Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
91/14.7PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
STALKING
Nº do Documento: RP2015031191/14.7PCMTS.P1
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de Violência doméstica é um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos.
II - Pode enquadrar-se no crime de Violência doméstica a conduta que se reveste das notas caraterísticas do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 91/14.7PCMTS.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… vem interpor recurso da douta sentença do 3º Juízo Criminal de Matosinhos (hoje: Instância Local de Matosinhos – Secção Criminal J1, da Comarca do Porto) que o condenou, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152º, nº 1 e nº 4, do Código Penal, na pena de um ano e quatro meses de prisão, assim como na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de um ano e quatro meses.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«1.ª O Arguido foi condenado por Sentença proferida em 03 de Outubro de 2014.
2.ª A uma pena de um ano e quatro meses de prisão efectiva.
3.ª O presente Recurso é interposto de decisão proferida na douta sentença que condenou o Arguido, como autor material de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo n.º 152.º n.º 1 b) do Código Penal.
I – DO DIREITO
A – DO NÃO PREENCHIMENTO DO REQUISITO PREVISTO NA ALÍNEA B) DO N.º 1 ARTIGO 152.º DO CÓDIGO PENAL
4.ª Os factos assentes, perpetrados pelo Arguido/Recorrente, não se enquadram na previsão do artigo 152.º do Código Penal.
5.ª “O tipo legal de crime de violência doméstica visa proteger a pessoa individual e a sua dignidade humana (sublinhado nosso). O seu âmbito punitivo abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade (sublinhado nosso). O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, entendida esta enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa e/ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge (sublinhado nosso).” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 06-02-2013, in: www.dgsi.pt)
6.ª “O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana (sublinhado nosso), em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação. Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana (sublinhado nosso).” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 10-09-2014, in: www.dgsi.pt)
7.ª Ora, não decorre da sentença, nomeadamente dos factos provados, que o Arguido, ora Recorrente, tenha agido de forma a diminuir e afectar a dignidade da assistente, menos ainda, que tenha afectado a sua saúde física ou psíquica.
8.ª Os factos dados como provados, praticados pelo Arguido, apesar de graves, não assumiram, objectivamente, contornos violentos.
9.ª Os factos praticados pelo Arguido/Recorrente, parecem melhor se enquadrarem na chamada “briga” de namorados do que no crime de violência doméstica.
10.ª Mal seria do sistema judicial se todas as “brigas de namorados”, que, não raras vezes, abrangem violência – sobretudo psicológica, terminassem sempre em tribunal ao abrigo da previsão cada vez mais abrangente do crime de violência doméstica.
11.ª Além disso, as situações provadas que constam da Sentença proferida pelo Tribunal a quo não têm um padrão de frequência nem intensidade desvaliosa, para se poderem enquadrar num modelo de comportamento que se inscreva na previsão do tipo legal de violência doméstica
12.ª A punição das condutas descritas no artigo 152.º do Código Penal, visa salvaguardar a pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade e pretende prevenir consequências gravosas que possam surgir para a saúde física e psíquica e para o desenvolvimento normal e correcto da personalidade do indivíduo.
13.ª Pelo que, os actos praticados terão necessariamente de ser capazes de atingir precisamente a saúde física e psíquica do indivíduo de forma a afectar e marcar de forma irreparável o desenvolvimento harmonioso do sujeito ofendido, pelo que terão de se revestir de reiteração e gravidade suficientes para o efeito.
14.ª Sendo necessário, ainda, que o comportamento do agressor demonstre uma especial crueldade, insensibilidade, uma atitude de vingança desnecessária e desmesurada ou ainda uma vontade de subjugar a vítima aos seus desejos e torná-la dependente de si.
15.ª O que no caso concreto não se verifica e não se encontra nem provado nem dado como provado, pelo que não poderão os factos dados como provados integrar o ilícito de violência doméstica.
16.ª Os actos praticados terão necessariamente de ser capazes de atingir precisamente a saúde física e psíquica do indivíduo de forma a afectar e marcar de forma irreparável o desenvolvimento harmonioso do sujeito ofendido, pelo que terão de se revestir de reiteração e gravidade suficientes para o efeito.
17.ª Sendo ainda que a autonomização do crime de violência doméstica de outros menos graves exige, ainda, ou uma reiteração de condutas ofensivas ou, no mínimo, um acto que seja de tal forma grave que por si só, e sem mais, seja susceptível de produzir o dano descrito.
18.ª É necessário que o comportamento do agressor demonstre uma especial crueldade, insensibilidade, uma atitude de vingança desnecessária e desmesurada ou ainda uma vontade de subjugar a vítima aos seus desejos e torná-la dependente de si.
Além disso
19.ª Dispõe o artigo 152.º do Código Penal (vigente à data e actual):
“1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.° grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
20.ª “O crime em causa pressupõe uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo (sublinhado nosso), e assim a vitima, ofendido, lesado ou sujeito passivo de tal crime, tem de revestir numa relação com o agressor/ arguido a qualidade:
- de cônjuge ou ex-cônjuge;-
- pessoa com quem o arguido mantenha ou tenha mantido uma relação análoga á dos cônjuges (ainda que sem coabitação), situação que se traduz:
a) na união de facto entendida como comunhão de mesa, cama e habitação, ou
b) numa situação idêntica à de união de facto com comunhão de mesa e cama, mas sem coabitação, no fundo fazendo vida em comum (mas não habitando juntos), ou formando um casal;
E de forma mais abrangente, no acórdão da Relação de Coimbra de 27/2/2013, disponível em www.dgsi.pt/jtrc entende-se que a existência e manutenção por parte de uma pessoa casada de uma relação paralela com outra pessoa (mas sem coabitação), configura uma relação análoga à dos conjugues, situação que até a existência de um relacionamento amoroso poderia preencher desde que seja não apenas estável mas também que se aproxime da relação conjugal de cama e habitação - Ac. TRC de 24-04-2012 in www.dgsi.pt/jtrc., devendo no fundo para preencher a qualidade necessária para ser vitima do crime, conduzir-nos a uma situação em que as pessoas envolvidas criaram um projecto comum de vida (sublinhado nosso) e se podem relacionar quer sendo namorados, amantes ou sendo cônjuges ou ex-cônjuges.
