Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1366/15.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO DE DOAÇÃO
MUNICÍPIO DONATÁRIO
Nº do Documento: RP201607071366/15.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 727, FLS. 14-20)
Área Temática: .
Sumário: I - Estando em causa a apreciação de um contrato doação, de natureza exclusivamente privado, em que o Município donatário se comportou como qualquer particular, são materialmente competentes para conhecer da ação os tribunais judiciais.
II - Embora as condições aceitas pelo donatário contendam com o interesse e o direito públicos, a estruturação da petição e do pedido, na configuração dada à relação jurídica controvertida pelo autor, delineia um conjunto de factos relativos ao incumprimento da cláusula de afetação ao interesse público, à indemnização, à nulidade do negócio, ao erro sobre a base do negócio ou alteração superveniente das circunstâncias, sem impor a indagação da legalidade de qualquer operação urbanística levada a cabo pelo Município para aceitar a doação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 1366/15.3T8PVZ.P1
Processo 1366/15.3T8PVZ, instância central, Póvoa de Varzim, secção cível J4 – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, viúvo, NIF ………, residente na …, …, ….-…. … – Matosinhos, propõe a presente ação, sob a forma de processo comum, contra Município …, com sede na …, ….-… Matosinhos, e União de Freguesias de …, com sede no …, … ….-… …, pedindo a condenação destes a reconhecerem que:
a) Não cumpriram culposa e voluntariamente todas as condições constantes da identificada escritura de doação, não obstante terem tido tempo mais que suficiente para o fazerem e não obstante as interpelações feitas nesse sentido;
b) E, consequentemente, a indemnizarem-no pelo valor do terreno que lhe deveriam devolver se estivesse prevista a resolução da doação na escritura, à data da propositura da ação, atualizado à data do efetivo pagamento a liquidar em execução de sentença.
c) Subsidiariamente, a ver declarado judicialmente nulo o contrato, denominado de doação, outorgado com o réu Município, em 22 de março de 1979, com fundamento na existência de cláusula nula, devendo os terrenos a restituir, sê-lo livres de pessoas e bens.
d) Subsidiariamente, a anulação por incumprimento imputável ao réu, por erro sobre a base do negócio ou por alteração superveniente das circunstâncias, culposa, por parte dos réus, determinando-se a devolução dos terrenos doados.
Alega que, por escritura pública intitulada de doação, lavrada em 22 de março de 1979, no notário privativo do Município demandado, registada sob o nº 8/79, na qualidade de radiciário e os seus pais, entretanto falecidos, C… e D…, na qualidade de usufrutuários, e o Município dividiram a sua propriedade composta de casa de habitação e lavoura, eira, quintal, terreno de cultura, pastagem e pinhal, com a área total aproximada de 68.645m2, inscrita ao tempo na matriz rústica sob o artigo 412º e na matriz urbana sob os artigos 347 e 770 todos da freguesia …, e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob os nºs 53939, a fls. 146 do livro B-158 e 55707 a fls. 150 do livro B-161, em três partes assim identificadas:
a) Parcela destinada a feira, construção de uma igreja e edifícios com a área de 35 740m2;
b) Parcela destinada a arruamentos, parques de estacionamento e ajardinamentos com a área total de 26 825m2;
c) Parcelas destinadas a construção urbana e logradouros privados com a área total de 6 080m2. Efetuada a divisão, com os seus pais declararam que doavam ao Município as parcelas identificadas nas alíneas a) e b), sendo que a constante da alínea a) se destinada a posterior transferência para o património da então Junta de Freguesia …, com a área de 35 740m2, para a construção da feira, de uma igreja e de edifícios sociais. A outra, identificada como parcela b), com a área de 26 825m2, foi destinada a arruamentos, parques de estacionamento e ajardinamento. A parcela restante, identificada como parcela c), com a área de 6 080m2, foi destinada a construção urbana e logradouros privados. A doação ficou sujeita ao cumprimento pelo donatário de dez condições, aceitas por deliberação da Câmara Municipal tomada em reunião de 09-03-1979, como consta da escritura de doação. Os réus não deram cumprimento integral às condições fixadas para a parcela descrita na alínea a). O primeiro réu não a transferiu para o património da segunda ré e ambos dão-lhe aplicação diferente da convencionada, sem que a tenham afetado ao fim para que foi doada. Entende que o Município, enquanto titular do direito e dever de controlar a legalidade urbanística, tem a obrigação de não permitir a afetação da parcela a finalidade diferente da estabelecida no plano de urbanização, por si impulsionado e aprovado e que está subjacente à doação, e, na veste de parte contratante, estava e está obrigado a não permitir a afetação do solo a finalidades distintas das que foram fixadas no contrato de doação. Acresce que nela nunca foram construídos nem quaisquer edifícios sociais nem qualquer igreja.
