Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2073/09.1TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
CONTRATO DE SEGURO
DANO NÃO PATRIMONIAL
Nº do Documento: RP201407032073/09.1TBMAI.P1
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Impugnando-se a decisão da matéria de facto com base também em depoimento testemunhal mas não se especificando nem transcrevendo a passagem ou excerto do mesmo considerada como fundamento relevante, o recurso deve ser rejeitado, o mesmo sucede quando não é feita especificação clara da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida.
II - Pretendendo o autor lesado em acidente de viação demandar o Fundo de Garantia Automóvel, a inexistência de seguro válido e eficaz que cubra os danos causados pelo veículo lesante é facto constitutivo do seu direito e da correspondente obrigação daquele, cabendo-lhe, por isso, prová-lo.
III - A emissão de qualquer documento, designadamente o certificado provisório, destinado a comprovar a existência de seguro válido e eficaz, depende do pagamento do prémio ou fracção correspondente e só após este pode ser feita. O próprio aviso - recibo tem de estar validado, nos termos regulamentares (Decreto-Lei nº 291/2007 e Portaria nº 805/84).
IV - A demanda do Fundo de Garantia Automóvel com base na falta de seguro válido e eficaz implica também a do proprietário do veículo e a do respectivo condutor.
V - A prova de que o veículo sinistrado era diariamente utilizado pelo autor e esposa para se deslocarem para os respectivos empregos e fazerem as compras, de que, em sua substituição se tem socorrido da ajuda de amigos, familiares e mesmo da sua entidade patronal, que lhe têm cedido os seus veículos para o efeito e de que tal levou e leva a perdas de tempo, aborrecimentos e preocupações para o autor não integra dano não patrimonial grave gerador da obrigação de indemnizar invocada (unicamente) nos termos do artº 496°, nº 1, do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2073/09.1TBMAI.P1 – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº 177)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (1º Adjunto)
Des. Mário Manuel Batista Fernandes (2º Adjunto)

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

O autor B… instaurou, em 24-03-2009, na comarca da Maia – 1º Juízo Cível, acção declarativa sumária, contra os réus:

-Fundo de Garantia Automóvel;
-C…, Ldª.

Pediu a condenação de ambos a pagar-lhe as quantias de:

a) 7.124,54€ (reparação de veículo sinistrado);
b) 198,00€ e o que lhe vier a ser cobrado até à reparação (recolhas);
c) 750,00€ (danos morais);
d) Juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

Invocou, como causa de pedir: incumprimento da obrigação de indemnizar, por danos (patrimoniais e não patrimoniais) consequentes a acidente de viação.
Fundamentando, alegou, em síntese, que, no dia 16-12-2008, o seu veículo foi embatido por outro, pertencente à ré sociedade mas então conduzido, com conhecimento, no interesse e por conta dela, pelo seu funcionário D…. Tal se deveu a culpa deste e, em consequência, aquele automóvel sofreu estragos que o impediram de circular e obrigaram a recolhê-lo em oficina até ser reparado. Em substituição dele, teve de se valer de veículos emprestados. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo da segunda ré não estava transferida para qualquer companhia de seguros.
Em contestação (fls. 25 a 34), o 1º réu FGA, excepcionou a sua ilegitimidade passiva (por desacompanhado do condutor, enquanto responsável civil), impugnou por desconhecimento os factos alegados, alegou que o pedido é manifestamente exagerado. Acrescentou que a 2ª ré, proprietária do veículo lesante, havia transferido para a Companhia de Seguros E…, SA, a sua responsabilidade civil automóvel por contrato de seguro que se encontrava válido e eficaz à data do acidente, de onde lhe resulta ilegitimidade material.

A 2ª ré não contestou.

Por despacho de 09-02-2010, foi considerado que, também como responsável civil, devia ter sido demandado o condutor do veículo lesante e, por isso, foi convidado o autor a deduzir o incidente adequado a fazê-lo intervir.

O autor acedeu e requereu o chamamento do referido condutor D… “como co-réu ao lado” dos 1º e 2º réus.

Admitido o incidente e citado o chamado, veio este apresentar a sua contestação na qual, além de impugnar a dinâmica do acidente e assim refutar a sua culpa, alegou que desconhece se a sua entidade patronal (2ª ré) havia transferido para qualquer companhia de seguros a sua responsabilidade pela circulação do veículo, tendo o encarregado da empresa o cuidado de não pôr a circular viaturas que o não possuíssem e, segundo se recorda, na ocasião do acidente exibiu à autoridade policial a “carta verde”, então verificada, não percebendo por que razão a seguradora veio, depois, informar que não existia seguro válido.

Por novo despacho de 14-10-2010, foi convidado o autor a concretizar factos alegados na petição inicial, o que ele fez a fls. 125 a 127.

Após diligências relativas ao contrato de seguro, frustrada a alegada possibilidade de acordo que determinou a suspensão da instância e a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva do 1º réu, tendo sido de seguida seleccionada a matéria assente e a controvertida.

Indicados os meios de prova, produzida a pericial, designou-se e realizou-se a audiência de julgamento, tendo, no final, sido decidida a questão-de-facto mediante respostas aos quesitos (fls. 393 a 396).

Na sentença, datada de 30-01-2014, julgou-se a acção parcialmente procedente e condenaram-se, solidariamente, os réus e o chamado a pagar ao autor apenas a quantia total de 7.124,54€ (relativa à reparação) e juros de mora à taxa legal, desde a citação.

O réu FGA não se conformou e interpôs recurso para esta Relação, concluindo assim as suas alegações:

“1. A prova produzida é suficiente para se considerar que o proprietário do veículo de matrícula JJ, à data do acidente, tinha transferido a sua responsabilidade civil para a ré seguradora através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade automóvel titulado pela apólice n.º …./……;
2. A resposta à matéria de facto constante dos quesitos 22.º e 23.º da base instrutória deverá ser alterada para não provado, com a menção da prova da existência e validade do contrato de seguro de responsabilidade automóvel titulado pela apólice n.º …./……;
3. Caso assim não se entenda, verifica-se, ainda assim, que não está, de todo, provado que, no momento do acidente, o veículo JJ não dispusesse de seguro válido e eficaz;
4. É ao autor que cabe o ónus de alegar e provar a inexistência de um seguro automóvel de responsabilidade civil;
5. A resposta à matéria de facto constante dos quesitos 22.º e 23.º da base instrutória deverá ser alterada para não provado;
6. Ao não os interpretar da forma acima assinalada, o tribunal a quo violou os artigos 49.º do DL nº 291/2007, o artigo 342.º do CC, o artigo 28 do DL nº 291/2007.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, nos termos acima peticionados.”

O mesmo sucedeu com o chamado D…, que concluiu assim as suas alegações:

“I - Vem o presente recurso interposto pelo Chamado/Apelante, D…, por não se conformar com a sentença proferida pela Meritíssima Juiz “a quo”, no âmbito dos presentes autos, que julgou a presente acção parcialmente procedente e em consequência condenou solidariamente o ora Recorrente, juntamente com o Fundo de Garantia Automóvel e C…, Lda., no pagamento ao Autor/Recorrido da quantia de € 7.124,54 (sete mil, cento e vinte e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contabilizados desde a citação, até efectivo e integral pagamento.
II - Vejamos então, quais os factos que a Meritíssima Juiz “a quo” considerou provados nos autos, os quais tiveram relevância para a presente decisão, destacando-se os seguintes para efeito das presentes alegações: “1 - 2 - 3 - 20 - 23 - …
III - Da verificação de existência ou não de contrato de seguro válido, ao abrigo do qual se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel conduzido pelo Recorrente.
IV - Esta questão fundamental encontra-se vertida nos quesitos 22º e 23º: “Na data do acidente de viação dos autos o veículo JJ não tinha a sua responsabilidade civil validamente transferida para qualquer Companhia de Seguros? Na data de 16 de Dezembro de 2008 a apólice nº …./……, da Companhia de Seguros E…, identificada pelo agente da BT da GNR na Participação de Acidente constante de fls. 13, não se encontrava em vigor?”
V - Os supra indicados quesitos mereceram a seguinte resposta da Meritíssima Juiz “a quo”: “Provado que por carta datada de 12 de Fevereiro de 2009, dirigida ao autor, a Companhia de Seguros E…, S.A. informou-o que o veículo ..-..-JJ não tinha seguro válido à data do acidente. Provado ainda que a Companhia de Seguros E…, S.A. informou aos presentes autos que “O contrato de seguro no qual o veículo ..-..-JJ estava inserido foi anulado em 27/09/2008 por Falta de Pagamento de Prémio. O cliente C…, LDA. não pagou a esta seguradora o recibo referente ao período de 01/07/2008 a 31/07/2008 no valor de € 6.385,32. De acordo com a lei em vigor nessa data, o limite de pagamento seria a 28/08/2008 tendo mais 30 dias para liquidação. Como tal não aconteceu, a Companhia anulou o contrato (…). Por este motivo, o veículo ..-..-JJ não se encontrava seguro à data do sinistro a 16.12.2008.”.
VI - Como se concebe que, para resposta aos supra indicados quesitos, a Meritíssima Juiz “a quo” apenas tenha tido em conta os documentos juntos pela Companhia de Seguros E…, S.A., companhia esta a quem não interessava de forma alguma que ficasse provado na presente acção, que o contrato de seguro existia validamente, até porque em detrimento daquilo que lhe foi solicitado pelo Tribunal, nunca veio comprovar ter cumprido a norma 017/2000 de 21 de Dezembro, no que tange a junção do documento comprovativo de envio da comunicação/aviso a que se refere o artº 7º do D.L. nº 142/2000 de 15/07, nos termos do artº 9º da apólice uniforme de seguro obrigatório de responsabilidade civil, conforme foi oportunamente solicitado pelo Fundo de Garantia Automóvel.
VII - Por outro lado, como se concebe que a Meritíssima Juiz “a quo” entenda que pelo simples facto de o agente da GNR ter feito constar do auto de ocorrência de participação do acidente a menção do número da apólice ao abrigo da qual se encontrava transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel conduzido pelo ora Recorrente, não permita concluir que o mesmo estivesse na posse da chamada “carta verde”!
VIII - Se assim não fosse, o agente da GNR mencionaria no auto de ocorrência – participação de acidente de viação - que o veículo em causa, não apresentava seguro válido, o que não aconteceu.
IX - Acresce ao exposto que dos documentos juntos aos autos, pela Companhia de Seguros E…, S.A., que tão valorados foram pela Meritíssima Juiz “a quo”, consta que o contrato de seguro existente entre a mencionada companhia de seguros e a Ré C…, Lda., era um seguro de frota, onde estão incluídos inúmeros veículos, entre os quais, o veículo automóvel conduzido pelo Recorrente (Vide fls. 222 e ss. dos autos).
X - No documento constante de fls. 222 e ss., verificamos que o prazo de duração do contrato de seguro era de um ano e seguintes, com início a 01/07/2008, o que desde logo constitui mais uma razão para se considerar que o contrato de seguro celebrado entre a Companhia de Seguros E…, S.A. e a Ré C…, Lda., ao abrigo da apólice …./……/.., se encontrava válido à data do acidente.
XI - No entanto e sem prescindir, entende o ora Recorrente que não poderá ser condenado na presente acção, pelo facto de, conforme ficou devidamente provado no âmbito da presente acção pelo facto de: “Neste acidente foram intervenientes o Autor, que na altura do acidente tripulava um veículo ligeiro de passageiros, da sua propriedade, com a matrícula ..-AI-.., e o veículo ligeiro de mercadorias, pertencente à Ré C…, Limitada, com a matrícula ..-..-JJ, o qual, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, era conduzido pelo seu funcionário D…. (sublinhado nosso).
XII - Na sua condição de funcionário o D… exercia a condução do JJ segundo instruções que a sua entidade patronal lhe havia dado, pelo que a condução tinha por objectivo satisfazer o interesse económico e financeiro da Ré e, como tal, era do seu conhecimento.” (sublinhado e negrito nosso). – cfr. Alínea B) e C) da Matéria Assente.
XIII - Ficou também provado na presente acção, que o Recorrente, “D… trabalhou durante cerca de 15 anos ao serviço da Ré, como motorista, sendo um trabalhador diligente e cuidadoso” (resposta ao quesito 27º).
XIV - Face ao supra exposto não pode o mesmo ser responsabilizado pelo facto de circular com um veículo automóvel, alegadamente sem contrato de seguro válido, o que era do absoluto desconhecimento do Recorrente, pelo que a confirmar-se a inexistência de seguro válido, o que só por mera hipótese de raciocínio se concebe, apenas a Ré C…, Lda. poderá ser responsabilizada por tal facto e ser condenada e nunca o ora Recorrente, uma vez que era a ela que competia diligenciar no sentido de apenas fazer circular os veículos automóveis que tivessem seguro válido.
XV - Não estava, como nunca esteve na disponibilidade do Recorrente escolher os veículos automóveis em que circulava ao serviço da sua entidade patronal, cumprindo as ordens que lhe eram dadas por esta.
XVI - Além do mais, o Recorrente sempre esteve convencido que o veículo automóvel em que circulava nesse dia, ao serviço da sua entidade patronal, tinha seguro válido, uma vez que tinha na sua posse, juntamente com os demais documentos da viatura, do certificado de seguro, vulgarmente designado por “carta verde”.
XVII - Face a tudo quanto acima se expôs, não poderá deixar de se considerar que a sentença de que ora se recorre terá que ser revogada e substituída por outra que absolva o ora Recorrente, considerando quanto a ele, a acção totalmente improcedente por não provada.
XVII - A sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou o disposto nos artºs 342º, 500º e nº 1 do artº 503º do Código Civil e o artº 28º do D. L. nº 291/2007.
Termos em que e nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., julgando o presente recurso totalmente procedente e revogando a decisão recorrida, farão como sempre a mais inteira e sã Justiça.”

O autor B… respondeu a ambos os recursos, defendendo a bondade do julgado quanto à inexistência de seguro válido e interpôs recurso subordinado que rematou com as seguintes conclusões:

“1- Resulta suficientemente dos autos que à data do acidente identificado na petição inicial o JJ não era portador de qualquer apólice de seguro de responsabilidade civil automóvel, válida e eficaz;
2- Resulta dos autos que o contrato de seguro foi anulado por falta de pagamento em 28 de Agosto de 2008, sendo certo que o acidente de viação ocorreu em 16 de Dezembro de 2008;
3- A convicção do Tribunal encontra-se estribada no conjunto da prova produzida na audiência de discussão e julgamento, bem como na prova documental junta aos autos, conforme resulta da resposta à matéria de facto de fls. (…);
4- Os Recorrentes não indicam nas suas alegações de recurso quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo fonográfico que impunham decisão diversa da matéria de facto impugnada, sendo certo que esse era o seu ónus;
5- No entender do Recorrente a decisão à matéria de facto não merece reparo, pelo que a decisão se deverá manter.
6- Os danos não patrimoniais reclamados pelo Recorrido devem ser ressarcidos pelos Recorrentes, uma vez que se tratam de danos graves que merecem tutela jurídica;
7- Deram-se como provados os factos descritos em 19.º a 21.º da base instrutória;
8- Já passaram, à data de hoje, 1940 dias sobre ao acidente (mais de 5 anos!), verificando-se a factualidade relatada na petição inicial e vertidos nos sobreditos quesitos desde 16 de Dezembro de 2008;
9- Tanto a privação do veículo, os subsequentes transtornos que tal circunstância acarreta, bem como o lapso de tempo que entretanto decorreu, são suficientemente graves para que ao Recorrido seja arbitrada a indemnização reclamada, cujo valor peticionado apenas peca por defeito.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, e procedente o recurso subordinado, condenando-se, além do mais, os Recorrentes a liquidar ao Recorrido a quantia de 750 Eur., acrescido dos juros vencidos desde a citação até efectivo e integral pagamento. JUSTIÇA.”

A este ainda contrapôs o FGA que o recurso subordinado é inadmissível, em razão do valor.
Os recursos do réu e chamado foram ambos admitidos como de apelação, com subida imediata nos autos e efeito meramente devolutivo. O recurso do autor foi admitido como subordinado, ao abrigo do artº 633º, nºs 1 e 5, CPC.
Corridos os Vistos legais, cumpre decidir uma vez que nada a tal obsta (mormente, como abaixo se anotará, quanto à admissibilidade do recurso do autor).
II. QUESTÕES A RESOLVER
Caso nenhuma outra delimitação (subjectiva ou objectiva) seja especificada, pelo recorrente, são as conclusões que, sem prejuízo da competência oficiosa, definem o thema decidendum e balizam os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 608º, 635º, 637º, nº 2, e 639º, do CPC).

Assim, neste caso, o objecto do recurso, radica nas questões de saber:

-relativamente ao FGA e ao chamado D…, se deve ser alterada a resposta aos quesitos 22º e 23º e considerado que existia seguro válido e eficaz;
-ainda relativamente a este, se, como condutor comissário, não é ele responsável civil e não deve ser demandado juntamente com aquele;
-quanto ao autor, se deve também proceder à acção quanto ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais.

III. FACTOS PROVADOS

O tribunal recorrido considerou os seguintes:

“1 - No dia 16 de Dezembro de 2008, cerca das 16,10 horas, ocorreu um acidente de viação na Estrada Nacional …, ao km 7,8, na localidade de …, concelho e comarca da Maia.
2 - Neste acidente foram intervenientes o Autor, que na altura do acidente tripulava um veículo ligeiro de passageiros, da sua propriedade, com a matrícula ..-AI-.., e o veículo ligeiro de mercadorias, pertencente à Ré C…, Limitada, com a matrícula ..-..-JJ, o qual, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, era conduzido pelo seu funcionário D….
3 - Na sua condição de funcionário o D… exercia a condução do JJ segundo instruções que a sua entidade patronal lhe havia dado, pelo que a condução tinha por objectivo satisfazer o interesse económico e financeiro da Ré e, como tal, era do seu conhecimento.
4 - Tanto o AI como o JJ circulavam no mesmo sentido, ou seja, …/….
5 - O veículo conduzido pelo Autor seguia a uma velocidade não superior a 50km/hora.
6 - Sensivelmente ao km 7,8 da Estrado Nacional …, o Autor decidiu efectuar uma manobra de mudança de direcção para a sua esquerda, atento o seu sentido de marcha.
7 - Pelo que se aproximou do eixo da via.
8 - O A. desacelerou até se imobilizar junto ao entroncamento que segue para a F…, dado que aguardava a passagem de outro veículo que circulava em sentido contrário.
9 - O autor accionou as luzes de aviso de mudança de direcção para a esquerda a pelo menos cerca de 20 metros do entroncamento onde pretendia mudar de direcção.
10 - Nessa altura o veículo JJ encontrava-se a cerca de 30 metros do veículo AI.
11 - O condutor do veículo JJ, o chamado D…, apercebeu-se da presença do veículo AI, tendo-se igualmente apercebido de que o seu condutor havia accionado as luzes de aviso de mudança de direcção para a esquerda e de que se aproximou do eixo da via, tendo aí imobilizado o veículo AI.
12 - Com o fito de evitar o embate no AI o condutor do JJ ainda accionou os travões, contudo não logrou evitar a colisão.
13 - Como tal, o JJ embateu com a sua frente na traseira do AI.
14 - O embate deu-se no eixo da via por onde ambos os veículos seguiam, na hemi-faixa de rodagem da direita (atento o sentido de marcha de ambos).
15 - A parte traseira do veículo AI ficou muito danificada, nomeadamente: […]
16 - Tendo o custo da sua reparação sido orçamentado em € 7.124,54.
17 - Até à data do acidente o veículo AI era diariamente utilizado pelo Autor e sua esposa para se deslocarem para os respectivos empregos e fazerem as compras.
18 - A sua falta durante este lapso de tempo tem levado a que o Autor se tivesse de socorrer da ajuda de amigos, familiares e mesmo da usa entidade patronal, os quais têm vindo a ceder os seus veículos para que o Autor e seu agregado se possam deslocar diariamente.
19 - Esta circunstância levou e leva a perdas de tempo, aborrecimentos e preocupações para o Autor.
20 - Por carta datada de 12 de Fevereiro de 2009, dirigida ao autor, a Companhia de Seguros E…, S.A. informou-o que o veículo ..-..-JJ não tinha seguro válido à data do acidente. Provado ainda que a Companhia de Seguros E…, S.A. informou aos presentes autos que “O contrato de seguro no qual o veículo ..-..-JJ estava inserido foi anulado em 27/09/2008 por Falta de Pagamento de Prémio. O cliente C…, LDA. não pagou a esta seguradora o recibo referente ao período de 01/07/2008 a 31/07/2008 no valor de € 6.385,32. De acordo com a lei em vigor nessa data, o limite de pagamento seria a 28/08/2008 tendo mais 30 dias para liquidação. Como tal não aconteceu, a Companhia anulou o contrato (…). Por este motivo, o veículo ..-..-JJ não se encontrava seguro à data do sinistro a 16.12.2008.”.
21 - O condutor do veículo JJ, o chamado D…, apercebeu-se da presença do veículo AI, tendo accionado os travões da viatura automóvel que conduzia.
22 - O chamado D… telefonou para as instalações da sua entidade patronal após o acidente e o mecânico da empresa deslocou-se de imediato ao local.
23 - O D… trabalhou durante cerca de 15 anos ao serviço da Ré, como motorista, sendo um trabalhador diligente e cuidadoso.”

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Quer o FGA quer o chamado D… questionaram a decisão pelo tribunal recorrido proferida sobre os quesitos 22º e 23º da matéria de facto.

Por isso, embora distinguindo as nuances decorrentes das alegações com que cada um deles sustenta a pretensão de ver alterada a respectiva resposta, vamos apreciar conjuntamente tal impugnação.

Os pressupostos e os requisitos do recurso de decisão proferida sobre a matéria de facto, que pode conter vícios geradores de anulação ou erros de julgamento, decorrem, em geral, dos artigos 637º, nº 2, e 639º, nº 1, e, em especial, dos artºs 640º e 662º, do CPC, e podem assim esquematizar-se:

-especificação ou individualização concreta dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois são inadmissíveis recursos genéricos de tal matéria[1];
-especificação, de entre os constantes do processo, nele registados ou gravados em áudio ou vídeo, dos concretos meios de prova que, na perspectiva dele, impõem a alteração dos referidos pontos daquela matéria;
-no caso de serem invocados meios probatórios que tenham sido gravados, indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso;
-em alternativa, possibilidade de o recorrente proceder à transcrição dos excertos que a parte considere relevantes;
-especificação da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida (alínea c), do nº 1, do artº 640º).[2]

Claro que uma simples manifestação de discordância em relação à decisão proferida, ainda que formalmente acompanhada das especificações e indicações requeridas e rematada com o concreto pedido, pode não bastar.

A alegação e, em particular, as conclusões devem identificar e pôr em evidência, com clareza e em forma sintética, o erro de julgamento em que o tribunal laborou ou a invalidade que cometeu, justificativos da impugnação e alegadamente causadores da pretensão recursiva, e explicitar[3] os seus concretos motivos ou fundamentos integrantes dos preconizados vícios[4], de modo a que o tribunal ad quem possa reapreciar, como é sua função, o percurso decisório trilhado pelo tribunal a quo, avaliar a razão do inconformismo manifestado e o mérito da alteração pretendida pelo recorrente e decidir sobre esta.[5]

Em face destes parâmetros, resulta claro de ambos os recursos, que os pontos de facto visados respeitam aos quesitos 22º e 23º.

Porém, enquanto que o FGA é claro ao indicar a decisão que, no seu entender, sobre eles deve ser proferida, já o chamado, perdendo-se em considerações e interrogações retóricas e limitando-se, em vez de formular conclusões sintéticas, específicas e precisas, como mandam os artºs 639º, nº 1, e 640º, a repetir o texto das alegações apelidado de “conclusões”, o não faz.

Além disso, sendo certo que, criticando as respostas dadas, este apenas invoca os documentos juntos e deles pretende retirar ilações, já aquele acrescenta e se baseia na alusão ao depoimento testemunhal do agente da GNR que elaborou a participação do acidente, sem, contudo, fazer a exacta indicação das passagens da gravação em que se funda nem proceder à transcrição dos excertos dele que considera relevantes para o almejado fim.

Por uma e outra das razões apontadas, nos termos do artº 640º, nºs 1 e 2, alínea a), considera-se que não foram cabalmente cumpridos, como, aliás, acena o autor ao contra-alegar, os deveres de especificação necessários – o que leva à rejeição de ambos os recursos, nesta parte.

Mas ainda que assim se não entendesse, afigura-se-nos que, de todo o modo, jamais eles mereceriam provimento.

Senão vejamos.

Nos quesitos em causa perguntava-se:

“22º - Na data do acidente de viação dos autos o veículo JJ não tinha a sua responsabilidade civil validamente transferida para qualquer companhia de seguros?
23º Na data de 16 de Dezembro de 2008 a apólice nº …./…… da Companhia de Seguros E…, identificada pelo agente da BT da GNR na participação de acidente constante de fls. 13, não se encontrava em vigor?”

O tribunal recorrido respondeu:

“Provado que por carta datada de 12 de Fevereiro de 2009, dirigida ao autor, a Companhia de Seguros E…, S.A. informou-o que o veículo ..-..-JJ não tinha seguro válido à data do acidente. Provado ainda que a Companhia de Seguros E…, S.A. informou aos presentes autos que “O contrato de seguro no qual o veículo ..-..-JJ estava inserido foi anulado em 27/09/2008 por Falta de Pagamento de Prémio. O cliente C…, LDA. não pagou a esta seguradora o recibo referente ao período de 01/07/2008 a 31/07/2008 no valor de € 6.385,32. De acordo com a lei em vigor nessa data, o limite de pagamento seria a 28/08/2008 tendo mais 30 dias para liquidação. Como tal não aconteceu, a Companhia anulou o contrato (…). Por este motivo, o veículo ..-..-JJ não se encontrava seguro à data do sinistro a 16.12.2008.”

Para tanto, na respectiva fundamentação, exarou: “o tribunal atendeu aos documentos de fls. 18/19, 163 e seguintes e 210 e seguintes, sendo certo que, muito embora pelo Fundo de Garantia Automóvel tenha sido alegado que o contrato de seguro relativo ao veículo ..-..-JJ, celebrado entre a empresa ré e a Companhia de Seguros E…, S.A. se encontrava válido e eficaz à data dos factos em causa nestes autos, o certo é que nenhuma prova foi produzida pelo mesmo nesse sentido e, por outro lado, nada consta dos autos quem nos permita concluir que, nessa data, o condutor do veículo estivesse na posse da respectiva “carta verde”, tal como referido pelo FGA no decurso do julgamento, já que o agente da GNR não conseguiu comprovar tal facto por não se recordar, dado o tempo entretanto decorrido, sendo certo que o simples facto de o mesmo ter feito constar o número da apólice do auto de participação não é suficiente para nos permitir concluir que lhe tenha sido, de facto, exibida a carta verde, ou que a mesma estivesse dentro da validade, pois como se referiu, o Sr. Agente não conseguiu confirmar tal facto no seu depoimento.”.

E, na sequência disto, em sentença, o tribunal limitou-se a concluir: “Acontece que, conforme resulta da factualidade apurada, o veículo JJ não tinha, na data do acidente, seguro válido, ou seja, a responsabilidade pelos danos causados pelo veículo não se encontrava transferida para nenhuma seguradora.”.

Ora, à luz dos artºs 47º, nº 1, e 49º, nº1, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou o vigente regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, no caso de o responsável civil pela reparação dos danos causados em acidente não ter cumprido a obrigação de seguro e de o veículo não estar por ele coberto, é o Fundo de Garantia Automóvel que garante a satisfação das indemnizações devidas.

Por isso, as acções judiciais destinadas a efectivá-las devem ser contra ele propostas, de acordo com o artº 62º, nº1.

Assim, a inexistência de seguro válido e eficaz, num caso como o dos autos em que o autor lesado alegou, na petição inicial em que logo demandou o Fundo, que fora informado pela companhia de seguros mencionada na participação policial de que a apólice respectiva não estava em vigor e a responsabilidade civil pelos danos causados pelo veículo lesante não estava, por isso, transferida para qualquer seguradora, é, evidentemente, facto constitutivo do seu direito e da correspondente obrigação invocados, cabendo-lhe o ónus, nos termos do artº 342º, nº 1, do CC, de o alegar e provar.[6]
Como é sabido, as regras do ónus da prova não têm, em princípio, por objectivo definir qual a parte que tem de apresentar e lograr a prova de certo facto. Com efeito, nos termos do artº 413º, do CPC, o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado elas da parte onerada com tal encargo, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.
São elas – as provas – que, nos termos do artº 341º, CC, têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Finalidade essencial daquelas regras é, pois, estabelecer contra qual das partes deve o tribunal decidir no caso de persistir a dúvida quanto à ocorrência do facto controverso. É o que resulta do disposto nos artigos 346º, CC, segundo o qual na dúvida sobre a verificação de um facto o tribunal deve decidir contra a parte onerada com a prova, e 414º, CPC, ao dispor que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
A regra geral do ónus da prova encontra-se definida no artigo 342º, CC.
Assim, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, dos factos sem os quais o direito não existiu sequer, sejam eles factos positivos ou negativos (n.º 1). A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado, isto é, dos factos em função dos quais o direito ou não chegou a constituir-se na esfera jurídica daquele que o invoca, como teria sucedido sem eles, ou, tendo-se constituído, obsta ao seu exercício, ou entretanto se modificou ou se extinguiu, compete àquele contra quem a invocação é feita (n.º 2). Por sua vez, o n.º 3 prescreve que, em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito, ou seja, a sua prova recai sobre quem invoca o direito.
O artº 343º, define regras em casos especiais, enquanto que o artº 344º, estabelece os casos em que tais regras se invertem: quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine, e, ainda, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.
Trata-se de regras legais. É o próprio legislador a resolver em determinado sentido não apenas as dúvidas sobre a ocorrência do facto controvertido, mas também as dúvidas que possam suscitar-se sobre a natureza do facto e o relevo dessa natureza em sede de ónus da prova. Perante esta disposição, se os factos não tiverem uma natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do direito que seja inequívoca, clara, manifesta, para efeitos do ónus da prova tem de se considerar que são factos constitutivos do direito. Se não existirem fortes e boas razões para considerar sem dúvida que o facto é impeditivo, modificativo ou extintivo, tem de se aceitar que o facto é constitutivo do direito.
Não se trata de critérios jurisprudenciais de julgamento, relativos à apreciação e valoração das provas e formação da convicção sobre os factos
Embora o critério de qualificação dos factos como constitutivos ou impeditivos, modificativos ou extintivos do direito possa variar em função da relação jurídica, da configuração da acção destinada a exercitar os direitos dela derivados ou da perspectiva com o que o facto é alegado no conflito a decidir, não é a maior ou menor dificuldade da parte em demonstrar o facto alegado ou a sua feição positiva ou negativa que determinaram o legislador na formulação das apontadas normas e, por isso, na busca do sentido com que elas devem ser interpretadas e aplicadas.
Coisa bem diversa é o relevo desses aspectos no momento jurisprudencial de apreciação e valoração da prova produzida (atribuição à mesma do grau de suficiência ou insuficiência para fundar a decisão sobre o facto a provar).
Aí, nessa operação decisória, admite-se como possível que o juiz aligeire o grau de exigência quanto à prova necessária para se fazer a demonstração de um facto negativo exactamente em razão e na medida da dificuldade de, como tal, o demonstrar e na necessidade de não criar às partes obstáculos invencíveis ao exercício dos seus direitos. Não se tratará, ainda assim, de recorrer a uma inversão jurisprudencial do ónus da prova.
Casos há, portanto, em que o mesmo facto pode, por exemplo, numa acção ser constitutivo e noutra ser extintivo. Releva a ligação do facto em si mesmo aos requisitos do direito. Se ele respeita a uma situação de vida que preenche a previsão normativa, a sua ocorrência surge como indispensável para que o direito se constitua e possa ser afirmado e exercido uma vez que este está na lei previsto para o caso de ocorrer essa situação de facto. Aí, ele deve entender-se como constitutivo do direito, na medida em que este não se estabelece sem ele ou independentemente dele[7].
Nesta acção, o autor, afirmando-se lesado em consequência de acto ilícito, invoca o direito a demandar o FGA e a exigir a sua condenação a pagar-lhe a indemnização pretendida, não, como seria normal, por ele ser o agente do facto ilícito e primeiro obrigado a indemnizá-lo (ou a seguradora para quem devia estar legal e contratualmente transferida tal responsabilidade), mas porque existem normas legais a atribuir-lhe tal direito no caso de o responsável civil não ter cumprido a sua obrigação de efectuar o seguro de responsabilidade civil automóvel e de, portanto, este simplesmente não existir ou de não ser válido e eficaz.
Tal facto, ainda que negativo e, para ele, difícil de provar, integra e preenche mesmo a previsão das apontadas normas que lhe atribuem tal direito e, portanto, lhe conferem a faculdade de demandar o Fundo e a este atribuem legitimidade ad causam e ad substantiam. É, pois, facto constitutivo.
Solução algo diversa ocorreu no caso tratado no Acórdão da Relação de Lisboa, de 15-03-2012[8], em que o Fundo demandou os responsáveis civis, um destes alegou estar coberto por seguro e a companhia seguradora respectiva, chamada à instância, invocou que o contrato cessara os seus efeitos e já não estava em vigor à data do acidente. Aí se considerou[9]: “Celebrado um contrato [como o prova o facto sob E)], o mesmo presume-se válido e eficaz. Cabe àquele que diz que o contrato é inválido ou ineficaz alegar os factos necessários à conclusão de que assim é. Ou seja, as circunstâncias que levam à invalidade ou ineficácia de um contrato têm de ser alegadas e provadas por aquele que as invoca: ora como factos impeditivos ou extintivos do direito da outra parte (art. 342/2 do CC) ora como factos constitutivos do direito à declaração de nulidade ou à anulação do contrato (art. 342/1 do CC). E como a seguradora não provou os factos relativos à cessação do contrato, concluiu-se pela sua responsabilidade.
Sucede que, neste nosso caso, diferentemente daquele, a seguradora supostamente responsável, apesar de, nos autos, depois de solicitada, ter informado que o contrato não era válido nem eficaz por falta de pagamento do prémio, não é parte no processo, logo nenhum interesse directo tem nele, nenhuma ilação daí se podendo retirar quanto à distribuição do ónus da prova.
Por isso, percute-se, era sobre o autor que impendia o encargo de fazer a prova dos factos legalmente necessários (inexistência de seguro válido e eficaz) para na sua esfera jurídica se constituir o direito de demandar o FGA e os responsáveis civis e exigir-lhes a indemnização.[10] A tarefa destes cingia-se, como decorre do artº 346º, a opor contraprova à prova produzida por aquele a respeito dos mesmos, destinada a torná-los duvidosos.
Ora, nos termos do artº 28º, do citado Decreto-Lei nº 291/2007, constituem documento comprovativo de seguro válido e eficaz em Portugal o certificado internacional de seguro (vulgarmente designado por «carta verde»), o certificado provisório, o aviso-recibo ou o certificado de responsabilidade civil, quando válidos.
As condições de emissão, de validade e de fiscalização de tais documentos resultam dos artºs 29º e 80º a 85º, daquele diploma, e 85º, nº 1, alínea c), e 150º, do Código da Estrada. Delas e em cotejo com o Decreto-Lei nº 142/2000, de 15 de Julho, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 122/2005, de 29 de Julho, e no que tange especificamente à questão do pagamento do prémio, resulta que da efectivação deste depende a eficácia do contrato e consequente cobertura do risco, bem como a emissão de qualquer dos documentos comprovativos.
O preâmbulo deste último diploma é em tal sentido muito claro. Nele, com efeito, se refere a intenção de aplicar em toda a sua extensão o princípio de que “o contrato de seguro só deve produzir os seus efeitos com o pagamento do prémio ou fracção por parte do tomador de seguro. Na falta de pagamento do prémio ou fracção, o risco não deve estar coberto pelo contrato. Deste modo, o seguro apenas é válido, produzindo os seus efeitos, com o pagamento do prémio ou fracção, não sendo eficaz, quanto às obrigações de ambas as partes, se não se verificar o pagamento.”
Assim, dispõe o nº 1, do artº 4º, que o prémio ou fracção inicial é devido na data da celebração do contrato, e, o artº 5º, nº 1, que os prémios ou fracções subsequentes são devidos nas datas estabelecidas na apólice respectiva; e, ainda, o nº 1, do artº 6º, que a cobertura dos riscos apenas se verifica a partir do momento do pagamento do prémio ou fracção. Por seu turno, conforme estabelece o nº 1, do artº 8º, a falta de pagamento do prémio de anuidades subsequentes, ou da primeira fracção deste, impede a renovação do contrato, que por esse facto se não opera, e o não pagamento de uma qualquer fracção do prémio no decurso de uma anuidade determina a resolução automática e imediata do contrato, na data em que o pagamento dessa fracção era devido.
Assim, como se reitera no dito preâmbulo, “Não procedendo o tomador de seguro ao seu pagamento…o risco deixa de estar coberto pelo contrato” e, além disso, “O momento do início da cobertura dos riscos deve constar da apólice. O pagamento do prémio ou fracção, condição necessária, na generalidade dos contratos, para o início da cobertura dos riscos, deve sempre preceder a entrega ao tomador de seguro do título que lhe permite comprovar a existência de um seguro válido. Justifica-se, assim, que, no que diz respeito ao seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório, tanto o certificado internacional como o certificado provisório só possam ser emitidos após o pagamento do prémio, uma vez que é a partir deste momento que se inicia a cobertura do risco. Procura-se, desta forma, que o certificado reflicta a eficácia do contrato de seguro e, portanto, a cobertura dos riscos.”
Nesta linha, os nºs 1, 3, 4 e 10º, do artº 29º, do Decreto-Lei nº 291/2007, estabelecem precisamente que a emissão de qualquer documento destinado a comprovar a eficácia do contrato de seguro depende do pagamento do prémio ou fracção correspondente e só após este pode ser feita. Tal sucede mesmo com o certificado provisório e o próprio aviso-recibo tem de estar validado, nos termos da Portaria nº 805/84, de 13 de Outubro, mediante aposição da vinheta dos CTT ou da empresa de seguros certificativo do pagamento efectuado.
Ora, tendo o condutor da viatura alegado que desconhecia se a sua entidade patronal havia contratado o respectivo seguro e apenas acrescentado que o encarregado da empresa tinha o cuidado de não pôr a circular qualquer delas sem ele e que, segundo se recorda, exibiu, na ocasião do acidente, a “carta verde”, ninguém melhor que – entre as partes no processo – a sua entidade patronal demandada (2ª ré) poderia clarificar tal situação.
Sucede que esta não contestou, manteve-se revel e, conforme se apurou, por sentença de 28-07-2009, proferida pelo 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa (fls. 84 a 89), foi declarada insolvente (no ano de 2007, segundo os factos aí relatados apresentou prejuízos no montante de 3.319.252,95€) – facto que não abona a hipótese de manter em ordem os seguros da imensa frota de veículos com que exercia a sua actividade de transportadora, nem facilita qualquer diligência junto dela ou da respectiva administração.
Ainda assim, é certo que na participação policial do acidente, o agente da GNR que a preencheu assinalou a quadrícula pré-impressa “sim”, correspondente à existência de seguro, escreveu o número da apólice e indicou a Companhia de Seguros E….
Como é óbvio, dada a sua qualidade e função no evento, de alguma fonte documental recolheu tais dados, que considerou bastantes, designadamente para não apreender o veículo nem lavrar auto de contra-ordenação, de que não há qualquer notícia.
A apresentação de tal documento só pode ter sido promovida pelo próprio condutor do veículo ou por alguém ligada à sua proprietária e que ali tenha estado ou comparecido. Não há prova de qual ele tenha sido, mas fosse qual fosse, o que importa é saber a situação à data do acidente, mormente e como se verá, em função do pagamento dos prémios ou fracções devidas.
Por aí e pelo teor dos documentos de fls. 145 e seguintes, 178 e seguintes, e 210 e seguintes, obtidos da E…, dos quais, além do mais, resulta que tal veículo constava indicado na relação adicional como abrangido pelo dito contrato de seguro com ela em tempos celebrado, não restam dúvidas que um contrato de seguro existiu.
O cerne da questão consiste, porém, em determinar se, como alegou o autor e lhe competia provar, ele, à data do acidente, ou seja, em 16-12-2008, não era válido e eficaz.
Para o efeito, o autor, ao propor a acção, em 24-03-2009, ao alegar a falta de seguro e demandar o FGA e a proprietária do veículo, baseou-se na informação pelo seu advogado colhida da E…, conforme ofício junto a fls. 18 dos autos, datado de 16-02-2009, a coberto do qual lhe foi remetida cópia de um outro, datado do dia 12 anterior, também a fls. 19, no qual aquela comunicou: “somos a informar que o veículo com a nossa referência supra [..-..-JJ] não tem seguro válido à data do acidente, pelo que não podemos assumir a responsabilidade do acidente”.
As companhias de seguros, apesar da sua natureza, mas atentos os fins que prosseguem e o regime a que estão sujeitas, têm uma específica tutela do Instituto de Seguros de Portugal e pesa sobre elas responsabilidade que, particularmente não sendo partes na demanda e embora sejam indirectamente interessadas, não autorizam a, sem motivos, suspeitar da fidedignidade das informações que prestam aos consumidores e ao tribunal.
Ora, na sequência de o FGA ter, ao contestar, impugnado a alegada inexistência de seguro válido e eficaz e, para tal, alegado – motivadamente – que a 2ª ré, proprietária do veículo lesante, havia transferido para a Companhia de Seguros E…, SA, a sua responsabilidade civil automóvel por contrato de seguro que se encontrava válido e eficaz à data do acidente e pedido diligências informativas junto desta companhia, ora requerendo documentos manifestamente inúteis para o efeito ora insistindo em termos já desnecessários com toda a complacência do tribunal, apurou-se que, conforme fls. 145 e seguintes, 178 e seguintes, e 210 e seguintes, maxime cópia das actas nºs 22 e 23, respectivamente de 01-07-2008 e 02-07-2008, mas ambas destinadas a produzir efeitos no dia 1 imediatamente anterior e por um ano e seguintes, o veículo em causa estava efectivamente abrangido no seguro de frota, contratado com a 2ª ré, cuja apólice aí se refere e corresponde à apontada na participação policial do acidente.
Resulta, ainda, desses documentos que o pagamento do prémio era mensal e que, portanto, devia a correspondente fracção ter sido paga pela 2ª ré daquele proprietária.
Porém, a E…, pelo ofício de fls. 163, informou nos autos que o não foi, ou seja: “O contrato de seguro no qual o veículo ..-..-JJ estava inserido foi anulado em 27/09/2008 por Falta de Pagamento de Prémio. O cliente C…, Ldª não pagou a esta seguradora o recibo referente ao período de 01/07/2008 a 31/07/2008 no valor de € 6.385,32. De acordo com a lei em vigor nessa data, o limite de pagamento seria a 28/08/2008 tendo mais 30 dias para liquidação. Como tal não aconteceu, a Companhia anulou o contrato (…). Por este motivo, o veículo ..-..-JJ não se encontrava seguro à data do sinistro a 16.12.2008.”. Juntou, aliás, cópia de carta (fls. 164), datada de 17-10-2008, dirigida àquela 2ª ré C…, Ldª, a reclamar o pagamento dos prémios respeitantes ao período de 01-07-2008 a 31-07-2008.

Na verdade, independentemente do período de validade de tais actas referir, a partir de 01-07-2008, “um ano e seguintes” e ainda que porventura tal constasse do documento exibido ao agente da GNR (o que não é certo tenha acontecido e ele tenha verificado efectivamente) e com base no qual ele teria preenchido a participação (cuja espécie de todo se ignora, ao contrário do referido pelo apelante FGA), o certo é que, conforme se referiu, sempre tal validade ficava dependente do pagamento do prémio, comprovadamente não efectuado.

Em face disto, nenhuma outra contraprova tendo sido produzida pelas partes a quem competia tornar duvidoso o facto, sendo a alusão constante da participação policial manifestamente insuficiente para tal e perfeitamente explicável pela eventual exibição de um qualquer documento emitido que lhe serviu de base mas estando ele, em consonância com o citado regime legal do contrato de seguro e do pagamento dos respectivos prémios, dependente, para o tornar válido e eficaz, do pagamento pela tomadora, não pode senão concluir-se que é credível e, por isso, atenta a configuração do pleito e a qualidade e posição das partes nele e sua relação com o facto em causa, bastante a prova produzida no sentido da resposta dada aos dois quesitos aludidos e, assim, de que o veículo, à data do acidente, já não estava coberto por seguro válido e eficaz.

Mais não parece ser de exigir ao autor, senão que, junto da indiciada companhia seguradora primeiro indagasse e depois demonstrasse nos autos que, apesar da referência constante da participação, o seguro deixou se ser válido e eficaz, ao passo que o próprio FGA, enquanto entidade integrada no Instituto de Seguros de Portugal e gerida pelos seus órgãos, em melhores condições do que ele com certeza melhor se encontrava para produzir mais e melhor prova eventualmente susceptível de contrariar aquela (maxime prova da efectiva validade do seguro e exibição de documento comprovativo) e fazer duvidar da posição assumida pela E… para o que, com a produzida, não se encontram motivos[11].

Designadamente, não nos parece ser de exigir ao autor, ao contrário do preconizado, qualquer outra prova adicional sobre “se efectivamente foi ou não foi pago o prémio”, o prazo, se efectivamente foi resolvido o contrato, etc. Trata-se de aspectos respeitantes a uma relação jurídica em que não é parte e, portanto, de difícil acesso e domínio, logo de prova mais cabal, mas ainda assim desnecessários.

De resto, a jurisprudência citada pelo apelante FGA reporta-se ao tempo em que o regime de pagamento dos prémios de seguro e as consequências da sua falta não eram os vigentes à data deste acidente, afigurando-se-nos que os princípios da protecção do contraente mais fraco e da protecção do consumidor também invocados com base no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, e Lei 24/96, de 31 de Julho, em nada interferem com esta questão e, a terem qualquer relevo, tal só poderá contemplar precisamente a posição mais débil do aqui autor.

Sendo a prova bastante para afirmar o facto, não opera, como se expôs, contra este a regra do ónus da prova.

Sublinhe-se, para finalizar, que, contra o preconizado pelo apelante D…, não resulta, pelas razões apontadas, dos documentos de fls. 222 e sgs, apesar do prazo neles indicado (um ano e seguintes a partir de 1-07-2008), que o contrato de seguro em causa permanecesse válido à data do acidente. Provou-se que não, como se explicou.

Em conclusão: sempre improcederia o recurso de impugnação de matéria de facto quanto aos quesitos 22º e 23º, sendo de concluir, como na sentença, que o veículo lesante não estava coberto por seguro válido e eficaz.

b) O apelante D… (chamado) questiona ainda a sua responsabilização, por o veículo ser propriedade da sociedade C…, Ldª, sua entidade patronal, o conduzir precisamente nessa qualidade, segundo instruções por ela transmitidas, na prossecução dos interesses dela e com conhecimento dela, desconhecendo que o veículo não tinha seguro e, pelo contrário, estando convencido que ele existia, válido e eficaz.

Ora, estes últimos factos (desconhecimento e convencimento) não se mostram provados e, sendo certos os demais (culpa efectiva e presumida dele por acidente ocorrido no exercício das suas funções de comissário), daqui não resulta, contudo, que ele não seja responsável.

Nos termos do artº 62º, nº 1, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, acções como esta devem ser intentadas contra o Fundo e “o responsável civil”.

O conceito, cotejado o regime dos artºs 483º e seguintes, em particular o artº 503º, do CC, com o daquele diploma, não é claro, como já o não era antes.

No entendimento seguido pelo Acórdão desta Relação de 08-05-1996[12], “nesta expressão abrange-se não só o condutor do veículo, como também o dono deste”.

As razões em que, a partir do regime de então – que era, ainda, o do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro – tal aresto se louva e nele proficientemente esgrimidas e para que se remete, mostram-se acolhidas no Acórdão do STJ, de 05-11-2009.[13]

Como neste se expendeu, precisamente ao tratar a questão de saber quem deve ser demandado e condenado (só o Fundo ou também o proprietário do veículo e o respectivo condutor?): “O Fundo de CC é, nos termos da lei (art. 21º, n.º 2, al. a) e b) do citado Dec-Lei 522/85) uma entidade que, além do mais, garante, por acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal, a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais ou materiais quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz.
Quando, assim, satisfaça a indemnização aos lesados, o Fundo fica sub-rogado nos direitos destes, tal como dispõe o n.º 1 do art. 25º do mesmo diploma.
Daqui decorre que o Fundo não é um devedor – é um mero garante do cumprimento da obrigação do responsável civil de reparar os danos causados ao lesado.
A sua obrigação é autónoma e subsidiária da obrigação do responsável civil, não respondendo ele como devedor principal ou directo (que é o incumpridor da obrigação de segurar), pois que não existe entre este e o Fundo uma relação de solidariedade passiva própria.
O Fundo não é um devedor solidário, mas enquanto garante legal da obrigação do responsável civil, um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o directo devedor o não fizer.(4).
No acórdão de 28.05.2009, deste Supremo Tribunal, refere-se, em sentido idêntico ao acabado de expressar, que a norma acima transcrita, do n.º 6 do art. 29º do Dec-Lei 522/85, não foi estabelecida por a obrigação do FGA e a do responsável civil serem verdadeiramente solidárias, no contexto do art. 497º do Cód. Civil, porque essa solidariedade é uma solidariedade imprópria, imperfeita ou “impura”. Só nas relações externas, face ao lesado, é que ambos respondem; no plano interno, paga a indemnização pelo Fundo, fica este investido nos direitos do credor – o lesado – podendo pedir do lesante o que pagou (5).
Ora, se assim é – se, perante o lesado, ambos (responsável civil e FGA) respondem, embora o Fundo seja um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o directo devedor, o responsável civil, o não fizer – parece irrecusável que a condenação na indemnização dos danos sofridos pelo lesado deve abranger todos os que por ela respondem.
A condição – do Fundo – de garante da obrigação do responsável civil postula, naturalmente, a existência dessa obrigação, e a vinculação deste último (i.e., do responsável civil) ao cumprimento dessa obrigação – vinculação que a sentença deve expressar.”

E mais adiante: “Ora, segundo cremos, a intervenção do responsável civil ao lado do FGA – que a lei quis assegurar de forma tão vincada, a ponto de a tornar obrigatória, sob pena de ilegitimidade – visa, em essência,
- facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, facultando-lhe a possibilidade de reclamar a indemnização do responsável civil ou do Fundo;
- ajudar o FGA no conhecimento das circunstâncias do acidente e das suas causas e efeitos, bem como do pertinente material probatório, pelo contributo que, para tanto, pode ser trazido por quem, melhor do que o próprio Fundo, conhece esses elementos de facto, a que este não tem, por vezes, fácil acesso;
- definir logo, com a presença de todos os interessados, a medida em que deverá ser exercido, posteriormente, o direito do Fundo a ser reembolsado, nos termos do art. 25º n.º 1 do Dec-lei 522/85.
Tais objectivos – designadamente o primeiro e o último – reclamam a necessidade de condenação solidária dos demandados, responsáveis civis e FGA, sob pena de ficar sem justificação plausível o regime processual que a lei quis impor.”

Estas razões, à luz dos artigos 4º, 6º, nºs 1 e 2, 15º, nº 1, 47º, nº 1, 54º, nº 3 (“São subsidiariamente responsáveis pelo pagamento ao FGA, nos termos do nº 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro”), e 62º, nº 1, do actual regime (Decreto-Lei nº 291/2007) mantêm-se válidas no actual e para elas ousamos remeter, aderindo-lhe. Aliás, no caso, a responsabilidade não decorre do risco mas de culpa efectiva.[14] De resto, o Código da Estrada comete ao condutor e não só ao proprietário o dever de ser portador do certificado de seguro, sem o que ele não pode circular na via pública e deve ser apreendido (artºs 85º, nº 1, c), 150º, nº 1 e 162º, nº 1, alínea f), CE), interesse que logo basta para justificar a sua obrigação de segurar.[15]

Deste modo, sem necessidade de quaisquer outras considerações, improcede a questão e, com ela, a apelação do chamado.

c) No recurso subordinado[16], o autor pugna pela procedência da acção no que concerne ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais e, assim, pela condenação dos réus e chamado a pagar-lhe, a tal título, a quantia de 750,00€.

Havia alegado que, por o veículo ter ficado impedido de circular e recolhido numa oficina e por, em substituição dele, ter de se valer de veículos emprestados por diversas pessoas, tal lhe causou perdas de tempo, aborrecimentos e preocupações.

Tais factos constam provados nos pontos 17 a 19, supra.

Porém, a sentença recorrida, depois de se referir à doutrina e jurisprudência em torno da norma aplicável do artº 496º, nº 1, do CC, concluiu que as perdas de tempo, aborrecimentos e preocupações não se revestem de gravidade merecedora da tutela do direito.

Cremos estar correcto este entendimento.

Na verdade, o artº 496, nº 1, CC, estabelece que são indemnizáveis os danos não patrimoniais mas restringe a possibilidade aos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.

Tal será o caso, usando-se do necessário critério de rigor, de sofrimentos implicados por ofensa dos direitos à integridade física, saúde e qualidade de vida, ou seja, os que seriamente contendam com direitos de personalidade.

O autor não peticionou propriamente indemnização pela privação do veículo, mas apenas por vagas perdas de tempo, fatais aborrecimentos e inevitáveis preocupações que normalmente resultam de qualquer acidente e que o constrangeram ao ter de, em substituição, se socorrer do de amigos, familiares e da sua entidade patronal, para colmatar a utilização que, ele e seu agregado, lhe davam diariamente.

Tal situação, pela sua natureza e escassez de factos alegados e provados mais consistentes e elucidativos sobre os efeitos produzidos na sua pessoa e grau de afectação da sua vida, não se nos apresenta com a gravidade que o legislador teve em mente ao preconizar o ressarcimento dos danos morais, parecendo-nos contida nos limites das contrariedades normalmente decorrentes da condição de utilizadores de veículo automóvel e da sua arriscada circulação.

Inclinamo-nos, pois, para concordar com o decidido e, assim, no sentido da improcedência do recurso subordinado.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar em parte improcedentes ambas as apelações, bem como o recurso subordinado, a todos negando provimento, e, em consequência, em confirmar a sentença recorrida.

Custas de cada recurso, pelo respectivo recorrente.

Notifique.

Porto, 03-07-2014
José Amaral
Teles de Menezes
Mário Fernandes
______________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 124.
[2] Acrescento este que não nos parece representar um verdadeiro requisito novo, pois a indicação do sentido da alteração já tinha de, inevitavelmente, resultar, ou pelo menos inequivocamente deduzir-se dos obrigatórios fundamentos a alegar e da alteração pretendida a indicar.
[3] “Na impugnação da matéria de facto, o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo onde elenque, desde logo, as provas, deve, em seguida, produzir uma análise crítica das mesmas, pois que, verdadeiramente, só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver” – Acórdão da Relação do Porto, de 12-05-2014 (Desemb. Manuel Domingos Fernandes).
[4] “Uma manifestação genérica de inconformismo contra a generalidade da decisão da matéria de facto, sem uma concretização mínima da matéria que os recorrentes consideram incorrectamente julgada, não observa o ónus prescrito na alínea a), do nº 1, do artº 640º, do CPC” – Acórdão da Relação do Porto, de 19-05-2014 (Desemb. Carlos Gil).
[5] Acórdão da Relação do Porto, de 17-03-2014 (Desemb. Alberto Ruço).
[6] Assim, Acórdão do STJ, de 07-11-2000, in BMJ nº 501, página 218.
[7] Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, pág. 202: “não há temas probatórios fixos – pontos de facto quanto aos quais o ónus da prova haja de pesar sempre sobre determinado sujeito da relação material correspondente. O ónus probandi competirá a um ou outro desses sujeitos conforme a posição em que esteja na relação processual, o que importa, quanto a cada um dos sujeitos da relação material é a sua posição no processo – a pretensão que lá deduz“.
[8] Relator: Desemb. Pedro Martins.
[9] Citando Lebre de Freitas Lebre de Freitas, A acção declarativa comum à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2000, pág. 102: “[…] a concordância entre a vontade real e a vontade declarada e a ausência de vícios na formação da vontade real constituem a regra, constituindo excepção, como algo de patológico, os casos de discordância entre ambas e os de formação viciada da primeira; a quem se queira prevalecer da validade da declaração de vontade basta, pois, alegar e provar o facto constitutivo de ter sido feita a declaração de que se quis o efeito prático geral do acto […]; à parte contrária caberá alegar e provar o facto impeditivo (dos efeitos da declaração) que traduza a falta ou um vício relevante da vontade real […]”.
[10] O mesmo sucederia em caso de dúvida – nº 3 do artº 342º, CC.
[11] Questão que será retomada na acção de sub-rogação e aí melhor elucidada em confronto com a própria seguradora.
[12] CJ, ano XX, 1996, Tomo III, páginas 225 a 229.
[13] Relator: Consº Santos Bernardino.
[14] Cfr. Acórdão do STJ, de 29-01-2014 (Consº Azevedo Ramos).
[15] Acórdãos da Relação de Coimbra, de 08-09-2009 (Desemb. Artur Dias) e da Relação de Guimarães, de 14-11-2013 (Desemb. Estelita de Mendonça).
[16] Saliente-se que, contra o que requereu o Fundo e no que foi bem desatendido, apesar do reduzido valor, o recurso subordinado é admissível, por força do nº 5 do artº 633º, CPC.