E não podemos deixar de concordar com a ideia expressa por André Lamas Leite, da exigência de “uma proximidade existencial efectiva” (sublinhado nosso). “Do mesmo passo, meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.152.º, n.º1, al. b).”, ou seja “ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro (sublinhado nosso).” - in A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia, Revista Julgar, n.º12 Especial, 2010, ASJP, pág. 52 - ou seja, exista e esteja imbuído de um especial dever relacional onde seja já possível vislumbrar (embora com menor intensidade) os deveres que reciprocamente vinculam os cônjuges como sejam deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência (artºs 1672º Código Civil sem coabitação) (sublinhado nosso). (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 10-09-2014, in www.dgsi.pt). “pois só assim essa relação se pode equiparar ou considerar-se ser análoga á dos cônjuges, pois não faz sentido (face ao principio da subsidiariedade e ultima ratio), que seja o direito penal a proteger especificamente uma relação de namoro, quando o direito civil não o faz a não ser numa fase adiantada desse relacionamento e apenas em vista da protecção da promessa de casamento (artºs 1591º a 1595º CC) (sublinhado nosso). (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2014, in www.dgsi.pt)
21.ª “Uma relação de namoro não constitui uma “relação análoga à dos cônjuges (sublinhado nosso), ainda que sem coabitação”, expressa no artº 152º n.º 1, al. b), do Cód. Penal. (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2014, in www.dgsi.pt)
22.ª Para que tal aconteça, a relação amorosa tem de ser estável e constituir o desenvolvimento de um projeto comum de vida do casal, exigindo-se uma relação próxima do ambiente familiar com sentimentos de afetividade, convivência, confiança, conhecimento mútuo, atos de intimidade, partilha da vida em comum e cooperação mútua (sublinhado nosso). (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2014, in www.dgsi.pt).
23.ª O que, no presente caso, efectivamente não existia.
24.ª Porquanto, se provou que, Arguido e Assistente mantiveram uma relação de namoro que durou cerca de oito meses, que o próprio Arguido descreve como sendo uma relação de cariz tão somente sexual.
25.ª Sendo que, em lado algum da acusação ou da sentença se diz ou, por qualquer modo se expressa uma daquelas realidades – “relação amorosa estável”, com ”um projecto comum de vida do casal”...
26.ª O único elemento caracterizador que existe é o facto de o relacionamento ter durado cerca de oito meses e, na sentença consta dos factos provados, mas na fundamentação da mesma a única referência é a uma “relação de namoro”, relação essa que nunca é caracterizada de outro modo ou de modo mais intenso.
27.ª “A própria finalidade da previsão normativa - protecção do bem jurídico - tutelando em geral a dignidade da pessoa humana (em toda a sua plenitude: física e mental), numa relação próxima do ambiente familiar ou análogo, onde existem sentimentos de afectividade, de convivência, confiança, conhecimento mútuo, e ocorram actos de intimidade e de partilha da vida em comum, numa relação de vida de cooperação mutua – permite e justifica a relação de especialidade com outras normas punitivas, que protegem os mesmo bem (geral: a dignidade da pessoa humana); (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2014, in www.dgsi.pt).
28.ª Ora uma “tão só” relação de namoro não implica ainda uma relação de vida, de partilha e de cooperação entre duas pessoas, pelo que sem algo mais que a caracterize e a aproxime de uma situação de comunhão de vida, não pode preencher a qualidade exigida pelo tipo legal (sublinhado nosso) (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-01-2014, in www.dgsi.pt).
29.ª Motivo pelo qual, no que respeita ao crime imputado de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.°, n.º 1, alínea b) do Código Penal, não poderia proceder, pois o mesmo não se verifica.
30.ª Havendo, pois, que valorar jurídico-penalmente os factos provados, considerando que, eles não permitem concluir pela verificação dos elementos do tipo objectivo do ilícito do artigo 152.º do Código Penal, podendo, isso sim, subsumir-se às previsões incriminadoras dos artigos 143.º (ofensa à integridade física simples) e 181º (injúria) do Código Penal.
31.ª Ora, o crime de “Ofensa à integridade física simples”, como crime semi-público que é, está dependente da apresentação de queixa no prazo de seis meses – o que no presente caso não se verificou.
32.ª No que ao crime de “Injúrias” se refere, o procedimento criminal está dependente, nos termos do artigo 188.º do Código Penal, de queixa e acusação particular – o que igualmente se não verificou.
33.ª Entendendo, deste modo, o Recorrente que, nem pela prática destes crimes haveria, então, ser julgado/condenado.
B - DA VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E “IN DUBIO PRO REO”
34.ª Dos factos dados como provados e com relevância para a condenação temos que o Arguido e a Ofendida mantiveram uma relação de namoro durante cerca de oito meses.
35.ª Que durante esse período de namoro existiram frequentes discussões – não concretizando, no entanto, a Sentença ora em crise, as circunstâncias de tempo, modo e lugar daquelas.
36.ª Que no decurso dessas discussões o Arguido agredia a Assistente com bofetadas, empurrões, socos e pontapés.
37.ª Posteriormente ao término do namoro – Junho de 2013, provou-se que, em datas não apuradas, existiram outros acontecimentos de agressões e injúrias derivados de discussões.
38.ª Os factos descritos e dados como provados pelo Tribunal a quo são genéricos e inconclusivos, nomeadamente quando afirma “Porque não aceitou a decisão (de terminar o namoro) o arguido passou a perseguir a assistente suas rotinas diárias”.
39.ª Não circunstanciando, a Douta Sentença, minimamente tais perseguições.
40.ª Igualmente quando se afirma na sentença que “Conhecedor das rotinas da assistente, o arguido quis persegui-la e abordá-la na via pública com o propósito de a atingir física e psicologicamente, atemorizando-a e humilhando-a em frente a terceiro”, não se explica, em que datas e locais concretamente aconteceram essas perseguições, de que forma a atingiu física e psicologicamente, nem tão pouco frente a quem a atemorizou ou humilhou.
41.ª Não pode o tribunal a quo fundar uma sentença, em que condena um arguido a pena de prisão de 1 ano e 4 meses, em factos tão fracamente circunscritos, vagos e genéricos.
42.ª Relativamente à prova a única que foi produzida e com relevância para a demonstração dos factos careados pela acusação são as declarações da Ofendida/Assistente – parte interessada na causa.
43.ª Não existem relatórios médicos documentais ou exames periciais do Instituto de Medicina Legal que demonstrem as agressões físicas.
44.ª Apenas as declarações da Ofendida, parte interessada na acção.
45.ª As declarações da Ofendida/Assistente não são suportadas, nem sequer indiciariamente, por mais qualquer prova.
46.ª Assim, a prova é claramente insuficiente para que haja condenação do Arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável.
47.ª Na ausência do juízo de certeza deverá valer o princípio de presunção de inocência do arguido, conforme dispõe o artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, de que é corolário o princípio in dubio pro reo.
48.ª O princípio “in dubio pro reo” “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou negligência do seu autor”. (Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo””, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág.11.)
49.ª Dos factos considerados provados não detectamos um único que demonstre o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica.