Na sua contestação, os réus invocam a exceção de incompetência material, por considerarem que a competência para o julgamento da ação pertence ao Tribunal Administrativo.
Notificado o autor, pugna pela improcedência da exceção, opondo que o julgamento da ação pertence à jurisdição comum.
É proferida decisão que, deferindo a competência à jurisdição administrativa, declara a incompetência material do tribunal e absolve os réus da instância.

Dessa decisão recorre o autor, assim concluindo, em síntese:
1. A relação jurídica estabelecida entre os doadores e o Município é de direito privado, sendo determinante para a atribuição da competência em razão das matéria o saber se este atuou investido do jus imperium ou em pé de igualdade com aqueles.
2. O donatário agiu no âmbito do direito privado, em pé de igualdade com os doadores, enquanto a decisão recorrida coloca a enfase na finalidade do bem doado, enquadrando a questão a jusante da relação jurídica titulada pela doação.
3. Ora, toda a atividade do Município é desenvolvida em prol do interesse público e pode fazê-lo através de relação jurídica privada.
4. Assim, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 12-07-2007 e do Supremo tribunal de Justiça de 12-03-2033, in www.dgsi.pt
5. As condições do cumprimento do contrato e se foram ou não cumpridas são, quanto ao autor, res inter alios actos.
6. Conclui na defesa da revogação da decisão recorrida, considerando competente a jurisdição comum.

O recorrido não responde à alegação do recorrente.
A instância é válida e regular, nada havendo obste ao conhecimento do recurso, cuja temática está confinada à indagação da competência, em razão da matéria, para a apreciação da relação jurídica sob discussão.

III. Iter processual relevante
1. O autor propõe a presente ação, sob a forma de processo comum, contra Município … e União de Freguesias …, pedindo a sua condenação a reconhecerem que:
a) Não cumpriram culposa e voluntariamente todas as condições constantes da identificada escritura de doação, não obstante terem tido tempo mais que suficiente para o fazerem e não obstante as interpelações por si feitas nesse sentido;
b) E, consequentemente, a indemnizarem-no pelo valor do terreno que lhe deveriam devolver se estivesse prevista a resolução da doação na escritura, à data da propositura da ação, atualizado à data do efetivo pagamento a liquidar em execução de sentença.
c) Subsidiariamente, a ver declarado judicialmente nulo o contrato, denominado de doação, outorgado entre o autor e o réu Município, em 22 de março de 1979, com fundamento na existência de cláusula nula, devendo os terrenos a restituir, sê-lo livres de pessoas e bens.
d) Subsidiariamente, anulado por incumprimento imputável ao réu, por erro sobre a base do negócio ou por alteração superveniente das circunstâncias, culposa, por parte dos réus, determinando-se a devolução dos terrenos doados.
2. Como causa de pedir aduz, em síntese, que, por escritura pública intitulada de doação, lavrada em 22 de março de 1979, no notário privativo do Município demandado, registada sob o nº 8/79, na qualidade de radiciário e os seus pais, entretanto falecidos, C… e D…, na qualidade de usufrutuários, e o Município dividiram a sua propriedade composta de casa de habitação e lavoura, eira, quintal, terreno de cultura, pastagem e pinhal, com a área total aproximada de 68 645m2, inscrita ao tempo na matriz rústica sob o artigo 412º e na matriz urbana sob os artigos 347 e 770 todos da freguesia …, e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob os nºs 53939, a fls. 146 do livro B-158 e 55707 a fls. 150 do livro B-161, em três partes assim identificadas:
a) Parcela destinada a feira, construção de uma igreja e edifícios com a área de 35 740m2;
b) Parcela destinada a arruamentos, parques de estacionamento e ajardinamentos com a área total de 26 825m2;
c) Parcelas destinadas a construção urbana e logradouros privados com a área total de 6 080m2. Efetuada a divisão, o autor e seus pais declararam que doavam ao Município as parcelas identificadas nas alíneas a) e b), sendo que a constante da alínea a) se destinada a posterior transferência para o património da então Junta de Freguesia …, com a área de 35740m2, para a construção da feira, de uma igreja e de edifícios sociais. A outra, identificada como parcela b), com a área de 26825m2, foi destinada a arruamentos, parques de estacionamento e ajardinamento. A parcela restante, identificada como parcela c), com a área de 6080m2, foi destinada a construção urbana e logradouros privados. A doação ficou sujeita ao cumprimento pelo donatário de dez condições, aceitas pelo réu, por deliberação da Câmara Municipal tomada em reunião de 09-03-1979, como consta da escritura de doação. Os réus não deram cumprimento integral às condições fixadas para a parcela descrita na alínea a). O primeiro réu não a transferiu para o património da segunda ré e ambos dão-lhe aplicação diferente da convencionada e não a afetaram ao fim para que foi doada. O Município, enquanto titular do direito e dever de controlar a legalidade urbanística, tem a obrigação de não permitir a afetação da parcela a finalidade diferente da estabelecida no plano de urbanização, por si impulsionado e aprovado e que está subjacente à doação, e, na veste de parte contratante, estava e está obrigado a não permitir a afetação do solo a finalidades distintas das que foram fixadas no contrato de doação. Acresce que nela nunca foram construídos nem quaisquer edifícios sociais nem qualquer igreja.
3. Na sua contestação, os réus invocam a exceção de incompetência material, por entenderem que a competência para o julgamento está deferida à jurisdição administrativa.
4. Notificado o autor, pugna pela improcedência da mesma.
5. Por decisão de 30-03-216, o Tribunal é declarado materialmente incompetente para o conhecimento da ação, com a consequente absolvição dos réus da instância. Reputa que a competência do tribunal administrativo é determinada pela existência de uma relação jurídico-administrativa e não pela presença de uma pessoa coletiva de direito público. Face ao alegado pelo autor, está em discussão o cumprimento ou incumprimento pontual, por parte do réu Município, de algumas condições do contrato de doação celebrado entre o autor e os seus pais, entretanto falecidos, e o réu Município. Considerando que a apreciação e decisão dos pedidos formulados pelo autor pressupõem o apuramento da violação das condições constantes da referida escritura pública, em que é contraente o réu Município, pessoa coletiva de direito público, que a outorgou na prossecução das atribuições e competências que lhe estavam legalmente atribuídas, a apreciação dos pedidos do autor implica necessariamente um juízo sobre a validade e vigência daquelas condições aceites pelo réu Município, que aceitou a viabilização da construção na faixa de terreno que ficou a pertencer ao autor, isentou-o do pagamento de taxas de construção e pagou a execução de infraestruturas previstas no plano referido na escritura e o custo de emissão de alvará de loteamento para a parcela que continuou propriedade do autor, abdicou das mais-valias, do valor da licença de obras e da taxa de ocupação perpétua de um lugar na feira, com a área de 6 m2. Assim conclui que o conflito que opõe o autor ao Município e à Junta de surge no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, pois que não se discute na presente ação uma qualquer atividade de natureza particular ou privada do Município e da Junta de Freguesia. Entende ser competente para dirimir o pleito o tribunal administrativo e não o tribunal comum.

IV. Enquadramento jurídico
Consabido que a competência do tribunal se afere “(…)pelo quid disputatum (quid decidendum), em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, resolvendo-se de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor e respetivos fundamentos, temos de centrar-nos nos moldes em que está definida a causa de pedir[1].
O pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação, ou seja, ao “círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir”[2], à “enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar”[3] ou “a providência jurisdicional solicitada pelo autor deve entender-se, não em termos abstractos, mas nos termos positivos e concretos definidos na petição inicial, com referência portanto ao direito que se pretende fazer valer e à incidência material desse direito”[4].
A causa de pedir é o acto ou facto jurídico (...) donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito”.[5]
A ação judicial em apreço desenvolve-se no quadro da responsabilidade civil contratual dos demandados, visando o reconhecimento do inadimplemento das obrigações contratualmente assumidas pelo réu Município e consequências advenientes, designadamente indemnizatórias. Sabemos, no entanto, que o tribunal, apesar de atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir e ao pedido, não está vinculado às qualificações jurídicas do autor[6].
O autor configura a ação a partir do contrato de doação que ele e seus falecidos pais celebraram com o réu Município e do incumprimento, por este, das condições a que nele se vinculou, as quais passam pela “divisão” de um prédio dos doadores, retendo estes a propriedade de uma parcela destinada a construção urbana e logradouros com a área total de 6080m2 e doando ao Município as duas restantes parcelas: uma destinada a feira, construção de uma igreja e edifícios com a área de 35740m2, esta para a posterior transferência para o património da então Junta de Freguesia …, e outra destinada a arruamentos, parques de estacionamento e ajardinamentos com a área total de 26825m2. O Município aceitou a viabilização da construção na faixa de terreno que ficou a pertencer ao autor, isentou-o do pagamento de taxas de construção e pagou a execução de infraestruturas previstas no plano referido na escritura e o custo de emissão do alvará de loteamento para a parcela do autor, abdicou das mais-valias, do valor da licença de obras e da taxa de ocupação perpétua de um lugar na feira, com a área de 6 m2 (cfr. escritura de doação).
Ora, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigo 64º do Código de Processo Civil[7]). Por outro lado, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais (artigo 212º, 3, da Constituição da República Portuguesa). Neste âmbito, “[E]stão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico- civil. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”[8].
Por seu turno, a relação jurídico-administrativa é “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”[9]. De todo o modo, [É] preciso, porém, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições”[10].
O vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[11] delimita o âmbito da jurisdição administrativa segundo um critério material que combina os conceitos de relação jurídica administrativa e função administrativa, interligados com o conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público, definindo, numa fórmula ampla que “[O]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais[12]. E o artigo 4º, 1, f), numa das concretizações, a que releva para o caso, confere competência aos tribunais administrativos para a apreciação de “questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”. A propósito, afirma-se que “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem”[13].
Estas posições doutrinárias, se derramam alguma luz sobre a matéria, não são absolutamente clarificadoras da noção de relação jurídico-administrativa, como lapidarmente reconhece Vieira de Andrade ao referir “Esta questão sobre o que se entende por “relação administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa”, no sentido estrito tradicional da “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração (…)” [14].
O que se discute na ação, em primeira linha, é a relação jurídica que dimana de um contrato de doação, tipicamente um contrato de natureza civilística, que convocaria as normas do direito privado, no âmbito das quais o conflito parece dirimível. Porém, a questão não é tão linear, pois os encargos impostos ao Município contendem com o direito administrativo e procedem de uma entidade pública que visa a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. E neste campo, “a doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e inter administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas”[15].
Nesta ação está em jogo a fiscalização dos atos jurídicos de uma pessoa coletiva de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo, cuja violação a pode fazer incorrer em responsabilidade civil, designadamente pela omissão do exercício do dever de transferir o prédio urbano identificado para o património da União de Freguesias …. Sendo inquestionável que uma das partes contratantes é uma entidade pública que atua em vista da realização de um interesse público, a nossa hesitação reside em definir se a resolução do presente litígio confronta o tribunal com a necessidade de interpretar e de aplicar normas de direito público ou de direito privado. Efetivamente, o Município é uma pessoa coletiva de direito público, com capacidade específica de vinculação jurídico-administrativa, as obras a edificar nas parcelas que lhe foram doadas servem as necessidades das populações e a sua edificação integra-se na sua função administrativa, mas as partes não submeteram a sua regulação material ao direito administrativo[16]. Punctum saliens, é aferir se está em causa uma relação jurídico-administrativa, tendente a viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações bilaterais e poligonais, externas e internas, entre a Administração e as pessoas civis e entre entes da Administração, que possam ser reconduzidas à atividade de direito público, cuja caraterística essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado. Trata-se, contudo, de um conceito suficientemente dúctil e flexível para enfrentar os desafios do “novo direito administrativo”[17], mas que não encerra a fácil delimitação da competência material dos tribunais administrativos.
Posto isto, não obstante estar em causa, do ponto de vista pré-contratual, o regime regulado por normas de direito público, a verdade é que a ação respeita a responsabilidade civil contratual emergente do incumprimento de um negócio jurídico que não está, em si mesmo, submetido ao direito público, pelo que propendemos para considerar que a sua resolução não envolve a convocação e aplicação de regimes normativos do direito público[18].
Ainda assim, continuamos a entender que o Município, para poder aceitar as condições da doação, agiu no domínio do jus imperii e obrigou-se a afetar os bens doados a fins de interesse público, o que poderá colocar questões relativas à interpretação, validade ou execução de contratos de objeto passível de ato administrativo (artigo 4º, nº 1, alínea f), do ETAF), e contemplar uma relação jurídica administrativa a que serão aplicáveis normas que atribuem prerrogativas de autoridade ou impõem deveres, sujeições ou limitações especiais a todos ou a alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza jurídico-privada[19].
Os contratos de objeto passível de ato administrativo correspondem aos que são celebrados ao abrigo da autonomia pública contratual e que versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei prevê serem atingidos mediante a prática de um ato administrativo. Trata-se dos chamados contratos administrativos substitutivos e integrativos de atos administrativos, que constituem casos em que a administração em vez de alcançar o efeito jurídico pretendido através de ato administrativo, ou de o alcançar totalmente por essa via, “celebra um contrato com o destinatário desses efeitos, acordando com ele sobre o modo de harmonizar reciprocamente os interesses que cada um tem na situação concreta em causa”[20]. Se bem atentarmos no contrato de doação em apreço, verificamos que o Município submeteu-se a um conjunto de condições que poderiam reconduzir-se à prática de atos administrativos, como sejam a divisão (loteamento/destaque) do prédio dos doadores, a elaboração de um plano de urbanização para a parte rústica, com projeto de infraestruturas e respetiva execução, a emissão de alvará de loteamento com dispensa de pagamento de mais-valias, taxas e cedências de terreno, a concessão de licença para obras a levar a cabo pelos donatários e a ocupação perpétua pelos doadores e seus descendentes de um lugar na feira. No fundo, há um conjunto de atos administrativos a que o Município se vinculou, mas não alcançou o efeito pretendido através da sua realização imediata, antes acordou com os doadores um modo de conjugação dos interesses recíprocos. Nessa linha de pensamento, a efetivação da responsabilidade contratual do Município cairia na competência dos tribunais administrativos delimitada pela citada al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Todavia, ante o pedido formulado e a estrutura da ação, o tribunal não é chamado a pronunciar-se sobre essas matérias, mas apenas sobre um dos encargos assumidos pelo Município a afetação da parcela descrita na alínea a) da doação a fim diverso do contratado, a finalidade diferente da estabelecida no plano de urbanização que subjaz à doação. E, nessa veste, parece não haver lugar a qualquer litígio do estrito foro administrativo.
