª Juíza partilha do entendimento de um efeito automático decorrente de o locatário não comprovar o pagamento ou depósito das rendas.
Sucede que o art.º 14º nº 4 e 5 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), na sua versão atual (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) foi já objeto de interpretação pelo Tribunal Constitucional (TC), órgão qualificado para o efeito de violação de preceitos constitucionais.
Não constituindo (ainda) jurisprudência obrigatória, concordamos integralmente com a interpretação do TC ¯proferida no acórdão nº 327/2018, de 27/06/2018, Relator Cláudio Monteiro [1 - , no sentido de que uma tal interpretação viola o princípio da proibição da indefesa e do princípio do contraditório, corolários do direito fundamental de acesso à justiça e da garantia de um processo justo e equitativo.
Nesse acórdão, usando-se do mecanismo previsto no artigo 80.º, n.º 3 do LTC [2], proferiu-se a seguinte decisão interpretativa:
«interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.» (negrito nosso)

4.2. Se a exceção de falta de condições de habitabilidade do locado ¯ invocada pela Ré na contestação a uma ação de despejo por falta de pagamento de rendas ¯, constitui obstáculo ao decretamento do despejo imediato
Atendendo à interpretação preconizada no acórdão acabado de referir, à qual damos integral acolhimento, incumbe então averiguar se a questão suscitada nestes autos integra fundamento relativo à “existência ou exigibilidade” do dever de pagamento da renda.
É manifesto que nos autos não está em causa a existência do dever de pagar a renda (não se discute aqui a existência e validade do contrato de arrendamento), pelo que passaremos de imediato à hipótese de exigibilidade.
Como se referiu no relatório, os Autores alegaram como fundamento da ação, a falta de pagamento de 7 meses de renda, bem como a violação de regras de sossego (queixas do Condomínio relativamente ao barulho constante feito pela Ré, mesmo em horário de descanso).
Para o que aqui releva, falta de pagamento das rendas, na sua contestação a Ré assumiu uma atitude dúbia: se por um lado refere que “sempre pagou a renda” (ponto 4 da contestação), logo de seguida alegou a falta de condições do locado, por demasiada humidade, que põe em risco a sua saúde e os seus bens (pontos 5 a 16 da contestação), considerando que tal lhe concede o direito de suspender o pagamento das rendas enquanto os Autores não procederam à reparação (pontos 18 e seguintes da contestação). Mais refere que sempre habitou no local (ponto 26) e ter já denunciado os defeitos aos Autores, que nada fizeram (pontos 28 a 30). Alegou que a denúncia das deficiências foi feita por e-mail.
Em termos probatórios, juntou várias fotografias, mas nenhum e-mail, tendo os Autores negado o alegado envio.
Trata-se então de saber se a invocada falta de condições de habitabilidade do locado constitui fundamento de “existência ou exigibilidade” do pagamento da renda.
A invocação da Ré constitui a denominada exceptio non rite adimpleti contractus", ou um cumprimento defeituoso do contrato.
Numa primeira linha, há que atender que a exceção de não cumprimento do contrato constitui uma disposição geral, aplicável a qualquer contrato.
Nessa medida, há que averiguar primeiro se as regras dos contratos especialmente regulamentados comporta alguma regra específica sobre a matéria.
No contrato de arrendamento, constituem obrigações principais do senhorio e do arrendatário, respetivamente, a de proporcionar o gozo do imóvel de acordo com os fins a que se destina e a de pagar a renda: art.º 1031º al. b) e art.º 1038º al. a) do CC.
Ainda sobre essa obrigação do senhorio, concretiza o art.º 1032º do CC que o imóvel não pode apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinado, nem carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, sob pena de o contrato se considerar não cumprido.
Em conjugação, o art.º 1074º atribui ao senhorio a obrigação de executar as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário. no mesmo sentido, regula o art.º 2º do Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados (RJOPA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 157/2006, de 08 de agosto.
No que toca ao arrendatário de um imóvel para habitação, deparado com eventuais vícios do locado, que colidam com a sua saúde ou com a falta de condições de habitabilidade e, por isso, com a necessidade de realização de obras, a lei confere-lhe os seguintes direitos/deveres:
1) Dever de avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, a fim de ele realizar as obras necessárias – art.º 1038º al. h) e 1074º nº 1 do CC e art.º 2º nº 1 do RJOPA.