50.ª Com efeito, o Tribunal a quo decidiu tendo por base o testemunho da própria Ofendida/Assistente – parte, obviamente, interessada na causa.
51.ª É, assim, evidente a insuficiência de prova para a decisão da matéria de facto.
52.ª Estamos, sem dúvida, perante a violação do princípio do “in dubio pro reo”, segundo o qual o juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afectada pela dúvida”, de forma que, “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório” (Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo””, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág.54.)
53.ª Nos presentes autos não só não ficou cabalmente provado que o Recorrente não praticou o crime de violência doméstica, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o Arguido vinha acusado – porquanto a sentença dá como provados factos sem ao menos os localizar no espaço e no tempo - e quanto à culpa deste, pelo que “a sua absolvição aparece como a única atitude legítima a adoptar”. (Alexandra Vilela “Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal”, Coimbra Editora, 2000, pág.121.)
54.ª Pelo exposto o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
55.ª Assim, face ao exposto, haveria o Arguido ora Recorrente ter sido absolvido da prática de qualquer crime.
II - DA MEDIDA DA PENA
56.ª Sem prescindir o supra referido quanto à absolvição do Arguido quanto à pratica do crime aqui em julgamento, se assim não se entender (o que se concebe apenas por mero efeito de raciocínio) sempre deveria o Tribunal a quo ter optado pela suspensão da pena de prisão, uma vez que desta forma se realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
57.ª A pena de prisão aplicada ao Recorrente é manifestamente exagerada, violenta, desnecessária e desproporcional, violando na sua determinação o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 71.º do Código Penal.
58.ª Existem outras penas com a almejada virtualidade de acautelar e impedir a continuação de qualquer eventual “actividade criminosa”, nomeadamente a suspensão da pena de prisão.
59.ª Considerando o Recorrente que a pena deve ser substituída por uma pena suspensa na sua execução.
60.ª A pena de um ano e quatro meses de prisão é inadequada e exagerada, atentas as condições económicas, sociais e principalmente as pessoais do Recorrente – a sua saúde mental, que levará decisivamente ao enfraquecimento da sua saúde física e degradação do seu estado psíquico.
61.ª A douta sentença violou também o princípio da razoabilidade ao qual tem de obedecer a imposição de deveres. Não pode ser imposta ao Recorrente uma obrigação cujo cumprimento não é razoavelmente de se lhe exigir, pois tal originará um prejuízo sério para a sua saúde mental, já de si frágil
62.ª Violou, ainda, a douta sentença, o princípio da proporcionalidade da sanção criminal e princípio da culpa consagrados nos artigos 152.º n.º 1 e 2, 40.º, 41.º, 70.º e 71.º do Código Penal.
63.ª A pena aplicada ao Arguido é demasiado pesada e injusta, não se mostrando adequada à conduta praticada e às suas condições pessoais e sociais. A pena é desajustada, por excessiva.
64.ª Atendendo a todas as circunstâncias no caso “sub-judice” e ao disposto nos artigos 40.º, 41.º, 50.º, 70.º e 71.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, entendemos que a medida concreta da pena fixada pelo tribunal a quo deveria ter sido bem menos severa.
65.ª A pena de um ano e quatro meses de prisão efectiva aplicada ao ora Recorrente pelo Tribunal a quo não é justificada pela sua necessidade, é excessiva e ultrapassa o juízo de censura que o ora Recorrente merece, sendo injusta e consequentemente inadmissível.
66.ª Salvo o devido respeito, as circunstâncias pautadas nestas conclusões, nomeadamente as condições sociais e pessoais do Recorrente, deveriam ter sido consideradas e interpretadas em toda a sua extensão pelo Tribunal a quo, sendo que a pena aplicada haveria ter sido suspensa na sua execução.
67.ª Atento o que foi dado como provado na sentença ora recorrida – quanto à sua personalidade, às suas condições de vida, sociais e pessoais (idade do Arguido, doença do foro psiquiátrico...), as regras norteadoras da determinação concreta da medida da pena de prisão em vigor e as necessidades de prevenção especial e geral aplicáveis ao caso em apreço serão devidamente respeitadas e acauteladas com a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução.
68.ª Assim sendo, pede-se a revogação da sentença recorrida, decidindo-se em conformidade com a lei e circunstâncias descritas em sede de recurso, fixando-se ao Recorrente uma pena de prisão suspensa na sua execução.
69.ª Militam a favor do Arguido as suas modestas condições de vida.
70.ª Conforme consta do Relatório Social o Arguido/Recorrente provém de um agregado familiar de modesta condição económica.
71.ª O Arguido frequentou a escola até terminar o 12.º ano de escolaridade, na área profissionalizante, como técnico de informática nível III, tendo posteriormente frequentado 1 ano do Curso superior de Teatro na G… e, mais tarde, ingressado na H…, na Licenciatura de Línguas e Relações Internacionais – curso que suspendeu em Setembro de 2013.
72.ª Contrariamente ao assente como provado na Sentença ora em crise, o Arguido não iniciou o consumo de estupefacientes em 2005, o que é dito no Relatório Social do Arguido é que “O Arguido no decurso do ano de 2005 residiu na Holanda, altura em que iniciou consumo de substâncias aditivas (haxixe e cocaína) contudo terá abandonado o consumo no decurso do mesmo ano (sublinhado nosso), porque “a droga faz-me mal” (sic.)”.
73.ª O Arguido vive sozinho, na casa que era da sua mãe.
74.ª O Arguido dispõe, actualmente, de escassos recursos económicos – recebe um Rendimento Social de Inserção de cerca de € 176,00 (cento e setenta e seis euros) e, o Banco Alimentar atribui-lhe mensalmente um cabaz de alimentos.
75.ª No seio da comunidade a imagem do Arguido não está associada à prática de qualquer crime.
76.ª O processo de desenvolvimento do Arguido decorreu em ambiente familiar disfuncional, marcado pelo comportamento agressivo protagonizado pelo próprio pai, o que certamente o haverá influenciado negativamente.
77.ª Há alguns anos atrás, o Arguido iniciou acompanhamento psiquiátrico, na sequência de doença bipolar, mantendo, actualmente acompanhamento médico especializado, porquanto apresenta dificuldades de autocontrolo e comportamentos impulsivos.
78.ª O Arguido/Recorrente beneficia do apoio da progenitora e da actual namorada.
79.ª Por despacho de 01 de Fevereiro de 2014, ficou o Arguido/Recorrente com a obrigação de se apresentar quinzenalmente no Posto Policial da sua área de residência e, proibido de realizar qualquer contacto com a Ofendida, ora, tal tem sido escrupulosamente cumprido pelo Arguido, desde aquela data e, até à presente.
80.ª Não demonstrou o Recorrente ser indiferente ao sistema judicial.
