Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1257/19.9T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PARTE NOTIFICADA
INVOCAÇÃO DA SUA PRETERIÇÃO
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RP202203241257/19.9T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio do contraditório, nas suas mais recentes formulações, é formal, substancial e cooperativo. Materializa-se: (i) no dever de esclarecimento; (ii) no dever de prevenção; (iii) no dever de auxílio; (iv) no dever de consulta às partes (artigos 3,º 7º e 417º do CPC).
II - No segmento do dever de consulta às partes, visando evitar as “decisões surpresa”, incide sobre a questão decidenda e esgota-se no seu perímetro. Não se destina à comunicação exaustiva dos respetivos fundamentos. Os fundamentos da decisão são desenvolvidos em sede de substanciação do julgado.
III - A parte que, após os articulados, foi notificada para exercer o contraditório por escrito nada disse não pode depois vir invocar a sua preterição por omissão de audiência prévia, porque a tanto se opõe a boa fé processual (artigo 8º do CPC).
IV - Nas ações de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos, a legitimidade passiva radica nos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação impugnada (artigos 30º do CPC e 1433º nº 1 e 6 do CC).
V - A Lei 8/2022, de 10.01, que veio alterar o regime da propriedade horizontal, dá um claro sinal nesse sentido ao deixar inalterado o artigo 1433º do CC.
VI - Este entendimento é reforçado com a nova redação do artigo 1436º, da referida Lei 8/2022, que na alínea i), passou a delimitar as funções do administrador do condomínio, na execução das deliberações da assembleia de condóminos, restringindo-as às que “não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1257/19.9T8PVZ.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

Nestes autos intentados por AA contra os condóminos BB, CC, DD, EE, FF, foi formulado pedido de:

Declaração de nulidade ou de anulação da deliberação tomada na assembleia de condóminos realizada em 8-06-2019, nos termos do artigo 286º, 1433º, 1 e 1438-A do C.C.,

A seu tempo, foi proferido despacho saneador que declarou cumprido o contraditório e julgou os RR parte ilegítima, com o fundamento de que a legitimidade passiva na ação de impugnação de deliberação da assembleia de condóminos compete ao condomínio, representado pelo administrador, com a consequente absolvição dos RR da instância (artigos 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e), 578º, e 595º, nº 1, al. a), todos do Código de Processo Civil).

DESTE DESPACHO APELOU O AUTOR QUE LAVROU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:

I – Nos presentes autos não foi cumprido o contraditório relativamente à ilegitimidade passiva dos réus.

II – Desde logo, porque o douto despacho do Mtº Juiz de 18/07/2021 é não só dúbio, como incorreto.

III – Dúbio, porque não identifica, com clareza, quem alegou ou vai alegar essa ilegitimidade, induzindo, por essa forma, o autor em erro, porque sempre pensou tratar-se de um equívoco do Mtº Juiz, já que nenhuma das partes (autor ou réus) invocou essa exceção nos seus articulados; incorreto, porque não refere nem explicita as razões e fundamentos dessa ilegitimidade e devia ter explicitado.

IV – Para que o autor pudesse exercer o contraditório sobre a ilegitimidade passiva dos réus, era-lhe necessário saber que factos ou questões de direito fundamentavam essa ilegitimidade, porque só perante isso (factos e questões de direito) podia apresentar os seus argumentos contrários.

(…)

VII – A nossa lei processual é muito clara ao estabelecer no artigo 591º/1, alínea b) do CPC que deve haver uma audiência prévia para “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias”. Na questão em apreço o Mtº Juiz devia convocar essa audiência e não o fez, optando pelo douto despacho de 18/07/2021, dúbio e incorreto como se disse.

VIII – E também é muito clara a nossa lei substantiva ao referir que as ações que visem a anulação das deliberações da assembleia de condóminos devem ser propostas contra os condóminos que votaram favoravelmente tais deliberações e não contra o condomínio (artigo 1433º/ 6 do CC).

