Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
681/13.5PBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO DA INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Nº do Documento: RP20150204681/13.5PBMAI.P1
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, um requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida em que esta se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e indica testemunhas não inquiridas no inquérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 681/13.5PBMAI.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso do douto despacho do Mº Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Valongo que rejeitou, por inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1: Interpõe a arguida recurso do despacho que rejeitou o seu requerimento de abertura de instrução, por ineptidão para esse fim.
2: A instrução configura-se como fase processual tendente a desenvolver uma atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito, por forma a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal.
3: Resumir a instrução a uma mera fase acessória de confirmação do despacho de acusação ou arquivamento é condicioná-la a uma atividade meramente legalista e portanto inútil.
4: Na instrução podem e devem ser efetuadas diligências probatórias complementares, com vista a apurar os factos, pelo que a requerida intervenção da arguida é essencial.
5: Para proferir, em consciência, despacho de acusação ou arquivamento, de pronúncia ou não pronúncia, deve o Tribunal ponderar os elementos de prova das duas partes em litígio.
6: Só com a admissão da abertura de instrução requerida pela arguida, poderá o Tribunal levar a cabo essa tarefa de forma consciente e rigorosa, pois senão apenas tem nos autos uma versão dos factos.
7: Devendo dar-se igual oportunidade à arguida na sua defesa, de carrear para os autos os seus factos e os seus meios de prova.
8: O RAI apresentado expõe a versão da arguida dos factos e indica a prova que sustenta tal posição, reportando-se aos mesmos factos dos autos.
9: Não o admitir, é retirar à arguida um meio de defesa, pois pode resultar das diligências instrutórias a perceção pelo Tribunal de outra realidade diferente da que consta no despacho de acusação.
10: Já vimos que a instrução deve ser um meio complementar de realização de diligências pós-inquérito, pelo que deve a mesma ser admitida, bem como as diligências ali requeridas, em cumprimento do espírito que subsiste na legislação processual penal.
11: Devendo o despacho proferido de rejeição do RAI ser substituído por outro que determine a sua admissão e declare aberta a instrução.
12: A realização das requeridas diligências na instrução permitirá ao Tribunal concluir em sentido diverso do constante no despacho de acusação proferido, assim se evitando a prática de atos inúteis pelo Tribunal.
13: O RAI apresentado contém as razões de facto que levam a arguida a pugnar pela não sujeição a julgamento, pelo que reveste todos os formalismos legais e, por isso, deve ser admitido, assim e fazendo inteira JUSTIÇA.»

O Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Mº Juiz a quo sustentou o despacho recorrido

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso, por, em, seu entender e contra o que se sustenta no douto despacho recorrido, o requerimento em causa conter as razões da discordância em relação à acusação.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se o requerimento de abertura de instrução nestes autos apresentado pela arguida e recorrente deverá, ou não, ser rejeitado, por inadmissibilidade da instrução, nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:
«Requerimento de abertura de instrução formulado pela arguida B… a fls. 50 e ss:
Não se conformando com a acusação particular de fls. 39 e ss, na qual se imputa à arguida a prática de crime de injuria, a arguida B…, veio a fls. 50 e ss, requerer abertura de instrução.
Alegou, em suma, que não se conforma com a acusação particular e apresentou a sua versão dos factos. Referiu não ter insultado a ofendida.
Requereu a inquirição de testemunhas.
*
Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal ela instrução - artigo 287º, n° 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é competente.
O requerimento é tempestivo - artigo 113° do CPP.
O requerente tem legitimidade - artigo 281º n.º 1, al. a), do C.P.P..
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
*
Apreciemos.
Consigna-se, desde já, que o presente despacho tem por base, em grande parte, os fundamentos expostos pelo Exmo Dr. Pedro Daniel Dos Anjos Frias, in Revista Julgar nº 19 (Jan - abril de 2013) sob o artigo "Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução".
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento, «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.º, n° 1 do Código de Processo Penal).
A fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações - Acórdão da Rel. de Lisboa de 12.07.1995, CJ XX-lV-140, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III. pág. 128.
A instrução «visa a comprovação judicial da decisão ele deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.º, n.º l, do Código de Processo Penal).
Posto isto, qual é o significado da expressão comunicacional comprovar?
