Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
571/12.9TTSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CONTRATO DE TRABALHO
CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
NULIDADE
Nº do Documento: RP20140922571/12.9TTSTS.P1
Data do Acordão: 09/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Atento o disposto no art. 47º, nº 2, da CRP, e, sucessiva e conjugadamente, nos arts. 9º, nº 3, do DL 184/89 e 18º, nº 5, e 19º do DL 427/89, este na redação do DL 218/98, arts. 5º e 10º, nº 3, da Lei 23/2004 e 294º do CC, diplomas esses em cuja vigência foi celebrado contrato de trabalho a termo com Câmara Municipal, é nulo o contrato de trabalho sem termo (resultante da invalidade do termo estipulado a esses contratos) por não ter sido previamente observado o procedimento de recrutamento e seleção de trabalhadores previsto em tais normas.
II - A invocação, pelo empregador, da cessação do contrato por alegada caducidade do mesmo decorrente do termo que lhe havia sido aposto, mas no âmbito de contrato de trabalho sem termo, ainda que nulo, consubstancia um despedimento ilícito, nulidade essa que, todavia, exclui a possibilidade de reintegração do trabalhador.
III - Não havendo essa nulidade sido declarada pela 1ª instância e vindo a ser invocada pelo empregador apenas em sede de recurso que interpôs da sentença, a indemnização substitutiva da reintegração, pela qual a A. optou, bem como as retribuições intercalares consequentes à ilicitude do despedimento são devidas apenas até à data da notificação da interposição do recurso ao trabalhador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 571/12.9TTSTS.P1 Apelação
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 734)
Adjuntos: Des. Isabel São Pedro Soeiro
Des. Maria José Costa Pinto

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B…, aos 21.12.2012, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra a Câmara Municipal …, pedindo que sejam declarados nulos os contratos de trabalho a termo identificados na petição, sendo a ré condenada a:
a) Reconhecer a ilicitude do despedimento que promoveu;
b) a pagar-lhe a indemnização no valor de € 4.995,46, sem prejuízo do seu valor poder ser superior à data da prolação da sentença;
c) Pagar-lhe as remunerações que se venham a vencer até à decisão final;
d) Tudo, acrescido dos juros à taxa legal e a liquidar a final;
Subsidiariamente, pediu o pagamento da compensação devida pela cessação dos contratos de trabalho a termo, valor que, na data da propositura da ação, ascende a € 5.415,30.
Para tanto, alegou em síntese que celebrou com a ré, em 1 de julho de 2004, um contrato individual de trabalho a termo certo, tendo a ré, por sua iniciativa, em 31 de maio de 2006, comunicado a cessação do mesmo. No entanto, logo em 8 de junho de 2006, subscreveu novo contrato de trabalho a termo incerto, o qual, por sua vez, terminou em 31 de dezembro de 2011, uma vez mais por iniciativa da ré.
Analisados os dois contratos de trabalho a termo, argumenta a autora, devem os mesmos ser considerados apenas um só, conforme determina o Código do Trabalho, dado que ambos foram seguidos, sendo a autora contratada para o desempenho das mesmas funções. E, a ser assim, estando em causa um único contrato, tendo este durado entre 1 de julho de 2004 e 31 de dezembro de 2011, foi ultrapassado o período legalmente estabelecido no artigo 148.º, n.º 4, do Código do Trabalho, de seis anos, pelo que o mesmo converteu-se em contrato por tempo indeterminado.
Como tal, a forma como a ré procedeu ao despedimento da autora configura então um despedimento ilícito, o que deve ser declarado, sendo a autora indemnizada nos termos peticionados.

A Ré contestou alegando, em suma, que o primeiro contrato celebrado entre as partes o foi após um processo administrativo de contratação, ao abrigo das alíneas d) e e) do n.º 2, do artigo 18º do DL 427/89 de 7 de dezembro, na redação do DL 218/98 de 17 de julho, pelo período de sete meses, renováveis, sendo que por força desse diploma o referido contrato não poderia exceder dois anos, não se convertendo, em caso algum, em contrato sem termo. Fruto destas limitações legalmente impostas, alega, foi comunicada a caducidade deste contrato de trabalho, com efeitos a partir de 31/05/2006.
No entanto, a necessidade de alguém que desempenhasse as funções até aí levadas a cabo pela autora mantinha-se, pelo que a ré deu início a um novo procedimento administrativo de recrutamento, fazendo oferta de emprego, em que apenas concorre a autora, com quem foi então celebrado novo contrato a termo incerto.
Como tal, argumenta, havendo todo um novo e autónomo processo de contratação, não podemos confundir a realidade do primeiro contrato com a do segundo, sendo o motivo da contratação as “C…”, projeto nacional da tutela, projeto esse que caiu com o novo Governo, pelo que houve necessidade de reduzir o número de colaboradores, mantendo alguns na perspetiva de que o projeto se viesse a manter, o que infelizmente não se verificou, daí a caducidade do segundo contrato celebrado com a autora.
Concluindo, afirma que estamos perante dois contratos de trabalho perfeitamente distintos e autónomos entre si, pese embora admita que entre o fim do primeiro e o início do segundo, a autora se continuasse a apresentar ao trabalho, o que se compreende, pois pretendia agradar, já que sabia previamente que a ré iria iniciar um processo de recrutamento para o “seu” posto de trabalho e que a seleção se faria por avaliação curricular.
Mais alega que o eventual crédito da autora resultante da compensação pela caducidade do primeiro contrato (que cessou em 31/05/2006) está prescrito, sendo que compensação paga à autora pela caducidade do segundo contrato de trabalho está bem calculada.

Respondeu a A., sustentando a improcedência da exceção.

Findos os articulados, foi proferido o saneador, nele se conhecendo, de imediato, do pedido, e, julgando totalmente procedente a ação, decidiu-se:
“A) Declarar a nulidade do despedimento por ilícito, com as demais consequências legais;
B) Condenar a ré a pagar à autora uma indemnização de antiguidade calculada ao abrigo do disposto no artigo 391.º, do Código do Trabalho, no valor ainda em divida de 6.139,72 euros, na data atual, acrescida de juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento;
C) Condenar a ré a pagar à autora quantia a determinar, referente a prestações pecuniárias vincendas (salários, férias, subsídio de férias e natal) devidos desde 20/11/2012, até à data do trânsito em julgado da presente sentença e a liquidar oportunamente, acrescida dos juros legais desde a data em que se forem vencendo até efetivo e integral pagamento.
Os restantes pedidos, porque formulados subsidiariamente, ficam prejudicados pela presente decisão.
Custas pela Ré, fixando-se à acção o valor de 6.139,72 euros.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a ré, aos 01.07.2013, recorrer, tendo formulado, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:
1. Estarmos perante uma situação clara e típica de dois contratos de trabalho perfeitamente distintos e autónomos.
2. E que as comunicações que ocorreram a fazer cessar, por caducidade, os contratos do trabalho são perfeitamente legais.
3. Ora lida a sentença, entende a M.ma Juiz “a quo” que estamos perante um só contrato de trabalho e que a comunicação da caducidade "configura" um despedimento ilícito.
4. A douta sentença em crise, verificamos, segue de perto as decisões proferidas em dois Acórdãos da Relação do Porto, ambos relatados pela Ex.ma Srª Juiz Desembargadora, Drª Fernanda Soares (em que a fundamentação é a mesma).
5. Num dos processos, o 2006/09.5TTPNF, o Acórdão proferido pela Relação do Porto não foi confirmado pelo Supremo Tribunal de justiça (em 10/04/2013) e a sentença da primeira instância foi represtinada, cujo acórdão está disponível em www.dgsi.pt.
6. Analisando mais de perto a situação dos autos, verificamos que a Recorrida desempenhou funções no projeto C… e que o primeiro contrato entre A. e Ré (contrato de trabalho a termos certo) foi celebrado, após um processo administrativo de contratação, ao abrigo das alíneas d) e e) do n.° 2, do artigo 18° do DL 427/89 de 7 de dezembro, na redação do DL 218/98 de 17 de julho, pelo período de sete meses, renováveis.
7. Em termos da legislação invocada, o referido contrato não poderia exceder dois anos e o mesmo não se converte, em caso algum, em contrato sem termo.
8. Fruto destas limitações legalmente impostas, foi comunicada a caducidade deste contrato de trabalho, com efeitos a partir de 31/05/2006.
9. Não se escamoteia que a necessidade de alguém que desempenhasse as funções até aí levadas a cabo pela Recorrida mantinha-se, pelo que a Recorrente deu início a um novo procedimento administrativo de recrutamento.
10. Sendo a Recorrida a única concorrente e a preencher os requisitos previstos, não restava outra alternativa à Recorrente que não fosse contratar aquela já que era a única candidata, tudo isto num novo e autónomo processo de contratação.
11. Não podemos confundir a realidade do primeiro contrato com a do segundo, mas as regras impediam a manutenção dos vínculos anteriores.
12. O segundo contrato, a termo incerto, surge da real necessidade do serviço em causa, sendo que o mesmo já foi celebrado ao abrigo da nova legislação aplicável ao caso, o regime jurídico do contrato de trabalho nas pessoas coletivas – Lei 23/2004 de 22 de junho.
13. Se analisarmos o artigo 5° deste diploma, verificamos a necessidade de um processo de seleção – que de facto ocorreu – e o motivo da contratação era o constante da alínea i) do artigo 9° "para o desenvolvimento de projetos não inseridos nas atividades normais dos serviços" – que é de facto o caso, já que as "C…" são um projeto nacional da tutela.
14. E porque a tutela terminou com as "C…" a Recorrente comunicou a caducidade do seu contrato de trabalho a termo incerto.
15. De facto, entre o fim do primeiro contrato e o início do segundo, a A. continuou a apresentar-se a trabalhar e qualquer pessoa "entende" esta postura da A. de querer agradar já que sabia previamente que a Ré iria iniciar um processo de recrutamento para o "seu" posto de trabalho e que a seleção se faria por avaliação curricular, daí que tenha concorrido ao lugar e demonstrasse o interesse na contratação.
16. Posto isto, tem-se então que, de acordo com o estatuído no artigo 9° do Decreto-Lei n° 184/89, de 2 de junho (que aprovou os princípios gerais sobre salários e gestão de pessoal na função pública) e com o disposto nos artigos 14° e 43°, número 1 do Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro (que veio desenvolver e regulamentar os princípios a que obedece a relação jurídica de emprego na Administração Pública), não era admissível, à data em que foram celebrados, entre autora e ré, os aludidos contratos, a contratação por tempo indeterminado (fosse inicial, fosse por conversão) pela Administração Pública [posto que, conforme prescreve o referenciado artigo 14° do Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro, no âmbito desta, a relação jurídica de emprego apenas pode revestir as formas de contrato administrativo de provimento e de contrato a termo certo alíneas a) e b) do número 1 do mesmo preceito, sendo que este tipo de contrato, que não confere ao trabalhador a qualidade de agente administrativo, rege-se pela lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo, embora com as especialidades constantes do referido diploma número 3 do preceito em questão].
17. Por outro lado, importa ainda ter presente que, no âmbito da mesma legislação, a contratação a termo obedece a um processo prévio de seleção de candidatos, publicitada por meio adequado, incluindo, obrigatoriamente, e para além de outros aspetos considerados relevantes, a referência ao tipo de contrato a celebrar, ao serviço a que se destina, a função a desempenhar e o prazo de duração e ainda a proposta de remuneração a atribuir.
18. E, em consonância com o prescrito no artigo 18° do aludido Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro, o contrato de trabalho a termo para desenvolvimento de projetos não inseridos nas atividades normais dos serviços [alínea c)], jamais pode vir a converter-se em contrato sem termo (n° 4), sendo que a sua celebração, em violação do disposto no mesmo diploma, implica a nulidade do contrato e constitui os dirigentes em responsabilidade civil, disciplinar e financeira pela prática de atos ilícitos, constituindo ainda fundamento para a cessação da comissão de serviço, nos termos Lei (n° 5).
19. É que, como bem flui do teor de um e outro dos ditos contratos, as cláusulas que estipulam o respetivo termo (formalidade ad substantiam que, enquanto tal, tendo de integrar o texto vinculístico, não foi preterida) se encontram justificadas, para além de que a contratação em causa também foi precedida do exigível processo de seleção de candidatos e publicidade.
20. A Lei n° 23/2004, de 22 de junho, pese embora as significativas alterações que introduziu à contratação individual de trabalho pela Administração Pública, maxime ao nível da contratação sem termo, que passou a ser possível, desde que preenchidos os requisitos exigidos para o efeito.
21. E sucede assim porquanto, estabelecendo o artigo 2° da citada Lei n° 23/2004, de 22 de junho que «Aos contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas é aplicável o regime do Código do Trabalho e respetiva legislação especial, com as especialidades constantes da presente lei» (n° 1) e que «O contrato de trabalho com pessoas coletivas públicas não confere a qualidade de funcionário público ou agente administrativo, ainda que estas tenham um quadro de pessoal em regime de direito público» (n° 2), de harmonia com o disposto no artigo 5° «A celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado no âmbito da presente lei deve ser precedida de um processo de seleção que obedece aos seguintes princípios: a) Publicitação da oferta de trabalho; b) Garantia de igualdade de condições e oportunidades; c) Decisão de contratação fundamentada em critérios objetivos de seleção» (n° 1) e sendo que, de acordo com o artigo 8°, «Os contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas estão sujeitos à forma escrita» (n° 1), deles devendo constar, entre outras indicações, o processo de seleção adotado [n° 2, alínea f] – que foi o que aconteceu.
22. Por seu turno, especificando-se no artigo 9° as situações em que poderão ser celebrados pelas pessoas coletivas públicas contratos a termo resolutivo e as condições a que deverá sujeitar-se o processo de seleção a que alude o referenciado artigo 5°, prescreve-se no artigo 10° que «O contrato de trabalho a termo resolutivo certo celebrado por pessoas coletivas públicas não está sujeito a renovação automática» (n° 1), «... não se converte, em caso algum, em contrato por tempo indeterminado, caducando no termo do prazo máximo de duração previsto no Código do Trabalho» (n° 2).
23. A contratação da Recorrida no segundo contrato também está de acordo com o previsto na Lei n° 23/2004, de 22 de junho para a contratação a termo.
24. Há clara validade e adequação às regras vigentes em cada um dos ditos contratos de trabalho celebrados, sem qualquer violação de normas de caráter imperativo.
25. O entendimento sustentado no acórdão invocado, não tanto ou não tão só por a isso se opor o estatuído nos diplomas legislativos para aqui convocados, [maxime o Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro, na redação dada pelo Decreto-Lei n° 218/98, de 17 de julho (artigos 14°, número 3 e 18°, números 4 e 5) e a Lei n° 23/2004, de 22 de junho (artigos 8°, número 3, 9°, número 4° e 10° números 2 e 3)] enquanto fulminam de nulidade os contratos de trabalho a termo celebrados em moldes contrários ao neles determinado e vedam em absoluto a possibilidade da sua conversão em contratos por tempo indeterminado, mas sobretudo por via do estatuído, justamente, no artigo 47°, número 2 da Constituição da República Portuguesa, enquanto prescreve que «Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso».
26. Na verdade, maioritariamente tem considerado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, para efeitos de contratação para a função pública, exigir-se a observância de um processo prévio de seleção e recrutamento que, tendo subjacente a ideia do concurso como regra, seja adequado a garantir, em condições de liberdade, igualdade e legalidade, o acesso à contratação de todos os cidadãos, eventualmente interessados, mais não se visa que dar cumprimento ao mencionado artigo 47°, número 2 da Lei Fundamental.
27. E isto na exata medida em que, como se diz no acórdão n° 368/00 do Tribunal Constitucional, não podendo pretender-se que a substituição do concurso para a função pública pela conversão de um contrato de trabalho a termo certo por um contrato por tempo indeterminado seja compatível com a finalidade prosseguida com a citada norma do número 2 do artigo 47° da Constituição, no segmento em que preconiza o concurso como regime-regra de acesso à função pública, a admitir-se que assim pudesse não suceder, tal não só implicaria a violação do princípio da legalidade no acesso à função pública, como em nada contribuiria, bem ao invés, para o reforço da legitimação e da legitimidade democrática da administração, que se quer norteada pelos princípios da transparência, eficácia, eficiência.
28. A regra constitucional do concurso como meio de recrutamento e seleção de pessoal da função pública é uma garantia do princípio da igualdade do próprio direito de acesso, pois este não existe quando a administração pode escolher e nomear livremente os funcionários.
29. De onde que não se vislumbrando qualquer razão para afastar o juízo de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, emitido pelo Tribunal Constitucional no acórdão n° 368/00 e reiterado nos seus posteriores acórdãos nºs 61/2004 e 306/07, firmado pelo Tribunal Constitucional no último dos mencionados arestos, vai no sentido de que «… seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adoção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade».
30. Entendimento que, como vem de ver-se, foi sancionado pelo Tribunal Constitucional já depois da alteração que a Lei Constitucional n° 1/2004, de 24 de julho (6ª Revisão Constitucional) introduziu ao artigo 8° da Lei Fundamental e a que foi, por via disso, aditado o número 4, que prescreve: «As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
31. Ora, no que diz respeito a este concreto aspeto da questão, desde já importa consignar que também consideramos que o princípio do primado do direito europeu não se sobrepõe, quanto mais não seja, às normas constitucionais relativas aos princípios em que se fundamenta o Estado de direito democrático e à interpretação que, com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional faça, quando chamado a pronunciar-se, como sucede na situação vertente, em que em causa se encontra o princípio da igualdade no acesso à função pública.
32. E, para adjuvar o entendimento sufragado no acórdão recorrido, não se diga que o legislador do Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro e bem assim da Lei n° 23/2004, de 22 de junho, não cuidou de criar «medidas de proteção dos trabalhadores contra o uso e abuso da celebração de contratos a termo».
33. E isto porque a tanto opõe-se frontalmente o que, estatuído nos artigos 18°, números 5 e 6, 20°, números 1, 2, 3 e 6, 21° do Decreto-Lei n° 427/89, de 7 de dezembro ou nos artigos 9° e 10°, números 1, 2 e 3 da Lei n° 23/2004, de 22 de junho, observa, no essencial, o preconizado no artigo 5° do Acordo - Quadro CES, UNICE e CEEP, relativo a contratos a termo, Anexo à mesma Diretiva Comunitária.
34. É certo que fizeram-no sem prever a possibilidade de conversão cm contrato de trabalho a tempo indeterminado o contrato de trabalho a termo, celebrado no setor público.
35. Daí que, tudo ponderado, se entenda que, no caso vertente, não há lugar à conversão do contrato de trabalho a termo, entre autora e ré, em contrato de trabalho por tempo indeterminado.

Contra-alegou a A., pedindo a confirmação do decidido.

Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do provimento do recurso (ainda que, por mero lapso, certamente, ficasse a constar o não provimento do recurso), ao qual respondeu apenas a recorrente, suscitando a existência de tal lapso.

Na sequência do despacho de fls. 124, proferido pelo então relator, foi junta aos autos certidão do acórdão desta Relação proferido aos 17.06.2013 no Processo 1834/08.3TTPRT.P3 (fls. 125 a 185), no qual, em síntese e no que ora importa, se decidiu suscitar perante o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), as questões prejudiciais que dele constam.

E, aos 20.01.2014, foi pelo então relator proferido o despacho de fls. 186, com o seguinte teor:
“Como decorre do acórdão, a que se reporta a certidão de fls. 125 e segs., proferido por no Processo 1834/08.3TTPRT.P3, nele decidiu-se suscitar, perante o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, o reenvio prejudicial para apreciação das questões que dele constam, com suspensão da instância até decisão a proferir por aquele Tribunal, acórdão esse de que foi interposto recurso de revista para o STJ, porém não admitido pelo relator, conforme certidão supra, de tal decisão sendo interposta Reclamação para o STJ.
Considerando o objeto da presente ação, em que se discutem questões idênticas, a decisão que vier a ser proferida no âmbito do citado Processo, quer pelo STJ (caso defira a Reclamação), quer pelo TJCE (caso tal reenvio venha a ter lugar), poderá mostrar-se relevante à boa apreciação e decisão da causa e constituir fundamento para suspensão da instância nos presentes autos.
Assim, e para já, atento o principio do contraditório, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem, em 10 dias, sobre a eventual suspensão da instância nos presentes autos, com cópia do despacho de fls.124, da certidão de fls. 125 e ss e deste despacho.”.

Notificadas, vieram: a Ré, opor-se à suspensão da instância (salvo se tal suspensão tivesse a virtualidade de de “suspender” os efeitos da decisão da 1ª instância no que tange à obrigatoriedade do pagamento dos salários intercalares até ao trânsito em julgado da decisão); a A., a manifestar a sua anuência à supensão da instância.

Por jubilação do anterior relator foram os autos redistribuídos à ora relatora.

Entretanto, conforme resulta da certidão junta aos presentes autos a fls. 207 a 241 (junção ordenada por despacho da ora relatora de fls. 206), extraída do referido Processo 1834/08.3TTPRT.P3:
- O STJ por douta decisão de 15.01.2014 (fls. 217 e ss), indeferiu a reclamação do despacho que não havia admitido o recurso de revista acima referido, assim mantendo tal despacho.
- A Ré/Recorrente (D...) em tal Processo (1834/08.3TTPRT.P3) veio desistir do recurso que havia interposto, desistência essa que, por despacho da relatora do referido processo (a aqui também relatora) de 24.02.2014 (fls. 205 e ss), foi aceite, nele se tendo ainda referido o seguinte: “(...) desistência essa que determina a consequente extinção do recurso nos termos dos arts. 632º, nº 5, e 277º, al. d), do CPC e, consequentemente, do pedido de reenvio ao TJCE, o que se decide.”.

Notificada tal junção às partes destes autos, nada foi requerido.

Colheram-se os vistos legais.
*
II. Matéria de Facto dada como provada pela 1ª instância

1- Em 1 de julho de 2004, e após processo administrativo de contratação, autora e ré, celebraram um contrato individual de trabalho a termo certo, mediante o qual a primeira se comprometeu a trabalhar sob as suas ordens, direção e fiscalização e a segunda a remunerar-lhe o trabalho prestado mediante vencimento mensal – conforme documento junto e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. n.º 1).
2- Por carta enviada à autora, a ré comunicou-lhe que tal contrato de trabalho cessaria em 31 de maio de 2006.
3- Em 8 de junho de 2006, e após processo administrativo de recrutamento, com oferta pública de emprego, a que a autora concorreu, a ré celebrou novo contrato de trabalho a termo incerto, com a autora, tendo este segundo contrato terminado em 31 de dezembro de 2011, uma vez mais por iniciativa da ré – conforme documento junto e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. n.º 2).
4- A autora, em ambos os contratos celebrados com a ré, auferiu a remuneração mensal de € 1.373,12 (mil trezentos e setenta e três euros e doze cêntimos).
5- A ré, entidade patronal, fruto da cessação do 2º contrato de trabalho liquidou à Autora o montante de € 5.989,50 (cinco mil novecentos e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos).
6- O contrato aludido em 3) deveu-se à necessidade da ré de ter alguém que desempenhasse as funções até aí levadas a cabo pela autora no âmbito do contrato aludido em 1), razão pela qual a ré deu início a um procedimento administrativo de recrutamento, fazendo oferta de emprego, em que concorreu a autora.
7- O motivo da contratação da autora foram as “C…”, projeto nacional da tutela, sendo que entre o contrato aludido em 1) e o contrato aludido em 3) a autora manteve-se sempre a trabalhar, no mesmo local, com as mesmas funções e o mesmo vencimento, sem qualquer interrupção temporal.
***
A matéria de facto supra transcrita, tal qual foi objeto da decisão de facto da 1ª instância, não foi impugnada pelas partes, pelo que se aceita e mantém, com exceção dos pontos nºs 1 e 3, e aditando-se o nº 8, que, ponderando o teor dos documentos respetivos, passam a ter a seguinte redação:

1º- Em 21 de junho de 2004, após processo administrativo de contratação, a autora celebrou com a ré o seguinte contrato de trabalho a termo certo, nos termos do despacho de 01.06.2004, enquadrado nas alíneas d) e e) do nº 2 do art. 18.º do DL 427/89, de 7.12, na redação do DL nº 218/98, de 17.7:
“- A autora obriga-se a prestar os seus serviços à Ré, mediante remuneração equivalente à de técnico superior do serviço social (índice 400), pelo prazo de sete meses, que poderá ser prorrogado, nos termos da lei, caso se justifique, devendo iniciar as suas funções em 21.06.2004;”
“- Os serviços a que o presente contrato se refere são os seguintes: todos os que se relacionem com a categoria de técnico superior de serviço social e serão prestados na Câmara Municipal …, Divisão …, E…, com o horário estabelecido pelos serviços».

3º- Em 8 de junho de 2006, após processo administrativo de contratação, e oferta pública de emprego, a que a autora concorreu, esta celebrou com a ré o seguinte contrato de trabalho a termo incerto, após avaliação curricular, nos termos do despacho de 08.06.2006, enquadrado nas alínea i) do nº 1 do art. 9.º da Lei 23/2004, de 22.06:
“1º- A autora obriga-se a prestar os seus serviços profissionais à Ré, mediante remuneração equivalente à de técnico superior do serviço social (índice 400), pelo prazo de um ano, ou até conclusão do projeto, devendo iniciar as suas funções em 08.06.2006;
2º- Os serviços a que o presente contrato se refere são os seguintes: todos os que se relacionem com a categoria de técnico superior de serviço social e serão prestados na Câmara Municipal …, Divisão …, E…, com o horário estabelecido pelos serviços”.

8º. O contrato referido em 3) veio a cessar aos 01.01.2012 por comunicação da Ré à A. nos termos da carta que consta do documento que constitui fls. 37 dos autos, com o seguinte teor:
“Serve o presente para dar conhecimento a V. Exª que, por meu despacho de 15-11-2011, o seu contrato de trabalho (a termo resolutivo incerto) não será renovado a partir de 31 de dezembro de 2011.
Assim, e em cumprimento do previsto na Lei nº 59/2008, de 11 de setembro, o mesmo cessará a partir do dia seguinte, ou seja, 01 de janeiro de 2012.”
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III. Questão Prévia

Tendo em conta o referido no despacho de fls. 186 e a junção da certidão de fls. 207 e segs., fica prejudicada, tendo perdido a sua utilidade, a questão da eventual suspensão da presente instância até decisão do TJCE (atual TJUE) sobre as questões objeto do reenvio prejudicial então determinado no Processo 1834/08.3TTPRT.P3.
Com efeito, como decorre da referida certidão, o STJ não admitiu o referido recurso de revista que havia sido interposto do acórdão proferido em tal processo e, por outro lado, a então Recorrente nesse Processo 1834/08.3TTPRT.P3 desistiu do recurso de apelação, com o que ficou sem efeito o acórdão nele proferido relativamente às questões prejudiciais a suscitar junto do TJCE.
*
IV. Do Direito

1. Delimitando as conclusões o objeto do recurso, a questão neste suscitada consiste em saber da validade dos contratos de trabalho a termo celebrados entre a A. e a Ré.

1.1. Na sentença recorrida entendeu-se, em síntese, que:
- se está perante um único contrato de trabalho que durou mais de seis anos e que, assim, a questão que se coloca é a de se saber se a nulidade do mesmo, por ter duração superior ao limite legal previsto, pode, ou não, converter-se num contrato de trabalho por tempo indeterminado;
- E, respondendo a tal questão, decidiu no sentido dessa convertibilidade com fundamento na Diretiva nº 1999/70/CE, do Conselho, de 26 de Junho, respeitante ao acordo quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos a termo, transposta pelo CT/2003, nos Acórdãos desta Relação de 24.09.2012 e de 01.10.2012, publicados in www.dgsi.pt e no entendimento de que, nos termos do art. 4º, nº 3, do Tratado de Lisboa, é dever do Juiz Nacional recorrer às disposições do direito privado que se harmonizem com o estabelecido na Diretiva, pelo que, nos termos do disposto no art. 14º, nº 3, do DL 427/89, de 07.12, com referência ao art. 147º, nº 2, al. b) do CT, o contrato de trabalho a termo se converteu em contrato de trabalho por tempo indeterminado.

2. Vejamos, começando pelo contrato.
À sua data, 21.06.2004, encontrava-se em vigor o DL nº 427/89, de 7/12, com a redação (nomeadamente a do seu art. 18º) que lhe havia sido conferida pelo DL nº 218/98, de 17/7.
No seu preâmbulo, reza o DL 427/89 – publicado na sequência, e em desenvolvimento, do DL 184/89, de 2/6, que aprovou os "princípios gerais sobre salários e gestão de pessoal na função pública" –, que "Definem-se agora como vínculos jurídicos a nomeação e o contrato, reservando para este as modalidades de contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo certo. Pela nomeação assegura-se o exercício de funções próprias do serviço público com caráter de permanência, correspondendo à forma estável de prestar serviço à Administração Pública, sendo o contrato, em qualquer das suas modalidades, limitado a situações específicas claramente definidas, com caraterísticas de excecionalidade e transitoriedade.”
O DL nº 184/89 estabelecia já no seu art. 9º:
“1- O exercício transitório de funções de caráter subordinado de duração previsível que não possam ser desempenhadas por nomeados ou contratados em regime de direito administrativo pode excecionalmente ser assegurado por pessoal a contratar segundo o regime do contrato de trabalho a termo certo
2- O contrato referido no número anterior obedece ao disposto na lei geral do trabalho sobre contratos de trabalho a termo, salvo no que respeita à renovação, a qual deve ser expressa e não ultrapassar os prazos estabelecidos na lei geral quanto à duração máxima dos contratos a termo."
Na mesma senda, veio o art. 18º do DL 427/89 a estabelecer que:
"1- O contrato de trabalho a termo certo é o acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, com caráter de subordinação, a satisfação de necessidades transitórias dos serviços de duração determinada.
2 - O contrato de trabalho a termo certo só pode ser celebrado nos seguintes casos:
a) Substituição temporária de um funcionário ou agente;
b) Atividades sazonais;
c) Execução de uma tarefa ocasional ou serviço determinado, precisamente definido e não duradouro;
d) Aumento excecional e temporário da atividade do serviço;
e) Desenvolvimento de projetos não inseridos nas atividades normais dos serviços.
(…)
4- O contrato de trabalho a termo certo a que se refere o presente diploma não se converte, em caso algum, em contrato sem termo.
5- A celebração de contrato de trabalho a termo certo com violação do disposto no presente diploma implica a sua nulidade e constitui os dirigentes em responsabilidade civil, disciplinar e financeira pela prática de atos ilícitos, sendo ainda fundamento para a cessação da comissão de serviço nos termos da lei.
(…)".
Nos termos do art. 20º, nºs 1, 6 e 7, do mesmo DL 427/89, o contrato de trabalho a termo certo pode ser objeto de renovação desde que – e sem prejuízo das exceções contempladas nos nºs 1 e 2 do mesmo artigo – a sua duração total não exceda dois anos, sendo que atingido o prazo máximo do contrato de trabalho a termo certo não pode ser celebrado novo contrato da mesma natureza e objeto – considerando-se objeto do contrato as funções efetivamente exercidas –, com o mesmo ou outro trabalhador, antes de decorrido o prazo de seis meses.
Ao tempo – da outorga do primeiro dos ditos contratos de trabalho a termo – encontrava-se também em vigor o CT/2003, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27.08, que importa ter em conta nos termos dos arts. 9º, do DL 184/89, e 14º, do DL 427/89, cujo art. 131º, sob a epígrafe de “Formalidades”, dispunha:
"1. Do contrato de trabalho a termo devem constar as seguintes indicações:
a) Nome ou denominação e domicílio ou sede dos contraentes;
b) Atividade contratada e retribuição do trabalhador;
c) Local e período normal de trabalho;
d) Data de início do trabalho;
e) Indicação do termo estipulado e do respetivo motivo justificativo;
f) Data da celebração do contrato e, sendo a termo certo, da respetiva cessação.
2. Na falta da referência exigida pela alínea d) do número anterior, considera-se que o contrato tem início na data da sua celebração.
3. Para efeitos da alínea e) do nº 1, a indicação do motivo justificativo da aposição do termo deve ser feita pela menção expressa dos factos que o integram, devendo estabelecer-se a relação entre a justificação invocada e o termo estipulado.
4. Considera-se contrato sem termo aquele em que falte a redução a escrito, a assinatura das partes, o nome ou denominação, bem como as referências exigidas na alínea e) do n.º 1 ou, simultaneamente, nas alíneas d) e f) do mesmo número."
Ou seja:
A contratação a termo na administração pública, exigindo, como se viu, a indicação do termo estipulado e do respetivo motivo justificativo, afasta-se, no entanto, da consequência prevista no CT para a sua omissão: aqui, prevendo-se a conversão em contrato sem termo, ali, apenas a sua nulidade.

Ora, a fundamentação que a ré consignou na pertinente cláusula para justificar a aposição do termo resolutivo refere tão só "Em 21 de junho de 2004, após processo administrativo de contratação, a autora celebrou com a ré o seguinte contrato de trabalho a termo certo, nos termos do despacho de 01.06.2004, enquadrado nas alíneas d) e e) do nº 2 do art. 18.º do DL 427/89, de 7.12, na redação do DL nº 218/98, de 17.7".
A ré consignou no texto do aludido contrato, uma mera referência genérica a um seu Despacho e às situações elencadas nas alíneas d) e e) do n.º 2 do art. 18.º do DL 427/89.
Tal clausulado não esclarece de facto, e com o devido respeito por diverso entendimento, que tarefas, assumindo um caráter temporário, estavam em causa e determinavam que a autora fosse admitida a prestar trabalho à ré.
Acontece que, como decorre do citado art. 131º, nºs 3 e 4, do CT/2003 e tem sido reafirmado pela jurisprudência, de forma pacífica – cf., entre outros, o acórdão desta Relação, de 14.07.2010, in www.dgsi.pt – a falta de concretização do motivo justificativo, seja pelo recurso às fórmulas legais contidas nas várias alíneas do nº 2 do art. 129º do Cód. do Trabalho, seja pelo recurso a expressões vagas, genéricas ou imprecisas, não pode ser suprida pela alegação dos factos pertinentes na contestação da ação em que a questão se suscite ou pela junção de documentos apenas no decurso da ação.
Assim sendo, temos de concluir que este 1º contrato de trabalho se deve considerar sem termo, aplicando o disposto no art. 131º, nº 4, do CT/2003, aqui aplicável, ex vi do art. 9º, nº 2, do citado DL nº 184/89.
Tal contrato é, todavia, nulo, por violar normas imperativas de constituição de contratação de pessoal, à luz do regime jurídico vigente à data, emergente do art. 14º, nº 1, do DL nº 427/89, conjugado com o art. 294º do CC.

3. O que vem de dizer-se aplica-se também, e no essencial, ao segundo contrato de trabalho, ora a termo incerto, datado de 8 de junho de 2006 e com início nesta data.

3.1. Uma nota prévia.
Não obstante a Ré ter promovido a caducidade do 1º contrato, em 31.05.2006, as partes mantiveram a sua execução, desde essa data até 08.06.2006.
Entendemos, assim, que, a partir de 31.05.2006, se configura uma relação jurídico-laboral que, de facto, se foi mantendo, porém, à margem ou à revelia do enquadramento jurídico que a permitiria, constante da Lei nº 23/2004, implicando, assim o entendemos, que, a partir de 31.05.2006, a autora se podia considerar admitida como contratada sem termo.
Admitindo-se esta situação, tal contrato sempre seria nulo, nos termos dos arts. 7º e 8º, nºs 1 e 3, da citada Lei nº 23/04, por não ter sido precedido do processo de seleção e por não reduzido a escrito.
Entendemos, no entanto, que com a celebração do contrato a termo, previamente antecedido de um processo de seleção, ao qual a autora concorreu, ponderando ainda o diminuto número de dias que mediou entre a cessação do 1º e a outorga do 2º contrato, as partes, de forma tácita, acordaram na revogação de tal contrato verbal.
No quadro legislativo do CT/2003 (tal como no CT/2009) um contrato de trabalho sem termo pode ser revogado por um contrato a termo.
Esta posição foi acolhida na doutrina – cf. Júlio Gomes, Direito do Trabalho, Vol. I, pag. 602 – e na jurisprudência – cf. acórdão da Relação de Lisboa, de 08.05.2013, in www.dgsi.pt, neste se fundamentando:
“Acontece que o art. 41º-A da LCCT, aditado pelo art. 2º da Lei nº 18/2001, de 3 de agosto, veio estabelecer o seguinte: Sem prejuízo do disposto no art. 5.º, é nulo e de nenhum efeito o contrato de trabalho a termo que seja celebrado posteriormente à aquisição pelo trabalhador da qualidade de trabalhador permanente.
Porém, tal norma não foi acolhida nos Códigos do Trabalho.
Sucede que, anteriormente à vigência da Lei 18/2001, de 3 de agosto, entendia-se que a celebração de um contrato de trabalho a termo depois de as partes se encontrarem vinculadas por contrato de trabalho por tempo indeterminado, revogava este, validamente, porque se elas podiam revogar o contrato, por maioria de razão podiam transformá-lo de contrato sem termo em contrato a termo. Aprovados os Códigos do Trabalho, sem que tal disposição tenha transitado para eles, parece que deveremos voltar àquele entendimento da jurisprudência, uma vez que não vigora norma de conteúdo idêntico ao do referido art. 41º-A da LCCT”.

3.2. Regressando ao contrato a termo.
Também neste contrato, se verifica a mesma omissão do motivo justificativo do termo estipulado.
Aplicando-se, também no caso, as referidas normas do CT/2003 relativas ao contrato de trabalho a termo, importa sublinhar que, à data, estava em vigor a Lei 23/2004, de 22/6.
Esta Lei veio permitir a vinculação pelas partes na relação de trabalho no âmbito da Administração Pública, incluindo a administração local, definindo o seu art. 2º, nº 1, que “aos contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas, é aplicável o regime do Código do Trabalho e respetiva legislação especial, com as especificidades constantes da presente lei”.
Resulta do n.º 2 do mesmo artigo que o contrato de trabalho em causa “não confere a qualidade de funcionário público ou agente administrativo, ainda que estas tenham um quadro de pessoal em regime de direito público”.
A articulação com o regime de direito privado resultante do Código de Trabalho, no caso, o Código de 2003, motiva a equiparação das pessoas coletivas públicas que intervêm na celebração dos contratos em causa às «empresas», nos termos do art. 3º do mesmo diploma.
Para garantia dos princípios constitucionais em matéria de acesso ao exercício de funções na Administração Pública, decorrentes do art. 47º, nº 2, da Constituição, a Lei 23/2004 prevê um procedimento de seleção prévio à celebração dos contratos e que é disciplinado, no que se reporta aos contratos de trabalho sem termo, no seu artigo 5.º, com as especialidades previstas no nº 4 do art. 9º, relativamente aos contratos a termo (processo mais simplificado), procedimento que visa a objetividade e a transparência da contratação, garantindo condições de acesso ao conjunto de cidadãos que preencham os perfis definidos.
Os contratos de trabalho sem termo celebrados ao abrigo desta Lei, estão sujeitos:
- às limitações do art. 7º, designadamente do nº 1, nos termos do qual apenas poderão ser celebrados se existir um quadro de pessoal para este efeito e nos limites desse quadro, norma esta cuja violação, nos termos do nº 4, implica a nulidade e gera a responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos órgãos que celebraram os contratos de trabalho;
- aos requisitos de forma, que se encontram discriminados no art. 8º daquele diploma, aplicável igualmente aos contratos celebrados a termo, e que é do seguinte teor:
Artigo 8.º
Forma
1- Os contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas estão sujeitos à forma escrita.
2 - Do contrato de trabalho devem constar as seguintes indicações:
a) Nome ou denominação e domicílio ou sede dos contraentes;
b) Tipo de contrato e respetivo prazo, quando aplicável;
c) Atividade contratada e retribuição do trabalhador;
d) Local e período normal de trabalho;
e) Data de início da atividade;
f) Indicação do processo de seleção adotado;
g) Identificação da entidade que autorizou a contratação.
3- A não redução a escrito ou a falta das indicações constantes das alíneas a), b) e c) do número anterior determinam a nulidade do contrato.”
A Lei nº 23/2004, dedica ainda aos contratos a termo os seus arts. 9º e 10º, que são do seguinte teor:
Artigo 9.º
Termo resolutivo
1- Nos contratos de trabalho celebrados por pessoas coletivas públicas só pode ser aposto termo resolutivo nas seguintes situações:
a) Substituição direta ou indireta de funcionário, agente ou outro trabalhador ausente ou que, por qualquer razão, se encontre temporariamente impedido de prestar serviço;
b) Substituição direta ou indireta de funcionário, agente ou outro trabalhador em relação ao qual esteja pendente em juízo ação de apreciação da licitude do despedimento;
c) Substituição direta ou indireta de funcionário, agente ou outro trabalhador em situação de licença sem retribuição;
d) Substituição de funcionário, agente ou outro trabalhador a tempo completo que passe a prestar trabalho a tempo parcial;
e) Para assegurar necessidades públicas urgentes de funcionamento das pessoas coletivas públicas;
f) Execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro;
g) Para o exercício de funções em estruturas temporárias das pessoas coletivas públicas;
h) Para fazer face ao aumento excecional e temporário da atividade do serviço;
i) Para o desenvolvimento de projetos não inseridos nas atividades normais dos serviços;
j) Quando a formação dos trabalhadores no âmbito das pessoas coletivas públicas envolva a prestação de trabalho subordinado.
2- Os contratos previstos no número anterior só podem ser a termo incerto nas situações previstas nas alíneas a) a d) e f) a i) do número anterior.
3- No caso da alínea e) do número anterior, o contrato não pode ter uma duração superior a seis meses.
4- A celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo obedece a um processo de seleção simplificado, precedido de publicação da oferta de trabalho pelos meios adequados e de decisão reduzida a escrito e fundamentada em critérios objetivos de seleção.
5- A celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo nas situações previstas nas alínea e) a j) do n.º 1 do presente artigo depende da autorização do Ministro das Finanças e do membro do Governo que tiver a seu cargo a Administração Pública.
6- Nos casos das alíneas a) a d) do n.º 1 do presente artigo, a celebração dos respetivos contratos deve ser comunicada à Direção-Geral da Administração Pública.”
Artigo 10.º
Regras especiais aplicáveis ao contrato de trabalho a termo resolutivo
1- O contrato de trabalho a termo resolutivo certo celebrado por pessoas coletivas públicas não está sujeito a renovação automática.
2- O contrato de trabalho a termo resolutivo celebrado por pessoas coletivas públicas não se converte, em caso algum, em contrato por tempo indeterminado, caducando no termo do prazo máximo de duração previsto no Código do Trabalho.
3- A celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo com violação do disposto na presente lei implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos órgãos que celebraram os contratos de trabalho».
No nº 1 do art. 9º especificam-se um conjunto de situações em que é possível sujeitar o contrato de trabalho a termo resolutivo, tratando-se, contudo, de um elenco fechado, uma vez que a lei limita às situações que discrimina a referida possibilidade, o que decorre da utilização da partícula “só”.
Deste modo, ao contrário do caráter meramente exemplificativo das situações descritas no nº 2 do art. 129º do CT/2003, estamos perante um conjunto de situações tipificado, não sendo possível encontrar outras situações, por referência a uma cláusula geral do tipo da prevista no nº 1 do referido art. 129º.
Esta restrição evidencia que também aqui, ou seja, na Administração Pública, tal como no CT/2003, o recurso à contratação a termo tem natureza excecional.
Por isso, sendo necessário também um motivo justificativo para a contratação a termo, se exige, nos termos do art. 131º, nºs 1, alínea e), e 3, do CT/2003, aqui aplicável subsidiariamente, “a indicação do respetivo motivo justificativo» e que esta «seja feita pela menção expressa dos factos que o integram”.

Ora, no contrato de trabalho, a termo incerto, apenas foi invocado como fundamento da sua sujeição a termo “o despacho de 08.06.2006, enquadrado nas alínea i) do nº 1 do art. 9.º da Lei 23/2004, de 22.06”
Ou seja:
A ré consignou no texto do aludido contrato, uma mera referência genérica a um seu Despacho e à situação elencada na alínea i) do n.º 1 do citado art. 9º.
Tal clausulado, novamente, não esclarece de facto, e com o devido respeito por diverso entendimento, que tarefas, assumindo um caráter temporário, estavam em causa e determinavam que a autora fosse admitida a prestar trabalho, a termo incerto, à ré.
Assim, e como decorre do regime dos citados arts. 9º e 10º da Lei nº 23/2004, conjugados com o citado art. 131º, nº 4, do CT, temos de concluir que tal contrato se deve considerar sem termo.
Tal contrato, no entanto, é nulo, nos termos dos arts. 5º, 7º e 8º, nºs 1 e 3, da citada Lei nº 23/04, e 294º, do CC, por, além do mais, não ter sido precedido do respetivo processo de seleção. Refira-se que os prévios processos de seleção no âmbito da contratação sem termo e a termo são distintos, pelo que a eventual observância do mesmo quanto a este não supre a omissão em relação àquele.

4. Importa agora apreciar se, não obstante essa nulidade, a relação laboral a termo é ou não convertível em sem termo.
E foi precisamente essa – conversão - a conclusão extraída pela sentença recorrida.
Com efeito, na sentença recorrida concluiu-se no sentido dessa convertibilidade e invocando-se, para o efeito, o Acórdão desta Relação de 24.09.2012, proferido no Processo 2006/09.5TTPNF.P1, publicado in www.dgsi.pt., o qual foi, contudo, lavrado com voto de vencido[1], neste se invocando a argumentação aduzida nos Acórdãos[2], também desta Relação, de 22.02.2010, proferido no Processo 385/08.0TTOAZ.P1 e de 16.03.2009, proferido no Processo 7551/08-4. E, também mais recentemente e de forma similar a estes se decidiu no Acórdão de 19.05.2014[3], proferido no Processo 372/09.1TTVRL.P1, todos consultáveis in www.dgsi.pt.

4.1. Já acima deixámos consignado o enquadramento legislativo aplicável ao caso, sendo que dele decorre a nulidade da contratação sem termo da A.
E, sendo assim e como se dirá, impõe-se também concluir que, persistindo a nulidade dessa contratação, celebrada com patente violação de normas de caráter imperativo, não há viabilidade da sua convalidação, ao abrigo do disposto no art. 125º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro (legislação em vigor à data em que cessou de facto a relação laboral entre autora e ré) e que, no nº 1, prevê a possibilidade de convalidação do contrato inválido quando, durante a sua execução, cesse a causa de invalidade.
Com efeito:
Como é sabido, sobre a querela jurídica relativa à questão da convertibilidade do contrato de trabalho a termo em sem termo no seio da Administração Pública, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão, com força obrigatória geral, nº 368/2000, (DR I Série-A, de 30.11.00), pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade do art. 14º, nº 3, do então DL 427/89 (na redação anterior ao DL 218/98), “na interpretação segundo a qual os contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado se convertem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração total fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo, por violação do disposto no nº 2 do artigo 47º da Constituição”. E, no que concerne aos institutos públicos, também o referido Tribunal, no Acórdão nº 61/2004 (DR, 1ª Série-A, de 27.02.04), declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do art. 22º do DL 342/99, de 25 de Agosto, que cria o Instituto Português de Conservação e Restauro, “na medida em que admite a possibilidade de contratação do pessoal técnico superior e do pessoal técnico especializado em conservação e restauro mediante contrato individual de trabalho, sem que preveja qualquer procedimento de recrutamento e selecção dos candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade, (…)”, também por violação do nº 2 do art. 47º da Constituição.
E doutrina semelhante se extrai de diversos outros arestos do mesmo Tribunal, designadamente no Acórdão 683/99 (DR II Série, nº 28, de 03.02.00), e do Acórdão do STJ de 26.11.08, (in www.dgsi.pt, Proc. nº 08S1982).
Neste (Acórdão do STJ de 26.11.08), transcrevendo-se o acórdão do TC nº 683/99 (e, no mesmo sentido, cfr. também o Acórdão do TC 61/2004), diz-se que:
(…)
Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente organizado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios, conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela desconsideração de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (…).
É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º 2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir-se a preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Constituição..., cit., pág. 265). Poderá discutir-se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta, como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente meritocráticos, ou se pode conceder-se preferência a candidatos devido a características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins prosseguidos pelo Estado.
Seja como for, pode dizer-se que a previsão da regra do concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à capacidade dos candidatos (…).
E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim, um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).
Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso – fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153-4).».
E, sobre o conceito de função pública para efeitos do art. 47º, nº 2, da CRP discorre o Acórdão do TC 61/2004, nos seguintes termos:
“Seguindo, uma vez mais, a argumentação desenvolvida no Acórdão nº 406/2003, recordar-se-á que uma solução intermédia parece ser defendida por J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando referem (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, p. 264, n. VIII ao artigo 47º):
«A definição constitucional do conceito de função pública suscita alguns problemas, dada a diversidade de sentidos com que as leis ordinárias utilizam a expressão e dada a pluralidade de critérios (funcionais, formais) defendidos para a sua caracterização material.
Todavia, não há razões para contestar que o conceito constitucional corresponde aqui ao sentido amplo da expressão em direito administrativo, designando qualquer actividade exercida ao serviço de uma pessoa colectiva pública (Estado, Região Autónoma, autarquia local, instituto público, associação pública, etc.), qualquer que seja o regime jurídico da relação de emprego (desde que distinto do regime comum do contrato individual de trabalho), independentemente do seu carácter provisório ou definitivo, permanente ou transitório.»
No entanto, Vital Moreira, mais tarde, viria a pronunciar-se em sentido mais amplo («Projecto de lei quadro dos institutos públicos — Relatório final e proposta de lei quadro», grupo de trabalho para os institutos públicos, Ministério da Reforma do Estado e da Administração Pública, Fevereiro de 2001, nº 4, p. 50, nota ao artigo 45º), adoptando uma posição que tem também sido defendida pelo Tribunal Constitucional, ao ponderar que:
«No entanto, mesmo quando admissível o regime do contrato de trabalho, nem a Administração Pública pode considerar-se uma entidade patronal privada nem os trabalhadores podem ser considerados como trabalhadores comuns.
No que respeita à Administração, existem princípios constitucionais válidos para toda a actividade administrativa, mesmo a de ‘gestão privada’, ou seja, submetida ao direito privado. Entre eles contam-se a necessária prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, nº 2, da Constituição), todos eles com especial incidência na questão do recrutamento do pessoal.
Além disso, estabelecendo a Constituição que ‘todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso’ (CRP, artigo 47º, nº 2), seria naturalmente uma verdadeira fraude à Constituição se a adopção do regime de contrato individual de trabalho incluísse uma plena liberdade de escolha e recrutamento dos trabalhadores da Administração Pública com regime de direito laboral comum, sem qualquer requisito procedimental tendente a garantir a observância dos princípios da igualdade e da imparcialidade.»
Estas últimas considerações afiguram-se inteiramente procedentes, principalmente quando, como é o caso, o regime laboral do contrato individual de trabalho se reporta a um instituto público que mais não é que um serviço público personalizado.
Com efeito, a exigência constitucional de «acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso» apresenta duas vertentes.
Por um lado, numa vertente subjectiva, traduz um direito de acesso à função pública garantido a todos os cidadãos; por outro lado, numa vertente objectiva, constitui uma garantia institucional destinada a assegurar a imparcialidade dos agentes administrativos, ou seja, que «os trabalhadores da Administração Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estão exclusivamente ao serviço do interesse público» (nº 1 do artigo 269º da CRP). Na verdade, procedimentos selecção e recrutamento que garantam a igualdade e a liberdade de acesso à função pública têm também a virtualidade de impedir que essa selecção e recrutamento se façam segundo critérios que facilitariam a ocupação da Administração Pública por cidadãos exclusiva ou quase exclusivamente afectos a certo grupo ou tendência, com o risco de colocarem a mesma Administração na sua dependência, pondo em causa a necessidade de actuação «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé» (nº 2 do artigo 266º da CRP).
Esta perspectiva é particularmente importante quando se trate de recrutamento e selecção de pessoal para entidades que exerçam materialmente funções públicas, como acontece com o IPCR (cf., supra, nº 4.1).
(…)
Ainda que se entenda que para o recrutamento de pessoal sujeito ao regime do contrato individual de trabalho se não justifica a realização de um concurso público, nem por isso se pode deixar de reconhecer que a selecção e o recrutamento desse pessoal deverá sempre ter lugar através de procedimentos administrativos que assegurem a referida liberdade e igualdade de acesso.”.
Ou seja, e pese embora desde a Lei 23/04 seja possível, no seio da Administração Pública, o contrato individual de trabalho sem termo, da conjugação da doutrina constante dos mencionados Acórdãos impõe-se, em nossa e salvo melhor opinião, concluir no sentido da inconstitucionalidade, por violação do artº 47º, nº 2, da CRP, da interpretação segundo a qual seria permitida, no seio da Administração Pública, a conversão automática do contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho sem termo sem prévio processo de recrutamento de candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade tal como previsto na citada norma constitucional, a que o art. 5º da mencionada Lei 23/2004, veio dar execução.
No sentido dessa inconvertibilidade se tem também pronunciado, de forma unânime e constante, o STJ, designadamente nos seus recentes acórdãos de 10.04.2013, Processo 2006/09.5TTPNF.P1.S1 e de 04.07.2013, Processo 2079/09.0TTPNF.P1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt.

4.2. No caso, e pese embora a existência de prévio processo administrativo de recrutamento, com oferta pública de emprego, a que a A. concorreu [no que se reporta ao contrato de 08.06.2006, pois que, em relação ao primeiro, de 01.07.2004, tal não decorre dos factos provados, nem foi alegado], não só tal processo teve este em vista a contratação a termo, e não a contratação sem termo, como também não foi alegado que o haja sido nos termos do art. 5º da Lei 23/2004 [e não nos termos simplificados previstos no art. 9º, nº 4], sendo que à A. competia, porque constitutivo do seu direito, o ónus de alegação e prova de tal facto (art. 342º, nº 1, do Cód. Civil).
Cabe aqui transcrever as conclusões IV, V e VI do sumário do Acórdão do STJ de 26.11.08, já citado:
“IV – A contratação nos termos da Lei n.º 23/2004, exige que a celebração do contrato de trabalho por tempo indeterminado observe a forma escrita, sob pena de nulidade (artigo 8.º), que exista, para o efeito, por parte das pessoas colectivas públicas que contratam, um quadro de pessoal próprio e a contratação seja feita nos limites desse quadro (artigo 7.º), e que exista um processo prévio de selecção, de que se destaca a publicitação da oferta de trabalho e a decisão de contratação fundada em critérios objectivos de selecção (artigo 5.º).
V – Cabe ao trabalhador, como facto constitutivo do direito a ser considerado trabalhador por tempo indeterminado, a alegação e prova de que o acordo de vontades fonte da relação laboral que vigorou entre as partes foi reduzido a escrito, que houve o processo prévio de recrutamento e selecção com vista à sua contratação e que no organismo público que o contratou existia o referido quadro de pessoal próprio.
VI – Não tendo sido feita a prova desses factos, não pode o contrato de trabalho por tempo indeterminado, nulo, convalidar-se por força da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004.”

4.3. Mas a análise da questão não se esgota no referido.
Com efeito, face ao entendimento sufragado no douto acórdão desta Relação de 24.09.2012, para o qual remete a sentença recorrida, impõe-se apreciar da conjugação e (in)compatibilidade da mencionada inconstitucionalidade com a Diretiva 1999/70/CE do Conselho, de 28.06.99, respeitante ao Acordo-Quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo, a qual, de acordo com o art. 2º al. n) da Lei Preambular 99/2003, de 27.08, que aprovou o Código do Trabalho, foi transposta para a ordem jurídica interna.
Nos termos do art. 1º, al. b), do Anexo ao referido Acordo-Quadro, constitui objetivo do mesmo “Estabelecer um quadro para evitar os abusos decorrentes da utilização de sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo”.
Por sua vez, dispõe o art.5º, sob a epígrafe “Disposições para evitar os abusos” que:
“1. Para evitar os abusos decorrentes da conclusão de sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo e sempre que não existam medidas legais equivalentes para a sua prevenção, os Estados-Membros, após consulta dos parceiros sociais e de acordo com a lei”(…) “deverão introduzir, de forma a que se tenham em conta as necessidades de sectores e/ou categorias de trabalhadores específicos, uma ou várias das seguintes medidas:
a) Razões objetivas que justifiquem a renovação dos supra mencionados contratos ou relações laborais;
b) Duração máxima total dos sucessivos contratos de trabalho ou relações laborais a termo;
c) Número máximo de renovações dos contratos ou relações laborais a termo.
2. Os Estados-Membros, após consulta dos parceiros sociais (…) deverão, sempre que tal seja necessário, definirem que condições os contratos de trabalho ou relações de trabalho a termo deverão ser considerados:
a) como sucessivos;
b) como celebrados sem termo”.
É, pois, indiscutível que constitui propósito da citada Diretiva evitar o abuso decorrente da sucessiva contratação a termo, privilegiando a contratação sem termo como forma normal de constituição da relação jurídico laboral, e contribuir para a qualidade de vida dos trabalhadores e melhoria do seu desempenho (cfr. ainda nº 6 das considerações gerais do Anexo ao Acordo-Quadro).
Tal Diretiva é aplicável tanto ao sector privado, como ao público (não só a Diretiva não distingue, como isso decorre, designadamente, do Acórdão do Tribunal de Justiça das CE, no Processo C-364/07, JO, 13.09.05, C 236/5). E reconhecemos que, em caso de invalidade da contratação a termo, a possibilidade da sua conversão em contratação sem termo constitui uma medida eficaz (senão a mais eficaz) ao seu combate.
Não obstante, entendemos, e com o muito respeito por entendimento contrário, que não poderemos dar primazia à aplicabilidade da referida Diretiva, no entendimento de que, no caso, ela imporia a validade da conversão ou convalidação da contratação da A. em contrato sem termo, assim se sobrepondo ao disposto no art. 47º, nº 2, da Constituição, na interpretação que deste tem vindo a ser sufragada pelo Tribunal Constitucional, como passaremos a explicar.

4.3.1. Dispõe o art. 288º do Tratado da União Europeia, na redação introduzida pelo Tratado de Lisboa (similar ao art. 249º da anterior redação):
“Para exercerem as competências da União, as instituições adoptam regulamentos, directivas, decisões, recomendações e pareceres.
O regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados membros.
A directiva vincula o Estado membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.
A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes.
As recomendações e os pareceres não são vinculativos.”

Tendo embora as Diretivas como destinatários os Estados membros, e não o cidadão, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), atual Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), tem vindo a reconhecer que, decorrido que seja o prazo de transposição de uma Diretiva sem que se verifique a transposição, esta tem efeito direto sempre que contenha obrigações precisas, claras e incondicionais, o que significa que, neste caso, a Diretiva pode ser invocada pelos particulares, nas jurisdições nacionais, contra o Estado. É o que se designa por efeito vertical das diretivas.
E, por outro lado, o então TJCE, atual TJUE, tem igualmente vindo a reconhecer a eficácia horizontal indireta das diretivas, desde que precisas e incondicionais, não transpostas no prazo fixado, eficácia essa que se “revela através do princípio da interpretação do direito nacional conforme o direito comunitário e do princípio da responsabilidade do Estado pela sua não transposição” [Liberal Fernandes, Transmissão do estabelecimento e oposição do trabalhador à transformação do contrato: uma leitura do art. 37º da LCT conforme o direito comunitário, in Questões Laborais, 1999, 14, pág. 237].; no mesmo sentido, Mota Campos, Manual de Direito Comunitário, Coimbra Editora, 5ª Edição, págs. 326, 328/329, 376 a 384.
Importa, no entanto, referir que a obrigação da interpretação conforme da Diretiva, vinculando embora os tribunais nacionais, tem sido interpretada, quanto aos seus limites, de forma não uniforme, havendo o Acórdão do STJ de 27.05.04, in www.dgsi.pt, Processo 03S2467, entendido que ele não será possível quando implique uma interpretação contra-legem. Neste sentido, também Maria João Palma, (in Breves notas sobre a invocação das normas das directivas comunitárias perante os tribunais nacionais, edição AAFDL, 2000, págs. 17 e ss), citada no mencionado Acórdão, ao referir que “a interpretação apenas deve actuar quando o sentido da norma nacional for ambíguo, comportando, entre os vários sentidos possíveis, uma interpretação que seja conforme o direito comunitário”. No mesmo sentido aponta, designadamente, o Acórdão do TJCE, no processo C-268/06, acessível in http://curia.europa.eu, em que, no seu ponto 103, diz que “(…), o direito comunitário, em particular a exigência de interpretação conforme, não pode, sob pena de obrigar o órgão jurisdicional de reenvio a interpretar o direito nacional contra legem, ser interpretado no sentido de que o obriga a conferir (…)”.

No que se reporta, concretamente, à Diretiva ora em apreço, o TJCE, no Acórdão proferido no Processo C-268/06, acima referido decidiu que o art. 5º, nº 1, do Anexo ao Acordo-Quadro não é incondicional e suficientemente preciso para poder ser invocado por um particular perante um juiz nacional (ponto 3 da parte decisória); no entanto, em tal decisão, declarou-se igualmente que “os artigos 10º da CE e 249º, terceiro parágrafo, CE, bem como a directiva 1999/70, devem ser interpretados no sentido de que uma autoridade de um Estado-Membro, agindo na qualidade de empregador público, não está autorizada a adoptar medidas contrárias ao objectivo prosseguido pela referida directiva e pelo acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, no que se refere à prevenção da utilização abusiva de contratos a termo, que consistem em renovar tais contratos por uma duração inabitualmente longa, no decurso do período compreendido entre a data do termo do prazo da transposição dessa directiva e a data de entrada em vigor da lei que assegura essa transposição” (ponto 5).
Por sua vez, o acórdão proferido no Processo C-364/07 (acessível no site mencionado), considerando embora que o citado artº 5º do Acordo-Quadro não impõe a adoção pelos Estados Membros da conversão da contratação a termo em sem termo, declarou, no entanto, que deverá ser adotada interpretação no sentido de que, perante a inexistência de outras medidas efetivas para evitar e, se for caso disso, sancionar a utilização abusiva de contratos a termo sucessivos, “se opõe à aplicação de uma regra de direito nacional que proíbe de forma absoluta, apenas no sector público, que se transforme num contrato de trabalho sem termo uma sucessão de contratos a termo que, tendo tido por objecto satisfazer necessidades permanentes e duradouras do empregador, devem ser considerados abusivos.”, mais declarando que compete ao órgão jurisdicional do Estado verificar se a sua ordem jurídica interna não comporta outras medidas efetivas.
No caso, a nossa ordem jurídica, no que se refere ao sector público, embora não prevendo a possibilidade da conversão do contrato a termo em contrato sem termo, deu cumprimento ao concretamente estipulado no art. 5º da Diretiva em termos, essencialmente, de limitar o recurso à contratação a termo aos casos legalmente previstos, estabelecendo limites máximos temporais e ao número de renovações, definindo o conceito de contratos sucessivos e estabelecendo igualmente a responsabilidade disciplinar e patrimonial dos dirigentes dos respetivos órgãos, medidas estas, cuja eficácia, pelo menos em abstrato, parecerá adequada a evitar tais abusos.

No entanto, e independentemente dessa questão, a verdade é que à interpretação consagrada em tais decisões se opõe, em nossa opinião, o art. 47º, nº 2, da CRP, o que nos leva à delicada questão da hierarquização do direito constitucional e comunitário.
O TJCE tem vindo a reafirmar o princípio do primado do direito comunitário tanto em relação às normas de direito interno, em geral, como em relação às disposições de nível constitucional, em particular, dos Estados-membros, sob a consideração, essencialmente, da necessidade de salvaguardar o seu carácter comunitário e de não ser posta em causa a base jurídica da própria Comunidade [cfr. Mota Campos e Liberal Fernandes, in obras citadas, págs. 390 a 395 e 224, respetivamente).
Se o primado do direito comunitário sobre as disposições internas ordinárias poderá, eventualmente, não suscitar problemática de maior, já tal não sucede no que se reporta ao normativo constitucional.
Com efeito, dispõe o art. 8º, nº 4, da CRP que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”, o que permite concluir que a nossa lei fundamental consagra uma reserva à primazia do direito comunitário.
Como refere Mota Campos, in ob. citada (págs. 401 a 404) “ (…). Se, todavia, nos situarmos no plano do direito positivo português, teremos de reconhecer que a Constituição não permite, de modo algum, pôr em dúvida a supremacia incondicional e ilimitada dos princípios e disposições constitucionais sobre as normas de direito internacional comum ou convencional. (…)
(…) O art. 277º, nº 1, [da CRP] dispõe, com efeito, que “São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na constituição ou os princípios nela consignados”. E, por força do art. 204º, tais normas não podem ser aplicadas pelos Tribunais.
Trata-se de um princípio constitucional absoluto, até porque, em virtude do art. 288º, al. l), tal princípio é insusceptível de revisão. (…)
(…) Com efeito, a Constituição de 1976 instituiu um sistema de controlo de constitucionalidade multiforme tão apertado e rigoroso que não tolera, em caso algum, que uma norma contrária aos princípios e disposições constitucionais, qualquer que seja a sua origem (interna ou internacional) se incorpore no direito português ou que, no caso de nele ter conseguido infiltrar-se, possa ser efectivamente aplicada na ordem jurídica interna. (…)
(…) Os arts. 280º, nº 1, e 281º, nº 1, conjugados com o art. 204º, proíbem com efeito aos tribunais em geral, sob controle constitucional, que apliquem «qualquer norma» (portanto, também as normas de direito internacional comum ou convencional) contrária à Constituição; e o art. 280º, nº 3, prevê especificamente a fiscalização da constitucionalidade das normas constantes de «convenção internacional».”
Sendo tais considerações tecidas a propósito das normas internacionais, elas são também aplicáveis às normas comunitárias, sendo certo que os citados arts. 204º, 277º, 280º a 282º e 288º da CRP não foram adaptados tendo em conta o primado do normativo comunitário sobre o constitucional (como igualmente ali se pondera, a págs. 406).
Também Liberal Fernandes, in ob. citada, nota 20, pág. 223, diz que “(…). Refira-se, todavia, que a prevalência de que falamos não tem sido aceite em relação ao direito constitucional; neste aspecto particular, tem-se entendido que o direito comunitário ocupa uma posição infra-constitucional (embora supra-legal), nos termos do art. 277º, nº 1, da CRP (…)”.
No mesmo sentido, veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Anotada, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 90/91.
Importa acrescentar que o direito consagrado no art. 47º, nº 2, da CRP, insere-se no Capítulo (II) relativo aos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”, estruturantes do Estado de direito democrático, objeto da reserva prevista no art. 8º, nº 4, da CRP.
E no sentido do primado do mencionado art. 47º, nº 2, da CRP se pronunciou, também, o já referido Acórdão do STJ de 04.07.2013 (Processo 2079/09.0TTPNF.P1.S1), nele se tendo referido o seguinte [eliminámos as notas de rodapé]:
«Ora, no que diz respeito a este concreto aspecto da questão, desde já importa consignar que também consideramos que o princípio do primado do direito europeu não se sobrepõe, quanto mais não seja, às normas constitucionais relativas aos princípios em que se fundamenta o Estado de direito democrático e à interpretação que, com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional faça, quando chamado a pronunciar-se, como sucede na situação vertente, em que em causa se encontra o princípio da igualdade no acesso à função pública que, no dizer de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, «… não tem sentido significativamente diverso do princípio geral da igualdade (cfr. art. 13º e respectivas notas). Só que aqui aparece como elemento constitutivo do próprio direito (direito de igualdade)».
É que, como ensinam os mesmos autores, «O primado do direito da União, nos termos definidos no artigo 10º-1 da Constituição Europeia, está condicionado pela reserva constitucional de respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (art. 8º-4, in fine), sendo que «Entre os princípios do Estado de direito democrático haverá de incluir-se, desde logo, o princípio da soberania popular; o princípio do pluralismo de expressão e organização política democrática; o princípio do respeito, garantia e efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, o princípio da separação e interdependência dos poderes; a independência dos tribunais (cfr. CRP, artº. 2:)».
E, para adjuvar o entendimento sustentado pelo recorrente, não se diga que o legislador do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro e bem assim da Lei nº 23/2004, de 22 de Junho, não cuidou de criar «medidas de protecção dos trabalhadores contra o uso e abuso da celebração de contratos a termo».
E, crê-se assim, porque a tanto opõe-se frontalmente o que, estatuído nos artigos 18º, números 5 e 6, 20º, números 1, 2, 3 e 6, 21º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro ou nos artigos 9º e 10º, números 1, 2 e 3 da Lei nº 23/2004, de 22 de Junho, observa, no essencial, o que, preconizado no artigo 5º do Acordo-Quadro CES, UNICE e CEEP, relativo a contratos a termo, Anexo à mesma Directiva Comunitária, visa evitar a utilização abusiva de sucessivos contratos a termo.
É certo que fizeram-no sem prever a possibilidade de conversão, sem mais, do contrato de trabalho a termo em contrato de trabalho por tempo indeterminado, quando celebrado no sector público.
Porém, tal resulta de todo compreensível se se considerar, como nós, que tal afrontaria o comando constitucional ínsito no citado número 2 do artigo 47º.»

4.3.2. Concluindo o exposto, entendemos que a interpretação da Diretiva 1999/70/CE, no sentido de que, no caso, imporia a conversão do contrato a termo em contrato sem termo seria inconstitucional por violação do disposto no art. 47º, nº 2, da CRP.
E, por outro lado, atento o disposto no art. 5º da Lei 23/2004, tal interpretação seria contra-legem, na medida em que permitiria a contratação sem termo sem prévia observância do disposto em tal preceito.
Assim sendo, a contratação sem termo do A. é nula por violação do disposto no art. 47º, nº 2, da CRP e, sucessiva e conjugadamente, nos arts. 9º, nº 3, do DL 184/89 e 18º, nº 5, e 19º do DL 427/89, este na redação do DL 218/98, arts. 5º e 10º, nº 3, da Lei 23/2004 e 294º do Cód. Civil.

5. O contrato de trabalho celebrado entre a A. e a Ré aos 08.06.2006 veio a cessar, aos 01.01.2012, por iniciativa da Ré que, nos termos da carta de fls. 37, lhe comunicou que ele “não será renovado a partir de 31 de dezembro de 2011” e que “cessará a partir do dia seguinte, ou seja, 01 de janeiro de 2012.”
Atenta a data da cessação do contrato, à mesma é aplicável o CT/2009.
Pelas razões que se deixaram acima apontadas o contrato de trabalho entre A. e Ré deverá ser considerado como sem termo, embora nulo, e não a termo certo.
E, porque nulo, são aplicáveis os artsº 122º e 123º do CT/2009 – cfr., neste sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho e Pedro Madeira de Brito[4], bem como Liberal Fernandes[5], onde se refere o seguinte: “Por isso, mantendo-se a produção dos efeitos do contrato a termo celebrado pela Administração para além do prazo máximo previsto (no essencial, a prestação de trabalho e o pagamento da retribuição), porquanto atenta contra a norma (imperativa) que proíbe a renovação tácita do contrato a termo (e mesmo a renovação expressa, quando o contrato atinge determinada duração) e, por maioria de razão, a respectiva conversão. (…). Trata-se de uma nulidade que, apesar de subsistir enquanto se prolongar a prestação de trabalho, não impede que o contrato de trabalho produza os seus efeitos como se fosse válido enquanto o vício não for invocado e a actividade de trabalho não cessar. (art. 15º, nº 1, da LCT».).
Dispõem os mencionados arts. 122º, nº 1, e 123º, nº 1, que “1. [o] contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse válido em relação ao tempo em que seja executado.” (art. 122º, nº 1) e que “1. [o] facto extintivo ocorrido antes da declaração de nulidade ou anulação do contrato de trabalho aplicam-se as normas sobre cessação do contrato.” (art. 123º, nº 1).
Nos termos do art. 286º do Cód. Civil, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal.
No caso, a Ré, aquando da comunicação à A. da cessação do contrato de trabalho não invocou a nulidade da contratação da A., assim como não a invocou na contestação, apenas vindo a fazê-lo no recurso que interpôs da sentença (cfr. conclusões 18 e 25 do recurso).
A mencionada comunicação da caducidade de um contrato de trabalho sem termo, ainda que nulo, consubstancia-se num despedimento ilícito. Com efeito, com tal comunicação do empregador ao trabalhador, que tem natureza recetícia, aquele manifesta a sua intenção de pôr termo à relação contratual, sem precedência de procedimento disciplinar e sem invocação de justa causa (art. 381º, als. b) e c), do CT/2009). E, por outro lado, essa relação contratual consubstanciava, pelo que se deixou dito, não um contrato de trabalho a termo validamente celebrado e suscetível de caducar, mas sim um contrato de trabalho sem termo, ainda que nulo.
Estamos, assim, perante um caso em que, no âmbito de uma relação laboral nula e antes de ter ocorrido a declaração dessa nulidade, foi perpetrado um despedimento ilícito, e não perante a caducidade de um contrato de trabalho a termo.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 18.06.07, proferido na Apelação 1040/06.4., “os arts. 115º, nº 1, e 116º, nº 1, do CT [de 2003] correspondem ao preceituado no art.15º, n.ºs 1 e 3, da LCT, no âmbito dos quais, e no que concerne à articulação entre a invalidade do contrato de trabalho e as normas que disciplinam a extinção do mesmo, mormente em caso de despedimento ilícito ocorrido antes de ser declarada a nulidade, se vinha entendendo que se não poderia ordenar a reintegração do trabalhador, consequência natural desse tipo de despedimento, e simultaneamente declarar a invalidade do contrato.
E, por isso, a questão colocava-se somente no que diz respeito à determinação do termo da indemnização e outros efeitos decorrentes do despedimento ilícito, como é o caso dos salários intercalares, que seriam assim de manter.”
Nesse sentido se pronunciou Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, 2002, pág. 424, segundo o qual “Se, não obstante a invalidade do contrato, uma das partes tiver posto termo ao negócio jurídico com base noutra causa que não a invalidade, por exemplo despedimento, encontram aplicação as regras de cessação do contrato de trabalho. Assim, se num determinado contrato de trabalho nulo, o empregador não invocar a invalidade e despedir o trabalhador, há o dever de pagar uma indemnização, nos termos gerais do art. 13 da LCCT. Por outras palavras, aplicam-se as regras do despedimento como se o contrato fosse válido, sendo devida indemnização no termos gerais”.
E, na mesma linha, se pronunciou, também, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.09.2002, in www.dgsi.pt (Proc. nº 02S1366), o qual analisa, profundamente, as consequências da ilicitude de despedimento levado a cabo antes da declaração da nulidade do contrato de trabalho, aresto esse em que, para além do mais que dele consta, se entendeu, conforme nele sumariado, que:
“I - Tendo a sentença, que declarou a ilicitude do despedimento do autor, simultaneamente declarado a nulidade do contrato de trabalho, por considerar que o seu objecto era contrário à lei, mas tendo, por aplicação do disposto no n. 3 do artigo 15. do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969 (LCT), condenado a ré a pagar a indemnização de antiguidade e os salários intercalares, se a ré interpõe recurso de apelação sustentando que, por força da declarada nulidade do contrato, não são devidos nem aquela indemnização nem estes salários, forma-se caso julgado sobre a decisão que declarou a nulidade do contrato se o autor não a impugna, quer através de recurso subordinado, quer nas contra-alegações relativas à apelação da ré, ao abrigo do n. 1 do artigo 684-A do Código de Processo Civil.
II - A remissão do citado n. 3 do artigo 15. para o regime da cessação do contrato de trabalho constante da LCT vale actualmente como remissão para o Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, que é, assim, aplicável aos actos extintivos (no caso, despedimento) de contratos inválidos, ocorridos antes da declaração de nulidade ou da anulação, com as necessárias adaptações.
III - Uma dessas adaptações resulta da inviabilidade de o tribunal determinar a reintegração do trabalhador despedido, pois o tribunal não pode impor a manutenção de um contrato declarado nulo; porém, esta inviabilidade da reintegração não afecta o direito à indemnização de antiguidade (desde que por esta o trabalhador tenha optado) e aos salários intercalares, entendendo-se que o período de tempo em que o trabalhador esteve impedido de prestar a sua actividade por facto imputável à entidade patronal (despedimento ilícito) deve ser considerado como período de execução do contrato.
IV - O termo final a considerar para efeitos do cálculo da indemnização de antiguidade e dos salários intercalares, quando a entidade patronal haja invocado a nulidade do contrato antes da prolação da decisão judicial que decretou a ilicitude do despedimento e essa invocação haja sido julgada procedente pela mesma decisão, é, não a data desta decisão, mas a data em que aquela invocação foi notificada ao trabalhador.”. [sublinhado nosso]

5.1. Transpondo a doutrina constante dos pontos II, III e IV do mencionado Acórdão do STJ, acima transcritos, para o caso em apreço[6], temos que a A., nos termos do disposto no art. 390º, nºs 1 e 2, al. b), do CT/2009, tem direito, em consequência da ilicitude do despedimento, a receber as retribuições que deixou de auferir desde o 30º dia anterior à propositura da ação, ou seja, desde 21.11.2012 [o despedimento ocorreu aos 01.01.2012 e a ação foi intentada aos 21.12.2012].
Porém, tendo em conta, como já acima referido, que a nulidade da contratação sem termo apenas foi invocada pela Ré no recurso interposto da sentença (cfr. conclusões 18 e 25) e transpondo para o caso, por similitude, o ponto IV do Acórdão de 25.09.2002 (Processo 02S1366) acima referido, o termo final a considerar para efeitos do cálculo dos salários intercalares será a data da notificação à Recorrida do recurso interposto pela Recorrente em que essa nulidade é invocada.
No caso, o recurso foi interposto, via citius, aos 01.07.2013, constando do respetivo formulário que a notificação entre mandatários é efetuada por via eletrónica. Assim, e tendo em conta o disposto no art. 21º-A, nºs 1, 3 e 5 da Portaria 114/2008, de 06.02, na redação introduzida pela Portaria 1538/2008, de 30.12, aplicável ao tempo em que o ato foi praticado, a notificação da interposição do recurso ao A/Recorrido presume-se feita no dia 04.07.2013.
Assim sendo, as retribuições intercalares são devidas, apenas, até 03.07.2013, inclusive [no dia 4 ocorreu a notificação da invocação da nulidade] e não já até à data do trânsito do presente acórdão.
A tais retribuições, cuja liquidação se relega para o respetivo incidente de liquidação (arts. 358º, nº 2 e 609º, nº 2, do CPC/2013), haverá que descontar, nos termos do art. 390º, nº 2, al. c), do CT/2009, os subsídios de desemprego que o A. haja eventualmente recebido no mencionado período (de 21.11.2012 até 03.07.2013), que deverão ser entregues pela Ré à Segurança Social, sendo de esclarecer que consideramos que a determinação constante dessa alínea prossegue um interesse de natureza e ordem pública, tendo natureza imperativa e sendo de conhecimento oficioso.
Sobre as quantias que, como acima referido, se venham a mostrar devidas, tem a A. direito a juros de mora, à taxa legal, porém apenas desde a data do trânsito em julgado da decisão de liquidação das mesmas até efetivo e integral pagamento – arts. 804º, 805º, nº 3, 1ª parte, 806º e 559º, todos do Cód. Civil.

5.2. Em consequência da ilicitude do despedimento, a A. tem ainda direito, nos termos do art. 391º, nº 1, do CT/2009 a uma indemnização em substituição da reintegração, pela qual optou, a qual deverá ser fixada “entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381º.” e, dispondo embora o nº 2 que se deve “atender a todo o tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial.”, no caso a indemnização tem como termo final o dia 03.07.2013, data esta em que, pelas razões acima apontadas, ocorreu a receção da invocação da nulidade.
No que se reporta ao critério da retribuição, o mesmo apenas faz sentido na razão inversa da sua grandeza; quanto à graduação dos critérios a que se reporta o art. 381º, há que ter em conta que o despedimento ilícito pelos motivos indicados na als. a) é mais grave do que decorrente dos referidos nas als. b) e c).
Considerando, no caso, que a retribuição da A. é de valor médio, assim como é mediana a gravidade do despedimento, afigura-se-nos adequada a sua fixação em 30 dias de retribuição por cada ano de antiguidade ou fração, esta assim também graduada na sentença recorrida.
A A. foi admitida ao serviço da ré em 21.06.2004 pelo que, até 03.07.2013, era de 9 anos e 13 dias a antiguidade. Tem assim a A. direito a receber, a este título, a indemnização de € 13.731,2 [€ 1.373,12 x 10].
A este montante deverá descontar-se o valor já pago pela compensação da cessação do contrato, no montante de € 5.989,50, perfazendo assim o valor em dívida de € 7.741,7.
Sobre esta quantia tem a A. direito a juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente decisão até integral pagamento – arts. 804º, 805º, nº 3, 1ª parte, 806º e 559º, todos do Cód. Civil.

6. Resta dizer que a ora relatora, bem como a 2ª Adjunta subscreveram, como 1ª e 2ª Adjuntas, respetivamente, o acórdão desta Relação de 17.06.2013, proferido no Processo 1834/08.3TTPRT.P3 [no qual se entendeu ser se de suscitar o reenvio prejudicial para o TJCE das questões nele mencionadas], posição esta que foi, todavia, revista no Acórdão de 19.05.2014, proferido no Processo 372/09.1TTVRL.P1, tendo em conta o Acórdão do STJ de 04.07.2013, proferido no Processo 2079/09.0TTPNF.P1.S1 (in www.dgsi.pt), que considerou não ser de suscitar tal questão, nele se referindo o seguinte:
“Como bem se sabe, funcionando os tribunais nacionais dos Estados-Membros da União Europeia como órgãos de aplicação do direito comunitário, por forma a alcançar-se, no âmbito do espaço integrado europeu, a coesão e a uniformidade indispensáveis para o bom funcionamento do sistema jurídico que rege o mesmo espaço europeu, criou-se o sistema do reenvio prejudicial.
Sistema que, como também se sabe, tem por escopo permitir, quando surgem dúvidas, no domínio quer da interpretação do Tratado da União Europeia, quer da validade e interpretação dos actos adoptados pelas instituições da União Europeia, quer de interpretação dos organismos criados por acto do Conselho, desde que os estatutos o prevejam [alíneas a), b) e c) do artigo 234º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia], permite aos órgãos jurisdicionais nacionais pedir a um órgão jurisdicional central, o TJUE, que proceda à interpretação do direito da União ou que se pronuncie sobre a sua validade, mas já não que aplique esse direito a uma determinada situação de facto que está a ser discutida no processo principal, posto que tal tarefa incumbe ao juiz nacional, a quem compete tirar as consequências decorrentes da resposta que, porventura, o TJUE tenha fornecido sobre uma daquelas questões submetidas à sua apreciação.
É o que, com meridiana nitidez, resulta do estatuído no aludido artigo 234º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia e que: i) dispõe, por um lado, que sempre que uma questão da natureza daquelas a que antes se fez menção seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie; ii)preceitua, por outro lado, que sempre que uma questão dessa natureza seja suscitada, em processo pendente, perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.
Constituindo, porém, pressuposto do reenvio prejudicial que, ao aplicar uma determinada norma comunitária convocada para o efeito, o juiz nacional experimente dúvidas acerca da interpretação ou da validade da concreta norma ou específico acto de direito comunitário, o mesmo reenvio carece de justificação: i) se o litígio for decidido de acordo, não com as regras comunitárias mas, com as regras de direito interno; ii) se em causa estiverem questões relativas à interpretação ou à apreciação de normas legislativas ou regulamentares de direito interno ou atinentes à sua compatibilidade com o direito comunitário ou, de forma mais clara, questões reportadas à validade ou interpretação das decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais.
Disto decorre, então, que a obrigação de reenvio cessa, designadamente, quando a questão colocada seja materialmente idêntica a uma que já tenha sido objecto de decisão, a título prejudicial, pelo TJUE, um caso análogo ou quando esteja em causa uma questão de interpretação óbvia para o juiz nacional, se este considerar que também ela assim se revela para as jurisdições de outros Estados-Membros e bem assim para o TJUE.
Posto isto, e por via do que mais para trás se deixou referido a propósito das consequências jurídicas decorrentes da contratação da autora, considera-se que, no caso vertente, não existe razão para fazer accionar o mecanismo do reenvio prejudicial.
E, desde logo, porque a este órgão jurisdicional, tal qual sucedeu com as instâncias, não se suscitam dúvidas, como já visto, quanto à interpretação da Directiva nº 1999/70/CE, do Conselho, de 28 de Junho, nomeadamente dos seus artigos 5º, 20º, nº 1 e 30º, nº 1 e conformidade, no essencial, da legislação nacional que, no respeito pelos comandos constitucionais ínsitos nos artigos 8º, nº 4 e 47º, nº 2 da Lei Fundamental, adoptou as medidas consideradas adequadas a evitar a utilização abusiva de sucessivos contratos a termo, em consonância com o preconizado no citado artigo 5º do Acordo-Quadro CES, UNICE, CEEP.
Depois, porque a questão colocada pela recorrente [que, recorde-se, apenas podendo respeitar à interpretação duma concreta norma ou específico acto de direito comunitário, não pode reportar-se à apreciação de normas legislativas ou regulamentares do direito interno ou à sua compatibilidade com o direito comunitário ou validade/interpretação de decisões dos órgãos jurisprudências nacionais] resulta materialmente idêntica a outras que foram objecto de decisão, a título prejudicial, pelo TJUE. E disto constitui clara demonstração, não apenas os acórdãos do Tribunal de Justiça citados pela recorrente mas ainda, e entre outros, os acórdãos do mesmo tribunal de 12.06.2008, Processo C-364/07 ou de 24.06.2010, Processo C-98/09 ou ainda o acórdão de 08.03.2012, Processo C-251/11.,
jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que, efectivamente, na linha do considerado pelo mesmo tribunal, no seu aresto de 04.07.2006, prolatado no Processo C--212/04, vem pronunciando-se no sentido de que: i) o referido acordo-quadro relativo a contratos de trabalho a termo, maxime o seu referenciado artigo 5º, não estabelecendo uma obrigação geral dos Estados-Membros preverem a conversão dos ditos contratos em contratos sem termo, deve tão-só ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que proíba de modo absoluto, apenas para o sector público, a conversão em contratos sem termo uma sucessão de contratos a termo que, tendo tido por objecto satisfazer «necessidades permanentes e duradouras» do empregador, devem ser considerados abusivos; ii) compete, no entanto, ao órgão jurisdicional de reenvio, em conformidade com a obrigação de interpretação conforme que lhe incumbe, verificar se a sua ordem jurídica não comporta outras medidas efectivas tendentes a prevenir e, se for caso disso, a sancionar a utilização abusiva de contratos a termo.
Ora, (…), como também já se observou, na ordem jurídica interna não só foram tomadas medidas tendentes a obviar à utilização abusiva de contratos a termo como ainda se previu, expressamente, que a celebração de contratos de trabalho a termo resolutivo, com violação do disposto na mencionada Lei nº 23/2004, de 22 de Junho, além de implicar a sua nulidade, gera a responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos órgãos que hajam celebrado os ditos contratos (artigo 9º, nº 3).
(…)”.
Acresce referir que, face também ao que se deixou dito, na hierarquização entre o normativo constitucional, mormente o art. 47º e a interpretação, com força obrigatória geral, que dele foi feita pelo Tribunal Constitucional a propósito da inconstitucionalidade da convertibilidade da contratação a termo em sem termo no seio da Administração Pública e dos Institutos Públicos e a Diretiva Comunitária em questão, sempre aquele deveria prevalecer, para além de que o Supremo Tribunal de Justiça sempre tem vindo, de forma uniforme, a pronunciar-se sobre a impossibilidade dessa convertibilidade.
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V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, declarando a nulidade dos contratos celebrados e condenando a Ré a pagar à Autora as seguintes quantias:
- € 7.741,7, de indemnização devida pela cessação ilícita da relação laboral, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito em julgado do presente acórdão;
- as retribuições que a A. teria auferido desde 21.11.2012 até 03.07.2013, às quais deverão ser descontados os subsídios de desemprego que a A. tenha auferido no referido período, os quais deverão ser entregues pela Ré à Segurança Social, tudo a liquidar, nos termos do disposto nos arts. 609º, nº 2 e 358º, nº 2, do CPC/2013, no respetivo incidente.

Custas, em ambas as instâncias, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 1/3 e 2/3, respetivamente, por A. e Ré

Porto, 22-09-2014
Paula Leal de Carvalho
Isabel São Pedro Soeiro
Maria José Costa Pinto
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[1] Da ora relatora.
[2] Relatados, ambos, pela ora relatora.
[3] Relatado pela ora relatora e em que, como 1ª adjunta, interveio a ora 2ª adjunta.
[4] Contrato de Trabalho na Administração Pública, Anotação à Lei nº 23/2004, de 22 de Junho, 2ª Edição Actualizada, Almedina, em anotação ao citado art. 10º (págs. 57 a 61).
[5] Questões Laborais, 2002, págs. 91/92.
[6] A doutrina de tal Acórdão, embora proferida no âmbito do DL 64-A/89, de 27.02, mantém atualidade no domínio do CT/2009 (assim como mantinha no CT/2003) já que são idênticas as previsões normativas constantes de ambos os diplomas.
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SUMÁRIO
I. Atento o disposto no art. 47º, nº 2, da CRP, e, sucessiva e conjugadamente, nos arts. 9º, nº 3, do DL 184/89 e 18º, nº 5, e 19º do DL 427/89, este na redação do DL 218/98, arts. 5º e 10º, nº 3, da Lei 23/2004 e 294º do CC, diplomas esses em cuja vigência foi celebrado contrato de trabalho a termo com Câmara Municipal, é nulo o contrato de trabalho sem termo (resultante da invalidade do termo estipulado a esses contratos) por não ter sido previamente observado o procedimento de recrutamento e seleção de trabalhadores previsto em tais normas.
II. A invocação, pelo empregador, da cessação do contrato por alegada caducidade do mesmo decorrente do termo que lhe havia sido aposto, mas no âmbito de contrato de trabalho sem termo, ainda que nulo, consubstancia um despedimento ilícito, nulidade essa que, todavia, exclui a possibilidade de reintegração do trabalhador.
III. Não havendo essa nulidade sido declarada pela 1ª instância e vindo a ser invocada pelo empregador apenas em sede de recurso que interpôs da sentença, a indemnização substitutiva da reintegração, pela qual a A. optou, bem como as retribuições intercalares consequentes à ilicitude do despedimento são devidas apenas até à data da notificação da interposição do recurso ao trabalhador.

Paula Leal de Carvalho