XII – Os condóminos que votaram favoravelmente as deliberações impugnadas são os sujeitos passivos das respetivas ações, tudo conforme muito bem decidiu o STJ no seu douto Acórdão de 6-11-2008, proc. nº 08B2784.
(…)

Não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, nada obsta ao mérito.

O OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso, conforme artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil (CPC).

Em consonância, e atentas as conclusões da recorrente, as questões a decidir são as seguintes.

1-Saber se houve violação do princípio do contraditório (i) em face do conteúdo do despacho proferido com essa finalidade; (ii) por não ter sido designada audiência previa em obediência ao disposto no artigo 591º/1 alínea c) do CPC.
2-Saber se os RR condóminos que votaram favoravelmente a deliberação anulanda, são parte legítima na ação de impugnação da deliberação votada.

O MÉRITO DO RECURSO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Dá-se por reproduzida a factualidade constante do despacho recorrido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:


A VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO PRÉVIO À DECISÃO:

Findos os articulados, foi proferido (para cumprimento do contraditório) o seguinte despacho:

Ao abrigo do disposto no artigo 3 do CPC notifique as partes para exercerem o contraditório sobre a ilegitimidade passiva dos RR na presente ação que tem por objeto a impugnação de deliberação de assembleia de condóminos

Vem o recorrente sustentar que este despacho não cumpre o contraditório porque não é claro; é dúbio, não possibilitando por isso uma correta interpretação da questão em causa para a decisão, pelo que não pode emitir a sua pronúncia.

I CONHECENDO:

I.1. O princípio do contraditório, inserto na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º do diploma fundamental, possui íntima ligação com o princípio da isonomia e o direito de ação. Implica a necessidade de dar conhecimento às partes da existência da ação e de todos os atos processuais. Afirma a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis, possibilitando-lhes que, antes de ser proferida uma decisão, apresentem as suas razões e se defendam, facultando-lhes o direito de apresentarem os seus meios de prova, contraditarem as provas apresentadas e de consulta dos processos. Assegura o acesso ao conteúdo das decisões e o direito ao recurso.

Hodiernamente, no princípio do contraditório inclui-se o princípio da ampla defesa. Tem a sua aplicação em todos os ramos de direito e aos procedimentos administrativos.

O contraditório afirmado nas reformas recentes ao Código de Processo Civil (inspiradas no direito alemão ZPO § 139) reconhece às partes um papel mais incidente e influente no processo, de forma colaboradora, no que reside o seu fundamento atual. Constitui um pilar essencial do Estado de Direito Democrático e constitui-se como uma verdadeira garantia do direito fundamental dos cidadãos consagrada no artigo 20º da C.R.P.

I.2. Donde que, se possa afirmar que o contraditório nas suas mais recentes formulações, é formal, substancial e cooperativo. Estabelece o dever funcional do juiz cooperar com os mandatários e as partes para o bom andamento do processo e por modo a que se alcance o melhor resultado. Estende-se para lá da isonomia e materializa-se nas quatro dimensões (i)o dever de esclarecimento (o juiz solicita o esclarecimento de alegações de facto ambíguas ou incompletas), (ii) o dever de prevenção (o juiz convida as partes ao suprimento de insuficiências da alegação de todos os factos relevantes com o interesse para a causa), (iii) o dever de auxílio (o juiz fixa com as partes o sentido dos conceitos e direito por elas utilizados, determinando divergências que possam levar à necessidade de alegar os factos que neles se subsumem), (iv) o dever de consulta às partes (o juiz dá a conhecer às partes e discute com elas as possibilidades de solução do pleito, quer no plano da apreciação da prova, quer no direito a aplicar, prevenindo as “decisões-surpresa” e convida as partes a suprir exceções suscetíveis de sanação (artigos 3º , 7º e 417º do CPC).

I.3. A questão colocada no recurso é a do contraditório na vertente do “dever de prévia consulta às partes”, mesmo nas questões de conhecimento oficioso, pelo que, só deste segmento do contraditório nos ocuparemos.

Este dever de prévia consulta às partes decorre da impossibilidade do juiz conhecer e decidir qualquer matéria, mesmo oficiosamente, sem antes permitir aos intervenientes processuais que se manifestem a esse respeito, afastando definitivamente as “decisões surpresa”. Está impresso no artigo 3º nº3, CPC: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem.”
Não estamos a discutir a mitigação do contraditório consignada na norma quando ressalva “o caso de manifesta desnecessidade”, pelo que também não iremos discorrer sobre este segmento normativo.

I.4. A nossa apreciação resume-se ao concreto conteúdo do contraditório na vertente analisada, ou seja, “qual a informação que deve ser prestada à parte para que a mesma se pronuncie no despacho respetivo”.

Há, pois, que responder à questão de saber se cumpre o contraditório o despacho que contém uma informação genérica sobre a questão de direito a aplicar, ou antes, se impõe uma informação individualizada fundamentada e completa sobre o thema decidendi.

Vejamos.

I.5 O contraditório, neste segmento de evitar as “decisões surpresa”, incide sobre a questão decidenda, esgotando-se no seu perímetro. Não se destina à comunicação exaustiva dos respetivos fundamentos. Estes serão posteriormente desenvolvidos em sede de substanciação do julgado.

Quer dizer, o contraditório, enquanto garantia das partes de exercício do seu efetivo direito de pronúncia ou intervenção processual, fica assegurado se no despacho judicial, com esta finalidade, são indicadas quais as concretas questões que o juiz se propõe conhecer.

1.6 No despacho judicial sub iudice fez-se constar que o contraditório era sobre a “ilegitimidade passiva dos RR na presente ação que tem por objeto a impugnação de deliberação de assembleia de condóminos.”
Está cabalmente identificada e fora de qualquer dúvida, portanto, de modo claro e inteligível, a questão que o juiz se propõe a decidir: “ilegitimidade passiva dos RR” (…) trata-se de uma questão de conhecimento oficioso (artigo 577º, alínea e) e 578º do CPC), sendo, por isso, irrelevante que os RR a não tenham suscitado.

O Recorrente, ao tomar conhecimento do teor do despacho em causa, não podia deixar de perspetivar como solução a dar pelo tribunal “a ilegitimidade dos RR”. Ficou, por consequência, habilitado a tomar uma posição expressa em relação a esta matéria.

Sem prejuízo, se como o Recorrente vem sustentar, não entendeu a finalidade do despacho, que lhe pareceu dúbio, o mesmo tinha ao seu dispor a arguição de obscuridade, suscitando a sua sanação. Com efeito, ocorrendo a ininteligibilidade do discurso decisório, ou seja, se a decisão, em qualquer dos respetivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou não é possível saber-se, com certeza, qual o pensamento exposto na mesma (obscuridade), pode suscitar-se a sua sanação (artigo 615º nº1 alínea c) do CPC).

I.7. Finalmente, quanto ao concreto modo de cumprir o contraditório, isto é, saber se, no caso, deveria ter sido designada audiência prévia, nos termos do disposto no artigo 591º, nº1 alínea b) do CPC:

A ponderação que importa fazer na análise desta vexato quaestio não é desligada do princípio da boa fé processual que impende sobre todos os intervenientes no processo.

A boa fé processual implica responsabilidade, probidade e prudência. No oposto, proíbe o uso dos meios processuais como arguição de nulidades, de que, se a parte tivesse atuado com a prudência e diligência medianas e exigíveis poderia e deveria aperceber-se e evitar (artigo 8º CPC).

Dos autos ressalta que se tinha concluído a fase dos articulados pelo que se seguia a fase do saneamento, na qual se inseriu a prolação do despacho notificado às partes para exercício do contraditório. O conteúdo deste despacho é um convite para o exercício desse direito, por escrito, no processo. Essa é a interpretação de um declaratário normal e de boa fé, colocado na posição de interveniente processual.

Em face daquela notificação o Recorrente, sem prejuízo de, no caso de ter dúvidas fundadas sobre a interpretação a dar ao conteúdo do despacho requerer o respetivo esclarecimento, poderia ter tomado uma de três atitudes: (i) ter declarado que desejava exercer o direito ao contraditório na audiência prévia, de que não prescindia; (ii) exercer o contraditório por escrito; (iii)nada fazer.
O Requerente nada fez. Conformou-se, por via dessa inação, com este modo convocado pelo juiz de assegurar a “discussão alvo” na lide.

E, assim sendo, não é fundamentada de modo processualmente legítimo, ao abrigo e de acordo com a boa fé processual, a arguição de nulidade por omissão de realização de audiência prévia.

Improcede, naturalmente, este segmento do recurso.

II

A segunda questão: saber se se verifica a (I)LEGITIMIDADE PASSIVA dos condóminos para serem demandados na presente ação de anulação de deliberação da assembleia do condomínio.

II.1 A legitimidade processual traduz a posição das partes perante o pedido no processo, de tal modo que uma parte se possa apresentar como autora e a outra parte como ré e constitui um pressuposto de procedibilidade da ação. A sua existência é essencial para que o tribunal se pronuncie sobre o mérito da causa.

A legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida nos termos como é desenhada pelo autor da ação. O juízo de legitimidade requer a titularidade de uma relação jurídica ou a ponderação de fatores positivos assentes na vantagem ou desvantagem da procedência da pretensão deduzida (artigo 30º CPC).

II.2. A questão objeto de análise tem dividido a jurisprudência e a doutrina, pós reforma do processo civil de 1995/96.

Essencialmente, perfilaram-se dois entendimentos.

II.2.a O entendimento seguido pela decisão recorrida e que se formou a partir da alteração legislativa do DL 329-A/95 de 12.12, que no artigo 6.º, alínea e) do CPC, veio estender a personalidade judiciária ao condomínio, extensão que transitou para o atual código (artigo 12.º, alínea e). Defende que as ações de anulação de deliberação da assembleia de condóminos se integram no âmbito das funções exercidas pelo administrador por caberem na alínea h) do artigo 1436º do CC e que o interesse relevante é o do condomínio, em cujo âmbito se vai cristalizar os efeitos da deliberação. Como tal, estas ações devem ser propostas contra o próprio condomínio representado pelo respetivo administrador. Os defensores deste pensamento, convocando o artigo 9º do CC, procedem a uma interpretação atualista do artigo 1433º nº 6 do CC, em face do artigo 12.º, alínea e) do CPC, conjugadamente, com o disposto nos artigos 1437.º, n.ºs 1 a 3, e 1436.º, alínea h) todos do CC.

II.2.b Uma outra posição, alicerçada na letra do artigo 1433.º nº 6 do CC, é defensora de que, do texto da norma, decorre a exclusão da legitimidade passiva do próprio condomínio. Sustenta que o interesse relevante é o dos condóminos que votaram a deliberação e exclui do âmbito das funções do administrador na execução das deliberações a defesa da legalidade da deliberação (alínea h) do artigo 1436º do CC). Afirma que estas ações devem ser propostas contra os condóminos que votaram a favor da aprovação da deliberação cuja anulação se pretende, ainda que representados pelo administrador ou por pessoa que a assembleia designe para o efeito, por ser nestes que reside o interesse em contradizer.

II.3 São várias as decisões publicadas dos Tribunais Superiores em ambos os sentidos e que detalham, referenciando os demais arestos convocados a decidir e a doutrina que se posicionou quanto à matéria. Destes arestos, destacamos os que mais recentemente se pronunciaram em ambos os sentidos, remetendo (por comodidade de escrita e de leitura) para a consulta dos mesmos o elenco neles referidos das demais decisões.

II.3.a Na jurisprudência recente do STJ, (consultável no site da DGSI) pronunciaram-se pela ilegitimidade passiva dos condóminos neste tipo de ações os acórdãos de 25-05-2021 (Consª Maria Clara Sottomayor), processo n.º 7888/19.0T8LSB.L1.S1 e de 4/5/2021 (Consº Fernando Samões), processo n.º 3107/19.7T8BRG.G1.S1.
Neste Tribunal da Relação, (consultável no site da DGSI) na mesma linha, decidiram em 13/2/2017 (Desº Carlos Gil), processo n.º 232/16.0T8MTS.P1, e acórdão 26/10/2020 (Desª Fátima Andrade), processo n.º 902/19.0T8PFR.P1.

II.3.b Em sentido contrário, neste Tribunal da Relação, pronunciou-se o acórdão de 8/6/2021 (Desº Igreja de Matos), processo nº 1849/20.3T8MTS.P1. Mais recentemente, a decisão singular, de 7-02-2022 (Desº Rui Moreira), proferida no processo nº 2166/19.7T8PNF.P1 (à data deste acórdão não publicada) reiterou que a “ação de anulação de uma deliberação de assembleia de condóminos deve ser proposta contra os condóminos, a serem representados pelo administrador, nos termos do artigo 1433º, nº 6 do C. Civil”, convocando o decidido no acórdão de 21-01-2022 (de que foi Relator) proferido no processo nº 6263/21.0T8PRT-A.P1, publicado no site DGSI e com apelo ao acórdão de 8/6/2021, onde se escreveu: “A legitimidade passiva na ação de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos cabe a cada um dos condóminos e, dentro destes, apenas àqueles que votaram favoravelmente as deliberações, na medida em que são os únicos que reúnem interesse em contradizer no âmbito da relação material controvertida.(…) considerando o teor da norma legal aplicável (artigo 1433.º, n.º 6 do Código Civil); (…) considerando a natureza deste tipo de ações que diz respeito aos interesses particulares de cada condómino, conflituantes entre si, e não a um qualquer interesse comum do condomínio; considerando estar em causa uma questão de legitimidade processual e não uma extensão da personalidade judiciária concedida ao condomínio, aliás afastada na lei, e considerando, finalmente, que não faria sentido impor, neste tipo de ações, uma responsabilização indireta ou mediata aos condóminos por força de uma intervenção processual autónoma do condomínio, entendemos dever perfilhar a posição defendida no recurso deduzido quanto à legitimidade processual passiva do condómino demandado.”

II.4 Na doutrina, subscrevem esta posição Lebre de Freitas e Miguel Mesquita (apud Acórdão de 8-
06-2021). Também Miguel Teixeira de Sousa, no blogippc, em 12/05/2021, Jurisprudência 2020 (209), defendendo a legitimidade passiva dos condóminos, neste tipo de ação, inseriu anotação discordante ao citado acórdão deste tribunal, de 26/10/2020 (902/19.0T8PFR.P1) e, mais recentemente, reiterou a sua discordância em anotação ao citado acórdão do STJ, de 4/5/2021, processo n.º 3107/19.7T8BRG.G1.S1, in blogippc POSTED, 22/11/2021, 12:58 AM PST.

II.5 A posição do Recorrente é aceite pelo Desº Madeira Pinto, ora, segundo adjunto, e Relator no acórdão de 27-01-2011, processo n.º 2532/08.3TBVCD.P1 (consultável no site da DGSI), em cujo sumário se acentua que a “questão da legitimidade deve ser resolvida com recurso ao disposto no art.º 1433.º, n.ºs 1 e 6 do Código Civil e não no art.º 1437.º do mesmo código, por se situar fora do âmbito deste normativo, porque não respeita diretamente ao condomínio e visto que é nos condóminos, enquanto membros do órgão deliberativo daquela assembleia, que radica a legitimidade para impugnar e defender a deliberação. II - Assim, tem legitimidade ativa para tal ação qualquer condómino que não tenha votado a favor da deliberação e têm legitimidade passiva os condóminos que, tendo estado presentes ou representados na assembleia em que foi tomada a deliberação, votaram a favor da sua aprovação, mas não o administrador que apenas poderá intervir em representação destes, a esse título e nessa qualidade.

Com efeito, no referido aresto, depois de se discorrer sobre a legitimidade das partes, afirma-se a adesão à posição constante do acórdão do STJ de 06-11-2008 (Cons. Santos Bernardino), procº 08B2784, citado pelo Recorrente.

Convoca-se a posição do Abílio Neto, Propriedade Horizontal, 2.ª edição, Lisboa, 1992, p. 171, reafirmando-se que a ação deve ser intentada contra todos os condóminos, individualmente considerados, os quais serão, assim, os verdadeiros réus na ação (podendo estes últimos ser representados judicialmente pelo administrador do condomínio, mas apenas e tão só, a este título e não em nome próprio e nessa qualidade. E isto porque a anulação das deliberações aprovadas pelos condóminos, visando uma decisão colegial, vai apenas afetar os interesses dos condóminos que votaram as deliberações e não o administrador que pode ser um estranho ao condomínio. Por isso “(...) se um conjunto de condóminos tomou determinada decisão, será contra todos eles que devem reagir os que com ela se sintam prejudicados”.

III

III.1 Determinante, na decisão desta questão, afigura-se-nos ser a letra da Lei 8/2022 de 10.01, diploma que veio rever o regime da propriedade horizontal, alterando o Código Civil; o Decreto lei nº 268/94 de 25.10 e o Código de Notariado. Este texto legislativo constitui um farol claro no sentido da orientação da tese contrária à interpretação atualista do direito positivo (sem prejuízo de se tratar de diploma que só parcialmente entrou em vigor, conforme os seus artigos 8º e 9º).
Com efeito, o artigo 2º da referida lei procede à alteração dos artigos 1419.º, 1424.º, 1427.º,
1431.º, 1432.º, 1436.º e 1437.º do Código Civil.

A revisão do regime deixa intocado o referido artigo 1433º, mantendo inalterada a redação do nº 6. No entanto, procede a uma profunda revisão do artigo 1436º (a norma que regula as funções do administrador) e delimita o campo das suas funções quanto às deliberações da assembleia. A lei restringiu as respetivas funções ao determinar que lhe compete (…) “i) Executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada.”

Parece-nos evidente que o legislador de 2022 quis dar um sinal claro no sentido oposto à tese adotada na decisão recorrida. Se fosse vontade do legislador que estas ações fossem intentadas contra o condomínio, seguramente, teria alterado o texto da norma legal, procedendo à sua atualização, tanto mais que, desde o início deste século, portanto, há cerca de 20 anos, a interpretação e aplicação da mesma tem sido objeto de discussão e controvérsia na jurisprudência e doutrina.

Bem ao contrário, o Legislador não só não alterou a norma, como precisou o âmbito das funções do administrador no que se refere à execução das deliberações da assembleia limitando-as “àquelas deliberações que não tenham sido impugnadas no prazo de 15 dias úteis

A leitura que fazemos é a de que o legislador de 2022 veio reafirmar que a legitimidade passiva neste tipo de ações cabe aos condóminos, caindo por terra a posição que defendia a interpretação atualista do artigo 1433º nº 6 CC.

Pelo que, concluímos pela razão do recorrente nesta parte, reconhecendo que a legitimidade passiva nas ações de anulação de deliberação da assembleia de condóminos reside nos condóminos que votaram favoravelmente a deliberação, pois, são estes que têm interesse em contradizer, atento o prejuízo que lhes pode advir da procedência da ação (artigo 30º do CPC), que serão representados pelo administrador ou pela pessoa que a assembleia designar (artigo 1433º nº 6 do CC).

SEGUE DELIBERAÇÃO:

PROCEDE O RECURSO. REVOGA-SE O SANEADOR SENTENÇA RECORRIDO E DECLARA-SE OS APELADOS PARTE LEGÍTIMA, DEVENDO A PRESENTE AÇÃO PROSSEGUIR OS ULTERIORES TERMOS PROCESSUAIS.

Custas a final pela parte vencida (dada a falta de resposta ao recurso) artigo 527º do CPC.

Porto, 24 de março, de 2022.
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Madeira Pinto