Comprovar significa concorrer para provar; corroborar; confirmar; demonstrar; vir corroborar (Vd: «Dicionário da Língua Portuguesa», Porto Editora, 5 edição. pág. 346: "Novo dicionário Lello da Língua Portuguesa», Porto, Lello Editores 1996. pág 449; «Grande Dicionário da Língua Portuguesa - Cândido de Figueiredo, Lisboa Bertrand Editora, 25. Edição pág, 666).
Assim, a ideia da comprovação pretende referir-se, em um modo de ver dinâmico, a actividade de comprovar propriamente dita e, em um modo de ver estático, ao resultado dessa actividade (de comprovar).
Aqui chegados podemos tentar uma primeira redução compreensiva sobre o “para que serve” a instrução, afinal, um dos âmagos da problemática.
Trata-se de verificar se se confirma (corrobora ou demonstra, etc.) o acerto da decisão de acusar, se esta é, com efeito e passe a expressão, o fruto são de um pomar: se é decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito e ai analisados pelo Ministério Público.
De forma apodíctica: trata-se de verificar se se corrobora ser a acusação uma decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito (pressupostos de facto) e se a mesma se incrusta validamente no ordenamento jurídico processual penal (pressupostos de direito).
Desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, seja, desde 1987, se diz abundantemente que a instrução, coma fase facultativa de um determinado processo penal em curso, é um puro «instrumento de controlo» (A expressão é, por último, utilizada por Nuno Brandão, «A Nova Face da Instrução» in RPcc, Ano 18, n. 2 e 3. Abril-Setembro 2008).
Daí que a actividade de comprovação globalmente considerada, em que afinal se traduz a ideia de controla jurisdicional a realizar sobre a decisão do Ministério Público, não se possa transformar em outra realidade materialmente diversa.
Assim, a comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões ele facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte, a julgamento, vd. os artigos 286º, n.º 1. 287º, n.º 5 1, al. b), e 2, 288°, n.º 4, e 308º, n. º 1, todos do CPP.
Dos dois pontos anteriores podemos extrair as seguintes proposições preliminares conclusivas:
Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar.
Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc.
Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe).
Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecta, desde logo, o inquérito lato sensu.
Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada. o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido) ou como sucede in casu as razões de discordância relativamente à acusação particular.
Quarta: A instrução configura unicamente um momento de 'controlo" da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.
O pressuposto necessário para que o arguido possa requerer a abertura da instrução é que 'tenha sido objecto de uma acusação, vd. o artigo 287.º, n.º 1. al. a), do CPP.
E por ter sido acusado e entender que não deve ser submetido a julgamento, o arguido irá suscitar a intervenção de um terceiro, o juiz de instrução, o que fará mediante a apresentação de um requerimento onde se contenham as suas razões ele discordância, com o objectivo de demonstrar o desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam.
Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de acusar com que culminou o concreto processo onde foi acusado, o arguido terá que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento.
O chamamento do juiz de instrução destinar-se-á, como vimos, apenas e tão só, a averiguar (comprovar) se, naquele concreto processo composto pelos mais diversos elementos, se comprova, ou não, o bem fundado (o acerto) do Juízo que o Ministério Público efectuou com base nos mesmos e corporizado na decisão de acusar.
A instrução configura, como é sabido, um puro momento de controlo de uma actividade pretérita e depende de um impulso de terceiro - o arguido. Este impulso concretiza-se mediante a apresentação elo requerimento de abertura de instrução que não se pode limitar a contestar a acusação mas, ao invés, eleve atacar os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou os meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii) ou mesmo o procedimento (latu senso) concretamente adoptado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii).
Assim, o requerimento do arguido, ainda que não sujeito a formalidades especiais, tem que conter, em ordem às finalidades legais da instrução, desde logo e, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública (ou particular, como sucede in casu) – vd. o n.º 2 do artigo 287 do CPP.
Daí que a discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. E qual seria a congruência endoprocessual deste modo de perceber as coisas?
A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação, tornando a dedução desta, em face de tal omissão e por forca desta, incompreensível, indevida, e sempre, em qualquer dos casos, processualmente desalicerçada ou injustificada.