2) Caso o senhorio não cumpra, o direito de solicitar ao município a sua intimação para a sua realização ou proceder à realização coerciva das obras – art.º 2º nº 2 do RJOPA.
3) Tratando-se de reparações urgentes, se depois de avisado o senhorio as não realizar, pode o locatário fazê-las extrajudicialmente, com direito ao reembolso/compensação no valor das rendas – art.º 1036º e 1074º do CC e art.º 22º-A e seguintes do RJOPA.
4) Perante uma diminuição do gozo do imóvel, poderá reduzir o montante da renda, em proporção à diminuição – art.º 1040º do CC.
5) Mover ação executiva para prestação de facto - art.º 868º e seguintes do CPC).
6) Resolver o contrato – art.º 1050º do CC.
Daqui se vê que o regime especial do contrato de arrendamento contempla soluções específicas para o problema da falta de condições de habitabilidade do imóvel, das quais não consta a total suspensão do pagamento da renda, mas tão só a redução do seu montante.
Neste sentido, acórdão do STJ: «I - O locatário só pode suspender o pagamento da renda (de toda a renda) quando se trate de não cumprimento do locador que exclua totalmente o gozo da coisa: no caso de privação parcial do gozo, imputável ao locador, o locatário apenas poderá suspender o pagamento de parte da renda.» [3]
Mas, ponderando um situação de gravidade tal que, por conjugação de diversos fatores ¯ por exemplo, grave degradação do prédio ou ameaça de ruína, entrada da água das chuvas, o senhorio, avisado, nada fez, a município também não atua com brevidade, o arrendatário não tem condições económicas para realizar as obras, as delongas do processo judicial não se compadecem com a gravidade da situação e ao inquilino também não interessa a resolução do contrato, com o abandono do imóvel , é de perspetivar o recurso à disposição geral da exceptio non rite adimpleti contractus.
Como decorre do art.º 428º nº 1 do CC, num contrato bilateral em que as obrigações são sujeitas a prazos diferentes, corporiza a exceptio non rite adimpleti contractus" a faculdade atribuída ao contraente, cuja obrigação é posterior, de não a cumprir enquanto o outro contraente não cumprir primeiro e integralmente a parte que lhe compete; da mesma feita, nos contratos em que não haja prazos diferentes para a realização das prestações, cada um pode recusar a prestação a que se acha vinculado, enquanto a contraparte não efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Não se trata, pois, de uma pura e simples recusa de cumprimento; nas palavras de Calvão da Silva, «(…) o excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento nem enjeita o dever de cumprir a prestação; pretende tão-só um efeito dilatório, o de realizar a sua prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação a que tem direito e (contra)direito ao cumprimento simultâneo.». [4]
Considerando que a função desta exceção não é sancionatória [5], antes cumprindo a finalidade de “salvaguardar o necessário equilíbrio prestacional”, parece existir hoje consenso no sentido de que a exceção de não cumprimento se pode aplicar não só aos deveres/prestações principais, mas também às prestações acessórias ou laterais, desde que se verifique a “correspetividade funcional”. [6]
Por outro lado, «(…) no caso de cumprimentos parciais ou defeituosos é doutrina e jurisprudência dominantes que, apesar da perda da sua eficácia compulsiva, a exceptio deverá ser invocada proporcionalmente à qualidade/quantidade do incumprimento, sob pena de estarmos, mais uma vez, perante um exercício abusivo (…)» [7]
Efetivamente, é hoje consensual que a exceptio non rite adimpleti contractus, não opera sem mais, por arbitrária iniciativa do excipiens, antes estando sujeita aos seguintes pressupostos: relação de sucessão no incumprimento, de causalidade e de proporcionalidade.
«Segundo a dita relação de sucessão, não poderá recusar a sua prestação, invocando a exceptio, o contraente que se encontre, ele próprio, numa situação de incumprimento/mora; a recusa de cumprir do excipiens deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la.
Por sua vez, segundo aquela relação de causalidade, a exceptio supõe a existência de um nexo de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação pelo excipiens, ou seja, a exceptio deve ser alegada tendo em vista compelir à execução da obrigação correspectiva por parte do outro contraente; se o comportamento objectivamente manifestado pelo excipens indicia não ser esse (…) efectivamente o motivo da sua recusa em prestar, a dita excepção será ilegítima e não poderá , assim, proceder.
Finalmente, por força do princípio da equivalência ou proporcionalidade, a recusa do excipiens deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta não assumir relevância no contexto da utilidade económica da prestação, o recurso à exceptio poderá também ser ilegítima». [8]
Olhando o caso em concreto, a Recorrente tomou unilateralmente a decisão de suspender totalmente o pagamento da renda. As deficiências alegadas colidem com humidade. Em termos probatórios, juntou apenas fotografias. Não juntou os alegados e-mails de denúncia dos defeitos ao senhorio, como lhe competia (art.º 423º do CPC).
Não obstante, a Recorrente continua a habitar o imóvel, o que torna legítima a presunção de que as deficiências, a existirem, não assumem gravidade suficiente para impedir a habitabilidade ou, pelo menos, que não frustraram a utilidade do imóvel para o efeito contratual. Também não se alegou situação de urgência das alegadas obras.
Assim, concluímos como se argumenta em acórdão do STJ: «Deste modo, no caso concreto, seria absolutamente desnecessário proceder à produção de prova dos factos alegados pela arrendatária (a alegada existência de vários defeitos no imóvel arrendado) para justificar uma solução que a lei não lhe permite, ou seja, para justificar a razão pela qual deixou de pagar as rendas, pois a lei não confere ao arrendatário a faculdade de, por sua decisão unilateral, deixar de cumprir esse dever, quando se mantém no gozo do imóvel sem alegar que este bem tenha perdido a aptidão para servir o fim a que se destina.
Neste quadro concreto, proceder à produção de prova para se demonstrar que o imóvel arrendado apresentava defeitos seria um ato inútil, vedado pelo princípio da proibição da realização de atos processualmente inúteis (art.130º do CPC), pois ainda que esses factos fossem provados, o arrendatário não teria na factualidade que alega uma justificação para ter deixado de pagar as rendas.
Deste modo, contrariamente ao alegado pela recorrente, este entendimento não constitui qualquer denegação de justiça. A procedência da sua alegação é que constituiria um atropelo à realização da justiça, por violação do referido princípio da proibição de atos inúteis». [9]
Esta tem sido também a solução encontrada na maioria das decisões jurisprudenciais para situações idênticas à dos autos.
Assim, desta Relação do Porto, acórdão de 25/05/2021, processo nº 10990/18.1T8PRT.P1, relator José Igreja de Matos; de 24/03/2014, processo nº n.º 3426/11.0TBVNG-A.P1, relator José Eusébio Almeida e de 14/03/2017, processo nº 27468/15.8T8PRT-A.P1, relatora Anabela Dias da Silva; do Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 20/12/2018, processo nº 1830/17.0T8VFX.L1-7, relator Carlos Oliveira e de 28/03/2017, processo nº 122/15.3T8HRT.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa; do Tribunal da Relação de Coimbra, acórdão de 17/10/2006, processo nº 1552/05.4TBCTB-A.C1, relator Távora Vítor; do Tribunal da Relação de Guimarães, acórdão de 19/11/2020, processo nº 104778/19.3YIPRT, relatora Conceição Sampaio.
Concluindo, ainda que por fundamentação diversa, é de manter a decisão recorrida.

5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo da Recorrente.

Porto, 04 de maio de 2023
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/
[2] “3 - No caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa”.
[3] Acórdão do STJ, de 11/12/1984, processo 072090, Relator Joaquim Figueiredo, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[4] João Calvão da Silva, "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória", 4ª edição, Almedina, pág. 334.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág. 406.
[6] Cf. Brandão Proença, “Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações”, 3ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 191, bem como os Autores aí referidos.
[7] Brandão Proença, ob. Cit., pág. 197.
[8] João Abrantes, “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, Almedina, 1986, pág. 86.
[10] Acórdão do STJ, de 05/07/2022, processo nº 564/19.5YLPRT.L1.S1, Relatora Maria Olinda Garcia.