Assim balanceados, não podemos deixar de apelar ao princípio da residualidade seguido pela regra da competência dos tribunais da ordem judicial, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional e, por isso, havendo dúvidas quanto à competência dos tribunais administrativos, superamo-las no sentido da competência dos tribunais judiciais. Em rigor, está em causa a apreciação de um contrato de natureza exclusivamente civil e privado celebrado pelas partes – doação – em que o Município se comportou como qualquer particular que é beneficiado pela doação, aceitando as condições previamente acordadas. Embora estas condições contendam com o interesse e o direito públicos, porque vinculantes do donatário, a verdade é que a estruturação da petição e do pedido, na configuração dada à relação jurídica controvertida pelo autor, confina-se a um conjunto de factos que enquadrarão o incumprimento da cláusula de afetação estipulada, a indemnização, a nulidade do negócio, o erro sobre a base do negócio ou por alteração superveniente das circunstâncias, sem impor a indagação da legalidade de qualquer operação urbanística levada a cabo pelo Município para aceitar a doação. Não questionamos que, a operação de divisão referenciada na escritura de doação constitui, materialmente, uma operação de loteamento – ato tipicamente administrativo , mas não vem invocada a sua invalidade jurídica. Vale por dizer que a ação, ao invés de supor a discussão e anulação de atos administrativos, antes exige a verificação dos vícios apontados ao negócio privado a doação e a atribuída inobservância pelo donatário do destino emprestado a uma das parcelas doadas. O demais quadro circunstancial e factual aduzido não esmaece a natureza civilística da pretensão do autor, razão pela qual concluímos que [E]stando em causa um comportamento da administração pública que se julga ilegal ou arbitrário, o Tribunal competente será o tribunal comum, se à questão forem aplicáveis normas de direito civil”[21].
Em suma, face ao que dissemos, consideramos a jurisdição comum competente para o conhecimento da ação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da sua legal tramitação.
As custas do recurso serão suportadas em função do vencimento que for fixado a final.

V. Dispositivo
Na defluência do exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em revogar a decisão recorrida, declarando para a ação a competência material dos tribunais judiciais e determinando o prosseguimento dos seus legais termos.

Custas do recurso fixadas em função do vencimento final.
*
Porto, 7 de julho de 2016.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
___________
[1] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 91; in www.dgsi.pt: Ac. do Tribunal de Conflitos de 7-06-2016, conflito 04/16.
[2] ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, 1981, Vol. I, pág. 201.
[3] MANUEL ANDRADE, ibidem, pág. 297.
[4] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil, Anotado, III 106-107).
[5] MANUEL ANDRADE, ibidem, pág. 297.
[6] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 14-5-2009, proc. 09S0232; os Ac. do Tribunal de Conflitos de 20-06-2013, conflito 13/13.
[7] Aprovado pela lei 41/2013, de 26 de junho, doravante identificado como “NCPC”.
[8] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 815.
[9] J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Lições, 2000, pág. 79.
[10] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativo”, Vol. I, págs. 26 e 27.
[11] Aprovado pela lei n.º 13/2002, de 29 de fevereiro.
[12] VIEIRA DE ANDRADE, ibidem, pág. 103, e MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, pág. 258.
[13] FERNANDES CADILHA, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2007, págs. 117 e 118.
[14] ibidem, pág. 55.
[15] JÓNATAS MACHADO, Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça administrativa, A Reforma da Justiça Administrativa, págs. 80 e 93.
[16] M. REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, 1999, pg. 12.
[17] GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ibidem, págs. 566 e 567.
[18] In www.dgsi.pt: Ac. do Tribunal de Conflitos de 3-12-2015, conflito 38/15.
[19] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, p. 175.
[20] MARIA HELENA BARBOSA FERREIRA CANELAS, in “Julgar”, n.º 15, Setembro – Dezembro 2011, pág. 122.
[21] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 123; em sentido similar, Acs. do Tribunal de Conflitos de 12-07-2007, conflito 012/07, e 19-12-2007, conflito 015/07.