Assim, a discordância relativamente à acusação terá que passar necessariamente e a título meramente exemplificativo por tópicos como estes:
- O que é que não foi feito no inquérito e por causa disso foi deduzida acusação?
- O que se fez no inquérito não basta para deduzir acusação e porquê?
- O que é que foi desatendido no inquérito e por assim ter sido a actividade culminou na dedução de acusação?
- Que meios de prova colhidos no inquérito não foram valorados de todo, ou foram mal valorados e por assim ter ocorrido está o despacho final inquinado?
- Que diligências ou provas deveriam, à evidência, ter sido realizadas ou recolhidas, e por tal não ter sucedido, não espanta que a decisão final fosse de acusar?
- Qual foi o erro de subsunção jurídico-penal da factualidade imputada e quais são as consequências que desse erro se projectam sobre a finalidade intrínseca da instrução requerida pelo arguido, isto é, a sua não submissão a julgamento?
- Quais foram os elementos que o Ministério Público não considerou e de onde resultaria que isto e aquilo não corresponde à verdade?
- Quais foram as diligências que se realizaram e que acabaram desconsideradas, apesar da sua relevância, sem se saber porquê, com a dedução do despacho de acusação?
Etc.
Nisto consistem as razões de facto e/ou de direito a que alude o artigo 287.º n.º 2 do CPP e que terão que advir da análise que o arguido realize sobre o conteúdo do inquérito que culminou com a decisão de acusar, isto, obviamente, sem prejuízo das situações verdadeiramente patológicas que corrompam o próprio libelo como, por ex. se os factos aí descritos não constituírem crime.
Razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar, afinal uma exigência do n.º 2 do artigo 287º do CPP que, sublinhamos, tem consequência(s) directa(s) sobre o conteúdo do requerimento que se apresenta para despoletar a fase da instrução.
Há condições que o requerimento apresentado pelo arguido tem que conter, preencher ou observar para, afinal, ser prestável à funcionalidade a que vem votado.
Tais condições são as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar com o recorte e implicações para estas acima referidos, sendo certo que só definidas deste modo podem tais razões de discordância ser aptas a fundar os alicerces em que assentará a actividade de comprovação que se solicita ao juiz, só assim será possível, com efeito, concretizar as finalidades legais da instrução.
É este o critério para sanear as razões, que servem para realizar a comprovação daquelas outras que, servindo para muitas outras coisas, não prestam, de facto, para esse efeito, não têm essa funcionalidade, sequer potencial.
Donde, não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite:
- A apresentar uma mera versão ou contraversão factual - ainda que espelho de uma intenção verosímil - totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada}:
- A repetir ou a completar o inquérito:
- A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação):
- A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i): ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade 'nova" fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii) 1:
- A pretender antecipar a fase do julgamento isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento;
- A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado.
O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.º 2 do artigo 287º com o n.º 4 do artigo 288º, ambos do CPP.
Assim, sem inquérito ou sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar.
Sublinha-se, de facto, que se a fase da instrução se caracteriza pela actividade de comprovação, se esta, por sua vez, consiste numa actividade de demonstração de confirmação, atribuída a um terceiro (o juiz) e que tem por objecto o inquérito (como actividade) e o juízo do Ministério Público corporizado na decisão de acusar com que aquele findou, então será mister que o requerimento que se apresenta para abrir esta fase tenha que possuir um conteúdo concreto que se ligue umbilicalmente com o tipo de actividade que se vai desenvolver na instrução e, justamente por isso, se adeqúe às finalidades legais desta.
Do exposto resultam já projecções ou reflexos vários sobre o tipo de razões de discordância relativamente à acusação, a que alude o artigo 287º, n.º 2, e que devem necessariamente constar do conteúdo do requerimento por mero do qual se pretende catalisar a comprovação judicial da decisão de acusar.
Serão as razões de discordância vinculada, como as definimos, de facto e/ou de direito relativamente à decisão de acusar.
Daí que, ante a incontestada proibição da prática de actos inúteis, quando nada de relevante em ordem às referidas finalidades se diga no requerimento: para que servirá este?
Para tudo com certeza, mas já não, efectivamente, e de fundo, para verificar se a decisão de acusar, surgiu de modo fáctico e regular como consequência da actividade desenvolvida no inquérito,
De facto, nas situações em que a instrução e impulsionada pelo arguido o requerimento deste, ainda que não sujeito a formalidades especiais, deverá conter em ordem às finalidades da instrução, desde logo e ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação publica ou particular
Logo, um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada.
Igualmente, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de uma versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto critico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais,
Relembra-se que o requerimento de abertura de instrução não é idêntico à contestação nem tem igual finalidade.
Em síntese, só mediante um requerimento em que se respeite os conteúdos c limites assinalados pela finalidade legal da instrução se poderá levar a cabo a discussão sobre a actividade do MP corporizada no seu despacho acusatório, ou seja, só assim se poderá realizar a actividade de comprovação judicial da dedução de acusação por parte elo MP, ou seja, só assim serão respeitadas as finalidades legais da Instrução.
Ora, nos termos em que a arguida requereu a instrução, com a alegação de realidade diversa da constante na acusação particular, constata-se que o requerimento apresentado não tem um conteúdo que permita controlar a actividade da assistente ou seja saber se a acusação (particular) foi ou não, "o fruto são de um pomar".
Por meio deste requerimento não se consegue, nem se permite, demonstrar ou concluir, pelo desacerto da decisão de acusar Quando muito pretende-se contestar os factos vertidos na acusação, Mas nunca poderá ser (ou ter aptidão para constituir) um requerimento idóneo à abertura da fase da instrução.
De facto, um requerimento com um conteúdo deste género é um requerimento que surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução, que está em contradição insuperável com as mesmas e, por isso, é imprestável para realizar a actividade típica e única da instrução.
E o mesmo vale para todos os requerimentos que se apresentem fundados apenas em versões diversas dos factos, em negações motivadas, em contestações, claras ou encapotadas, sem nunca olharem criticamente para dentro do inquérito.
Concluindo: Para poder ser o catalisador da fase da instrução, o requerimento apresentado pelo sujeito processual arguido tem que possuir um conteúdo que o comprometa decisiva e inexoravelmente com as finalidades legais da instrução.
Mas e quando assim não seja?
Antecipando, deverá o requerimento ser rejeitado.
Perante um requerimento que não contem os elementos legalmente exigíveis a realização das finalidades legais da instrução (tal como definidas positivadas pelo Legislador) e que assim não pode endógena e inexoravelmente concretizar a garantia de defesa que a instrução, por sua vez, consubstancia, não deve ser admitido sob pena de irremediável contradição legal.
Não o fazer, isto é, admitir o requerimento e prosseguir por este caminho ser a dar mais razões às premonitórias palavras do Sr. Prof. Figueiredo Dias, palavras recentes, e que aqui me permito transcrever:
«Continuo todavia a prever o dia em que a instrução será eliminada como fase processual autónoma; (...). Uma tal eliminação será consequência, por uma parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase - como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do MP de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito - não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis: antes ter sido frequentemente desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Distorção que persistiu mesmo depois que a revisão de 1998 tentou, timidamente embora, atalhar a esta perversão. E sem que possa prever-se com fundamento, como também opinou Nuno Brandão, que as alterações agora introduzidas façam esperar que a situação se modifique.» (in DIAS. Jorge de Figueiredo, «Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português». Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, N.ºs 2 e 3, Abril-Setembro 2008, Coimbra Editora, pág. 376).
Assim, a apresentação de um requerimento para a abertura da instrução, por banda do arguido, cujo conteúdo esteja em contradição com as finalidades legais da instrução, não deve ser admitido por, muito justamente, não permitir a comprovação judicial da decisão de acusar, ou dito por outra forma, tudo o que extravase ou que contrarie as finalidades da instrução não é instrução. E verdadeiro extraneu em relação a esta.
Esta derradeira afirmação entronca directamente com a problemática das causas de rejeição do requerimento para a abertura da instrução que o legislador definiu no artigo 287º, n .º 3, do CPP, de entre elas, com o conceito de inadmissibilidade legal.
Prescreve o artigo 287º, n.º 3, o seguinte:
«O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução
No que respeita à inadmissibilidade legal da instrução: que aqui releva apreciar refira-se aos processos especiais, conforme refere o artº 286º, nº 3, do CPP.
Quando o exercício da acção penal se concretiza na forma de processo comum, o arguido, pode suscitar o controlo desse exercício ao juiz, o que fará mediante a apresentação do requerimento para a abertura da instrução, nos termos do artigo 287º, n.º 1, al. a), e 2, do CPP.
Porém, quando tal requerimento se apresente, a margem de dúvida, construído de modo irrito para o fim (legal) a que se pode destinar (a não comprovação judicial da decisão de acusar), quando o mesmo não tenha aptidão intrínseca para despoletar e consubstanciar a actividade típica da instrução, não se vê como possa ou deva ser recebido.
Quando tal suceda, não se vê como seja possível considerar tal requerimento legalmente admissível para o desiderato que tem de encerrar sem, do mesmo passo, se esboroarem as finalidades legais da fase da instrução.
Será esta uma patologia reconduzível igualmente à inadmissibilidade legal da instrução, patologia e de génese material.
Esta linha condutora concretizar-se-á em todas aquelas situações em que a instrução não pode desenvolver-se, onde, de facto, a actividade típica da comprovação judicial está impedida à partida por força do concreto conteúdo do requerimento que o arguido apresenta para abrir a fase jurisdicional de instrução.
De facto, quando o requerimento apresentado pelo arguido não contenha um conjunto de razões vinculadas de discordância com raízes no inquérito e no que aí ocorreu fica irremediavelmente impossibilitada a concretização das finalidades legais da instrução.
Tal sucederá, como vimos já, seja quando o requerimento se esgota na negação pura e simples dos factos vertidos na acusação (contestação simples), seja quando se resume a uma mera versão ou contraversão factual (contestação motivada}, seja quando se limite à alegação de factualidade exógena ou exterior que apenas por meio do requerimento entra no procedimento curso.
É indiscutível na jurisprudência, no que concerne ao requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo assistente, a relevância do conteúdo deste em decorrência da parte final do disposto no artigo 287º, n.º 2, do CPP, constituindo causa de rejeição do mesmo, Justamente por inadmissibilidade legal, sempre e quando no concreto conteúdo desse requerimento o assistente não deduza a «acusação alternativa». E a possibilidade da prolação de um despacho de aperfeiçoamento está vedada por força da jurisprudência uniforme constante do Acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ de 12/05/2005, publicado no DR. I Série, de 4/11/2005.
Assim, o RAI apresentado pelo arguido que se limita a negar a prática dos factos e a consignar que os factos se terão passado como relatado aquando do seu interrogatório, não se mostra apto â realização das finalidades da instrução.
Ora, nas faz qualquer sentido admitir um requerimento apresentado pelo arguido cujo conteúdo dê azo á prática de actos inúteis, que dê azo a um simulacro ele julgamento, que ao fim permita tudo menos aquilo para que foi apresentado: a abertura de instrução com o objectivo de comprovar o "mal" fundado do despacho de acusação.
Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta será legalmente inadmissível.
Temos para nós ser esta a única consequência compatível com a natureza do vício de fundo, de evidente ineptidão, de que padecerá tal requerimento.
Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase da instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto-responsabilização do sujeito processual arguido.
Doutra banda, entendemos que, perante um requerimento com tais patologias de conteúdo, não está em causa a prática de um acto meramente irregular que cumpra ser sanado mediante a prolação de um despacho de aperfeiçoamento. Este tipo de despacho apenas se justificaria para o esclarecimento ou correcção de um ponto ou outro do requerimento, para limar uma qualquer aresta, Já não se justifica aperfeiçoar o que ab initio não tem qualquer prestabilidade para a concretização das finalidades legais da instrução (Também ao assistente, quando apresenta um requerimento em cujo conteúdo não se destrince a «acusação alternativa», é negado, por jurisprudência uniforme, e bem, a possibilidade de aperfeiçoar o mesmo e a consequência é a da sua rejeição por inadmissibilidade legal. Justamente porque a consequência de tal aperfeiçoamento redundaria em novo pedido de abertura da instrução).
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no art. 287.º n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padecer de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286º, n° 1 e 287º, nº 2 e 3 ambos do CPP - rejeito tal requerimento.
Sem custas.
Notifique.
Após trânsito, remeta os autos à distribuição.»

IV – Cumpre decidir.
Considera o douto despacho recorrido, em síntese, que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida e recorrente deve ser rejeitado, por se verificar inadmissibilidade legal de instrução, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 286º, nº 1, e 287º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal. Essa inadmissibilidade verificar-se-á sempre que, por um requerimento não conter as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (como impõe o nº 2 do referido artigo 287º), não for possível alcançar a finalidade da instrução, que é, como resulta do nº 1 do referido artigo 286º, a de comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar. Quando, como se verifica no caso em apreço, o requerimento se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação, sem indicar específicas deficiências do inquérito que se reflitam na acusação (designadamente, provas indevidamente omitidas, não valoradas ou indevidamente valoradas), ficará vedada a realização dessa finalidade de comprovação judicial da decisão de acusar. Esse requerimento confundir-se-á com uma contestação, que tem uma finalidade diferente da do requerimento de abertura de instrução e se destina ao julgamento e, se fosse admitido, transformaria a instrução num simulacro do julgamento.
Vejamos.
No caso em apreço, no requerimento de abertura de instrução a arguida e recorrente apresenta a sua versão dos factos, diferente da que consta da acusação particular deduzida pela assistente, afirma estranhar que uma das testemunhas inquiridas em inquérito possa ter ouvido a discussão em causa e requer a inquirição de testemunhas não inquiridas em inquérito que terão presenciado os factos.
Parece claro que desse requerimento resulta, de forma implícita mas inequívoca, a razão da discordância da arguida em relação à acusação, com base em deficiências e omissões do inquérito: esta não deveria ter valorado os depoimentos em que se baseia, designadamente o da testemunha indicada, e à prova produzida em inquérito deverá acrescer a que se requer seja produzida em instrução. Na base dessas considerações e dos novos elementos de prova será possível, ao contrário do que se sustenta no douto despacho recorrido, comprovar judicialmente a decisão de acusar.
Mesmo que esse requerimento se limitasse a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação, sem indicar novos elementos de prova, nem assim se poderia dizer que estaria comprometida a finalidade da instrução de comprovação judicial da decisão de acusar. Essa comprovação traduzir-se-ia, nesse caso, tão só, na análise da questão de saber se da prova produzida em inquérito resultam, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido do crime por que vem acusado. O requerimento de abertura de instrução não se confundiria com a contestação, nem a instrução se transformaria num simulacro do julgamento. A diferença entre estas duas fases processuais reside em que a instrução culmina num juízo indiciário e o julgamento culmina num juízo probatório, de certeza. E essa diferença mantém-se mesmo quando o requerimento de abertura de instrução se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação, sem especificar as eventuais deficiências do inquérito. As razões (neste caso, de facto) da divergência em relação à acusação não deixam de ser indicadas, ainda que de forma implícita.
E mesmo que a indicação dessas razões não seja explícita ou completa, com eventual incumprimento da exigência do nº 2 do artigo 287º do Código de Processo Penal, não estaremos perante uma inadmissibilidade legal da instrução, ou um motivo de rejeição do requerimento, nos termos do nº 3 desse artigo. São questões diferentes o incumprimento de alguma exigência do requerimento de abertura de instrução decorrente do nº 2 do artigo 287º e a verificação de um motivo de rejeição desse requerimento nos termos do nº 3 desse artigo.
Do teor deste nº 3 («O requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado…») decorre o caráter particularmente restritivo dos motivos de rejeição do requerimento de abertura de instrução e a tendencial amplitude da faculdade de requerer a abertura de instrução. No plano da política legislativa, é legítimo contestar estas opções do legislador (sem esquecer que elas têm suporte no artigo 32º, nº 4, da Constituição), mas elas não podem deixar de ser respeitadas nesta sede. Quer-nos parecer que a interpretação sustentada no douto despacho recorrido, vai num sentido que não se harmoniza com tais opções, alargando os motivos de rejeição do requerimento de abertura de instrução, forçando a letra e contrariando o espírito desse nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal.
Deve, assim, ser concedido provimento ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, revogando o douto despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que admita o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado.

Notifique

Porto, 4/2/2015
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo