Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
35/17.4PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: DIFAMAÇÃO
INJÚRIA
HONRA
CONSIDERAÇÃO
NÃO PUNIBILIDADE
PARTICIPAÇÃO CRIMINAL
Nº do Documento: RP2018110735/17.4PIPRT.P1
Data do Acordão: 11/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º 776, FLS.280-284)
Área Temática: .
Sumário: I - O crime de difamação p. e p. pelo art.º 180º do Código Penal e o crime de injúria p. e p. pelo art.º 181º do mesmo Diploma Legal, protegem o bem jurídico honra e consideração, enquanto dignidade individual.
II - A honra é um conceito interno e a consideração uma projecção externa da mesma.
III - A honra é tida como um bem jurídico complexo que inclui quer a auto - avaliação pelo indivíduo do seu valor pessoal e qualidades morais, radicadas na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração públicas.
IV - Fundamento essencial da honra é a inabdicável dignidade pessoal que pertence ao indivíduo desde o nascimento
V - Os crimes de difamação e de injúria contentam-se hoje com o chamado dolo genérico, não exigindo o dolo específico enquanto especial direcção da vontade.
VI - A punibilidade está excluída quando, cumulativamente:
i) a imputação feita visar a realização de interesses legítimos.
ii) se faça a prova da verdade da imputação ou de que a mesma é tida, em boa fé, como verdadeira.
VII –-Se o arguido denuncia um crime às autoridades judiciárias, imputando ao assistente a prática de factos concretos, integradores de um tipo legal de crime, factos nos quais acredita, sem hesitações, age no âmbito da realização de um interesse legítimo, ciente da veracidade de tal imputação, ou seja, em boa-fé, não sendo punível a conduta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 35/17.4PIPRT.P1
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Acordam em conferência,na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo de instrução nº 35/17.4PIPRT, do 4º Juiz do Juízo de Instrução Criminal do Porto, após acusação particular acompanhada pelo Ministério Público, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido B…, pela prática de um crime de difamação agravada, previsto nos Arts. 180º e 183º do Código Penal.
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Desta decisão, recorre o assistente, formulando as seguintes conclusões (sic), que balizam e limitam o âmbito do recurso (Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do Art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”):
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A. As declarações das testemunhas ouvidas no âmbito do processo de inquérito nº 1202/16.3PIPR, não enformam os factos expressos pelo arguido.
B. Da análise dessas declarações em conjugação com as fotografias constantes desse inquérito resultam ao contrário da afirmação de que o Assistente foi visto a riscar um carro com uma chave resultam fortes dúvidas de que tal acto possa ser imputado ao Assistente.
C. O Arguido, nesse processo de inquérito apresenta queixa contra desconhecidos.
D. O Arguido imputou a prática de factos ao assistente que bem sabia não lhe poder atribuir, com o único intuito de o enxovalhar.
E. Não estão preenchidos os pressupostos previstos no art. 1805 nº 2 do CP para a exclusão da ilicitude do acto, porquanto
F. O Arguido não visava a realização de interesses legítimos, nada reclamou do Assistente no processo de inquérito,
G. Naõ tinha sequer fundamento sério para, em boa fé, reputar de verdadeiros os factos de que acusou o Assistente.
H. E imputou tais condutas ao Assistente, junto a terceiros (empregada de limpeza), nos corredores do prédio e à entrada da porta da rua, sempre em alta vozearia, de forma a ser ouvido por terceiros, bem sabendo que, em boa fé tal imputação não podia ser feita por ser falsa.
I. A não pronuncia deste arguido determina que os factos imputados acusação no processo de inquérito nº 1202/16.3PIPRT.
J. Isso levará a que o aqui assistente se vier a ser absolvido ali, como espera, fique impossibilitado de responsabilizar o aqui arguido, ali ofendido, pelo grave dano de enxovalho que fez à imagem do recorrente.
K. Violou a douta decisão em crise o disposto no artigo 180 nº 2 do C. Penal
Termos em que deve o douto despacho de não pronuncia aqui em causa, ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido do crime de difamação previsto e punido pelo artigo 180º agravado peio artigo 183º do C.P, remetendo-se os autos para julgamento e assim se seguir a demais tramitação legal.
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Respondeu o Ministério Público, dizendo que corre termos o processo de inquérito em que ao ora assistente são imputados factos coincidentes com os que fundamentam a acusação particular; assim, o que foi exprimido pelo arguido como imputação de um facto ao assistente assenta em prova, se não da verdade da imputação, pelo menos de que a mesma tenha sido tida como verdadeira, em boa-fé; e como tal, conclui pela improcedência do recurso.
Respondeu também o arguido, sufragando a decisão recorrida e concluindo também pela exclusão da ilicitude do comportamento protagonizado pelo arguido, devendo ser negado provimento ao recurso.
Neste Tribunal, o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto apôs o seu visto.
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É este o texto da decisão instrutória recorrida:
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Veio a assistente na sua acusação, folhas 68 e seguintes, alegar e imputar ao arguido um crime de difamação, que o Ministério Público acompanhou, fls. 75.
Assenta a acusação em que no dia 7 de Julho de 2016, cerca das 16:30h, encontrava-se em casa com a esposa e dois agentes da PSP a quem prestava declarações decorrentes de um desentendimento com um vizinho, e quando abriram a porta do apartamento para que estes saíssem, surgiu no corredor do prédio o arguido que em altos berros, e dizia, "É ele, é ele", "é ele que anda riscar carros na garagem." Que depois o arguido passou a abordar o assistente cada vez que com ele se cruzava nas zonas comuns do prédio, sempre em alta voz, afirmando: "andas a riscar os carros da garagem", "tens que pagar".
Importa apreciar e decidir.
Não há nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
À acusação proferida reagiu o arguido requerendo a abertura da instrução, negando os factos, alegando que no dia 7 de Julho de 2016, quando estava a regressar de uma consulta médica e à entrada da garagem comum do prédio onde ambos residem (assistente e arguido) se depara com um grupo de pessoas que o informam que algumas viaturas estacionadas na garagem coletiva tinham sido objeto de danos, inclusive a pertencente ao arguido, tendo sido um dos vizinhos, o Sr. C…, a presenciar em flagrante, o ora assistente, a riscar e a danificar as viaturas. Perante tais factos, e depois do ver o estado lastimável em que estava a sua viatura, acompanhado de outro vizinho o Sr. D…, dirigiu-se á fração onde reside o assistente participar os danos ocorridos. Que pelo facto apresentou queixa, inquérito com o NUIPC 1202/16.3PIPRT, da 2a secção do DIAP.
Vejamos.
Dispõe no n°.1 do art.° 308° do CPP que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho e não pronúncia.
O crime imputado é de difamação que está previsto no art.° 180° do Código Penal, segundo o qual "quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ele um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação em juízo, é punido ...".
A difamação, como a injúria, têm como bem jurídico duas ordens de interesses que se exprimem pela honra e consideração.
"Honra será a dignidade subjetiva da pessoa, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa possui, dizendo respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa-fé, a estima, a dignidade objetiva, ou seja, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.", cfr. Código Penal anotado, Simas Santos e Leal- Henriques, vol. II, pág. 317 e Ac. da Relação de Lisboa de 6-2-96, CJ tomo I, pág. 156.
O crime de difamação pode ser preenchido mediante as seguintes ações típicas:
- a imputação de um facto ofensivo (ainda que meramente suspeito).
- a formulação de um juízo de desvalor.
- a reprodução de uma imputação ou de um juízo.
Quanto ao elemento subjetivo, a orientação dos nossos tribunais superiores tem sido a de não exigir um dolo específico, um propósito de ofender a honra e consideração de alguém. Não será, assim, exigível a especial intenção de ofender alguém. Neste sentido, o Ac. STJ de 1-7-87, BMJ n° 369, pág. 593.
O legislador criminal consagrou, no n° 2 do art.° 180°, casos especiais de certas condutas que integrariam a previsão legal do n° 1, mas que, por terem subjacentes motivos sérios e de grande relevo, se devem considerar não puníveis.
Estará assim excluída a punibilidade quando:
- a imputação visar a realização de interesses legítimos.
- se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, em boa fé, como verdadeira (a boa fé estará afastada, segundo o n° 4 do mesmo artigo, quando o agente omitir os cuidados de informação acerca da verdade da imputação).
Estas duas circunstâncias são exigidas cumulativamente, para se verificar a exclusão da punibilidade.
A verdade é que a admissibilidade da prova da verdade das imputações funciona como regra nas hipóteses consagradas no n° 2 do preceito legal, como não puníveis.
Na esteira do Prof. Eduardo Correia, assenta na "ideia de que a paz social não deve ser conseguida com o sacrifício da verdade nas relações sociais, única base viável de uma paz autêntica entre os homens".
"A exceptio veritatis (exclusão da ilicitude penal por prova da verdade dos factos) é hoje aceite na maioria das legislações modernas, na medida em que oferece um controlo salutar pela opinião pública de comportamentos que se cuida censuráveis". Cfr. Código Penal anotado, Simas Santos e Leal - Henriques, vol. II, pág. 319.
Face a este enquadramento analisemos o caso concreto, nas suas diversas perspetivas.
De relevo inquestionável será a apreciação do carácter ofensivo da honra ou consideração dos factos imputados in casu.
É líquido que não é de relevar uma ofensa meramente relativa, sentida só pelo lesado, concretamente, e não idónea a produzir esse resultado em termos objetivos. Assim, só serão de integrar na previsão legal as imputações objetivamente ofensivas da honra e consideração.
Nos crimes em análise não se pune, pois, a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas apenas a dignidade individual da pessoa, expressa na honra e consideração que lhe são devidas. Tem que se retirar das expressões proferidas, um cariz ofensivo, em termos objetivos, tomando como paradigma o sentir geral da comunidade, a "consciência ético-social da comunidade histórica que há-de legitimar a decisão legislativa de incriminar uma conduta", nas palavras de Taipa de Carvalho, em "Condicionalidade sociocultural do Direito Penal", Coimbra, 1985, pág. 90 e ss.
"Para que um facto ou um juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devidas a qualquer pessoa, deve constituir comportamento objetiva e eticamente reprovável de forma que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando, assim, a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. E para avaliar, em concreto, da específica danosidade social da expressão proferida, tem de atender-se ao sentido comum das palavras usadas, mas também ao contexto geral em que foram proferidas para se aquilatar da sua gravidade e, consequentemente, da necessidade de intervenção do direito penal" - Ac. Rel. Porto de 07-11-2012, proc. 18515/11.3TDPRT, 4a secção, relator Dra. Elsa Paixão.
Neste contexto, o concreto o tema da discussão é a imputação do arguido ao assistente de "é ele que anda riscar carros na garagem".
Ora da prova produzida, documental e testemunhal, dúvidas não há de que indiciam os autos que:
- foi apresentada queixa contra o assistente, proc. n° 1202/16.3PIPRT, em que são ofendidos, além do arguido, C… e E…, por o mesmo ter riscado as respetivas viatura e que se encontra a correr tramites normais, cfr. fls. 109 a 123;
- as declarações das testemunhas ouvidas no âmbito desses autos enformam os factos expressos pelo arguido.
Ou seja, e concluindo-se, o que foi exprimido pelo arguido, como imputação de um facto ao assistente, assenta em prova, se não da verdade da imputação, pelo menos, de que a mesma seja tida, em boa-fé, como verdadeira. O que exclui a ilicitude do ato, citado n° 2 do art.° 180° do C P.
Consequentemente, nos termos e todo o exposto, não pronuncio o arguido F… pelos factos e crime de difamação imputado e ordeno o arquivamento do processo.
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Decidindo.
Nos termos do disposto no Art. 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não o feito a julgamento.
A pronúncia, como corolário da acusação, encontra-se definida no Art. 308º, nº 1, do mesmo diploma legal: se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz profere despacho de pronúncia, pelos factos respectivos, ou de não pronúncia, no caso contrário.
O conceito de "indícios suficientes" é-nos dado pelo Art. 283º, nº 2, ainda do Código de Processo Penal, sendo esta noção comum, quer à acusação, quer ao despacho de pronúncia: são suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles e em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
É assim para todos claro que a pronúncia – tal como a acusação – não exige uma certeza de condenação, apenas uma probabilidade razoável de condenação.
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Fazendo apelo ao que se escreveu no Ac. desta Relação, de 26.04.2006 (www.dgsi.pt, nº RP200604260546065): “um dos princípios estruturais do direito criminal é o da subsidiariedade (ou da mínima intervenção criminal), que implica que o apelo àquele só se legitima quando a tutela dos bens jurídicos não puder ser garantida por outras vias, com incidências menos drásticas para os direitos das pessoas, sejam elas estaduais ou privadas, destacando-se nestas a autotutela por banda dos concretos portadores dos bens jurídico-penais.
Estes considerandos aferem-se pela conduta da vítima, enquanto carente de tutela jurídica, designadamente em certas expressões da vida; e também pela acção do agente, para se apreciar da possibilidade de os factos praticados se revestirem de tipicidade, ou seja, para se verificar se estamos perante factualidade típica com natureza e índole criminal.
O tipo jurídico-penal, como se pode deduzir facilmente de sua própria denominação, é o modelo, o padrão de conduta que o Estado (legislador), através da lei, visa impedir que seja praticada ou, por outro lado, determina que seja levada a cabo por todos os que vivem sob sua tutela. Assim, o tipo é a descrição precisa do comportamento humano, feita pela lei penal; é um instrumento legal logicamente necessário e de natureza descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes.
Na mesma vertente, crime não é apenas um facto proibido pela lei; pelo conceito analítico, a doutrina examina o crime nos elementos de acção ou omissão típica, antijurídica e culpável; há juristas que acrescentam nesta definição o carácter de punibilidade da acção, e definem o crime como sendo a acção ou omissão típica, antijurídica, culpável e punível”.
Os elementos objectivos do tipo são aqueles que fazem referência à materialidade da infracção penal, cuja finalidade é fazer com que o agente fique ciente de todos os dados necessários à caracterização do ilícito penal, os quais, necessariamente farão parte do dolo – e logo, da culpa.
Da mesma forma, o núcleo do tipo é o verbo que, geralmente, descreve a conduta proibida pela lei penal; trata-se de um verbo transitivo com o seu objecto: v.g., “matar outrem”, “subtrair para si ou para outrem”, “injuriar”, “participar em rixa”, “detiver, ceder”, “difamar”, etc.
Todos os tipos, logicamente, não podem prescindir de seu núcleo, pois, se assim fosse, não saberíamos exactamente quais as condutas por eles determinadas.
Quer isto dizer que a interpretação da lei penal não foge aos cânones da interpretação geral da lei, sendo imprescindível considerar também o seu texto (elemento literal), usando para tal as regras da exegese e da hermenêutica.
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Como é consabido, o crime de difamação (previsto no Art. 180º do Código Penal) e o crime de injúria (previsto nos Arts. 181º e 182º, do mesmo diploma) protegem o bem jurídico “honra e consideração”, enquanto dignidade individual, sendo a honra um conceito interno e a consideração uma projecção externa da mesma; ambos estes crimes são essencialmente dolosos, não cabendo aqui a prática dos mesmos por negligência, dada a sua essência.
O Código Penal espanhol (que usa uma técnica diferente do nosso legislador, dando definições dos diversos crimes) enuncia o crime de difamação – não havendo diferença entre este e o de injúrias – como a acção ou expressão que lesam a dignidade de outra pessoa, menoscabando a sua fama ou atentando contra a sua própria estima (Art. 208º do Código Penal: este conceito anda, aliás, muito perto da lei penal portuguesa).
E a lei italiana (articolo 594, Ingiuria, Codice Penale) atribui a prática do crime de injúria a quem ofende a honra e o decoro de outra pessoa (tradução literal nossa): Codici Tascabili, 2007, pág. 361, com uma definição, em nota, dos conceitos de honra e decoro.
Como se escreveu no Ac. desta Relação, de 28.2.2007 (processo nº 0640513), difamação é o crime contra a honra que consiste em o agente imputar a outra pessoa, verbalmente ou por escrito, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou em reproduzir tal imputação ou juízo.
Tal como afirmava Beccaria, a palavra honra “é uma daquelas que serviu de base a extensos e brilhantes ensaios sem contudo lhe fixar um significado estável e permanente”: transportando esta asserção para os tempos actuais, dela se pode dizer que, a nível doutrinário e jurisprudencial, serve de base a longos enunciados teóricos, mas falha, por vezes, na ponderação, no caso concreto, da existência ou não de ofensa.
No nosso ordenamento jurídico-penal, a honra é tida como um bem jurídico complexo que inclui, quer a auto-avaliação pelo indivíduo do seu valor pessoal e qualidades morais, radicadas na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração públicas.
Fundamento essencial da honra é a inabdicável dignidade pessoal que pertence ao indivíduo desde o nascimento, daí decorrendo a pretensão jurídico criminalmente protegida de cada um, a que nem a sua honra interior, nem a sua boa reputação exterior sejam minimizadas ou desrespeitadas.
A honra nasce, assim, da apreciação do conjunto de relações interpessoais, representando a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa, no contexto das relações de comunicação e interacção social, em que é chamada a viver: Costa Andrade, citado no Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 605.
Deste sintético enunciado decorre que não basta que o visado, pelas imputações ou juízos, se considere ofendido, para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo de crime em causa: há que ponderar, perante as circunstâncias do caso real, a existência, ou não, de ofensa, bem como eventuais causas de exclusão de culpa ou de ilicitude.
Nesta direcção e com este desígnio, não esquecemos que julgar é também compreender; e compreender é ver por dentro as coisas, de forma desapaixonada, ainda que exista aquele toque de sentimento que, segundo alguns filósofos, nos ajuda a penetrar melhor no concreto e no individual (Ac. Rel. Lisboa, de 17.4.1988, Col. Jur., 2º, pág. 495, aqui citado pela sua actualidade).
Nesta senda, os crimes de difamação e de injúria contentam-se hoje com o chamado dolo genérico, afastando (ou não exigindo) o seu tipo legal o dolo específico enquanto especial direcção da vontade que se diferencia do primeiro (convivendo porém com ele e a ele acrescendo, nos crimes onde o mesmo é exigido).
Isto é, não se exige hoje, nestes crimes em concreto, a especial intenção de injuriar ou de difamar, bastando estar provado que a frase ou o escrito têm esse efeito final, qual seja o de violar a honra ou consideração do visado.
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No caso em apreço, escreveu-se na decisão recorrida: O legislador criminal consagrou, no n° 2 do art.° 180°, casos especiais de certas condutas que integrariam a previsão legal do n° 1, mas que, por terem subjacentes motivos sérios e de grande relevo, se devem considerar não puníveis.
Estará assim excluída a punibilidade quando:
- a imputação visar a realização de interesses legítimos.
- se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, em boa fé, como verdadeira (a boa fé estará afastada, segundo o n° 4 do mesmo artigo, quando o agente omitir os cuidados de informação acerca da verdade da imputação).
Estas duas circunstâncias são exigidas cumulativamente, para se verificar a exclusão da punibilidade.
A verdade é que a admissibilidade da prova da verdade das imputações funciona como regra nas hipóteses consagradas no n° 2 do preceito legal, como não puníveis.
Partindo destas premissas, atingiu-se a decisão final, que concluiu pelo afastamento da ilicitude, uma vez que os factos imputados – e trata-se de factos concretos e objectivos – podem ser, em boa-fé e com fundamento sério ser reputados como verdadeiros.
Desta feita, nos termos do disposto no Art. 180º, nº 2, alíneas a) e b), reunidos que estejam as duas circunstâncias ali previstas, a conduta não é punível.
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Nesta vertente, teremos de concordar com a decisão proferida, uma vez que os respectivos pressupostos se encontram cabalmente demonstrados (em sede de exceptio veritas):
Não esquecendo que os requisitos das alíneas a) e b) são cumulativos e sendo notório que estas regras terão notoriamente maior pendor no âmbito da imprensa ou da informação em geral, a sua amplitude é global e aplicável a qualquer pedaço de vida.
É oportuno recordar aqui o sumário do Ac. da Rel. de Évora, publicado no BMJ nº 460, a páginas 817, ainda totalmente actual: A causa de justificação prevista no nº 2 do Art. 180º do Código Penal apenas é aplicável à imputação de factos ou à reprodução da correspondente imputação, pelo que não abrange a formulação de juízos ofensivos, a atribuição de epítetos ou palavras a que se alude no crime de injúrias, bem como a imputação de factos genéricos ou abstractos.
Esta jurisprudência expressa o embrião da questão que aqui nos preocupa:
Em primeiro lugar, o arguido imputou ao assistente a prática de factos concretos, quais sejam os que representam os elementos objectivos de um crime de dano, factos nos quais ele acredita, sem hesitações.
Por outro lado, correm termos uns autos de inquérito de carácter penal, relativos à prática de um crime pelo assistente, inquérito esse que resultou de participação criminal de tais factos pelas alegadas vítimas, sendo uma delas o próprio arguido.
Em suma, tratando-se da denúncia de um crime às autoridades judiciárias, o arguido agiu no âmbito da realização de um interesse legítimo, qual seja a punição do autor de uma infracção de natureza criminal: tanto basta para preencher o requisito da alínea a) da norma citada.
Finalmente, o arguido imputou ao assistente acontecimentos que enformam e preenchem os elementos concretos e reais da prática de um crime punível pelo Código Penal, mencionando expressamente os factos materiais que constituem a natureza objectiva da infracção que pretende ver investigada e punida em sede judiciária (o que, aliás, ocorre).
Mais ainda, o arguido aduziu, aquando da manifestação verbal dos factos em questão, provas que se reputam como cabais e válidas, no sentido de levar o assistente a responder criminalmente pela prática de uma infracção de índole penal.
Isto é, o arguido, ao proferir de viva voz as expressões citadas, agiu com a intenção de realizar interesses legítimos e fê-lo ciente da veracidade de tal imputação, agindo assim em boa-fé.
Em conclusão, a conduta do arguido tem de ser compreendida no âmbito do nº 2 do Art. 180º do Código Penal, pelo que não é punível.
E deste modo, bem decidiu o Senhor Juiz, ao não pronunciar o arguido pelo crime de difamação (sendo certo que os factos representariam preferencialmente um crime do Art. 182º do Código Penal – o que, neste momento e atento o seu nº 2, redundaria na mesma solução jurídica).
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em negar provimento ao recurso do assistente.
Custas pelo recorrente, com taxa de Justiça fixada em 3 UC.
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Porto, 7.11.2018
Cravo Roxo
Horácio Correia Pinto