Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1143/21.2T8PNF-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: REQUISIÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP202304171143/21.2T8PNF-B.P1
Data do Acordão: 04/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 4ª. SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O poder dever atribuído ao tribunal de requisitar, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, informações ou quaisquer um dos documentos enunciados na norma, a organismos oficiais, às partes ou a terceiros, só deve ser exercido quando se considere que são “necessários ao esclarecimento da verdade” (art.º436/1/2). Ou seja, absolutamente necessários, e portanto essenciais ao esclarecimento da verdade.
II - Este grau de exigência prende-se com princípio da proibição da prática de actos inúteis estabelecido no art.º 130º do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1143/21.2 T8PNF -B.P1
SECÇÃO SOCIAL



ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel, AA instaurou contra A..., S.A, a presente acção declarativa, com processo especial, emergente de acidente de trabalho , pedindo que julgada procedente seja esta condenada a pagar-lhe o seguinte:
1 – O capital de remição da pensão anual €210,93, nos termos do disposto no art. 48º, no 3, alínea c), da Lei 98/2009, num total de €2.429,49;
2 - A quantia de €477,59 a título de diferenças de indemnização pelo período de incapacidade temporária sofrida, nos termos do disposto no art. 48º, nº3, alínea d) e e), da Lei no 98/2009 de 04 de setembro;
3 - A quantia de €24,00 gasta com deslocações obrigatórias a Tribunal e ao gabinete médico-legal;
4 - Juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias referidas e até integral pagamento.
Alegou, no essencial, que no dia 2 de julho de 2020, cerca das 16.00 horas, foi vítima de um acidente, em Amarante, quando exercia as funções de empregada de limpeza, sob as ordens e direção da entidade empregadora B..., CRL. Auferia à data a retribuição anual ilíquida de €635,00 X 14 + €104,94X11, num total anual de €10.044,34.
A entidade empregadora havia transferido para a Ré Seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho, pela totalidade da retribuição da Autora.
O acidente ocorreu quando a Autora, ao proceder a limpezas, sofreu uma queda, que lhe provocou lesão ao nível do ombro esquerdo, em consequência direita e necessária da qual Autor esteve 12 dias em situação de incapacidade temporária absoluta para o trabalho, bem assim como 119 dias de incapacidade temporária parcial para o trabalho, fixada a 20%, pelas quais a Ré pagou-lhe a quantia de €212,03.
Em consequência das lesões sofridas por causa do acidente, apresenta ainda uma incapacidade parcial permanente, que no exame médico legal realizado na fase conciliatória dos autos se fixou em 3%, tendo sido atribuída a alta a 10 de novembro de 2020.
Realizada a Tentativa de Conciliação, a 7 de dezembro de 2021, a Autora não concordou com o coeficiente de desvalorização atribuído pelo perito do Gabinete Médico – Legal de Penafiel, fixado em 3%. No entanto, a Autora agora aceita tal coeficiente de desvalorização. Aceita ainda a data da alta atribuída na perícia médico-legal, reclamando assim a quantia de €477,59, a título de diferenças de indemnização pela incapacidade temporária sofrida. Reclama ainda o pagamento do capital de remição da pensão anual de €210,93, devida a partir de 11 de novembro de 2020, calculada nos termos do disposto no art. 48º, nº3, alínea c), da Lei no 98/2009, bem como €24 a título de despesas de deslocações obrigatórias a este Tribunal.
Na tentativa de conciliação, a Ré Seguradora aceitou a existência de contrato de seguro, pela retribuição referida, tal como aceitou a existência e caraterização do acidente atrás descrito como acidente de trabalho. No entanto, não aceitou o nexo de causalidade entre o evento participado e as lesões apresentadas pela sinistrada, nem o grau de incapacidade permanente atribuído, tal como não aceitou os períodos de incapacidade temporária atribuída à Autora, nos moldes referidos no ponto 7 desta petição inicial, alegando que a Autora não sofreu qualquer desvalorização, com pré-existência de alterações degenerativas incipientes acrómio-claviculares.
No entanto, até à data do acidente, a Autora nunca apresentou, nem foi tratada a qualquer lesão ou patologia degenerativa, o que desde já se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 11º, nº1 e 2, da lei no 98/2009, de 4 de setembro.
A Ré, notificada para o efeito, veio contestar. Contrapõe, no essencial, que examinada nos seus serviços clínicos, na sequência da consulta da especialidade de ortopedia, a A foi submetida a exames de imagem ao ombro esquerdo e pé. Face ao exame clínico, conjugado com aqueles elementos de diagnóstico, concluíram os seus peritos que a A. não apresentava qualquer evidência de lesão traumática nem no ombro, nem nos membros inferiores, tendo-lhe sido dada alta em 17/7/2020.
Porém, em 16/10/2020 a A. voltou aos seus serviços invocando recaída, sendo novamente examinada e submetida a novos exames de maior acuidade (RMN). Ao nível do ombro esquerdo, apresentava alterações degenerativas quer ao nível acrómio-clavicular (mais incipientes), quer ao nível gleno-umeral traduzidas em edema por sinovite/capsulite com degeneração ligamentar em várias estruturas da coifa (supra-espinhoso, sub-escapular e longa porção do bicípite, sem qualquer evidencia de trauma. Tratam-se de alterações compatíveis com doença natural alheia ao evento descrito.
Por isso, ao ser examinada no INML não apresenta qualquer limitação, mas apenas dor ao esforço compatível com as referidas alterações degenerativas. Ademais não apresenta quaisquer limitações na mobilidade do ombro o que levou o perito do INML a, descrever nas lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento, tão só que consegue levar a mão ao nível da cabeça, do ombro oposto e da região lombar. Tal descritivo traduz uma situação de um ombro com mobilidade normal, não apresentando limitação ou alteração pelo que se conclui pela inexistência de lesão e sequela, o que torna até incongruente a fixação a final de uma IPP de 3% pelo Cap.I,3,2,7,3.a da TNI que pressupõe, precisamente, limitações dessas mobilidades.
Por isso mesmo, não se conforma a ré com o resultado desse exame e vai requerer junta médica.
Com a contestação requereu a realização de Junta Médica de Ortopedia, apresentando quesitos para esse efeito.
Formulou, ainda, requerimentos de prova, entre eles o seguinte:
III Documental
Requer-se, com identificação e nif do autora se oficie a:
a) ARS Norte, para que junte aos autos todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos, para prova dos antecedentes e auxilio aos peritos da junta médica na determinação do nexo causal».
Findos os articulados, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador, no âmbito do qual procedeu à seleção dos factos assentes e a enunciação dos temas de prova.
Ordenou, ainda, o desdobramento dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 131º, n.º 1, al. e) e 132º, nº1, do Cód. Proc. Trab.

I.2 Subsequentemente, proferiu despacho, decidindo quanto aos requerimentos de prova e designando data para realização da audiência de julgamento.
No âmbito desse despacho, pronunciou-se sobre aquele requerimento da Ré, Indeferindo-o.

I.3 Não concordado com essa decisão, a Ré interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. Finalizou as alegações com as conclusões seguintes: 1) Andou mal a Mma Juiz a quo com a prolação do despacho pelo qual rejeitou o meio de prova requerido, dirigida à ARS do Norte, obviando à descoberta da verdade.
2) O requerimento qualificado como “genérico e vago”, identifica a autoridade territorialmente competente, a identidade da A. e circunscreve os registos clínicos solicitados aos exclusivamente referentes à assistência e tratamento realizado ao seu ombro esquerdo, nos últimos dez anos, exigindo decisão em contrário.
3) O Tribunal apenas dispõe dos dados clínicos da A. resultantes da assistência médica prestada pela Recorrente e, portanto, posteriores ao alegado evento qualificado pela A. como acidente de trabalho.
4) Os demais dados clínicos referentes à A., como dados pessoais sensíveis que são, são inacessíveis à Recorrente, apenas podendo ser acedidos e juntos pelos organismos oficiais, em cumprimento de ordem judicial.
5) Foram identificados como objeto do litígio a caracterização ou não do alegado evento como acidente de trabalho, e enunciados como temas de prova apurar se “as sequelas que a Autora apresenta no ombro esquerdo não são contemporâneas ou consequentes ao acidente nem foram agravadas por este, sendo antes de origem degenerativa”.
6) A determinação ou não do nexo causal das lesões alegadas pela A. integra o objeto da perícia médico legal realizada por um colégio de médicos, os quais apenas se encontram instruídos com os boletins de avaliação e de alta da Recorrente.
7) A Mma a quo onera a contraparte com a identificação dos eventuais estabelecimentos de saúde que a Autora houvera frequentado para tratar as patologias do ombro – o que é legalmente impossível – obstando à produção de prova de factos essenciais.
8) A rejeição do meio de prova requerido impediu que as partes produzissem a prova dos factos que alegaram e que necessitavam de prova, que o colégio pericial se instrua com os dados clínicos possíveis e que o Tribunal decida por referência à justa composição do litígio, ao arrepio da lei processual civil.
9) Deve o referido despacho ser anulado e substituído por um outro que ordene a notificação da ARSN para a obtenção do meio de prova nos termos requeridos.
10) Com a prolação do despacho do qual se recorre, a Mma Juiz a quo violou as normas constantes dos artigos 7.º, n.º4, 410.º, 411.º, 413.º, 417.º, n.º 1, 432.º, 436.º do Código de Processo Civil e art.º 342.º do Código Civil.
NESTES TERMOS E MAIS FUNDAMENTOS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDA PROCEDÊNCIA AO PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO E, CONSEQUENTEMENTE, SER ORDENADA A OBTENÇÃO DO MEIO DE PROVA NOS TERMOS REQUERIDOS, DEVENDO SER A JUNTA MÉDICA REALIZADA CANCELADA, E OS SENHORES PERITOS MÉDICOS MUNIDOS DA DOCUMENTAÇÃO CLÍNICA DA AUTORA, PARA REALIZAÇÃO DE JUNTA MÉDICA DEVIDAMENTE INSTRUÍDA E DOCUMENTADA, SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TRÂMITES LEGAIS, POR SER DE INTEIRA.

I.4 A A., com o patrocínio do Ministério Público, apresentou contra-alegações que sintetizou nas conclusões seguintes:
1. Realizada a tentativa de conciliação, no âmbito dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 108º e 112º do Código de Processo de Trabalho, ficou consignado, no respetivo auto, no que agora interessa, por parte da Autora “Que no dia 02 de Julho de 2020, pelas 16:00 horas, em Amarante, foi vítima de um acidente de trabalho, quando exercia as funções de empregada de limpeza, sofreu uma queda, de que resultou uma lesão ao nível do ombro esquerdo. Auferia a retribuição anual de €635,00x14 + €104,94 x 11 (€10.044,34), trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de B..., CRL, Endereço: Rua ..., ... Amarante, cuja responsabilidade se Encontrava integralmente transferida para a Seguradora”.
2. Em tal diligência, por parte da legal representante da Companhia de Seguros, na referida tentativa de conciliação, foi dito que “Aceita a transferência salarial de €635,00x14 + €104,94 x 11. Aceita a existência de um acidente como de trabalho. Aceita que à sinistrada foi dada alta em 17-07-2020, recaiu em 16-10-2020 voltando a ser atribuída alta em 10-11-2020, como curada sem qualquer grau de desvalorização. Aceita que a sinistrada se encontra curada sem qualquer grau de desvalorização com preexistência (alterações degenerativas incipientes acrómio-claviculares). Face ao exposto nada aceita pagar de pensão e/ou indemnização à sinistrada, pelo que não se concilia”.
3. Instaurada a ação, a Ré, para além de contestar as consequências médico legais de tal acidente, impugnou a existência de acidente e a sua consideração como de trabalho;
4. Para além de indicar prova testemunhal, a Ré requereu prova pericial, com realização de junta médica de ortopedia e prova documental, a saber “todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos (sublinhado nosso), para prova dos antecedentes e auxilio aos peritos da junta médica na determinação do nexo causal”;
5. Realizada a junta médica, os peritos, por unanimidade, decidiram que a Autora não apresenta qualquer grau de incapacidade permanente, mas admitiram um período de incapacidade de 11 dias de ITA e 118 de ITP, a 20%, por agravamento temporário da sintomatologia dolorosa e regresso ao estado anterior ao evento participado, não colocando assim dúvidas de causalidade, face à descrição do acidente e à incapacidade temporária referida;
6. No despacho que determina a realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu ainda indeferir a prova documental requerida pela Ré, fundamentando tal indeferimento por considerar genérico e vago, sendo certo que, de acordo com as regras da repartição do ónus da prova e atento o disposto nos artigos 423º e ss., incumbe à Ré seguradora identificar concretamente os estabelecimentos de saúde que disponham de elementos clínicos que interessem à decisão dos presentes autos, com indicação do evento a que respeitam, dando assim integral cumprimento à identificação daqueles elementos, por forma a permitir a requisição dos mesmos, nos termos do disposto no artigo 436º do Código de Processo Civil, e não, como o faz, pretender que o Tribunal diligencie junto de entidades como a ARS NORTE, nos moldes requeridos, substituindo-se à Ré Seguradora no carrear para os autos documentos que nem sequer está demonstrado nos autos que existem.
7. Concorda-se com o despacho judicial agora colocado em crise, uma vez que, para além das razões aduzidas no mesmo, entende-se ainda que tais elementos de prova não se afiguram como necessários, face aos registos clínicos já juntos aos autos e, sobretudo, às conclusões do exame por junta médica, da especialidade de ortopedia, que consentem apenas “um agravamento temporário da sintomatologia dolorosa e regresso ao estado anterior ao evento participado”.
8. Acresce ainda que, a prova pedida pela Ré, nada mais, nada menos, que todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos, afigura-se-nos desproporcional, face ao período de tempo em causa.
9. Finalmente, entendemos ser de considerar ainda o valor probatório da perícia médica, enquanto prova pericial. Desta forma, atenta a natureza técnica da matéria em análise, a decisão proferida pelo juiz relativamente à fixação da incapacidade para o trabalho corresponde, em regra, àquela que foi atribuída pelos peritos médicos que intervieram no processo, em exame colegial, presidido pelo próprio juiz do processo. Foi o que justamente aconteceu no caso dos autos, tendo a sentença sido proferida, nos termos do disposto no art. 140º, nº2, do Código de Processo de Trabalho, em 30 de agosto de 2022.
Pelo exposto, entendemos que a douta decisão recorrida deve ser mantida, nos termos enunciados, e assim se fazendo inteira justiça.

I.5 Sendo a sinistrada patrocinada pelo Ministério Público, não houve lugar à emissão do parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT.

I.6 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se a inscrição do processo em tabela para ser submetido a julgamento.

I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], coloca-se para apreciação saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito ao indeferir o requerimento de prova formulado pela Ré, pedindo que fosse determinada a notificação da “ARS Norte, para que junte aos autos todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos, para prova dos antecedentes e auxilio aos peritos da junta médica na determinação do nexo causal”.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes são os que constam do relatório..

II.2 Motivação de direito
A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por ter indeferido o requerimento de prova que formulou na contestação, pedindo que fosse determinada a notificação da “ARS Norte, para que junte aos autos todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos, para prova dos antecedentes e auxilio aos peritos da junta médica na determinação do nexo causal”.
Pronunciou-se o tribunal como segue:
Indefiro o requerido pela Seguradora no ponto III do seu requerimento probatório de fls. 52 verso, por considerarmos que o requerimento em causa é genérico e vago, sendo certo que, de acordo com as regras da repartição do ónus da prova e atento o disposto nos artigos 423º e ss., incumbe à Ré seguradora identificar concretamente os estabelecimentos de saúde que disponham de elementos clínicos que interessem à decisão dos presentes autos, com indicação do evento a que respeitam, dando assim integral cumprimento à identificação daqueles elementos, por forma a permitir a requisição dos mesmos, nos termos do disposto no artigo 436º do Código de Processo Civil, e não, como o faz, pretender que o Tribunal diligencie junto de entidades como a ARS NORTE, nos moldes requeridos, substituindo-se à Ré Seguradora no carrear para os autos documentos que nem sequer está demonstrado nos autos que existem”.
Alega a recorrente, no essencial, o seguinte:
i) O requerimento qualificado como “genérico e vago”, identifica a autoridade territorialmente competente, a identidade da A. e circunscreve os registos clínicos solicitados aos exclusivamente referentes à assistência e tratamento realizado ao seu ombro esquerdo, nos últimos dez anos, exigindo decisão em contrário.
ii) O Tribunal apenas dispõe dos dados clínicos da A. resultantes da assistência médica prestada pela Recorrente e, portanto, posteriores ao alegado evento qualificado pela A. como acidente de trabalho. Os demais dados clínicos, como dados pessoais sensíveis que são, são inacessíveis à Recorrente, apenas podendo ser acedidos e juntos pelos organismos oficiais, em cumprimento de ordem judicial. A determinação ou não do nexo causal das lesões alegadas pela A. integra o objeto da perícia médico legal realizada por um colégio de médicos, os quais apenas se encontram instruídos com os boletins de avaliação e de alta da Recorrente
iii) A decisão onera a contraparte com a identificação dos eventuais estabelecimentos de saúde que a Autora houvera frequentado para tratar as patologias do ombro – o que é legalmente impossível – obstando à produção de prova de factos essenciais.
iv) A rejeição do meio de prova requerido impediu que as partes produzissem a prova dos factos que alegaram e que necessitavam de prova, que o colégio pericial se instrua com os dados clínicos possíveis e que o Tribunal decida por referência à justa composição do litígio, ao arrepio da lei processual civil.
Por seu turno, contrapõe a recorrida, também no essencial, o seguinte:
- Concorda-se com o despacho judicial, uma vez que, para além das razões aduzidas no mesmo, entende-se ainda que tais elementos de prova não se afiguram como necessários, face aos registos clínicos já juntos aos autos e, sobretudo, às conclusões do exame por junta médica, da especialidade de ortopedia, que consentem apenas “um agravamento temporário da sintomatologia dolorosa e regresso ao estado anterior ao evento participado”.
- A prova pedida pela Ré, nada mais, nada menos, que todos os registos clínicos, de consultas, ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS e/ou convencionados, exames e prescrição medicamentosa, relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos, afigura-se-nos desproporcional, face ao período de tempo em causa.
- Deve considerar-se ainda o valor probatório da perícia médica, enquanto prova pericial.
II.2.1 Estabelece o art.º 436.º do CPC, com a epígrafe “Requisição de documentos”, o seguinte:
1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
2 - A requisição pode ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros.
A propósito deste normativo, em entendimento que acompanhamos, observa-se no Ac. do TRC de 05-12-2012 [Proc.º 771/10.6T2OBR-B.C1, Desembargadora Albertina Pedroso, disponível em www.dgsi.pt] que “Da alteração introduzida ao disposto no artigo 535.º do CPC pelo DL n.º 329-A/95, interpretada em harmonia com o disposto nos artigos 265.º, n.º 3, e 266.º, n.º 4, do CPC, resulta que a referida previsão legal consagra agora um verdadeiro poder-dever do juiz, uma “incumbência” do tribunal, de tal modo que o seu não exercício faculta à parte requerente a possibilidade de recorrer do despacho de indeferimento”.
Contudo, cabe assinalar que esse poder dever atribuído ao tribunal de requisitar, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, informações ou quaisquer um dos documentos enunciados na norma, a organismos oficiais, às partes ou a terceiros, só deve ser exercido quando se considere que são “necessários ao esclarecimento da verdade. Ou seja, parafraseando Alberto dos Reis, em entendimento que se mantém válido “absolutamente necessários, e portanto essenciais[Código de Processo Civil anotado, Volume IV, Reimpressão, Coimbra Editora, 1987, p 52].
Refira-se, ainda, que a expressão “necessários ao esclarecimento da verdade”, prende-se com a prova dos factos alegados pelas partes. Tratando-se de um meio de prova, a sua função é a “demonstração da realidade dos factos” (art.º 341.º do CC), ou seja, o objectivo é alcançar a verdade material subjacente à relação material controvertida configurada pelo quadro factual alegado pelas partes. O juiz quando faz a requisição, por sua iniciativa ou a requerimento de uma das partes, tem em vista esclarecer determinado facto necessário à descoberta da verdade, que é o mesmo que dizer, à boa decisão da causa. A diligência é feita em proveito da parte que tiver alegado o facto e sobre quem recai o ónus de prova, nos termos gerais do art.º 342.º do CC.
A reter, também, que o facto do Juiz ter indeferido um determinado requerimento da parte apresentado ao abrigo do art.º 436.º 1, do CPC, não obsta a que por sua iniciativa lance mão dessa disposição em momento ulterior, caso esse procedimento venha então a revelar-se necessário ao esclarecimento da verdade.
Revertendo ao caso, na tentativa de conciliação Recorrente Ré rejeitou pagar à sinistrada qualquer pensão ou indemnização, na consideração de esta se “encontra[r] curada sem qualquer grau de desvalorização com pré existência (alterações degenerativas incipientes acrómio-claviculares)”.
Reiterou essa posição na contestação e, em consonância, entre os quesitos que apresentou para serem submetidos aos senhores peritos médicos no exame por junta médica, constam os seguintes:
2) A A. à data padecia já de alterações degenerativas desse ombro, sem relação com nenhum evento de 1)?
3) O exame de RMN de 16/10/2020, revela com rigor médico-legal alguma lesão traumática relacionável com evento na datas em 1)?
A recorrente justificou o requerimento referindo ter em vista a “prova dos antecedentes e auxilio aos peritos da junta médica na determinação do nexo causal”.
O exame pericial por junta médica é um meio de prova, de realização obrigatória na tramitação do processo especial emergente de acidente de trabalho sempre que esteja em causa determinar a incapacidade do sinistrado, quer seja a única ou uma das questões controvertidas, inscrevendo-se no âmbito da denominada prova pericial e regendo-se para além do disposto no art.º 139.º do CPT, também pelas normas que no Código de Processo Civil disciplinam este meio de prova (artigos 467.º e seguintes do CPC).
A prova pericial tem por objecto, conforme estatuído no art.º 388.º do CC “(..) a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” ou quando os factos “relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”. A sua função é a de “auxiliar do tribunal no julgamento da causa, facilitando a aplicação do direito aos factos”, não impedindo tal que seja “um agente de prova e que a perícia constitua um verdadeiro meio de prova[Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 578].
No âmbito do exame pericial, caso os Senhores peritos o entendam necessário como condição para poderem cabalmente concretizar o objecto da perícia, podem requerer ao juiz, que preside a essa perícia [art.º 139.º 1, CPT], que determine a realização de exames de diagnóstico complementares ou que solicite informações de natureza médica às entidades que delas disponham.
Não deve também esquecer-se que nos termos do mesmo art.º 139.º do CPT, o juiz não só pode formular quesitos se a dificuldade ou a complexidade da perícia o justificarem [n.º6], como para além disso, “(..) se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos” [n.º7].
Por outro lado, deve também ter-se presente que previamente a esse acto pericial colectivo, na fase conciliatória há sempre lugar a um exame pericial singular, de realização obrigatória, no qual se o entender necessário o perito médico pronunciar-se-á no sentido de serem realizados exames complementares de diagnóstico, ou pela realização de avaliação por médico especialista ou, também, pelo pedido de elementos informativos de natureza médica relevantes para a perícia. Isto, note-se, se os exames de diagnóstico já disponíveis, cuja realização terá sido determinada pelos serviços clínicos da seguradora responsável durante o acompanhamento médico prestado ao sinistrado, não forem suficientes para uma avaliação esclarecedora.
No caso em concreto, como a recorrente refere na sua contestação, no âmbito desse acompanhamento pelos seus serviços clínicos, a autora foi inicialmente submetida a exames de imagem ao ombro esquerdo e, posteriormente, após a recaída, realizou novos exames de maior acuidade (RMN). Foi com base nesses elementos de diagnóstico que os seus serviços entenderam que a autora apresentava as alterações degenerativas que enuncia, sem qualquer evidência de trauma, compatíveis com doença natural alheia ao evento descrito.
Servem estas considerações para se perceber o quadro em que o Juiz, ao ser confrontado com um requerimento formulado pelas partes ao abrigo do art.º 436.º do CPC, como acontece no caso, deve aferir se as “informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos”, cuja requisição a “organismos oficiais, às partes ou a terceiros”, é pretendida, são “necessários ao esclarecimento da verdade”, ou seja, “absolutamente necessários, e portanto essenciais”, justificando-se o atendimento do requerido.
De referir, que este grau de exigência prende-se com princípio da proibição da prática de actos inúteis decorrente do art.º 130º do CPC, ao dispor que “Não é lícito realizar no processo atos inúteis”.
Decompondo o requerimento da Ré, pretendeu esta que o tribunal a quo determinasse à ARSNorte, a junção aos autos de “todos os registos clínicos [..]relativos a assistência prestada à A. relativa ao ombro esquerdo, nos últimos 10 anos”, respeitantes ao seguinte:
-“de consultas”;
-“ambulatório e internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS”;
- “e/ou convencionados”
- “exames e prescrição medicamentosa”.
Como refere o Tribunal a quo, estamos perante um requerimento manifestamente “genérico e vago”.
Tenha-se presente, desde logo, que as ARS, I. P., exercem as suas atribuições por (grandes) áreas, e dispõem de serviços desconcentrados designados por agrupamentos de centros de saúde [art.º 2.º do DL n.º 22/2012, de 30 de Janeiro. No caso da ARSNorte estão abrangidos 21 agrupamentos de centros de saúde, numa lista que integram desde o ACeS Alto Trás-os-Montes – Alto Tâmega e Barroso até ACeS Tâmega III – Vale do Sousa Norte [https://www.arsnorte.min-saude.pt/agrupamentos-de-centros-de-saude/].
Como é evidente, não há qualquer concretização nem objectividade no requerido. Mais, como assinala a recorrida, a Ré formulou uma pretensão claramente desproporcionada, quer quanto ao tipo de elementos que pretende – “de consultas”; “ambulatório”; “internamento hospitalar em estabelecimentos do SNS”; “e/ou convencionados”; “exames e prescrição medicamentosa” – quer quanto ao período de tempo que definiu, diga-se, sem qualquer explicação, “nos últimos 10 anos”.
Acresce, como também assinala a recorrida, que nem tão pouco se sabe se porventura existirão registos clínicos respeitantes a assistência prestada à A. relativamente ao ombro esquerdo.
Convenhamos, é claramente uma pretensão destituída de qualquer razoabilidade e, como cremos ser de elementar compreensão, dificilmente exequível. Não faria qualquer sentido o Tribunal a quo confrontar a ARSNorte com tal solicitação, fazendo recair sobre essa entidade o ónus de a descodificar e lhe dar um sentido útil e exequível. E, como referido na decisão recorrida, nem tão pouco cabe ao Tribunal a quo substituir-se à parte para suprir o seu erro.
O que seria razoável, adequado e proporcionado, se porventura a necessidade dessa informação se configurasse como essencial, passaria num primeiro passo básico, por obter informação junto do Centro de Saúde a que pertence a sinistrada, a ser prestada pelo médico de família. Naturalmente, após prévia determinação para aquela informar nos autos qual a entidade em concreto, bem como a identidade do médico de família. A recorrente não poderia obter por si essas informações, mas poderia ter formulado requerimento nesse sentido, ficando a pretensão sujeita à apreciação e decisão do tribunal, à luz do estabelecido no art.º 436.º do CPC.
Como decorre do que acima expusemos, o Tribunal a quo só deveria atender a requerido se concluísse que o pretendido pela recorrente era necessário, no sentido de essencial, ao esclarecimento da verdade material. Pelas razões apontadas, não era de todo o caso. Pelo contrário, redundaria na prática de um acto claramente inútil.
Por último, como também decorre do já explicado, diga-se, ainda, que se porventura viesse a perfilar-se a necessidade de se obterem informações clínicas para apurar ou esclarecer a existência de antecedentes relacionados com eventual doença natural ao nível do ombro, sempre o Tribunal a quo podia determinar o que fosse necessário para as obter, quer por sua iniciativa quer face a indicação nesse sentido pelos senhores peritos médicos, designadamente, procedendo nos termos que acima exemplificámos. Não tem, pois, razão recorrente quando alega, sem sequer adiantar argumentos concretos que demonstrem o afirmado, que a “rejeição do meio de prova requerido impediu que as partes produzissem a prova dos factos que alegaram e que necessitavam de prova”.
Concluindo, improcede o recurso.

IV. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC).


Porto, 17 de Abril de 2023
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes