Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10935/14.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
Nº do Documento: RP2018071110935/14.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 142, FLS 2-21)
Área Temática: .
Sumário: I - A garantia bancária autónoma, ainda que sem tipificação específica no Código Civil, mas que o princípio da liberdade contratual nele acolhido – artigo 405º - consente e atribui relevância jurídica, integra a categoria das garantias pessoais.
II - Ao contrário da fiança, e nisso residindo o principal elemento de distinção, esta garantia é autónoma, significando-se com isso que não tem natureza acessória em relação à obrigação garantida, sendo devida mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato-base.
III - Na garantia autónoma à primeira solicitação, ou on first demand, a obrigação do garante é estabelecida automaticamente perante a primeira exigência de cumprimento do beneficiário, sem que o garante possa opor quaisquer excepções a essa exigência de cumprimento, a qual deve satisfazer de imediato, desde que respeitados os termos estipulados para a exigência da garantia.
IV - Apesar da automaticidade reconhecida à denominada garantia à primeira solicitação, essa automaticidade não é absoluta, antes consentindo excepções que justificam a recusa do pagamento exigido, podendo/devendo o banco recusar-se a pagar a garantia, em caso de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 10935/14.8T8PRT.P1
Comarca do Porto – Instância Central – 1.ª Secção Cível – Juiz 2

Relatora: Judite Pires
1ºAdjunto: Des. Aristides de Almeida
2ª Adjunta: Des. Inês Moura

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. B..., SA, NIPC ........., com sede no ..., freguesia ..., ....-... Braga, propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra C..., SA, com sede na ..., n.º .., ....-... Porto, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e pessoa colectiva ........., pedindo que seja esta condenada a pagar-lhe a quantia de 1.131.300,00 euros, acrescida de juros, spreads, comissões e outros encargos bancários que representam o valor do empréstimo para reintegração do valor de garantia, vencidos desde 27 de Janeiro de 2014 até efectivo e integral pagamento, fundamentando o seu pedido, em resumo e no essencial, em crédito emergente de garantia autónoma cujo pagamento a ré accionou em momento em que a mesma havia já caducado pelo cumprimento da obrigação garantida e decurso do respectivo prazo, tudo como melhor consta da sua petição inicial, que se dá por reproduzida.
Contestou a ré, também em resumo e no essencial, impugnando a factualidade descrita pela autora, nomeadamente por não lhe ter sido comunicado o cumprimento da obrigação garantida, recepção provisória da obra que, aliás, se não mostrava concluída, por incumprimento contratual da autora, o que levou ao accionamento da referida garantia, tudo também como melhor consta da sua contestação de fls. 142 e seguintes, articulado que igualmente se dá por reproduzido.
Foi proferido despacho saneador do processo (acta de fls. 352), com a identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, prosseguindo a acção para julgamento.
Concluído este, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, por provada, condenou a ré C..., S.A., a pagar à autora B..., SA, a quantia de 1.131.300,00 euros (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento.
2. Não se conformando com tal sentença a ré, dela interpôs recurso para esta Relação, admitido como de apelação, findando as suas alegações com as seguintes conclusões:
Impugnação da matéria de facto:
Primeira: Muito embora na sentença recorrida se tenha dado como reproduzido o texto da garantia bancária emitida – constante a fls 50 e 51 dos autos – e se tenha realçado algumas partes da mesma, conforme o constante das alíneas d) a h) do elenco dos factos provados, impunha-se que, em vez disso, o tribunal pura e simplesmente desse como provado o que consta do seu teor, reproduzindo-o nos seus precisos termos (e não apenas dando o respectivo documento por reproduzido) considerando-se provado o seguinte:
- Em 02 de Dezembro de 2010 foi emitido pelo D..., S.A., um documento com o seguinte teor: “GARANTIA BANCÁRIA .......... Em nome a pedido de B..., S.A., contribuinte no ........., com sede em ..., em Braga, doravante designado por “Empreiteiro”, o D..., S.A., sociedade aberta, com sede em Lisboa, na ..., ..., com o capital social integralmente realizado de Eur: 3.499.999.999,00 e matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, com o número único de matrícula e de pessoa colectiva ........., doravante abreviadamente designado por “Banco”, presta a presente garantia bancária “On First Demand”, autónoma, irrevogável, automática e à primeira solicitação, a favor do C..., S.A., com sede na ..., .., ....-... Porto, capital social de Eur. 4.694.6000.000,00, matriculada na Conservatória do Registo Predial do Porto, com o número único de matrícula e de identificação fiscal ........., de aqui em diante designado por “C1...”, a qual confere a este o direito ao pagamento consubstanciado na presente garantia bancária, pelo montante máximo de Eur. 1.131.300,00 (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), correspondente ao depósito definitivo, e se destina a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pelo Empreiteiro ao abrigo do contrato de empreitada de “Trabalhos de Acabamentos e Instalações Especiais do Edifício de Ampliação da Clínica E..., incluindo, mas não apenas, a boa execução da obra contratada ao abrigo da empreitada contratada. O Banco obriga-se, assim, a pagar ao C1..., ao abrigo e nos termos da presente garantia bancária, de imediato e à primeira solicitação do C1... (On First Demand), o montante que este lhe solicitar, numa ou em mais vezes, por escrito, e até ao montante global de Eur. 1.131.300,00 (Um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros). O Banco aceita definitiva, irrevogável e incondicionalmente que não terá, nem poderá apreciar, sob qualquer circunstância, os motivos, a legalidade, ou a justiça dos pedidos efectuados pelo C1..., nem os motivos ou fundamentos da sua reclamação, renunciando, assim, expressamente e sem reservas, ao benefício da excussão prévia e ao direito de contestar a validade do pedido efectuado do respectivo pagamento que tenha que realizar nos termos da presente garantia, limitando-se, em consequência, a realizar os pagamentos no prazo e condições aqui previstos e independentemente de autorização, concordância e invocação de quaisquer razões pelo Empreiteiro ou terceiro. A presente garantia bancária é válida desde o dia 2 de Dezembro de 2010 e até à conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada, a qual deverá ocorrer com a recepção provisória daquelas obras, comunicada ao C..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal da obra caso exista. Lisboa, 02 de Dezembro de 2010. D..., S.A. (assinaturas)”.
Segunda: Tal, ao que se nos parece, é relevante para que se venha a considerar a garantia no seu texto integral, como impõe a sua respectiva característica de “literalidade”, e designadamente ter-se em consideração a mesma garantia se destinava a garantir o bom e integral cumprimento, por parte da autora, da empreitada em causa, incluindo, a boa execução da obra, mas não apenas isso.
Terceira: Na alínea gg) do elenco dos factos provados, considerou-se provado que “A Autora não assinou o Auto de Recepção Provisória”, quando da prova carreada para os autos, e em especial do depoimento da testemunha F..., resulta que a não subscrição/ assinatura do auto de recepção provisória por parte da Autora foi resultado de uma verdadeira recusa desta na respectiva subscrição, devendo, por isso, a redação daquela alínea gg) ser substituída pela seguinte: “gg) O representante da autora no acto de vistoria e elaboração do auto de recepção provisória, Engº G..., recusou-se a assinar tal auto de recepção provisória alegando não ter autorização da autora para tal”.
Quarta: Por ser pertinente e relevante para a decisão da causa, deve ser aditado ao elenco dos factos provados, igual e essencialmente com base no depoimento da testemunha F..., o seguinte facto: “Na altura da elaboração do auto de recepção provisória, foi anexado a este um documento, assinado por duas testemunhas, comprovativo da recusa do representante da autora em assinar o auto de recepção provisória, bem como um documento subscrito assinado por agentes da fiscalização da obra”.
Quinta: Com a mesma justificação e com base também no depoimento da testemunha F..., deve ser aditado ao elenco dos factos provados mais o seguinte: “Do auto de recepção provisória, bem como documento comprovativo da recusa por parte do representante da autora em assinar o mesmo auto, e, ainda, do documento subscrito pelos responsáveis pela fiscalização da obra, foram tiradas fotocópias e as mesmas entregues ao representante da Autora e aos responsáveis pela fiscalização da obra.”
Sexta: Dada a inexistência de expressa menção nas alíneas u) e w) da data dos documentos/comunicações/cartas aí referidas, e porque tal data é de sobremaneira importante para inequivocamente fixar a sucessão cronológica das comunicações trocadas entre as partes, e em especial, o seu cotejo com a data da carta enviada ao D... em 09 de Agosto de 2013 e referida na alínea ii) dos factos provados, devem aquelas alíneas u) e w) ser reformuladas no seu texto, aditando-se a data das comunicações nelas referidas, do seguinte modo:
- u) Em resposta, a autora, em 12 de Agosto de 2013, comunicou ao réu que a E1..., através de comunicações datadas de 7 e 8 de Maio, lhe havia remetido o auto de recepção provisório/aceitação da obra da empreitada em questão, devidamente subscrito pelos seus representantes, que se constituíram em comissão de recepção, expirando, em conformidade, a validade da garantia bancária em 07.05.2013, não podendo ser objecto de qualquer execução, anexando a essa missiva o auto de recepção provisória (doc- de fls 64 e 65, que se dá por reproduzido).
E
- w) Naquela mesma data de 12 de Agosto de 2013, a autora comunicou ao D..., aqui garante, a solicitação de cancelamento da garantia uma vez que as obrigações assumidas ao abrigo do contrato de empreitada foram integralmente cumpridas conforme se demonstra pelo auto de recepção provisória/ aceitação da obra (doc de fls 66, que se dá por reproduzido.
Sétima: Por ser matéria conexionada com o facto, considerado provado, de que a autora reteve a obra para si a partir do dia 07 de Maio de 2013, e havendo prova documental bastante nos autos para o efeito, deve ser aditado aos factos provados mais o seguinte:
“No dia 25 de Setembro de 2013, a autora abdicou da retenção referida na alínea h) e iniciada em 07 de Maio de 2013 e naquele dia foi elaborado o documento constante de fls 202, subscrito por representantes da Autora e da E1... e do qual consta, para além do mais, que nessa data o representante da autora entregava definitivamente ao representante da E1... as instalações e equipamentos relativos à empreitada de “Trabalhos de Acabamentos e instalações especiais do edifício de ampliação da Clínica E... em Torres Vedras”.
Oitava: Face à prova produzida – em especial e mais uma vez do depoimento da testemunha F... – a alínea hh) dos factos provados deve ser substituída, na sua redacção, pela seguinte: “hh) Realizada a vistoria conjunta da obra pelos representantes da dona da obra, pelo representante da autora e por elementos da fiscalização da obra, a autora não se dispôs a fazer a entrega voluntária das chaves respectivas, e reteve a obra para si, em consequência de litígio entre as partes no que se refere ao respectivo pagamento de algumas parcelas, o que motivou acções judiciais entre ambas (cfr. doc. de fls 176 a 179, datado de 08.05.2013, que se dá por reproduzido – doc. nº 3 da contestação.”
Impugnação da decisão de mérito:
Nona: Ao contrário e em directa oposição ao que foi entendido e pressuposto pelo Meritíssimo Juiz a quo, quando o réu accionou a garantia bancária em questão junto do D..., S.A., ainda não tinha chegado ao seu conhecimento ter sido efectuada a recepção provisória da obra.
Décima: Com efeito, tal como resulta da alínea ii) do elenco dos factos provados, o accionamento da garantia ocorreu através de carta dirigida pelo aqui réu ao D..., carta essa cuja cópia se juntou como documento no 6 com a contestação e que se encontra nos autos a fls 186, ou seja, tal accionamento ocorreu em 09 de Agosto de 2013.
Décima Primeira: Só pela carta datada do dia 12 de Agosto de 2013 é que a Autora envia ao réu, para provocar neste o respectivo conhecimento de ter sido efectuada a recepção provisória da obra, a carta que se encontra a fls 64 e 65 dos autos, com o objectivo de demonstrar ao réu a caducidade da garantia bancária, enviando então, e pela primeira vez, cópia do auto de recepção provisória (aliás, incompleto, conforme acima se demonstrou).
Décima Segunda: Em lado algum da matéria de facto dada como provada, ou em rigor de qualquer elemento de prova carreado para os autos, resulta que antes desta missiva da autora ao réu datada de 12 de Agosto de 2013, este réu tivesse conhecimento de já estar verificada e realizada a recepção provisória da obra, pois tal não lhe foi comunicado pela autora, nem pela dona da obra, ou por quem quer que seja.
Décima Terceira: Pelo que, ao contrário do que se entendeu na douta sentença recorrida, o aqui réu quando accionou a garantia, esta não havia caducado, encontrava-se válida e eficaz e o réu procedeu a esse accionamento com toda a legitimidade.
Décima Quarta: Tanto assim que, embora se tenha inicialmente verificado por parte do D... recusa em honrar a garantia, este veio mais tarde a fazê-lo.
Décima Quinta: A autora, ao ter dado instruções ao seu respectivo representante para não assinar o auto de recepção, não actuou de boa fé, mas antes com reserva mental, pois já era sua intenção vir a reter a obra para si e não proceder, efectivamente, á sua entrega, devidamente concluída, à dona da Obra/E1....
Décima Sexta: Tal actuação por parte da Autora teve como objectivo obter, pelo auto de vistoria, o reconhecimento por parte da dona da obra de que as obras se achavam concluídas, afastando assim a possibilidade de a dona da obra aplicar-lhe acrescidas penalidades e multas contratuais.
Décima Sétima: Apesar de no auto de recepção se referir que a dona da obra ficava investida na posse da mesma, o que é facto é que tal tomada de posse não aconteceu porquanto, no mesmo dia e poucas horas depois, a autora mudou os canhões das fechaduras das portas das instalações objecto da empreitada em causa, impedindo a dona de obra de a ela livremente aceder e de utilizar para os fins pretendidos aquelas instalações.
Décima Oitava: A Autora só veio a entregar à dona da obra as instalações objecto da empreitada em causa em 25 de Setembro de 2013, pelo que só nesta data se pode considerar que foi atingido um dos propósitos da reparação provisória da obra, o qual seja o se transmitir para a dona da obra o objecto da empreitada e a faculdade de utilização respectivo.
Décima Nona: A falta de assinatura, por parte do representante da autora, no auto de recepção provisória é tida na douta sentença recorrida como não constituindo a preterição de uma “formalidade substancial”, “mas apenas probatória”, e por isso poderia ser “substituída por declaração expressa da sua aceitação por outro meio”, mas ainda que tal fosse correcto, em lado nenhum se verifica ter a autora expressamente comunicado a aceitação da obra.
Vigésima: Do que de tudo é forçoso chegar à conclusão final de que o auto de recepção não espelha a realidade que era pretendida e para o qual foi elaborado, pelo que exigindo-se no âmbito da garantia bancária que a conclusão das obras fosse considerada apenas com a recepção provisória das mesmas, o auto de recepção elaborado não cumpre a função prevista no âmbito do conteúdo daquela garantia bancária, falhando assim um dos requisitos para a verificação da caducidade da mesma
Vigésima primeira: Sendo que, em todo o caso, até ao momento do seu acionamento, não se verificou o demais requisito previsto para a caducidade da garantia bancária, ou seja, a comunicação dessa recepção provisória “por escrito subscrito pela autora.
Termos em que deve ser dado provimento e ser declarado procedente o presente recurso e, em consequência proferir decisão que, revogando in totum a decisão recorrida, declare a acção totalmente improcedente, por não provada e com o acréscimo da demais consequências legais [...]
A apelada contra-alegou, pugnando pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, cumprirá apreciar:
- se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
- se podia a recorrente ter accionado a garantia bancária de que era beneficiária.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A. Em primeira instância foram julgados provados os seguintes factos:
a) A autora é uma sociedade comercial que tem como objecto social a indústria de construção civil e obras públicas;
b) A ré também é uma sociedade comercial, que exerce a actividade de comércio bancário;
c) A autora, no exercício da actividade que constitui o seu objecto social, celebrou com E1..., Lda., com sede na Rua ..., n.º .., ..., ....-... Torres Vedras, em 10/09/2010, um contrato de empreitada que tem por objecto a execução da obra “Trabalhos de Acabamentos e Instalações Especiais do Edifício de Ampliação da Clínica E...”, sita na Rua ..., n.º .., ....-... Torres Vedras, pelo preço de € 11.342.704,51, nos termos e condições da redução a escrito no documento particular que se mostra junto aos autos com a petição inicial como doc. n.º 2, denominado “Contrato de Empreitada do Edifício de Ampliação da Clínica E...”, cujo conteúdo se dá por reproduzido;
d) O banco réu, celebrou com a E1..., Lda. um contrato de natureza financeira para financiamento da construção objecto do contrato de empreitada supra referido, tendo obtido da autora em seu benefício para se garantir da construção da obra que financiou, uma garantia bancária emitida ao abrigo de um contrato de mandato, em 02.Dez.2010, pelo D..., SA, pelo valor de € 1.131.300,00 (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), “on first demand”, “autónoma, irrevogável, automática e à primeira solicitação”, que se destina a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pelo empreiteiro ao abrigo do contrato de empreitada de “trabalhos de acabamento e instalações especiais do edifício de ampliação da Clínica E...” (doc. n.º 3 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido – fls. 50 e 51);
e) O interesse do réu, que motivou a prestação da garantia bancária, deriva de contrato de natureza financeira que celebrou com a E1..., contrato de locação financeira;
f) A garantia bancária apenas é válida, conforme letra de seu quarto parágrafo, nos seus próprios termos e nos prazos e condições na mesma previstos;
g) Esta garantia bancária era válida desde o dia 2 de Dezembro de 2010 e até “conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada”;
h) Sendo que esta “deverá ocorrer com a recepção provisória daquelas obras, comunicadas ao C..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal de obra caso exista”;
i) No dia sete do mês de Maio do ano dois mil e treze, foi elaborado auto de recepção provisória, conforme documento de fls. 52 e 53, que foi assinado pelo menos pela dona da obra, E1...;
j) O D..., SA, em Dezembro de 2013, através do Centro de Empresas de Braga, informou a autora da pretensão junto de si formalmente manifestada pelo réu C... para que lhe fosse pago de imediato o valor integral constante da garantia, pretensão à qual iria aceder em face da natureza da garantia, tendo a aqui autora manifestado a sua oposição a que fosse efectuado tal pagamento; k) A autora, tendo dado por concluídos os trabalhos que integram o contrato de empreitada, em 30 de Abril de 2013, enviou à E1..., dona da obra a que se refere o contrato de empreitada, na qual o réu tem interesse por via da locação financeira ou de financiamento, uma comunicação para a realização de vistoria a toda a obra para efeitos de recepção provisória/aceitação de obra, com o seguinte conteúdo:
“B..., SA, vem por este meio, ao abrigo do disposto na Cláusula 17ª, do contrato de empreitada, bem como do n.º 5 do art.º 394.º, do D.L. 18/2008, de 29 de Janeiro, solicitar vistoria a toda a extensão da obra para efeitos de receção provisória, propondo desde já a data de 07 de Maio para a realização da mesma” (doc. n.º 5, junto com a petição inicial);
l) Em 7 de Maio de 2013, no local da obra, por iniciativa da dona-da-obra, a E1..., constituíram-se em comissão de recepção da empreitada, os Srs. Eng.ºs H... e F..., em representação da E1..., para procederem, na presença do Sr. Eng.º G..., director técnico da empreitada e representante do adjudicatário B..., SA à vistoria de todos os trabalhos da referida empreitada (referido doc. n.º 4 junto com a petição inicial);
m) Após a realização da vistoria à obra, a comissão de recepção da empreitada, constituída pelos Srs. Eng.ºs supra identificados e representantes da doba da obra, lavraram e assinaram o auto de recepção provisória/aceitação de obra (mesmo doc.);
n) Do referido auto consta que “Dessa vistoria foi redigida a lista de trabalhos por executar bem como a indicação de eliminação de defeitos de trabalhos executados a efectuar pelo Adjudicatário que se anexam ao presente Auto de Recepção Provisória e que dele faz parte integrante, tendo sido dado ao Empreiteiro o prazo de 15 dias seguidos de calendário, onde se contam sábados domingos e feriados, para a sua execução.
Não se considerando que os trabalhos objecto do Auto de Vistoria anexo, sejam condicionantes ao recebimento da obra, deliberaram considerá-la nas condições de ser provisoriamente aceite ficando assim a E1..., Lda., investida na posse daquela”.
o) No dia 7 de Maio de 2013, pelas 22:25 horas, o Sr. Eng.º H..., administrador da E1..., enviou via email, para o Sr. Eng.º G..., director de obra pela autora, a comunicação de fls. 55, que se dá por integralmente reproduzida (doc. nº 6 junto com a petição inicial);
p) A autora aceitou o auto de recepção provisória que lhe foi remetido pela E1..., sobre o qual não formulou qualquer reclamação ou reserva;
q) Dou por reproduzidos os docs. de fls. 56 e 57, docs. n.º 7 e 8 juntos com a petição inicial (“Termo de Responsabilidade do Director Técnico da Obra datado de 25.03.2013 e Alvará de Utilização emitido pelo Município ... em 25.07.2013);
r) Posteriormente ao auto de recepção provisória, a autora não recebeu da E1..., “dona da obra” com quem celebrou o contrato de empreitada ou do réu, qualquer denúncia de anomalias construtivas, bem como interpelação para executar qualquer outra reparação que não ali previstas;
s) Com data de 8 de Maio de 2013, a E1... remeteu à autora a comunicação de fls. 58 a 62 (doc. n.º 8 junto com a petição inicial), além do mais declarando considerar a obra recepcionada provisoriamente e remetendo-lhe o respectivo auto para assinatura;
t) A 05.08.2013 o réu comunica à autora a intenção de dar cumprimento às instruções da E1... para procederem à execução da garantia bancária prestada pelo D... no âmbito do contrato de empreitada celebrado para construção do imóvel objecto de contrato de financiamento ou locação financeira, já descrito como sendo propriedade do réu e locado pela E1... (doc. de fls. 63, que se dá por reproduzido);
u) Em resposta, a autora comunicou ao réu que a E1..., através de comunicações datadas de 7 e 8 de Maio, lhe havia remetido o auto de recepção provisória/aceitação da obra da empreitada em questão, devidamente subscrito pelos seus representantes, que se constituíram em comissão de recepção, expirando, em conformidade, a validade da garantia bancária em 07.05.2013, não podendo ser objecto de qualquer execução, anexando a essa missiva o auto de recepção provisória (doc. de fls. 64, que se dá por reproduzido);
w) Na mesma data, a autora comunicou ao D..., aqui garante, a solicitação de cancelamento da garantia uma vez que as obrigações assumidas ao abrigo do contrato de empreitada foram integralmente cumpridas conforme se demonstra pelo auto de recepção provisória/aceitação da obra (doc. de fls. 66, que se dá por reproduzido);
x) Por carta de 19.09.2013, o D... comunicou à autora que “de acordo como o solicitado, e face à recepção do Auto de Recepção Provisório, procedemos ao cancelamento da presente garantia bancária” (doc. de fls. 69, que se dá por reproduzido);
y) Em 23.09.2013, o D... remeteu à autora a comunicação de fls. 70, que se dá por reproduzida, informando o cancelamento da garantia bancária e de que a autora poderia levantar o original;
z) A execução da garantia bancária e subsequente exercício de direito de regresso sobre a autora, a que se juntaram as dificuldades que as empresas do mesmo ramo de actividade industrial vêm atravessando em consequência da conhecida crise internacional, teve implicações na sua actividade, atento o vencimento imediato de 1.131.300,00 euros, que perturbou a sua liquidez e compromissos de curto e médio prazo, afectando ainda operações bancárias em curso e o cumprimento de obrigações fiscais;
aa) Em face de tal conjuntura económica e com o accionamento da garantia, a autora viu-se obrigada a provisionar a sua conta no requerido D... com o numerário suficiente para responder pela garantia, disponibilidade que não possuía, mas que foi obter junto desse mesmo banco através de um financiamento concedido em 27.Jan.2014 a uma outra sociedade detida pela mencionada SGPS, “I..., SA”, no valor de € 1.200.000,00, caucionada por garantias reais (docs. no 18 e 19 juntos com a petição inicial), por forma a poder transferir o valor de 1.132.000,00 euros para a conta da requerente nesse banco, para regularização do valor accionado pelo C... (doc. de fls. 133, doc. no 21 junto com a petição inicial);
bb) Entre o Banco Réu e a sociedade “E1..., Lda” foi celebrado um contrato de Locação Financeira Imobiliária a que foi atribuído o n.º ........., assumindo o primeiro a qualidade de locador e a segunda a de locatária;
cc) Como resulta do teor do contrato de empreitada celebrado pela Autora e pela E1..., a primeira comprometeu-se a concluir a obra até ao dia 31 de Outubro de 2011;
dd) A E1..., posteriormente, decidiu adjudicar mais trabalhos à Autora, o que levou a que fossem feitas adendas ao contrato de empreitada primitivo e, consequentemente, ambas as partes acordaram prolongar o prazo para a conclusão da obra, estipulando-se assim, como nova data, 31 de Março de 2012;
ee) Chegada essa data, a obra não se encontrava concluída, acordando as partes, por acordo de 5 de Setembro de 2012, em prorrogar o prazo pelo período de 237 dias de calendário, devendo a obra ser concluída até 23 de Novembro de 2012;
ff) A obra, porém, como acima referido, apenas foi concluída em 30 de Abril de 2013;
gg) A autora não assinou o Auto de Recepção Provisória;
hh) De seguida a fazer entrega formal da obra com o auto de recepção e entrega de chaves, a autora reteve a obra para si, em consequência de litígio entre as partes no que se refere ao respectivo pagamento de algumas parcelas, o que motivou acções judiciais entre ambas (cfr. doc. de fls. 176 a 179, datado de 08.05.2013, que se dá por reproduzido – doc. n.º 3 junto com a contestação);
ii) Por carta datada de 09 de Agosto de 2013, o Banco Réu interpelou o D... para proceder ao pagamento imediato da quantia de 1.131.300,00 € (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), ao abrigo da citada garantia bancária, uma vez que a ordenadora da garantia, a empresa aqui Autora, havia “incumprido as obrigações por ela assumidas no contrato relativo à empreitada de Trabalhos de Acabamentos e Instalações especiais do edifício de Ampliação da Clínica E..., tornando-se responsável por danos e multas contratuais em montante superior ao valor da garantia” (doc. n.º 6 junto com a contestação);
jj) O D... por carta de 19 de Setembro de 2013 comunicou ao aqui Banco Réu que “... devido ao facto de o nosso cliente nos ter enviado o Auto de Recepção Provisório, procedemos ao cancelamento da respectiva garantia, pelo que nos consideramos desobrigados de qualquer responsabilidade nesta operação” (doc. n.º 8 junto com a contestação);
kk) Por carta datada de 04 de Novembro de 2013 o aqui Banco Réu responde à carta que lhe foi enviada pelo D... datada de 19 de Setembro de 2013 e atrás referenciada, referindo, nomeadamente que “Por referência à hipotética caducidade da garantia bancária prestada por V. Exas. a favor do C1..., cumpre-nos recordar que, nos termos do texto emitido por esse Banco a garantia em causa permanece válida, na sua plenitude, até à conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada, a qual deverá ocorrer com a recepção provisória daquelas obras comunicada ao C1..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal da obra caso exista...” (doc. n.º 9 junto com a contestação);
ll) Respondeu o D... ao Banco aqui Réu por carta de 13 de Novembro de 2013, referindo que, nomeadamente, “Em 07 de Maio de 2013 foi realizada uma vistoria às obras previstas no contrato de empreitada de “Trabalhos de Acabamento e Instalações do Edifício de Ampliação da Clínica E...”. Na sequência da predita vistoria e verificando que a obra se encontrava concluída, a E1..., Lda (Dono da Obra) emitiu o respectivo auto de recepção, conforme auto de recepção provisória cuja cópia se junta como Anexo I à presente carta.
A conclusão da obra, bem como a emissão do respectivo Auto de Recepção daquela, foram oportunamente comunicadas a V. Exas. por escrito subscrito pela J..., cuja cópia se junta com Anexo II à presente carta.
Considerando que (i) o Dono da Obra e o Empreiteiro acordaram que a empreitada de Trabalhos de Acabamento e Instalações do Edifício de Ampliação da Clínica E... deveria ser objecto de recepção provisória, que (ii) tal conclusão é facto pacificamente adquirido e aceite pelo Dono da Obra e pelo empreiteiro e que (iii) tal facto foi comunicado a V. Exas. por escrito subscrito pela J..., concluímos que a Garantia Bancária já não se encontra em vigor. Na verdade, a validade da garantia Bancária extingue-se com a conclusão da obra e o seu texto assimila a conclusão da obra à respectiva recepção provisória, o que ocorreu em 08 de Maio de 2013” (docs. n.ºs 10 e 11 juntos com a contestação);
mm) A tal carta respondeu o aqui Banco Réu ao D..., por carta de 09 de Dezembro de 2013 (doc. n.º 12 junto com a contestação, que se dá por reproduzido);
nn) Na sequência desta comunicação efectuada pelo Banco Réu ao D..., este informou o banco réu que iria honrar a garantia bancária autónoma supracitada, o que se verificou (doc. n.º 15 junto com a contestação, que se dá por reproduzido).
B. A mesma instância considerou não provado que a obra em causa não tivesse sido concluída na data inicialmente acordada pelas partes, apenas por responsabilidade exclusiva da autora.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
A apelante em sede recursiva manifesta a sua discordância em relação à decisão relativa à matéria de facto, reclamando a sua reapreciação por esta instância de recurso e, na sequência desse exercício sindicante, a sua modificação.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu n.º 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[4].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[5], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
Como decorre do artigo 607.º, n.º 5 do CPC, a prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal, solução que emana do artigo 396.º do Código Civil.
Livre apreciação que, todavia, não se confunde com arbítrio na apreciação desse meio de prova[6], “mas antes a ausência de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam”[7].
Trata-se de um meio probatório de particular importância[8], pela amplitude da sua produção, sendo o mais frequentemente usado em instrução, mas também por ser o único existente ou o único praticável.
Paralelamente, é também o meio probatório que reúne maiores riscos de falibilidade: por perigo de infidelidade da percepção e da memória da testemunha, por perigo de parcialidade da mesma, designadamente[9].
Por isso, e sem pôr em causa a liberdade de julgamento, deve o julgador colocar especial cuidado na avaliação e ponderação dos testemunhos prestados em audiência, valorando-os com um prudente senso crítico, pesando não apenas o seu sentido objectivo, mas ainda a forma como se manifestam.
A propósito da valoração a atribuir aos documentos particulares, retira-se do Acórdão da Relação de Coimbra de 02.06.2009[10]: “de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 376.º do Código Civil, os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos 373.º a 375.º faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Uma coisa, porém, é a prova plena, que só funciona nas relações declaratário -declarante, e na medida em que as declarações sejam prejudiciais a este, outra, muito diferente, o valor do documento como elemento de prova.
A prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante; no mais, o documento é um elemento de prova igual a tantos outros, que o tribunal apreciará livremente”.
Tendo por base o princípio consignado no artigo 413.º do Código de Processo Civil, importa, assim, analisar os meios de prova que poderão contribuir para o esclarecimento dos pontos controvertidos aqui escrutinados, sendo que nenhum deles tem natureza tarifada, nenhum se assumindo como vinculante para o julgador, que dispõe de livre poder de apreciação.
Cumprido minimamente o ónus imposto pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, importa, pois, apreciar cada um dos segmentos de cuja apreciação diverge a recorrente.
- Defende a recorrente que, apesar de a decisão sobre a matéria de facto ter dado como reproduzido o texto da garantia bancária – constante de fls. 50 e 51 dos autos -, e de ter realçado algumas partes da mesma, conforme consta das alíneas d) a h) dos factos provados, devia a mesma ter considerado provado o que dela consta, reproduzindo o seu teor.
Como reconhece a recorrente, e facilmente se extrai da decisão impugnada, esta, referindo-se à garantia constituída a favor daquela, dá como reproduzido o documento que titula a referida garantia, conforme consta do ponto d) dos factos provados, descrevendo ainda alguns dos termos contratuais nele contemplado – pontos e) a h) dos mesmos factos provados.
O reparo nessa parte efectuado pela recorrente à decisão que impugna não consubstancia erro de julgamento que deva esta instância corrigir.
Com efeito, reproduzir nos factos provados todo o texto da dita garantia bancária, ou dar por reproduzido o documento que a incorpora, ainda que seguindo diferentes metodologias para a exposição dos factos que devem integrar a factualidade provada, conduz rigorosamente ao mesmo resultado. Reproduzir integralmente o texto da aludida garantia, ou, como o fez a decisão aqui escrutinada, dar como reproduzido o documento escrito que a titula, tem, em ambas as circunstâncias, como alcance darem-se como assente todas as cláusulas escritas - sendo que nenhumas outras existem – que traduzem o conteúdo da dita garantia.
Assim, reproduzir integralmente as cláusulas contratuais da aludida garantia bancária ou, por razões pragmáticas e de economia de exposição[11], dar por reproduzido o teor do documento que as integra desemboca, do ponto de vista material, no mesmo resultado, pelo que inexistindo, pelo mesmo nesta parte, qualquer erro de julgamento, mantém-se sem alteração o que consta de decisão impugnada.
- Consta do ponto gg) dos factos provados que “A autora não assinou o Auto de Recepção Provisória”.
Pretende a recorrente que tal segmento decisório seja alterado propondo para o mesmo a seguinte redacção: “O representante da autora no auto de vistoria e elaboração do auto de recepção provisória, Engº G..., recusou-se a assinar tal auto de recepção provisória alegando não ter autorização da autora para tal”.
Para tanto convoca o depoimento da testemunha F..., que, na qualidade de engenheiro civil, assessorou, dando apoio técnico, à sociedade E1..., L.da na obra executada pela Autora, enquanto empreiteira.
A matéria que a recorrente pretende que se dê como provada vai muito além do que alega na contestação que apresentou nos autos, referindo no artigo 35.º do referido articulado que “sem que nada o fizesse prever, a Autora recusou-se a assinar o Auto de Recepção Provisória, que resultou da vistoria efectuada em 7 de Maio de 2013”, o que, só por si, constituiria obstáculo à introdução da factologia proposta face ao que dispõe o artigo 5.º, n.º 1 o Código de Processo Civil, não resultando preenchido o condicionalismo exigido pela última parte da alínea b) do n.º 2 do mencionado normativo.
De todo o modo, embora a indicada testemunha haja referido no seu depoimento que o engenheiro G... se negou a assinar o auto de recepção alegando que existiam contas pendentes com o dono da obra, não tendo, por isso, autorização para o assinar, tal depoimento, sem outro suporte confirmador, designadamente do próprio G..., cujo depoimento foi prescindido, não revela consistência suficiente para dele se poder extrair a factualidade que a recorrente pretende que se dê como demonstrada, tanto mais que o depoimento da testemunha F... revela, nessa parte, alguma incongruência já que, mais adiante, afirma ter sido pacífica a recepção provisória, não o tendo sido quanto à entrega das chaves, referindo a mesma que o engenheiro G... recusou essa entrega, alegando ter ordens para não entregar a obra.
Deve, assim, manter-se o ponto gg) dos factos provados, elaborado, de resto, em conformidade com o alegado e com o teor do auto de recepção provisória, nada mais se achando comprovado além da falta da assinatura da Autora.
- Com base no depoimento da mesma testemunha – F... -, com a justificação de que se tratam de factos pertinentes e relevantes para a decisão da causa, pretende a recorrente que sejam aditados aos factos provados os seguintes factos: “Na altura da elaboração do auto de recepção provisória, foi anexado a este um documento, assinado por duas testemunhas, comprovativo da recusa do representante da autora em assinar o auto de recepção provisória, bem como um documento subscrito assinado por agentes da fiscalização da obra” e “Do auto de recepção provisória, bem como documento comprovativo da recusa por parte do representante da autora em assinar o mesmo auto, e, ainda, do documento subscrito pelos responsáveis pela fiscalização da obra, foram tiradas fotocópias e as mesmas entregues ao representante da Autora e aos responsáveis pela fiscalização da obra.”
A prova testemunhal é um meio, não um fim. Quer isto dizer, que ela constitui instrumento – concorrendo com os demais meios de prova – de confirmação/infirmação dos factos alegados pelas partes, continuando a subsistir no ordenamento jurídico português o ónus de alegação, como directa e expressamente resulta do n.º 1 do artigo 5.º da lei processual civil, só podendo o juiz atender aos factos, não essenciais, que resultem da instrução da causa no específico contexto do n.º 2 do mesmo normativo e dentro dos limites fixados pelas suas várias alíneas.
Desta forma, a ampliação da matéria de facto, com adicionamento de factos não alegados pelas partes só pode efectuar-se no respeito pelos estreitos condicionalismos previstos no n.º 1 do dito artigo 5.º. Situação que, no que respeita à matéria – não alegada - que a recorrente pretende ver adicionada aos factos provados não ocorre.
Em todo o caso, nunca se justificaria a sua inclusão na matéria fixada como provada dada a evidente inocuidade dos factos cuja introdução a recorrente reclama para a solução jurídica da causa e do que nela se discute.
- Propõe ainda a recorrente que à matéria de facto provada seja adicionado o seguinte facto: “No dia 25 de Setembro de 2013, a autora abdicou da retenção referida na alínea h) e iniciada em 07 de Maio de 2013 e naquele dia foi elaborado o documento constante de fls 202, subscrito por representantes da Autora e da E1... e do qual consta, para além do mais, que nessa data o representante da autora entregava definitivamente ao representante da E1... as instalações e equipamentos relativos à empreitada de “Trabalhos de Acabamentos e instalações especiais do edifício de ampliação da Clínica E... em Torres Vedras”.
No artigo 65.º da sua contestação, alega a Ré que “...o D... veio a apurar que” [...] “(v) A obra é entregue à E1... em 25 de Setembro de 2013, na sequência da transacção efectuada no processo nº 1992/13.5TBTVD, do 2º Juízo do Tribunal de Torres Vedras. - Vide Doctº Nº 14, que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais”.
Assim, em conformidade com o alegado, e tendo como suporte probatório os documentos de fls. 199 a 202, amplia-se a matéria de facto, aditando-se aos factos provados, sob a alínea oo), o seguinte facto: A obra foi entregue à E1... em 25 de Setembro de 2013, na sequência da transacção efectuada no processo nº 1992/13.5TBTVD, do 2º Juízo do Tribunal de Torres Vedras.
- Reclama ainda a recorrente a reformulação dos pontos u) e w) dos factos provados, de forma a neles incluir data da comunicação neles referida – carta da Autora dirigida à Ré [12 de Agosto de 2013].
Da análise dos documentos de fls. 64 a 66 – cartas registadas com aviso de recepção da autora endereçadas ao C1..., K... e D..., S.A.–, que constituem o suporte probatório da matéria elencada nos mencionados pontos u) e w), constata-se terem as mesmas a data de 12 de Agosto de 2013.
Assim, em conformidade com os ditos documentos altera-se a redacção do ponto u) dos factos provados, que passará a ser a seguinte:
u): Em resposta, a autora, através de carta datada de 12 de Agosto de 2013, comunicou ao réu que a E1..., através de comunicações datadas de 7 e 8 de Maio, lhe havia remetido o auto de recepção provisória/aceitação da obra da empreitada em questão, devidamente subscrito pelos seus representantes, que se constituíram em comissão de recepção, expirando, em conformidade, a validade da garantia bancária em 07.05.2013, não podendo ser objecto de qualquer execução, anexando a essa missiva o auto de recepção provisória (doc. de fls. 64, que se dá por reproduzido).
Quanto ao ponto w), considerando a inserção sequencial do mesmo e contendo ele a menção “na mesma data”, não se justifica qualquer alteração da sua redacção, dado ser inequívoca a referência à data de 12 de Agosto de 2013 referida no ponto antecedente.
- Finalmente, reclama a recorrente a reformulação do ponto hh) do factos provados, para o qual propõe a seguinte redacção: Realizada a vistoria conjunta da obra pelos representantes da dona da obra, pelo representante da autora e por elementos da fiscalização da obra, a autora não se dispôs a fazer a entrega voluntária das chaves respectivas, e reteve a obra para si, em consequência de litígio entre as partes no que se refere ao respectivo pagamento de algumas parcelas, o que motivou acções judiciais entre ambas (cfr. doc. de fls 176 a 179, datado de 08.05.2013, que se dá por reproduzido – doc. nº 3 da contestação).
A pretendida alteração radica no facto de o referido segmento decisório referir a entrega de chaves, facto que a recorrente contraria, negando ter a Autora entregue as chaves à E1..., convocando, para o efeito o depoimento da testemunha F....
Ouvida a gravação que contém o depoimento da indicada testemunha – e outra prova não foi, a propósito de tal questão, produzida -, dele se extrai, com efeito, que o engenheiro G..., que no acto da recepção provisória da obra representava a Autora, recusou a entrega das chaves, com o argumento de que tinha ordens nesse sentido, tendo as mesmas, porque estivessem acessíveis no local, sido tomadas por quem representava a dona da obra, adiantando a mesma testemunha que, todavia, a Autora nesse mesmo dia procedeu à substituição das fechaduras.
Deve, por conseguinte, em conformidade com o resultado da prova produzida, ser erradicado do referido segmento decisório a referência à “entrega de chaves”, passando o mesmo, extirpado igualmente o juízo conclusivo nele contido, a ter a seguinte redacção:
hh): Após assinatura do auto de recepção provisória, a autora reteve a obra para si, em consequência de litígio entre as partes no que se refere ao respectivo pagamento de algumas parcelas, o que motivou acções judiciais entre ambas (cfr. doc. de fls. 176 a 179, datado de 08.05.2013, que se dá por reproduzido – doc. n.º 3 junto com a contestação).
Por conseguinte, procedendo parcialmente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, altera-se, nos termos acabados de expor, o decidido quanto aos pontos u) e hh) dos factos provados, aos quais é aditado o ponto oo), com o teor que também se deixou enunciado.
2. Do mérito da decisão de direito.
2.1. Vigência da garantia bancária à data do seu acionamento.
Como salienta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[12], “no âmbito dos negócios de garantia pessoal, tem vindo a assumir desenvolvimento especial a garantia autónoma, por vezes igualmente designada por garantia bancária autónoma, em virtude de ser frequentemente prestada por bancos. Esta garantia ocorre quando determinada entidade (normalmente uma instituição bancária ou financeira) vem garantir pessoalmente a satisfação de uma obrigação assumida por terceiro, independentemente da validade ou eficácia desta obrigação e dos meios de defesa que a ela possam ser opostos, assegurando assim que o credor obterá sempre o resultado do recebimento dessa prestação”.
Pode, assim, definir-se a garantia bancária autónoma, automática ou à primeira solicitação como aquela “pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base) sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o mesmo contrato”[13], sendo que foram necessidades específicas de certos contratos internacionais – contratos de empreitada, de engeneering, de cooperação industrial – envolvendo avultadas quantias monetárias e celebrados entre empresas que não têm conhecimento e confiança recíprocas, que ditaram a criação deste tipo de garantia.
Ainda segundo Menezes Leitão[14], “não se encontrado prevista na lei, a sua admissibilidade resulta do princípio da autonomia privada (art. 405º), uma vez que se verificou que uma simples fiança era insuficiente para as necessidades do tráfego comercial, em face da elevada protecção que o princípio da acessoriedade confere ao fiador, na medida em que permite a invocação contra o credor de todo e qualquer meio de defesa oriundo da obrigação principal”.
Com ressalva das designadas “obrigações naturais”, todas as demais obrigações justificam na garantia a sua juridicidade[15].
À garantia geral das obrigações, plasmada no artigo 601º do Código Civil, formada por “todos os bens do devedor susceptíveis de penhora”, acrescem as garantias especiais.
No âmbito destas, distingue a doutrina entre garantias reais – penhor, hipoteca, direito de retenção, consignação de rendimentos, privilégios creditórios) e garantias pessoais (aval, fiança).
A garantia bancária autónoma, ainda que sem tipificação específica no Código Civil, mas que o princípio da liberdade contratual nele previsto – artigo 405º - consente e atribui relevância jurídica, como se referiu, integra a categoria das garantias pessoais[16].
A característica essencial do contrato de garantia, e que a distingue da fiança, é a sua autonomia. A esse propósito, esclarece Ferrer Correia[17]: “a diferença (entre garantia e fiança) reside no facto de a garantia, diferentemente da fiança, não ter natureza acessória em relação à obrigação garantida: uma certa autonomia relativamente a esta obrigação (abstracção hoc sensu) constitui seu traço específico”, referindo Galvão Telles[18] que “no caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação”.
Idêntico entendimento é sustentado por Almeida Costa e Pinto Monteiro quando escrevem: “diferentemente da fiança (…) esta garantia é autónoma, quer dizer, não tem natureza acessória em relação à obrigação garantida, sendo devida mesmo que a relação principal se mostre inválida e sem que o garante possa opor ao beneficiário os meios de defesa do devedor, visto que o garante assume uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato-base”[19].
A garantia autónoma caracteriza-se, enquanto figura triangular, pela existência de três ordens de relações: entre o garantido (dador da ordem) e o beneficiário da garantia; entre o garantido e o garante (em regra, um Banco); e entre o garante e o beneficiário.
Estas relações estão na base de outros tantos negócios jurídicos: o contrato-base, em que são partes o dador da ordem e o beneficiário; o contrato pelo qual o Banco se obriga para com o dador da ordem a prestar-lhe, mediante certa retribuição, o serviço consistente em fornecer a garantia pretendida; e o contrato de garantia[20].
Quando presta uma garantia autónoma o Banco assegura a verificação de um determinado resultado, regra geral o cumprimento pontual e correcto da obrigação do devedor, responsabilizando-se pelo risco da sua não produção, sem que possa opor ao beneficiário as excepções derivadas tanto da sua relação com o terceiro garantido, como da relação jurídica cujo cumprimento garante.
Por outro lado, o beneficiário da garantia não tem de fazer prova da extensão dos danos sofridos, na medida em que, fixando-se previamente a soma a entregar pelo garante, opera-se, desta forma, uma liquidação prévia do dano[21].
Ou seja: na garantia bancária autónoma o garante coloca-se numa situação debitória muito mais crítica do que a do devedor principal, na medida em que, ao contrário deste, que pode opor ao beneficiário da garantia, seu credor, todas as excepções e outros meios de defesa fundados na relação jurídica fundamental, o garante encontra-se obrigado a pagar se o credor lhe exigir, “bastando como ‘prova’ do direito deste a sua própria e discricionária afirmação de que existe incumprimento”[22].
No âmbito da relação de execução da garantia bancária importa, todavia, distinguir entre a garantia autónoma simples e a garantia autónoma à primeira solicitação ou on first demand.
Na primeira, “o garante compromete-se a realizar ao beneficiário a prestação pecuniária objecto da garantia, independentemente das vicissitudes da obrigação principal e das excepções que a esta pudessem ser opostas. Ao garante é por isso vedado opor ao beneficiário os meios de defesa próprios do devedor e quaisquer objecções relativas à subsistência ou validade do crédito sobre este (…). Mas também é vedado ao garante opor ao beneficiário excepções oriundas da relação de cobertura, designadamente o facto do dador deixar de pagar a retribuição acordada pela prestação da garantia, ou de ter ordenado ao garante que não prestasse a garantia. Mas já se torna necessário, para poder exigir o cumprimento da obrigação do garante, que o beneficiário faça perante este prova de que ocorreu o facto constitutivo do seu direito, sem que o garante poderá legitimamente recusar o cumprimento”[23].
Já quanto à “garantia autónoma à primeira solicitação, a obrigação do garante é estabelecida automaticamente perante a primeira exigência de cumprimento (on ou upon first demand, auf erstes Anfordern, à premiére demande, alla prima richiesta) por parte do beneficiário, sendo vedado ao garante opor quaisquer excepções a essa exigência de cumprimento, a qual deve satisfazer de imediato, desde que naturalmente estejam a ser respeitados os termos estipulados para a exigência da garantia”, conforme esclarece o mesmo autor.
Revertendo à situação concreta que nos autos se discute: como neles resulta demonstrado, a Autora, no exercício da actividade que constitui o seu objecto social, celebrou com E1..., Lda., com sede na Rua ..., n.º .., ..., ....-... Torres Vedras, em 10/09/2010, um contrato de empreitada tendo por objecto a execução da obra “Trabalhos de Acabamentos e Instalações Especiais do Edifício de Ampliação da Clínica E...”, sita na Rua ..., n.º .., ....-... Torres Vedras, pelo preço de € 11.342.704,51, nos termos e condições da redução a escrito no documento particular que se mostra junto aos autos com a petição inicial como doc. n.º 2, denominado “Contrato de Empreitada do Edifício de Ampliação da Clínica E...”[...] - ponto c) dos factos provados.
Por sua vez, o banco réu, celebrou com a E1..., Lda. um contrato de natureza financeira para financiamento da construção objecto do contrato de empreitada supra referido, tendo obtido da autora em seu benefício para se garantir da construção da obra que financiou, uma garantia bancária emitida ao abrigo de um contrato de mandato, em 02.Dez.2010, pelo D..., SA, pelo valor de € 1.131.300,00 (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), “on first demand”, “autónoma, irrevogável, automática e à primeira solicitação”, que se destina a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pelo empreiteiro ao abrigo do contrato de empreitada de “trabalhos de acabamento e instalações especiais do edifício de ampliação da Clínica E...” [...] – ponto d) dos factos provados.
As partes que intervieram na celebração do referido contrato de garantia bancária autónoma à primeira solicitação, gozando de liberdade contratual, definiram expressamente as respectivas condições contratuais, delimitando temporalmente o seu período de vigência.
Conforme nela expressamente clausulado, a “garantia bancária é válida desde o dia 2 de Dezembro de 2010 e até à conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada”, a qual, de acordo com o também nela estipulado, “deverá ocorrer com a recepção provisória daquelas obras, comunicadas ao C..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal de obra caso exista” – pontos g) e h) dos factos provados.
Resulta, pois, inequívoco que o contrato de garantia bancária em causa tinha como termo de vigência a conclusão das obras abrangidas pela empreitada, sendo essa conclusão determinada pela recepção provisória das obras, comunicada ao C... nas condições acordadas pelas partes.
No que à conclusão das obras/recepção provisória concerne, demonstram os autos que tendo a Autora dado por concluídos os trabalhos que integram o contrato de empreitada, em 30 de Abril de 2013, enviou à E1..., dona da obra, comunicação com o conteúdo transcrito no ponto k) dos factos provados, solicitando a realização da recepção provisória das obras.
Em 7 de Maio de 2013, no local da obra, por iniciativa da E1..., constitui-se a comissão de recepção da empreitada, e após vistoria de todos os trabalhos da obra, foi lavrado auto de recepção provisória/aceitação da obra, dele constando: Dessa vistoria foi redigida a lista de trabalhos por executar bem como a indicação de eliminação de defeitos de trabalhos executados a efectuar pelo Adjudicatário que se anexam ao presente Auto de Recepção Provisória e que dele faz parte integrante, tendo sido dado ao Empreiteiro o prazo de 15 dias seguidos de calendário, onde se contam sábados domingos e feriados, para a sua execução.
Não se considerando que os trabalhos objecto do Auto de Vistoria anexo, sejam condicionantes ao recebimento da obra, deliberaram considerá-la nas condições de ser provisoriamente aceite ficando assim a E1..., Lda., investida na posse daquela.
A Autora não assinou o auto de recepção provisória.
Com data de 8 de Maio de 2013, a E1... remeteu à autora a comunicação de fls. 58 a 62, declarando nela considerar a obra recepcionada provisoriamente e remetendo-lhe o respectivo auto para assinatura.
A 05.08.2013 o réu comunicou à autora a intenção de dar cumprimento às instruções da E1... para procederem à execução da garantia bancária prestada pelo D..., tendo, por carta datada de 09 de Agosto de 2013, interpelado o D... para proceder ao pagamento imediato da quantia de 1.131.300,00 € (um milhão cento e trinta e um mil e trezentos euros), ao abrigo da citada garantia bancária, alegando que a ordenadora da garantia – a Autora - havia “incumprido as obrigações por ela assumidas no contrato relativo à empreitada de Trabalhos de Acabamentos e Instalações especiais do edifício de Ampliação da Clínica E..., tornando-se responsável por danos e multas contratuais em montante superior ao valor da garantia”.
Em resposta à carta de 05.08.2013 que o réu Banco lhe dirigiu, a autora, através de carta datada de 12 de Agosto de 2013, comunicou-lhe que a E1..., por comunicações datadas de 7 e 8 de Maio, lhe havia remetido o auto de recepção provisória/aceitação da obra da empreitada em questão, devidamente subscrito pelos seus representantes, que se constituíram em comissão de recepção, expirando, em conformidade, a validade da garantia bancária em 07.05.2013, não podendo ser objecto de qualquer execução, anexando a essa missiva o auto de recepção provisória, tendo na mesma data, por carta dirigida ao garante D..., lhe solicitado o cancelamento da garantia “uma vez que as obrigações assumidas ao abrigo do contrato de empreitada foram integralmente cumpridas conforme se demonstra pelo auto de recepção provisória/aceitação da obra”, anexando este auto à referida missiva.
O D..., por carta de 19.09.2013, informou a autora de que “de acordo como o solicitado, e face à recepção do Auto de Recepção Provisório, procedemos ao cancelamento da presente garantia bancária”, comunicando à mesma, a 23.09.2013, o cancelamento da garantia bancária e informando-a de poderia levantar o original, tendo, na mesma data, por carta endereçada ao Banco Réu, comunicado a este que “... devido ao facto de o nosso cliente nos ter enviado o Auto de Recepção Provisório, procedemos ao cancelamento da respectiva garantia, pelo que nos consideramos desobrigados de qualquer responsabilidade nesta operação”.
A esta comunicação respondeu o Banco Réu por carta datada de 04 de Novembro de 2013, nela referindo, nomeadamente que “Por referência à hipotética caducidade da garantia bancária prestada por V. Exas. a favor do C1..., cumpre-nos recordar que, nos termos do texto emitido por esse Banco a garantia em causa permanece válida, na sua plenitude, até à conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada, a qual deverá ocorrer com a recepção provisória daquelas obras comunicada ao C1..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal da obra caso exista...”, à qual o D... respondeu, através de carta de 13 de Novembro de 2013, referindo, nomeadamente, que “Em 07 de Maio de 2013 foi realizada uma vistoria às obras previstas no contrato de empreitada de “Trabalhos de Acabamento e Instalações do Edifício de Ampliação da Clínica E...”. Na sequência da predita vistoria e verificando que a obra se encontrava concluída, a E1..., Lda (Dono da Obra) emitiu o respectivo auto de recepção, conforme auto de recepção provisória cuja cópia se junta como Anexo I à presente carta.
A conclusão da obra, bem como a emissão do respectivo Auto de Recepção daquela, foram oportunamente comunicadas a V. Exas. por escrito subscrito pela J..., cuja cópia se junta com Anexo II à presente carta.
Considerando que (i) o Dono da Obra e o Empreiteiro acordaram que a empreitada de Trabalhos de Acabamento e Instalações do Edifício de Ampliação da Clínica E1... deveria ser objecto de recepção provisória, que (ii) tal conclusão é facto pacificamente adquirido e aceite pelo Dono da Obra e pelo empreiteiro e que (iii) tal facto foi comunicado a V. Exas. por escrito subscrito pela J..., concluímos que a Garantia Bancária já não se encontra em vigor. Na verdade, a validade da garantia Bancária extingue-se com a conclusão da obra e o seu texto assimila a conclusão da obra à respectiva recepção provisória, o que ocorreu em 08 de Maio de 2013” (docs. n.ºs 10 e 11 juntos com a contestação).
A tal carta respondeu, por seu turno, o Banco Réu, por carta de 09 de Dezembro de 2013 dirigida ao D..., na qual, entre o mais, após afirmar afigurar-se-lhe manifesto que na data em que interpelou este, acionando a garantia, esta se achava em vigor, reiterando ter a respectiva ordenadora “incumprido obrigações [...] assumidas no contrato de empreitada” [...] “reclama o imediato pagamento da identificada garantia, pelo seu valor máximo, devendo a correspondente quantia de € 1.131,300,00 ser colocada à sua disposição [...]”.
Na sequência desta comunicação efectuada pelo Banco Réu ao D..., este informou aquele que iria honrar a garantia bancária autónoma supracitada, o que veio a ocorrer.
Entretanto, informada pelo D..., SA, através do Centro de Empresas de Braga, da pretensão junto de si formalmente manifestada pelo réu C... para que lhe fosse pago de imediato o valor integral constante da garantia, pretensão à qual iria aceder, a Autora manifestou a sua oposição a que fosse efectuado tal pagamento.
Sustenta a sentença aqui sindicada que “que quando a ré accionou a garantia, esta havia já perdido validade (caducado) pela recepção provisória da obra, recepção provisória que era do seu conhecimento”.
Não nos revemos em tal conclusão.
Da matéria factual recolhida nos autos não se pode, com efeito extrair, que tinha a Ré conhecimento da recepção provisória da obra quando acionou a garantia, ainda que esse conhecimento pudesse advir de quem não tinha por incumbência transmitir aquela recepção.
Recorde-se que a garantia bancária constituída a favor da Ré previa como data limite de vigência da mesma a conclusão das obras previstas no contrato de empreitada celebrado entre a Autora [empreiteira] e a E1... [dona da obra], fazendo coincidir essa conclusão com a recepção provisória dessas mesmas obras, a qual devia ser comunicada à beneficiária da referida garantia[24] “por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal da obra caso exista”, nos termos nela estipulados.
A factualidade apurada nos autos indica que, após anunciar à Autora, a 05.08.2013, o seu propósito de proceder à execução da garantia bancária prestada pelo D..., em cumprimento de instruções recebidas para o efeito da E1..., o Banco Réu, a 09.08.2013, acionou a referida garantia, tendo, para o efeito, interpelado o D... para proceder ao pagamento imediato da quantia de 1.131.300,00 €.
Por carta de 12.08.2013, já depois de interpelado o D... para proceder ao pagamento da referida quantia, em resposta à carta que a Ré lhe enviara, com data de 05 do mesmo mês, a Autora informou aquela acerca da realização da recepção provisória das obras, enviando-lhe cópia do respectivo auto, comunicando-lhe ainda que a validade da garantia expirara a 07.05.2013, data em que se concretizara a referida recepção provisória, pelo que não poderia ser executada.
Nada indicando nos autos que antes da referida data – 12.08.2013 – fora dado conhecimento ao Banco Réu da recepção provisória das obras abrangidas pelo contrato de empreitada e tendo este, antes dessa data, acionado a garantia bancária através da interpelação efectuada ao D..., a 09.08.2013, inexiste apoio factual para suportar a conclusão afirmada na sentença recorrida, a qual, por isso, não subscrevemos, não aceitando tão pouco as consequências jurídicas dela extraídas.
2.2. Do abuso de direito.
Na petição inicial alega a Autora que, tendo já cumprido a obrigação assumida no contrato base, a solicitação de execução da garantia bancária traduz um comportamento abusivo por parte do Réu, o qual reconduz à figura do abuso de direito prevista no artigo 334.º do Código Civil, que para o efeito invoca.
Tal questão não foi conhecida na sentença recorrida, tendo a sua apreciação ficado prejudicada pela solução dada ao litígio – condenação da Ré no pagamento da quantia indevidamente recebida pela execução da garantia, além de juros, por a mesma já se achar caducada no momento em que foi accionada.
Não aceitando tal solução, resta-nos conhecer do invocado abuso de direito, em cumprimento do que prescreve o n.º 2 do artigo 665.º do Código de Processo Civil.
Segundo o artigo 334º do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela[25], o referido normativo adoptou a concepção objectiva de abuso de direito, não sendo necessária a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido, bastando que se excedam esses limites.
O normativo em causa traduz, assim, a ideia de que não basta ser titular de um direito para, sem limites, o mesmo poder ser exercido. O exercício de qualquer direito está sujeito a limitações e restrições.
Para Cunha e Sá[26] o abuso de direito constitui um fenómeno revelador de que o direito subjectivo não pode ser abstractamente encarado em termos meramente conceitualistas, pois que em certa e determinada situação, experimentalmente concreta, podemos descobrir concordância com a estrutura formal de um dado direito subjectivo e, simultaneamente, discordância, desvio, oposição, ao próprio valor jurídico que daquele comportamento faz um direito subjectivo, concluindo que “neste encobrir, consciente ou inconscientemente, a violação do fundamento axiológico de certo direito com o preenchimento da estrutura formal do mesmo direito é que reside o cerne, a essência do abuso de direito”.
Defende, a propósito, Castanheira Neves[27], que o abuso de direito é um limite normativamente imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativos-jurídicos do direito particular que são ultrapassados.
Assim, uma das restrições ao exercício de direitos subjectivos é justamente imposta pela necessidade de salvaguarda da boa fé da parte contrária, estando vedado o exercício do direito cujo titular exceda manifestamente os limites da boa fé.
Não basta, todavia, a existência de uma qualquer atitude ou conduta contraditória para que se recaia na figura do abuso de direito.
Para que este possa ocorrer exige-se que aquele contra quem é invocado tenha criado uma situação objectiva de confiança, isto é, que haja adoptado um comportamento que “objectivamente considerado, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira (…). Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”[28].
Exige-se ainda que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tome “disposições ou organize planos de vida de que lhe surgirão dúvidas, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada”[29].
Finalmente, exige-se também a boa fé de que quem confiou.
Como se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 16.11.2004[30], o “instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça. Há que afrontar o problema em sede da tutela da confiança e do venire contra factum proprium, como uma das manifestações do abuso de direito.
Esta variante do abuso de direito equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé”.
Para Baptista Machado[31], a ideia que subjaz à proibição do “venire contra factum proprium” é a do “dolus praesens”, que radica nos seguinte pressupostos:
a) - deve verificar-se uma situação objectiva de confiança - o ponto de partida é uma conduta anterior de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira;
b) - o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando a contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustada, sendo necessário que se verifique uma situação de causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento dessa contraparte e que este haja sido feito com base na dita confiança, importando que o dano não seja irreversível, ou seja, que a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória;
c) - que haja boa-fé da contraparte que confiou, o que equivale a dizer que a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esta esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
Para Menezes Cordeiro[32] são quatro os pressupostos de protecção da confiança ao abrigo da figura “venire contra factum proprium”:
“(...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.
Ajustando o que se deixa exposto ao que nos autos se discute, inevitavelmente se terá de concluir pela existência do invocado abuso de direito.
Não ignorando que a garantia bancária autónoma constituída a favor do Banco Réu se destinava “a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pelo Empreiteiro ao abrigo do contrato de empreitada de “Trabalhos de Acabamentos e Instalações Especiais do Edifício de Ampliação da Clínica E1..., incluindo, mas não apenas, a boa execução da obra contratada ao abrigo da empreitada contratada”, como consta do texto da mesma, não se pode, no entanto, deixar de concluir que o garantido cumprimento visava as obrigações constituídas pela empreiteira, aqui Autora, no decurso da execução da execução da obra objecto do contrato de empreitada. De outro modo, não se compreenderia que tivesse sido fixado como limite de vigência da garantia “a conclusão das obras previstas no referido contrato de empreitada”, coincidindo esta com “a recepção provisória daquelas obras, comunicada ao C..., por escrito subscrito pelo Empreiteiro e pelo fiscal da obra caso exista”. Ou seja: a referida garantia foi constituída para acompanhar a execução das obras compreendidas no contrato (base) de empreitada, garantido o cumprimento das obrigações da empreiteira constituídas no decurso dessa execução, extinguindo-se com a conclusão das obras, tendo-se esta por verificada com a recepção provisória das mesmas.
A dona da obra assinou o auto de recepção provisória a 07.05.2013, o que significa que aceitou a obra no estado em que foi recepcionada. De outro modo, teria se recusado a assiná-lo.
A empreiteira, embora recusando assinar o respectivo auto, igualmente aceitou aquela recepção, tanto assim que a invoca perante o Banco Réu na carta que, a 12.08.2013, lhe endereçou, dando-lhe conhecimento da mesma, juntando, para o efeito cópia do respectivo auto.
Não obstante haver tomado conhecimento, pelo menos nessa data, da recepção provisória da obra, e que esta havia sido aceite pelas partes intervenientes no contrato de empreitada, o que equivalia a dar como concluídas as obras objecto desse contrato, nos termos da garantia bancária de que era beneficiária, persistiu a Ré, apesar dos sucessivos alertas do Banco garante e da própria Autora, no seu propósito de executar a garantia bancária, com o reiterado argumento de ter a empresa empreiteira, aqui Autora, “incumprido obrigações [...] assumidas no contrato de empreitada”[33], o que veio a conseguir em Dezembro de 2013, não obstante o D... considerar que a conclusão da obra constitui facto pacificamente aceite pela dona da obra e pela empreiteira, tendo a recepção provisória sido comunicada por esta ao Banco Réu, por escrito, não se encontrando a garantia já em vigor, tendo aquele mesmo cancelado anteriormente a garantia e informado a Autora que podia proceder ao levantamento do respectivo original.
A propósito da anuência do D..., apesar das iniciais reticências em satisfazer a execução da garantia solicitada pelo C..., importa aqui introduzir um parênteses para esclarecer: apesar da automaticidade reconhecida à denominada garantia bancária à primeira solicitação, essa automaticidade não é, porém, absoluta, antes consentindo excepções que justificam a recusa do pagamento exigido.
Como, entre outros, faz notar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004[34], “o princípio de que o banco deve prestar de imediato garantia, logo que solicitado pelo beneficiário, sofre, no entanto, uma excepção: o banco pode, e deve mesmo, recusar-se a pagar a garantia, em caso de fraude manifesta, de abuso evidente por parte do beneficiário. Compreende-se a razão: há princípios cogentes de todo e qualquer ordenamento jurídico que devem ser respeitados, não podendo as garantias automáticas violar grosseiramente os aludidos princípios”[35].
Também na mesma linha de entendimento, defende o já mencionado acórdão da Relação do Porto de 24.03.2014: “implicam as garantias autónomas para o garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida, com base no mero pedido, solicitação ou exigência do beneficiário, sem que seja permitido ao garante invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o ordenante e o beneficiário, o que, no entanto, não exclui a possibilidade de o garante excepcionar o dolo, a má fé ou o abuso de direito, nos termos dos art.ºs 334.º e 762.º, n.º 2 do Código Civil”.
Desta forma, o abuso de direito, sendo ele manifesto, legitimava a recusa do Banco garante na satisfação do pagamento solicitado.
Retornando à actuação da Ré: insistindo esta no seu propósito de executar a garantia bancária nas aludidas circunstâncias, objectivo que logrou atingir, apesar de saber que a mesma se destinava a acompanhar o cumprimento das obrigações da empreiteira no decurso da execução das obras contratadas com a dona da obra e que as obras haviam sido concluídas, conclusão aceite por ambas as partes intervenientes no contrato de empreitada, ultrapassou aquela com a dita conduta os limites da boa fé, o que torna ilegítimo o exercício daquele direito.
Por conseguinte, tem a Autora direito a reaver a quantia indevidamente recebida pela Ré em resultado da abusiva execução da garantia bancária autónoma constituída a seu favor, além dos juros, vencidos e vincendos, desde a citação até integral pagamento, à taxa legal em vigor.
Improcede, desta forma, a apelação, sendo de confirmar, ainda que com distinto fundamento, o decidido na sentença sob recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em:
- Julgar parcialmente procedente o recurso quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, alterando esta nos termos oportunamente enunciados;
- Quanto ao mais, julgar a apelação improcedente, confirmando, ainda que com diferente fundamentação, a sentença recorrida.
Custas: pela apelante.

Porto, 11 de Julho de 2018
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 157.
[5] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[6] Até porque sobre o julgador recai, como já se mencionou, o dever de fundamentar a sua convicção no que concerne ao julgamento da matéria de facto.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra, 19.01.2010, processo nº 495/04.3TBOBR.C1, www.dgsi.pt
[8] Na expressão de Bentham, é na prova testemunhal que estão os olhos e os ouvidos da justiça…
[9] Cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, págs. 614, 615; Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 276, 277; Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 342.
[10] Processo nº 363/07.7TBPCV.C1, www.dgsi.pt.
[11] Não nos afigurando necessário tomar posição sobre se esta é, do ponto de vista formal, a metodologia mais correcta.
[12] “Garantias das Obrigações”, 2ª ed., Almedina, págs. 137 a 140.
[13] Inocêncio Galvão Telles, “Garantia Bancária Autónoma”, in “O direito”, Ano 120, 1988, III-IV (Julho – Dezembro), pág. 275 a 290; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2007, Processo nº 07B840, www.dgsi.pt.
[14] Ob. cit., pág. 141.
[15] Inocêncio Galvão Telles, ob. cit.
[16] Neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 24.03.2014, processo nº 11291/10.9TBVNG.P1, www.dgsi.pt.
[17] “Notas para o estudo do contrato de garantia bancária”, Revista de Direito e Economia, ano VIII, n.º 2, pág. 250.
[18] Estudo citado, pág. 285.
[19] Parecer publicado na C.J., ano XI, tomo 5, pág. 17 e seguintes.
[20] Galvão Telles, "Manual dos Contratos em Geral", 4°edição, página 514.
[21] Mónica Jardim, "A Garantia Autónoma", 2002, página 39.
[22] José Simões Patrício, Revista da Ordem dos Advogados, 1983, Ano 43, Volume III, página 686.
[23] Menezes Leitão, ob. cit., págs. 146, 147.
[24] Que, não intervindo no contrato de empreitada, apenas poderia tomar conhecimento da recepção provisória das obras por comunicação para o efeito efectuada.
[25] “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 286.
[26] “Abuso de Direito”, pág. 456.
[27] “Questão de facto – Questão de direito”, nota 46, pág. 526.
[28] Baptista Machado, “Tutela da Confiança e Venire contra Factum Proprium”, RLJ, ano 118º, págs. 171, 172.
[29] Ibid.
[30] Processo nº 2463/04, www.dgsi.pt.
[31] “Obra Dispersa”, I vol., págs. 415 e segs.
[32] Revista da Ordem dos Advogados, ano 58º, Julho de 1998, pág. 964.
[33] Sem nunca identificar quais as obrigações incumpridas que justificavam o acionamento da garantia, as quais continuam por esclarecer.
[34] Processo nº 04B2883, www.dgsi.pt.
[35] No mesmo sentido, cfr. Menezes Leitão, ob. cit., pág. 148.