81.ª É verdade que o Arguido já foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, no entanto, face ao supra aludido, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo não dá como provado que as condutas do Arguido/Recorrente tenham afectado a saúde física ou psíquica da ofendida ou que o Arguido tenha agido de forma a diminuir e afectar a dignidade da assistente.
82.ª Os factos dados como provados, praticados pelo Arguido, apesar de graves, não assumiram, objectivamente, contornos violentos.
83.ª Apesar de ser reincidente, é nosso entendimento, que a suspensão sempre acautelará as necessidades de prevenção geral e especial da norma violada.
84.ª Sendo certo que a mais ponderosa finalidade da punição assenta na ideia da recuperação do indivíduo, expressa no artigo 71.º do Código Penal.
85.ª Atendendo a todas as circunstâncias concretas do caso, e salvo o devido respeito, a aplicação ao Arguido de uma pena suspensa na sua execução, sujeita ao regime de prova, não seria, no caso concreto, atendida pela sociedade “como sinal de impunidade”. Tanto mais, porque bem sabe o Arguido que a suspensão da pena pode ser revogada a todo o tempo.
86.ª Actualmente, por força da alteração introduzida no art.º 50.º do Código Penal, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, as penas aplicadas aos arguidos podem ser substituídas por penas de carácter não detentivo, nomeadamente penas suspensas na sua execução.
87.ª O Recorrente tem 35 anos e, por via disso, tem toda a vida pela frente, que não se adequa à sua inclusão num estabelecimento prisional.
88.ª Além disso, a perspectiva de vida em liberdade, acompanhada da censura do facto e da advertência traduzida na condenação, constituirão um juízo razoável de prognose, uma vincada injunção responsabilizadora para conduzir o ora Recorrente a comportamentos e modo de vida concordantes com os valores comunitários e, por isso, a recomposição da sua vida no respeito pelos valores do direito.
89.ª “A finalidade politico-criminal da suspensão da pena é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (...) Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência»” Figueiredo Dias, obra citada supra, pág.343, §519.
90.ª Assim, o Tribunal a quo, fazendo uma correcta e justa aplicação da Lei, deveria ter optado, em concreto, por aplicar ao Arguido/Recorrente uma pena suspensa na sua execução.
91.ª Apesar de o Recorrente, ter sido já condenado diversas vezes, está-se no âmbito da pequena criminalidade.
92.ª Além disso, encontra-se social e familiarmente integrado, tendo uma proposta de trabalho na Bulgária – a qual tem declinado, protelando a sua ida para …, por força do presente processo.
93.ª Cremos, por isso, que uma pena inferior à aplicada e suspensa na sua execução será suficientemente dissuasora de reiterações criminosas futuras e fará com que, desta vez, o Arguido, interiorize a gravidade da sua conduta.
94.ª A M.ma. Juiz a quo ao não optar pela suspensão da pena fez uma errada interpretação dos artigos 40.º, 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal.
95.ª No nosso entendimento, deveria a M.ma Juiz a quo ter optado pela suspensão da pena aplicada por estar, no nosso entender, preenchidas as finalidades da punição, sendo a principal a ideia de recuperação do indivíduo.
96.ª Assim, impõe-se a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução por forma a alcançar a ressocialização do Recorrente, prevenindo a reincidência.
97.ª O Recorrente crê que se cometeria, apesar de tudo, justiça e aplicaria correctamente os pressupostos e critérios de fixação da medida das penas (artigo 71.º e seguintes do Código Penal) se a sanção que lhe foi aplicada de pena de prisão efectiva de um ano e quatro meses, fosse substituída por uma pena de prisão suspensa na sua execução, por igual período, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta, a determinar ao livre arbítrio de V. Ex.as (artigo 50.º n.º 2 do Código Penal).
98.ª Em consequência, a Douta Sentença recorrida violou por errada interpretação o disposto nos artigos 40.º, 50.º, 70.º, 71.º e 152.º do Código Penal e, artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.»

Na resposta a tal motivação, o Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância pugnou pelo não provimento do recurso.

A assistente também apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando também pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a sentença recorrida viola, ou não, os princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo;
- saber se a factualidade provada integra, ou não, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, b), do Código Penal;
- saber se a pena de prisão em que o arguido foi condenado é, ou não, excessiva, face aos critérios legais, e deverá, ou não, ser suspensa na sua execução.

III – É o seguinte o teor da fundamentação da douta sentença recorrida:
«(…)
Fundamentação de facto.
Factos provados.
O arguido e a assistente C… mantiveram uma relação de namoro a partir do ano de 2012, que durou cerca de 8 meses, nunca tendo coabitado.
As discussões entre arguido e assistente durante o relacionamento eram frequentes, sendo que no decurso das mesmas por vezes aquele agredia a última com bofetadas, empurrões, socos e pontapés.
Por causa deste comportamento do arguido a assistente decidiu terminar o namoro em Junho de 2013.
Porque não aceitou a decisão o arguido passou a perseguir a assistente suas rotinas diárias.
Em data não concretamente apurada de 2013 o arguido abordou a assistente no centro comercial D…, pretendendo que a mesma o acompanhasse, o que ela recusou.
Em dia não concretamente apurado Setembro de 2013, o arguido e a assistente circulavam numa carruagem do E….
Ao chegarem à estação … o arguido agarrou a assistente por um braço e obrigou-a a sair da mesma e, já na plataforma da estação, desferiu-lhe um murro, fazendo-a cair ao chão.
De seguida, o arguido agarrou a assistente pelos cabelos, arrastando-a, e depois puxou-a para se levantar.
Neste contexto a assistente acabou por acompanhar o arguido até casa levada pelo braço, ali tendo mantido relações sexuais com aquele, após tendo sido colocada na rua.
Dias após, o arguido abordou a assistente na Rua …, em …, quando a mesma se dirigia para o ginásio tendo-lhe dito que não conseguia estar sem ela e que precisava de falara com ela.
Porque a assistente manifestou vontade de não estar com ele, o arguido tentou dar-lhe um estalo, não a atingindo porque a mesma se desviou.
Após, o arguido pegou na mochila de tiracolo da assistente e fugiu, voltando para trás por ter sido perseguido por uma pessoa.
No dia 31 de Janeiro de 2014, cerca das 12.00h, o arguido dirigiu-se à escola profissional F…, sita na Rua …, em …, frequentada pela assistente, onde entrou gritando por esta, o que determinou a chamada da autoridade policial.
Apercebendo-se que não conseguia falar com a assistente o arguido disse em voz alta «sua puta, sua vaca, eu vou-te apanhar e vou-te matar».
O arguido foi condenado no processo 572/09.4PBMTS, do 2.º Juízo Criminal de Matosinhos, por acórdão transitado em julgado em 29.11.2010, pela prática em 17.03.2009 dos crimes de violência doméstica, perturbação da vida privada e resistência e coacção sobre funcionário na pena de 3 anos e 4 meses de prisão suspensa na execução com regime de prova e pena acessória de proibição de contactos.
O arguido actuou em todas as ocasiões com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a assistente.
Conhecedor das rotinas da assistente, o arguido quis persegui-la e abordá-la na via pública com o propósito de a atingir física e psicologicamente, atemorizando-a e humilhando-a em frente a terceiro.
Fê-lo, sabendo que se encontrava a decorrer o prazo de suspensão da execução da pena que lhe havia sido aplicada no processo 572/09.4PBMTS.
O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, conhecendo a punibilidade e censurabilidade da sua conduta.
O arguido tem diagnóstico de transtorno de personalidade anormal psicopática (com traços anormais explosivos e acentuação sociopática).
Oferece perigosidade potencial para terceiros, dada a dimensão impulsiva de que é portador.
B… é o mais novo de dois descendentes de um casal de modesta condição socioeconómica, cuja dinâmica familiar foi negativamente marcada por episódios de violência protagonizados pelo progenitor.
Este comportamento conduziu a que por volta dos 16 anos de idade o arguido tivesse ido residir com uma tia materna que assumiu as responsabilidades parentais.
Os progenitores separaram-se quando B… tinha cerca de 20 anos de idade.
O percurso escolar decorreu com aproveitamento, tendo concluído o 12° ano de escolaridade na área profissionalizante, como técnico de informática nível III.
Inscreveu-se, no ano de 2007, num curso superior de Teatro na G…, do qual desistiu no 1.º ano.
No ano de 2011, através do concurso para maiores de 23 anos, ingressou na H…, para frequentar a licenciatura em Línguas e Relações Internacionais, tendo suspendido a matrícula em Setembro de 2013 sem concluir a formação.
Ao nível laboral, na sequência da formação que frequentou na área da informática, iniciou actividade por conta própria como prestador de serviços.
Tem procurado colocação laboral estável, ainda sem sucesso, tendo efectuado estágios profissionalizantes.
Aos 23 anos de idade contraiu matrimónio, que terminou 3 meses.
No decurso do ano de 2005, residiu na Holanda, altura em que iniciou consumo de substâncias aditivas (haxixe e cocaína).
Iniciou acompanhamento na área da psiquiatria há vários anos, na sequência de diagnóstico de doença bipolar.
O arguido avalia a dinâmica da relação com a assistente como conflituosa.
Não a descreve como relação de namoro, mas somente de cariz sexual.
O arguido tem uma proposta de trabalho para o exterior.
Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações: No processo 87/05.0PSPRT, da 3ª Vara Criminal do Porto, pela prática em 01.09.2004 de um crime de abuso de confiança e de um crime de falsificação de documento, por acórdão transitado em julgado em 17.03.2006, a condenação na pena de 15 meses de prisão suspensa na execução pelo período de um ano.
No processo 4146/05.0TDPRT, do 3º Juízo Criminal do Porto, pela prática em 2005 de um crime de burla tributária, por sentença transitada em julgado em 05.01.2009, a condenação na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.
No processo 572/09.4PBMTS, do 2º Juízo Criminal de Matosinhos, pela prática em 17.03.2009 de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada e de um crime de violência doméstica, a condenação na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão suspensa na execução por idêntico período, com regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima pelo período de 3 anos e 4 meses.

Factos não provados.
Quando encontrou a assistente no centro comercial D… o arguido agarrou-a pelos braços.
No dia 15 de Julho de 2013, pelas 19.00h o arguido dirigiu-se à residência da assistente e fez-lhe uma espera à porta, impedindo-a de sair.
Durante a manhã de 16 de Julho de 2013 o arguido telefonou várias vezes para a assistente dizendo «vou-te aparecer», «vou-te por atrás das grades», «vais andar a correr atrás de mim com o rabo entre as pernas», «tu nuca mais vais ter uma vida normal».
Quando o arguido encontrou a assistente no ginásio disse-lhe «sua puta, não te vou deixar em paz».

Motivação
O tribunal formou a convicção com base na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma conjugada e crítica à luz das regras da experiência comum.
Além da prova por declarações da assistente apenas sobre os factos relativos ao dia 31 de Janeiro de 2014 recaiu prova testemunhal.
Quanto a este facto depuseram as testemunhas I… e J…, cuja isenção se não mostrou beliscada por qualquer foram, assumindo relevância, pela forma clara como expôs os factos, a última testemunha. Esta foi clara ao dizer que o arguido esteve na escola, que se dirigiu ao bar e que depois se prostrou na escola a chamar pela assistente, não tendo sido as presentes capazes de demover aquele dos seus intentos de permanecer na escola. Disse, contudo, que o arguido em determinada altura, apercebendo-se da dificuldade em falar com a arguida, chamou-a de filha da puta, vaca e disse que quando a apanhasse na rua a matava. Esclareceu ainda que foi chamada a polícia e que à chegada desta o arguido saiu a correr. As testemunha I… confirmou este depoimento. Por sua vez, também a testemunha K…, agente da PSP chamado à escola, confirmou que à sua chegada o arguido chamava pela C…, tendo-se colocado em fuga de imediato. Esclareceu que o arguido foi encontrado já na rua pela carro patrulha. Estes depoimentos sustentaram a versão da assistente que, apesar de não ter visto o arguido, confirmou a situação com que se viu confrontada na escola e ter estado fechada com o professor na sala por causa do arguido. Mas, mais relevante do que sustentar as declarações da assistente neste episódio, esta prova emprestou credibilidade à assistente, enfraquecendo na mesma proporção a credibilidade do arguido – posto que este, tendo confirmado que esteve na escola, mas apenas para tomar café com a assistente, disse nada ter acontecido de relevante e apenas ter sido encontrado na rua no retorno pelo carro patrulha. E neste contexto, apesar das declarações do arguido, que negou os factos imputados, inclusivamente ter tido uma relação de namoro com a assistente (o que não se mostra compatível com o teor da carta de fls. 80 – que reflecte uma relação sentimental do arguido para com a assistente, mais aprofundada do que a proveniente de meros encontros ocasionais de outro cariz), o certo é que, em face do que se deixou dito, as declarações da assistente sobrelevaram-nas, permitindo, assim, apurar os factos que a mesma confirmou e sustentou de forma consistente, designadamente relativa à relação estável de namoro que efectivamente mantiveram e que acabou por terminar pelo tratamento que aquele lhe dispensava.
Neste contexto há ainda que ponderar o relatório de psiquiatria constante de fls. 167, conjugado até com o depoimento da testemunha L…, psicóloga que acompanha o arguido e que fragiliza naturalmente, pelas características de personalidade, a credibilidade do arguido.
O relatório de fls. 167 e ss. permitiu ainda considerar provados os factos relativos à doença de que o arguido padece e que não lhe retira a imputabilidade, donde, considerando os factos objectivos provados (e atendendo à própria postura do arguido ao fugir no momento da chegada da polícia – assim demonstrando saber claramente que a sua conduta é errada), se consideraram provados os factos relativos ao elemento subjectivo.
O elemento subjectivo resultou ainda da avaliação dos factos objectivos apurados à luz das regras da experiência comum – a actuação do arguido em lugares públicos e a violência da sua conduta quanto à agressão que consumou é demonstrativo da humilhação e vergonha a que o mesmo pretendia sujeitar a assistente, sendo ainda certo que igualmente a postura do mesmo ao fazer-se anunciar na escola é demonstrativa do clima de receio que o arguido pretendia criar.
As testemunhas M… e N…, respectivamente mãe a amiga do arguido, demonstraram não ter qualquer conhecimento relevante acerca dos factos imputados ao arguido, sendo que o relevantemente referido quanto à personalidade se não mostra confirmado pelo relatório pericial.
O relatório social e o certificado de registo criminal constam dos autos.
*
Enquadramento jurídico-penal.
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), 4 e 5, do Código Penal.
Comete este crime:
«1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O cometimento deste crime pressupõe que o agente tenha para com o ofendido uma especial relação de proximidade física – a resultante, designadamente, a relação de namoro (esta introduzida pela Lei 19/2013, de 21.02).
As condutas abrangidas pelo tipo são, por seu turno, de duas ordens – maus tratos físicos (ofensas corporais simples) ou maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças (ainda que não configuradoras de um crime de ameaça), etc.).
Finalmente, no que respeita ao elemento subjectivo, caracteriza-se como um crime doloso, sendo que o dolo se há-de estender ao resultado danoso.
No caso dos autos, é sabido que o arguido e a ofendida mantiveram entre si uma relação de namoro que terminou em Junho de 2013.
E se já durante tal relação o comportamento com agressões à assistente motivou o desfecho da relação, tal comportamento não se quedou por aí, vindo a prolongar-se para além do termo do relacionamento.
É neste contexto que se apurou que o arguido impunha a sua presença à assistente, tendo-a numa das vezes agredido fisicamente, noutra tentado fazê-lo, sem o conseguir por ela se ter desviado, proferido as expressões puta, vaca, vou-te apanhar e matar na escola por si frequentada.
O arguido actuou sempre deliberada, livre e conscientemente, com o propósito conseguido de causar na ofendida dores físicas, vergonha, humilhação e medo, fazendo-a temer pela sua segurança e bem estar, pelo facto de ter decidido por fim à relação que mantinham.
Este modo de actuação do arguido integra, sem dúvida, os elementos objectivos do tipo imputado, tendo em consideração a natureza do comportamento do arguido, das ofensas que causou à assistente (ao, designadamente dar-lhe um murro, fazendo-a cair, e puxar-lhe os cabelos (tudo na via pública) e das expressões que lhe dirigiu na escola que frequentava, que associadas às outras presenças que impôs e se consideraram provadas, eram susceptíveis de a intimidar e de lhe perturbar o seu bem estar.
Ao nível do elemento subjectivo provou-se que o arguido ao agir do modo descrito agiu de forma deliberada, consciente e livremente, sendo sua intenção vexar, humilhar, perturbar o bem estar físico e psíquico da ofendida.
Em face dos factos provados, ter-se-á, pois, de concluir que com a sua conduta o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito que lhe é imputado.
O crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152.º, n.º 1, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Resulta do disposto no art. 40.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na comunidade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Ora, no caso, são elevadas as necessidades de prevenção geral. No que respeita às exigências de prevenção especial é de considerar serem as mesmas relevantes, tendo em consideração as condenações já sofridas pelo arguido, sendo a mais recente pela prática de crime de idêntica natureza e bem assim a postura do arguido em audiência de julgamento, demonstrando não alcançar a gravidade dos factos provados, o que é denunciado pela sua própria personalidade, dos quais resulta que o arguido não dispõe de motivação própria ou de auxílio de terceiros capaz de o desmotivar da prática de novos crimes.
Há ainda que ponderar a gravidade dos factos que integram o crime.
Com base nestes elementos, e atendendo ao critério do art. 71.º, n.º 1, do Código Penal e aos factores de determinação da pena enunciados no n.º 2 do mesmo preceito, considera-se que a pena de 1 ano e 4 meses de prisão.
Face à renovada conduta do arguido, após a condenação anterior, à gravidade dos factos e à postura do arguido em julgamento entende-se que esta pena não poderá ser substituída por trabalho comunitário, nos termos do art. 43.º do Código Penal, ou ser suspensa nos termos do disposto no art. 50.º do Código Penal, cumprida em regime de dias livres nos termos do art. 45.º do Código Penal ou em regime de permanência na habitação no art. 44.º do Código Penal.
As exigências de prevenção especial e de prevenção geral reclamam no caso o efectivo cumprimento da pena de prisão – o arguido foi já condenado numa pena de prisão suspensa pela prática de idêntico crime e, não obstante, no decurso do prazo de suspensão renovou idêntica vontade criminosa, mostrando à evidência que as pensas substitutivas não são suficientes para evitar a prática de novos crimes; sendo ainda certo que as exigências de revalidação da norma violada são no caso prementes, face ao alerta da comunidade para crimes desta natureza.
Nos termos do disposto no n.º 4 do art. 152.º do Código Penal «[n]os casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica
No caso, face aos factos provados – as já referidas postura e personalidade do arguido –, justifica-se ainda adequada a aplicação ao arguido da proibição de contacto do arguido com a assistente pelo período de 1 ano e 4 meses de prisão.
*
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que na sentença recorrida se verifica violação dos princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República). Invoca a circunstância de a prova assentar apenas no depoimento da assistente, que é parte interessada na causa, sem documentos médicos ou exames que demonstrem as agressões físicas. Invoca também a circunstância de a sentença se basear em factos fracamente circunscritos, vagos e genéricos.
Vejamos.
Os princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo não impedem uma condenação baseada apenas no depoimento do próprio queixoso ou assistente. Se assim fosse, estaria sempre inviabilizada a prova de factos não presenciados por terceiros, que não deixem marcas visíveis, como com tanta frequência sucede nos crimes de violência doméstica. Tudo depende da credibilidade que tal depoimento possa merecer, Essa credibilidade pode ser sólida a ponto de afastar qualquer dúvida razoável. E assim sucedeu neste caso, sendo que não nos cabe, nesta sede, pôr em causa um juízo de credibilidade como este, em grande medida dependente de factores ligados à imediação, da qual nesta sede estamos privados.
Como se refere no acórdão desta Relação de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do S.T.J. de 21/1/2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do S.T.J. de 9/7/2003, proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, acessível em www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade de algum depoente. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade dos depoentes. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
De qualquer modo, nem sequer é correto dizer que, no caso em apreço, a prova dos factos que integram a prática do crime por que o arguido foi condenado assenta apenas no depoimento da assistente. Quanto aos factos ocorridos a 31 de janeiro de 2014, a prova assenta também nos depoimentos das testemunhas I… e J….
Alega, ainda, o arguido que a sentença em apreço não concretiza factos quanto a circunstâncias de tempo, modo e lugar, descrevendo-os de modo vago e genérico.
Não se vislumbra em que é que esta circunstância se relacione com os princípios da presunção de inocência do arguido e in dubio pro reo. Poderiam estar em causa, antes, os princípios da vinculação temática e as garantias de defesa do arguido. Há que considerar, a este respeito, o seguinte.
Na verdade, a alusão às agressões físicas de que a assistente era vítima durante o namoro é feita de forma não suficientemente concretizada e circunscrita. Mas não é nesses factos assim tão genericamente descritos que fundamentalmente assenta a condenação do arguido. A alusão genérica a esses factos serve basicamente para indicar o motivo do rompimento do namoro entre a assistente e o arguido.
Os factos em que fundamentalmente assenta a condenação do arguido ocorrem depois do rompimento do namoro. Em relação a estes factos, a sentença recorrida começa com uma alusão mais genérica à perseguição, pelo arguido, da assistente nas suas rotinas diárias. Mas não se fica por esse alusão genérica. Concretiza essa perseguição, aludindo a factos de seguida descritos de forma circunstanciada. Mesmo quando não foi possível apurar a data de alguns desses factos (o que sucede com frequência, sem que isso implique necessariamente a irrelevância da prova respetiva), não deixa de verificar-se uma descrição suficientemente circunstanciada dos mesmos quanto a outros aspetos, a ponto de o arguido não ter dúvidas a respeito dos factos que lhe são imputados e poder defender-se dessa imputação
Assim impõe-se negar provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar, por outro lado, que a factualidade provada não integra a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, b), do Código Penal, sendo que não poderá ser condenado por crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do mesmo Código, por não ter sido tempestivamente apresentada a queixa respetiva, nem por crimes de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do mesmo diploma, por não terem sido tempestivamente apresentadas as respetivas queixa e acusação particular. Alega, por um lado, que entre ele e a assistente não se estabeleceu algum dos tipos de relacionamento descritos nessa aliena b), não sendo uma relação de namoro uma relação análoga à dos cônjuges e não se verificando no relacionamento que ele manteve com a assistente (que descreveu de cariz tão somente sexual) caraterísticas de estabilidade, intensidade, confiança, conhecimento mútuo, intimidade, partilha da vida em comum e cooperação mútua análogas à relação conjugal. Alega, por outro lado, que a factualidade provada não afetou a dignidade da assistente, a sua saúde física ou psíquica ou o livre desenvolvimento da sua personalidade; não se revestiu de especial crueldade ou insensibilidade; não demonstrou uma atitude de vingança desnecessária ou vontade de subjugar a vítima e torná-la dependente; não se revestiu de gravidade e reiteração suficientes e não assumiu contornos violentos.
Vejamos.
A versão do artigo 152º, nº 1, b), do Código Penal decorrente da Lei nº 19/2013, de 21 de fevereiro, atualmente vigente e vigente à data dos factos em apreço, inclui entre os tipos de relacionamento aí previstos não apenas os análogos aos dos cônjuges (como parece entender o arguido e recorrente na sua motivação do recurso), mas também os de namoro (quer esse relacionamento se mantenha no momento da prática dos factos, quer tenha ocorrido anteriormente, como sucedeu no caso em apreço), independentemente da maior ou menor duração deste, ou da maior ou menor proximidade desse namoro com uma relação conjugal.
A sentença recorrida considerou provado que o arguido e a assistente namoraram durante cerca de oito meses sem terem coabitado. Não considerou provada a versão do arguido segundo a qual se trataria de um relacionamento de cariz apenas sexual, sem dimensão afetiva. Para assim concluir, essa sentença baseou-se, além do mais, no teor da carta junta a fls. 80. Nada leva a pôr em causa essa decisão. Que o relacionamento entre o arguido e a assistente não teve caraterísticas meramente esporádicas e casuais (como parece sustentar a motivação do recurso), decorre do facto de ter durado cerca de oito meses e também do facto de o arguido não ter aceite o fim desse relacionamento.
Assim, não será pelas caraterísticas do relacionamento entre o arguido e a assistente que deixa de verificar-se a previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 152º do Código Penal.
Alega o arguido e recorrente, por outro lado, que a sua conduta não se reveste da gravidade própria do crime de violência doméstica, podendo configurar apenas crimes de ofensa à integridade física e injúrias.
Há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica previsto no nº 1 do artigo 152º do Código Penal e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças ou outros, praticados contra pessoa ligada por algum dos tipos de relacionamento descritos nesse preceito (neste caso, uma pretérita relação de namoro).
Esse traço distintivo dependerá da perspectiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), novembro de 2010, p. 49).
À luz de uma ou outra destas perspetivas, podemos afirmar que a factualidade provada na douta sentença em apreço configura a prática de “maus tratos físicos e psíquicos” e, portanto, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, do Código Penal.
É de salientar que, como refere Nuno Brandão (in «A tutela penal especial da violência doméstica», Julgar, nº 12 (especial), novembro de 2010, p. 17 e 18), estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos.
A conduta do arguido reveste-se das notas caraterísticas do chamado stalking, isto é, uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento. Este tipo de comportamento, que pode assumir maior ou menor intensidade, pode enquadrar-se no crime de violência doméstica (ver Cláudia Coelho e Rui Abrunhosa Gonçalves, «Stalking: uma nova dimensão da violência conjugal», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, nº 2, abril-junho de 2007; e acórdãos desta Relação de 8 de outubro de 2014, processo nº 956/10.5JPRT.P1, relatado por Moreira Ramos; e da Relação de Évora de 18 de março de 2010, processo nº 741/06.9TAABF.E1, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso; e de 8 de janeiro de 2013, proc. nº 113/10.0TAVVC.E1, relatado por João Gomes de Sousa, todos in www.dgsi.pt). Estamos perante uma conduta reiterada, e não ocasional ou isolada. Não pode dizer-se, como se diz na motivação de recurso, que se trate de uma simples “briga de namorados” sem “contornos de violência”. A conduta do arguido provocou perigo para a saúde psíquica e emocional da assistente e, também pelo que representa de vontade de subjugação, atingiu a sua dignidade de pessoa.
Assim, a douta sentença recorrida não é, quanto à qualificação jurídica dos factos provados, merecedora de reparo.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 3. -
Vem o arguido e recorrente alegar, por último, que a pena de prisão em que foi condenado é excessiva, face aos critérios legais, devendo tal pena de prisão ser suspensa na sua execução. Alega as suas condições pessoais e sociais, a sua modesta situação económica, os seus problemas de saúde mental, o facto de sempre ter respeitado a proibição de contactos com a assistente que lhe foi imposta como medida de coação e o facto de as suas anteriores condenações se situarem no âmbito da pequena criminalidade.
Vejamos.
O crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, b), do Código Penal, por que o arguido foi condenado, é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
O arguido foi condenado na pena de um ano e quatro meses de prisão.
Atendendo aos critérios definidos no artigo 71º do Código Penal, não pode, de modo algum, afirmar-se que esta pena, situada próximo do mínimo legal, é exagerada ou desproporcionada.
Bastará considerar os antecedentes criminais do arguido, em especial o facto de ter praticado o crime ora em apreço no período de suspensão da execução de uma pena de prisão relativa também à prática anterior de crime de violência doméstica, para que se justifique a fixação da medida da pena algo acima do limite mínimo da moldura abstrata, como se verificou no caso em apreço.
Não se vislumbra em que medida poderá, neste caso, a situação económica ou social do arguido operar como circunstância atenuante.
Não se provou que a saúde mental do arguido limitasse a sua imputabilidade.
Quanto à eventual suspensão de execução da referida pena de um ano e quatro meses de prisão, há que considerar o seguinte.
Nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado às finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta (nº 2 desse artigo e artigos 51º e 52º). O período da suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano (nº 5 desse artigo 50º).
Preside ao instituto da suspensão da execução da pena de prisão um propósito de favorecimento de penas mais adequadas à prevenção especial positiva (reinserção social, ou não desinserção social do agente) do que a pena de prisão. É seu pressuposto uma prognose social favorável o arguido, isto é, a prognose de que a censura do facto e a ameaça de eventual cumprimento da pena de prisão sejam suficientes para o afastar da criminalidade.
É também pressuposto da suspensão da pena de prisão que esta satisfaça outros fins da pena (artigo 50º, nº 1, in fine, do Código Penal). De acordo com o citado artigo 40º, nº 1, do mesmo Código, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. A “protecção dos bens jurídicos” corresponde, fundamentalmente, à prevenção geral positiva, isto é, ao reforço da confiança comunitária na validade da ordem jurídica e na protecção que esta assegura aos bens que estruturam a vida social. Diante da violação da ordem jurídica e da agressão a esses valores, a consciência jurídica comunitária poderá ficar abalada se o sistema jurídico-penal não reagir, fechar os olhos a tal violação, ficando comprometida a referida confiança. A pena exerce, assim, uma função pedagógica de interpelação social que veicula uma mensagem cultural de chamada de atenção para a relevância de valores e bens jurídicos e, nessa medida, traduz-se numa forma de protecção desses bens jurídicos e da ordem jurídica em geral. A suspensão da pena pode ser interpretada pela consciência comunitária como uma forma de desvalorização de bens jurídicos a que dá particular importância e como um sinal de prática impunidade, uma mensagem contraditória com um propósito de tutela desses bens.
Ora, os antecedentes criminais do arguido obstam à formulação desse juízo de prognose favorável ao arguido. Não pode, sobretudo, ignorar-se o facto de o crime ora em apreço ter sido praticado durante o período de suspensão de uma pena de prisão resultante de condenação anterior, também relativa à prática (entre outros) de um crime de violência doméstica. Nada nos permite dizer que a simples censura do facto e ameaça de cumprimento da pena afastariam agora o arguido da continuação da actividade criminosa, quando não o fez uma suspensão de pena anterior. A prática do crime ora em apreço representa um manifesto desrespeito pela advertência que constituiu a condenação anterior.
Por outro lado, uma nova suspensão de execução da pena de prisão seria, neste caso, interpretada pela comunidade como sinal de indiferença perante o bem jurídico em causa, com o que seria gravemente afetada a prevenção geral positiva.
Há, porém, que considerar o seguinte.
Os antecedentes criminais do arguido, e particularmente o facto de a prática do crime em apreço ocorrer durante o período de suspensão de execução de uma pena de prisão resultante de condenação anterior, impedem que se confie em que uma nova suspensão de execução da pena venha a afastá-lo da criminalidade.
Afigura-se-nos, porém, que o mesmo não poderá dizer-se da substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, possível face ao disposto no artigo 58º, nº 1, do Código Penal.
A prestação de trabalho a favor da comunidade reveste-se de um alcance sancionatório efetivo de que não se reveste a suspensão da execução da pena de prisão. A comunidade, e o próprio condenado, não a interpretarão, como muitas vezes interpretam a suspensão de execução da pena de prisão, como sinal de permissividade ou de indiferença diante da violação dos bens jurídicos em causa. E se é verdade que estamos perante um crime de violência doméstica, com o que isso implica de particulares exigências de prevenção geral, não podemos ignorar que o crime em concreto não se reveste de acentuada gravidade (tanto que a pena respetiva se aproxima do mínimo legal). E são óbvias as vantagens da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, em relação à pena de prisão, na perspetiva da reinserção social do arguido.
Há que ter presente a regra do artigo 70º do Código Penal: «sempre que ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»
Assim, justifica-se a substituição da pena de prisão em que o arguido foi condenado por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58º do Código Penal.
Atendendo ao disposto na parte final do nº 3 deste artigo, o arguido deverá prestar quatrocentos e oitenta horas de trabalho.
Essa substituição fica condicionada ao consentimento do arguido (artigo 58º, nº 3, do Código Penal). Esse consentimento deverá ser prestado em face do plano de execução elaborado pelos serviços de reinserção social, nos termos do artigo 496º do Código de Processo Penal.
Assim, nesta medida, deverá ser concedido provimento parcial ao recurso.

Não há lugar a custas (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso, determinado a substituição da pena de um ano e quatro meses de prisão em que o arguido foi condenado por quatrocentas e oitenta (480) horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, mantendo-se, no restante, a douta sentença recorrida.
Essa substituição fica condicionada ao consentimento do arguido, o qual deverá ser prestado em face do plano de execução elaborado pelos serviços de reinserção social.

Notifique.

Porto, 11/03/2015
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo