Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
102/14.6T6AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: ACÇÃO TUTELAR COMUM
CONVENÇÃO SOBRE ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
RISCO GRAVE NO RETORNO DA CRIANÇA ILICITAMENTE TRANSFERIDA PARA UM ESTADO CONTRATANTE
Nº do Documento: RP20141125102/14.6T6AVR-A.P1
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Verificando-se a existência de um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável, os Estados Contratantes ficam desobrigados de ordenar o regresso de criança ilicitamente transferida ou indevidamente neles indevidamente retida (artº 13º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25 de Outubro de 1980).
II – Na apreciação destas situações as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança, mas a aquisição destas informações no procedimento não é condição da prolação da decisão, mesmo nos casos de indeferimento do regresso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 102/14.6T6AVR – A.P1
Aveiro

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório.
1. O Ministério Público, na qualidade de Autoridade Central Portuguesa ao abrigo da Convenção de Haia de 25.10.1980 (Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças), instaurou, por apenso à ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a correr termos na 1ª secção de Família e Menores da Instância Central da Comarca de Aveiro, com o número 102/14.6T6AVR, a presente ação tutelar comum para apreciação do pedido de regresso imediato dos menores B… e C…, nascidos respetivamente a 19/7/2007 e 9/3/2009, à companhia da sua mãe no Brasil (os menores, nascidos na constância do casamento de D… e de E… terão viajado com o progenitor, do Brasil para Portugal, no dia 9/12/2013, com regresso previsto para o passado dia 22/1/2014 e não regressaram nesta data, sendo propósito do progenitor que os filhos não regressem ao Brasil).

2. Notificado o pai dos menores sobre o pedido formulado e expediente que o instruiu, produziu alegações e juntou documentos, tendentes a demonstrar a existência de graves riscos e perigos de ordem física e psíquica com o regresso dos menores à companhia da mãe, no Brasil, concluindo pela aplicação da medida provisória de atribuição da residência dos menores com o pai.
Face à prova documental junta com as alegações do progenitor, o Digno Magistrado do Ministério Público, emitiu parecer promovendo o indeferimento do pedido apresentado pela mãe dos menores, por considerar que o regresso dos menores para junto desta implicaria o grave risco de ficarem sujeitas a perigos de ordem física ou psíquica e assim colocados numa situação intolerável.

3. Foi então proferida decisão, em cujo dispositivo se consignou:
“(…) julgo improcedente o pedido do Ministério Público e consequentemente não determino o regresso imediato das crianças B… e C… ao Brasil.”

4. O recurso.
É desta decisão que a mãe dos menores agora interpõe recurso, exarando as seguintes conclusões que se transcrevem:
“a) Vem o presente recurso interposto da decisão proferida no âmbito dos presentes autos, na sentença, julgou improcedente o pedido do Ministério Público e, consequentemente não determinou o regresso imediato das crianças B… e C… ao Brasil.
b) salvo o devido respeito, o R. discorda totalmente da decisão proferida.
Da Nulidade da Sentença
c) O Ministério Público Requereu a entrega judicial de menor contra o Requerido D….
d) Notificado o Requerido para se pronunciar este alegou factos tendentes à não entrega dos menores e juntou diversos documentos no intuito de comprovar o alegado.
e) Sucede que, salvo melhor opinião deveria a Requerente E… ter sido notificada destas alegações por parte do Requerido para que pudesse refutar as acusações delas constantes e mais importante ainda esclarecer o Tribunal contribuindo assim para a descoberta da verdade material e uma correta e consubstanciada decisão.
f) Ora, nada disto foi feito, a Requerente/Recorrente nunca foi notificada e a decisão baseou-se tão só na versão dos factos trazida aos autos pelo Requerido que diga-se falseou os factos como mais à frente se exporá.
g) Ao não dar à Recorrente o direito de resposta às alegações feitas pelo Requerido e decidindo sem que esta tenha sido ouvida, o Tribunal a quo violou normas imperativas como sejam o Regulamento CE 2201/2013 do Conselho de 27.11.2013 e a Convenção de Haia aprovada pelo Decreto Lei 33/83. (Veja-se a este propósito o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, doc. n° 3J20090120027771, disponível in http://www.dgsi.pt/. , proc. n° 0882777 e Reclamação 390/090YELSB, 2ª Secção de 8 de Junho de 2009).
h) Acresce que, a Ex.ma Juiza a quo decidiu da forma já exposta, em violação do art 13º da Convenção de Haia.
i) Com efeito, refere o art. 13.° desta convenção, que a autoridade judicial do Estado Requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa que se oponha ao seu retorno provar que exista um risco grave de a criança, no seu retomo, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
j) Porém, como ressalta da leitura atenta do preceituado deste artigo esta negação de retorno só pode ser adoptada desde que "ao apreciar as circunstancias referidas neste artigo, as autoridades judiciais deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança".
k) Ora, in casu, não houve qualquer informação prestada pelas autoridades competentes mas documentação junta pelo Requerido que não emitida por qualquer entidade central ou competente, pelo que se verifica a preterição desta formalidade legal, o que determina a nulidade da sentença.
l) Pelo que foi preterida uma formalidade legal o que determina a nulidade da sentença.
Dos factos
m) A requerente, ora recorrente casou-se em 02.03.2007 com o aqui recorrido, no Brasil onde tiveram os seus dois filhos e fixaram residência.
n) Desde a realização do casamento que a recorrente e o recorrido sempre residiram no Brasil, sito na Rua …, n°.., …, município de Santarém, Estado do Pará, Brasil.
o) Foi também no município de Santarém, no Estado do Pará, Brasil que nasceram os dois filhos do casal, B… e C…, conforme se comprova por doc.01 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
p) Os menores estavam regularmente matriculados numa escola do Município de Santarém, onde encontravam-se devidamente inseridos num contexto familiar e social.
q) A progenitora dos menores e aqui recorrente foi sempre uma mãe presente na vida dos filhos, inclusivamente sendo esta que participava da vida escolar dos filhos, frequentando reuniões escolares e eventos promovidos pela escola.
r) Apesar da recorrente e do recorrido aquando dos acontecimentos estarem casados de facto e de direito o certo é que a relação enfrentava a um certo tempo problemas provados pela personalidade instável e possessiva do recorrido.
s) O recorrido desde o início do relacionamento com a recorrente, sempre demonstrou ser uma pessoa muito dada a variações de humor e crises possessiva, situação que com o passar do tempo agravou-se.
t) O ápice da crise deu-se no início de 2012, em razão da recorrente ter iniciado atividade laboral no dia 04 de Agosto de 2011, como assistente administrativa, conforme doc.04 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
u) O marido sem consultar a aqui recorrente comprou passagens aéreas para Aveiro Portugal, para passarem as férias escolares do fim de ano juntamente com sua mãe.
v) Sucede que, a recorrida mesmo pedindo demissão foi obrigada segundo as leis trabalhistas brasileiras a cumprir o aviso prévio de 30 dias que findava no dia 28 de Dezembro de 2012, conforme doc. 07 que aqui se junta e se da por integralmente reproduzido.
w) A progenitora dos menores e aqui recorrente só cancelou a sua viagem diante da impossibilidade legal de viajar com a família, facto este que poderia ter sido evitado caso o recorrido tivesse tido um comportamento normal e conversando anteriormente com a esposa sobre o assunto.
x) Para não atrapalhar as férias dos filhos em razão dos seus compromissos profissionais a progenitora visando sempre o bem-estar destes, foi convencida pelo recorrido a autorizar que os menores viajassem apenas na companhia do pai, entre o dia 09.12.2013 com retorno para o dia 22.01.2014.
y) Sucede que, a partir do dia 02 de janeiro de 2014 o progenitor não autorizou o contacto da recorrente com os seus filhos, alegando que não retornariam mais ao Brasil, pois os menores necessitariam de acompanhamento médico, nomeadamente de que o filho B… precisaria de acompanhamento médico.
z) Conforme podemos verificar nas trocas de mensagens entre o casal, o recorrido recusa-se a continuar o contado com a recorrente e confessa inclusivamente que possui problemas psicológicos "Eu já estou sendo tratado também e tomando remédios", conforme se verifica no doc.08 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
aa) Ora, o recorrido sempre demonstrou uma incapacidade de demonstrar afeto, o que refletiu na vida familiar prejudicando principalmente os filhos do casal, conforme doc.09 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
bb) Conforme podemos verificar no Relatório psicológico efectuado no menor B…, elaborado pela psicólogo Dra. F… a conduta do filho descrita como comportamentos excessivos (ansiedade e opositor) são oriundos das "frequentes desavenças entre o casal e do comportamento de ansiedade do pai". Conforme doc.09 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
cc) Por diversas vezes o aqui recorrido foi atendido da emergência dos hospitais do Município de Santarém com o diagnostico de ansiedade e desequilíbrio, conforme se comprova com o doc.03 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
dd) Com o passar do tempo a progressão do quando clinico do recorrido o mesmo ficou conhecido no Município de Santarém entre os familiares e amigos do casal como uma pessoa desequilibrada.
ee) Ora, nos parece que os menores correm riscos físicos e psicológicos são com o progenitor que demonstrou ser uma pessoa fria e com capacidade de premeditação ao sequestrar os próprios filhos e privar os mesmos do convívio materno.
ff) Demonstrou ainda segundo os documentos ora juntos, que possui uma personalidade instável, ansiosa e extremamente possessiva, sendo capaz de chegar ao extremo de inventar uma história absurda sobre a sua esposa apenas para puni-la por conta dos seus excessivos ciúmes.
gg) Como ficou comprovado o comportamento inapropriado do filho do casal é oriundo do comportamento descontrolado do progenitor.
hh) Acresce ainda que,
ii) A recorrente possui plena capacidade física e psicológica, nunca tendo apresentado qualquer doença psicológica.
jj) O certo é que o recorrido juntou aos autos relatórios médicos cuja origem é no mínimo duvidosa e que não refletem a verdade dos factos, contendo imprecisões e inverdades que facilmente se constatam.
kk) Com efeito, o Dr. G…, médico que supostamente realizou perícia médica e elaborou os laudos médicos juntos ao processo é clinico Geral e não possui habilitações académicas e profissionais para elaborar qualquer relatório psicológico.
II) Mais grave ainda é o facto da aqui recorrente nunca ter efectuado nenhuma consulta com o clinico geral, pelo que não se percebe como pode tal clinico elaborar os laudos em causa.
mm) Como poderá o mesmo médico ter elaborado qualquer relatório clinico e efetuado diagnóstico de uma paciente que o mesmo nunca assistiu.
nn) A recorrida só teve conhecimento da existência desses laudos médicos com a junção dos mesmos nos autos deste processo.
oo) Momento em que foram tomadas todas as providências legais para comprovar a falsificação através da apresentação de uma queixa-crime.
pp) A recorrida ficou bastante surpresa quando soube da existência dos laudos médicos, pois jamais fora consultada ou informada por algum médico que padecia de doença psicológica.
qq) Também não corresponde a verdade de que a recorrida tinha pensamento suicidas ou que tentou cometer suicídio em 17 de Julho de 2012, muito menos em frente dos filhos como afirma o laudo do medico de clinica geral.
rr) Ademais a recorrida nunca foi atendida em consulta medica com o médico Dr. G…, e nunca foi diagnosticada por esse médico ou por qualquer outro com CID:F31 e F60.3.
ss) Estranhamente podemos constatar que num dos laudos elaborados pela Dra. H…, CRM 7672PA, a mesma inicia o laudo com a informação que "declara para fins judiciais que a Sra. E… .."., ora que motivo teria a médica para registar dessa forma, se não havia nenhum processo em trâmite ou pericial judicial no ano de 2012 a correr nos tribunais brasileiros em que a recorrente fosse parte.
tt) Não obstante no Brasil o paciente apenas solicita laudo médico nos termos dos que foram juntos ao processo para requerer algum benefício previdenciário perante o Instituto Nacional de Seguro Social-INSS o equivalente a Segurança Social Portuguesa ou para apresentar ao empregador como justificativa de falta, o que não ocorreu.
uu) A legislação trabalhista brasileira prevê que sempre que ocorre a concessão de licença ou auxilio saúde, faltas, dispensas, recebimentos de beneficio do INSS, FGTS (Fundo de Garantia do Trabalhador) entre outros direitos trabalhistas, devem ser registados na Carteira de Trabalho do trabalhador, o que nunca ocorreu, conforme podemos comprovar por doc.12 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
vv) Como podemos constatar todos os laudos médicos juntos ao processo foram emitidos no entre os meses de maio e junho de 2012, e o contrato de trabalho da recorrente vigorou entre 04 de agosto de 2011 até 23 de Dezembro de 2013. Conforme doc. 21 que aqui se junta e se da por integralmente reproduzido.
ww) Sendo assim, esses laudos médicos nunca poderiam ter sido solicitados pela aqui recorrente, pois teriam obrigatoriamente que estar registados na carteira de trabalho da mesma.
xx) Ora, se a recorrente não solicitou os referidos laudos, tudo nos leva a crer que foi o recorrido que fabricou todos esses documentos com o único fim de sequestrar os seus filhos e descredibilizar a recorrida diante de um tribunal estrangeiro, onde a veracidade dos mesmos documentos seriam mais difíceis de ser comprovado.
yy) Caso a recorrente padecesse de todos das doenças diagnosticadas nos laudos juntos ao processo, não se percebe porque o recorrido, uma pessoa conceituada e socialmente integrada, zeloso pelos interesses dos filhos, conforme dado como provado na douta sentença, não entrou com um processo de divórcio no Brasil na cidade de Santarém e requereu a guarda dos filhos no âmbito do processo de divórcio.
zz) Porque motivo um homem tão sensato e racional e que zela pelos interesses dos filhos submeteria as crianças ao sequestro, ao completo isolamento em relação a progenitora obrigando as mesmas contra a sua vontade a viver num outro pais, com uma cultura diferente no meio de pessoas que praticamente não conheciam.
aaa) Ora, temos que recordar que os menores nasceram e viveram até o sequestro do seu progenitor na cidade de Santarém no Brasil.
bbb) O progenitor, Recorrido, sem sombra de dúvidas inteligente, tinha total conhecimento que num processo de divórcio e regulação das responsabilidades parentais que tramitasse num tribunal brasileiro, os documentos aqui considerados "merecedores de toda a credibilidade", não seriam sequer aceites.
ccc) Não obstante a recorrente poderia num Tribunal Brasileiro, defender-se presencialmente o que facilmente comprovaria a sua total capacidade psicológica e tísica para cuidar dos seus filhos.
ddd) Poderia facilmente juntar testemunhas, essas sim merecedoras de toda credibilidade para comprovar que nunca padeceu de nenhum transtorno psicológico, e portanto, é mais que apta para cuidar dos seus filhos.
eee) A recorrente desde que teve os seus filhos abruptamente retirados do seu convívio pelo ato criminoso e premeditado do seu próprio marido, que faz tudo o que é possível para recuperá-los.
fff) Apresentou queixa-crime perante o Ministério Público Federal no Brasil, constituiu mandatário brasileiro e conta com o apoio do Consulado Geral do Brasil no Porto.
ggg) Após ser abandonada pelo próprio marido e ter os filhos sequestrados a requerente que havia apresentado a sua demissão do emprego sob coação do marido, teve que custear todas as despesas de casa sozinha.
hhh) Em 19 de Maio de 2014, foi contratada pela Secretária Municipal de Finanças, da Prefeitura Municipal de Santarém, com a função de atendimento ao público no setor de castro multifacetário, em razão da sua experiência e profissionalismo, conforme se comprova pelo doc.12 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
iii) Ora, como uma pessoa com tantos transtornos psicológicos consegue trabalhar num setor que exige tanta capacidade social e ainda receber uma carta de recomendação da Entidade Patronal?
jjj) A Recorrente como se pode comprovar pelos documentos juntos é uma pessoa de bem e que possui a capacidade para cuidar dos menores que estão a seu cargo.
kkk) Só podemos concluir que a Recorrente é pessoa idónea para educar os seus filhos menores pelo que deverá ser ordenado retorno destes ao Brasil para ali prosseguirem a sua vida familiar educativa e social.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se o decisão recorrida, decretando-se a nulidade da sentença e ordenando-se a audição e pronúncia da Recorrente ou caso assim não se entenda, determinando-se o retorno dos menores ao Brasil, como é de inteira JUSTIÇA!”[1]
O recorrido e o Digno Procurador da Republica contra-alegaram, por esta ordem, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Sendo as conclusões da motivação do recurso que delimitam o seu objeto e vistas as mesmas, importa decidir:
- se a decisão é nula;
- se a decisão de indeferimento do regresso dos menores ao Brasil deve ser revogada.

III. Fundamentação
1. Se a decisão é nula.
A recorrente considera que a decisão é nula por duas causas:
- foi proferida sem que lhe tenham sido dada a oportunidade de contraditar as alegações oferecidas pelo recorrido e documentos por este juntos aos autos;
- foi proferida sem qualquer informação prestada pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual das crianças e, assim, com inobservância do disposto no artº 13º da Convenção de Haia de 25.10.1980.
As causas de nulidade da sentença, aplicáveis aos despachos (artº 613º, nº3, do CPC) encontram-se taxativamente enumeradas no artº 615º, do CPC, como se deduz do seu número 1, que subordina as várias causas de nulidade que prevê à expressão “é nula a sentença quando”; fora destes casos a sentença pode ser injusta ou até inexistente[2], mas não é nula.
As razões apontadas pela recorrente não se subsumem a nenhuma das alíneas do nº1, do artº 615º, do CPC e tanto basta para declinar a nulidade da decisão.
Com as nulidades das decisões não se confundem as nulidades do processo que consistem, no dizer de Manuel de Andrade, em quaisquer “desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais.”[3]
Estas quando não configurem nenhuma das especialmente previstas nos artºs 186º a 194º, do CPC, podem ocorrer, na terminologia legal, com a prática de um ato que a lei não admita ou com a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva (artº 195º, do CPC).
As questões evidenciadas pela recorrente, impropriamente como se viu, como nulidades da decisão têm, a nosso ver, enquadramentos jurídicos distintos; no primeiro caso está em causa a violação de regras de procedimento, no segundo a violação de regras de direito probatório; estas reportam-se ao conteúdo da decisão e por não constituírem nulidades desta, relevam em sede de erro de julgamento (a alegada infração decorre – foi alegadamente cometida - da decisão), aquelas respeitam à omissão de formalidades prévias à formação da decisão e, como tal, suscetíveis de conduzir a nulidade do procedimento “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame da causa” (artº 195º, nº1, do CPC).
Qualificação jurídica que releva para o regime de arguição das ditas nulidades.
Começando pela primeira, não traduzirá novidade dizer-se que garantia do contraditório[4] é um princípio estruturante da lei processual civil e constitui uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais.
A resolução dos conflitos de interesses, colocados pelas partes nos tribunais, impõe ao juiz o dever de “observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (artº 3º, nº3, do Código de Processo Civil, doravante CPC) e só “nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (ibidem nº2).
A sua vertente essencial reside na “proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, juntos dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito”.[5] Ou, na formulação do Ac. T.C. de 4/11/87 [6]: “O conteúdo essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência nem nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”. Formulação que, alias, não anda longe do enunciado de Manuel de Andrade[7]: “Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”.
A observância do princípio do contraditório não se basta, pois, com a chamada da parte, ou da pessoa a que diz respeito a questão a decidir ao processo e exige que lhe seja dada uma efetiva possibilidade de defesa, ou seja, o real e efetivo poder de influenciar a tomada da decisão que a si respeita.
Por assim ser, a violação do princípio do contraditório, em qualquer das suas dimensões, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa e, como tal, subsume-se à cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 195º, nº1, do CPC.
Nulidades cujo conhecimento não é oficioso e carece de reclamação (artº 200º, nº3, do CPC) e é precisamente a ausência da tempestiva reclamação da nulidade agora suscitada que obsta, em sede de recurso, à sua apreciação.
Notificada da decisão que indeferiu o regresso dos menores ao Brasil, a recorrente dispunham do prazo de dez dias para arguir a nulidade da falta de notificação das alegações e prova junta pelo recorrido (artºs 199º, nº1 e 149º, nº1, ambos do CPC) que agora suscita e a lei só lhe permitia que o fizessem perante o tribunal superior se o processo fosse expedido em recurso antes de findar o referido prazo de dez dias, o que no caso não vem invocado, nem se verifica, uma vez que o ato a partir do qual se iniciou o prazo para a arguição da nulidade é o mesmo ato a partir do qual se iniciou o prazo para a interposição do recurso, ou seja, a notificação da decisão, sendo que o prazo de quinze dias (artº 638º, nº1, do CPC) para a interposição do recurso, obstaria a sua expedição ao tribunal superior antes de decorrido o prazo de dez dias para a arguição da nulidade.
A recorrente não reclamou tempestivamente da apontada omissão processual, em abstrato qualificável como nulidade e, pelas razões apontadas, precludido se mostra agora o direito de a ver apreciada.
Nesta parte, improcede o recurso.
A segunda nulidade suscitada por traduzir, em abstrato, um erro de julgamento impõe o seu conhecimento infra, em sede de apreciação do mérito decisão.

2. Factos.
A decisão recorrida assentou nos seguintes factos que considerou provados:
1) No 02 de Março de 2007 os progenitores contraíram casamento civil sem convenção antenupcial, no Brasil, Município e Comarca de Itajaí, Estado de Santa Catarina, tendo o referido assento sido transcrito e registado em Portugal - cfr. assento de casamento nº 8 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil de Aveiro junto a fls. 13 dos autos de divórcio.
2) Fruto desta união nasceram dois filhos menores, B…, nascido a 19.07.2007 e C…, a 09 de Março de 2009, tendo os mesmos dupla nacionalidade, portuguesa e brasileira (fls. 15 e 17 dos autos de divórcio).
3) Devido a constrangimentos psicológicos, que levaram a uma vida familiar impossível de suportar, dada a agressividade contínua da mãe para com as crianças e com o marido, foi solicitada avaliação psicológica à progenitora pela Secretaria Executiva de Estado de Saúde Pública do Sistema Único de Saúde do Governo do Estado de Pará.
4) - Conforme se atesta através da declaração emitida pela psiquiatra Dra. H…, a 30/05/2012, a mãe das crianças fez acompanhamento psiquiátrico irregular devido CID-10 F31 e F60.3 no período de Janeiro e Março de 2012.
5) As iniciais CID significam “Classificação Internacional de Doenças”, sendo que CID - F60.3 “são caracterizados por atos repetidos, sem motivação racional clara, incontroláveis, e que vão em geral contra os interesses do próprio sujeito e aqueles de outras pessoas. O sujeito indica que seu comportamento está associado a impulsos para agir. A causa para estes transtornos não é conhecida. Estão aqui reagrupados em razão de certas semelhanças grandes nas suas descrições e não em função de outras características comuns importantes conhecidas”.
6) As iniciais CID - F60.3 demonstram um “Transtorno de personalidade caracterizado por tendência nítida a agir de modo imprevisível sem consideração pelas consequências; humor imprevisível e caprichoso; tendência a acessos de cólera e uma incapacidade de controlar os comportamentos impulsivos; tendência a entrar em conflito com os outros, particularmente quando os atos impulsivos são contrariados ou censurados. Dois tipos podem ser distintos: o tipo impulsivo, caracterizado principalmente por uma instabilidade emocional e falta de controle dos impulsos; e o tipo "borderline", caracterizado além disto por perturbações da autoimagem, do estabelecimento de projetos e das preferências pessoais, por uma sensação crônica de vacuidade, por relações interpessoais intensas e instáveis e por uma tendência a adotar um comportamento autodestrutivo, compreendendo tentativas de suicídio e gestos suicidas.”
7) E CID-10 F31 significa “Transtorno afetivo bipolar é um distúrbio psiquiátrico complexo. Sua característica mais marcante é a alternância, às vezes súbita, de episódios de depressão com os de euforia (mania e hipomania) e de períodos assintomáticos entre eles. As crises podem variar de intensidade (leve, moderada e grave), frequência e duração. As flutuações de humor têm reflexos negativos sobre o comportamento e atitudes dos pacientes, e a reação que provocam é sempre desproporcional aos fatos que serviram de gatilho ou, até mesmo, independem deles.”
8) Continua a referida psiquiatra, informando no relatório apresentado que os comportamentos da progenitora representam “características impulsivas, baixa resiliência e instabilidade afetiva que dificultam o relacionamento familiar”.
9) Também no dia 30/05/2012 se pode verificar através da avaliação psicológica efectuada pela “I…” à progenitora, a mesma apresenta “humor deprimido, afeto embotado, linguagem eulália, retraimento do campo vivencial, impulsividade, instabilidade afetiva que dificultam o relacionamento familiar, ideação suicida.”
10) Mais descreve este que a progenitora pelo facto de ter efectuado um “acompanhamento irregular prejudicou a sua estabilidade emocional, mantendo comportamentos [humor depressivo, conflitos domésticos, sofrimento moral, agressividade, pensamentos suicidas e homicidas, sintomas vegetativos agudos] que prejudicam a sua relação familiar e social.
11) No dia 05 de Junho de 2012, também com referência às mesmas classificações médicas, CID-10 F31 e F60.3, a Unimed/Oeste do Pará, emite um laudo Médico referindo que a paciente, aqui progenitora das crianças, foi por eles examinada apresentando “sintomas e sinais tais como: depressão, baixa afetividade, isolamento familiar e social, predominante dificuldade de entrosamento familiar, grande instabilidade emocional e quadro clínico que demonstra visíveis dificuldades de relacionamento interpessoal”.
12) No dia 17 de Julho de 2012 dá-se uma tentativa de suicídio da mãe em frente às próprias crianças, cortando os pulsos com uma faca.
13) Tal situação revelou-se extremamente dramática, principalmente para o filho mais velho B…, que em 13 de Agosto de 2012 recorreu a apoio psicológico, conforme se pode atestar através da avaliação psicológica junta.
14) Já antes, quando andava no infantário, o B… demonstrava ter problemas de integração e comportamentos violentos.
15) É o pai quem acompanha este filho às consultas médicas.
16) O progenitor e as crianças residiram até Dezembro de 2013 em Santarém, no Pará – Brasil.
17) Marcaram viagem para a família ir a Portugal, para o dia 09.12.2013, sendo que estava programado irem os 4 (progenitores e filhos) nessa viajem, prevendo-se o regresso ao Brasil no dia 22.01.2014.
18) Foi a mãe quem à última hora decidiu não ir nessa viagem, enviando ela própria o cancelamento do seu lugar na viagem para a TAP – tudo conforme documentos que a própria mãe juntou aquando da queixa junto da Autoridade Central Brasileira e que demonstram que na marcação da viajem o seu nome também constava, acrescido do e-mail enviado pela TAP com a confirmação do voo -, tendo a mesma contudo concedido autorização de viagem para o progenitor poder sair para o exterior com os dois filhos.
19) Já no Brasil, pelo menos desde 13/08/2012, a criança B… apresentava sintomas psicológicos anormais, tal como evidenciado através do relatório de avaliação psicológica junto aos autos.
20) Tais sintomas não desapareceram até à data e carecem de apoio e tratamento especializado.
21) Nessa medida, o pai recorreu em Portugal a ajuda especializada, tal como se pode verificar através do relatório do centro de Psicologia e Gestão de Stress de Aveiro, emitido pela Médica Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência, Dra. J….
22) No dia 02/05/2014, quando o pai recorreu ao Centro de Saúde de Aveiro foi informado pelo médico que a criança B… necessita de um apoio cuja duração se prevê entre os 8 e os 12 meses.
23) O progenitor é uma pessoa conceituada e socialmente integrado, zeloso pelos interesses dos seus filhos.

3. Direito.
A Convenção sobre Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças (aprovada pelo Decreto do Governo nº 33/83, de 11/5/83, publicado no DR, I Série, de 11/5/1983, doravante designada por Convenção)[8], tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente e fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante [artº 1º, als a) e b)] e considera ilícita a deslocação ou retenção quando (a) tenha havido violação do direito de guarda atribuído a pessoa ou instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção e (b) esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido (artº 3º).
Verificada a ilicitude da deslocação ou retenção e havendo decorrido menos de um ano entre estas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança (artº 12º), obrigação que cessa se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha ao retorno provar (a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção, ou (b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável e ainda se a autoridade judicial ou administrativa verificar que esta se opõe a ele (regresso) e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto (artº 13º).
No caso dos autos, as crianças B… e C… residiam com ambos os progenitores em Santarém, no Pará, Brasil e no dia 9/12/2013, com autorização da mãe, viajaram com o pai para Portugal, na perspetiva de regressarem ao Brasil no passado dia 22/1/2014 o que, por decisão do progenitor, não veio a acontecer, permanecendo as crianças com o pai em Aveiro (pontos 16 e 18 a 23 dos factos provados).
Exercendo ambos os pais o direito de custódia, que inclui o “direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular o direito de decidir sobre o lugar da sua residência” (artº 5º, al. a) da Convenção), à data da deslocação das crianças, a permanência destas em Portugal, com inobservância do hiato temporal consentido pela mãe para a deslocação (entre 9/12/3013 e 22/1/2014), traduz uma retenção ilícita, como decorre do disposto no artº 3º, al. b) da Convenção e a decisão recorrida não deixou de acentuar, o que determinaria, em princípio, a obrigação do Estado Português, através das autoridades competentes, enquanto outorgante da Convenção, de ordenar o regresso imediato das crianças, uma vez que entre a data da retenção indevida (22/1/2014) e a data do início dos presentes autos (1/7/2014), havia decorrido menos de um ano (artº 12º da Convenção).
Esta obrigação de ordenar o regresso de crianças ilicitamente deslocadas ou indevidamente retidas num dos Estados outorgantes da Convenção comporta, porém, exceções motivadas pelos interesses das crianças que constitui a trave mestra da própria Convenção vocacionada como está para a proteção dos interesses da criança em todas as questões relativas à custódia.[9]
A decisão de ordenar o regresso da criança ilicitamente transferida para um dos Estados Contratantes ou nele retida indevidamente exige que se averigue da conformidade entre o regresso e o interesse da criança ou mesmo se o regresso é da sua vontade, desde que a sua idade e grau de maturidade justifiquem que a sua opinião releve sobre o assunto (artº 13º da Convenção).
Por assim ser, compreende-se que “existindo um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”, o Estado Contratante, não obstante a ilicitude da deslocação ou da retenção, deixe de estar obrigado a ordenar o regresso da criança (artº 13º, al. b), da Convenção).
Foi por aplicação deste regime que a decisão recorrida, com parecer concordante do Ministério Público, indeferiu o pedido de regresso dos menores B… e C… ao Brasil, na consideração que o progenitor, que se opôs ao regresso do menores ao Brasil, provou existir perigo para os menores caso os mesmos regressassem ao Brasil para junto da mãe.
Decisão que temos por ajustada aos factos que se provam designadamente aos enumerados de 3 a 14, 19 e 20 dos factos provados.
A recorrente discorda desta decisão na consideração que a narrativa factual que se prova não corresponde à verdadeira (listando os factos que tem por verdadeiros) e no entendimento que a decisão foi tomada sem ponderação de “informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança”.
Certo que a provarem-se os factos enumerados pela recorrente como os correspondentes à realidade, a solução jurídica muito provavelmente seria outra, mas os factos a considerar nas decisões são aqueles que na própria decisão se discriminam como provados e não quaisquer outros (artº 607º, nº3, do CPC), mesmo nos processos de jurisdição voluntária, como o presente, em que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes e só admitir as provas que considere necessárias e em que o julgamento não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo o tribunal adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artºs 986º, nº2 e 987º), pois a estes processos são aplicáveis as disposições relativas aos incidentes da instância (986º, nº1 e 292º a 295º, todos do CPC) e por via desta aplicação, o disposto no artº 607º (artº 295º, do CPC).
Discordando do julgamento da matéria de facto, qualquer das partes pode impugná-la em recurso, observando os ónus a que alude o artº 640º, do CPC e a Relação pode modificar a decisão de facto nos termos do artº 662º, do CPC, mas na ausência deste procedimento os factos a considerar são os discriminados como provados na decisão e não a narrativa processual de uma ou outra das partes.
Embora a versão dos factos apresentada pela recorrente se afaste de forma definitiva dos factos julgados provados pela decisão recorrida, em nenhum momento da motivação ou das conclusões do recurso declara, ou sugere, impugnar o julgamento da matéria de facto e muito menos deu cumprimento aos ónus a que esta impugnação está subordinada, o que compromete quer o reconhecimento processual da narrativa factual que anota no recurso, quer a dimensão jurídica que pretende ver reconhecida, por suportada em factos que não existem nos autos, quod non est in actis non est in mundo e, por esta razão, votada ao insucesso.
Por último, defende a recorrente que indeferido o pedido de regresso dos menores ao Brasil, sem existir nos autos qualquer informação prestada pelas autoridades competentes a decisão recorrida preteriu as formalidades previstas no artº 13º da Convenção; nos termos desta disposição, como já se referiu, “(…) a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo, que se opuser ao seu regresso provar:
a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recursar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.
Como declaradamente resulta da decisão recorrida, a decisão de indeferir o regresso dos menores ao Brasil foi tomada com fundamento nas provas juntas aos autos pelo pai dos menores, mais concretamente nos “relatórios médicos e avaliações psicológicas à mãe e ao filho mais velho elaborados e emitidos por autoridades clínicas brasileiras”.
Assente este pressuposto, o qual impõe a conclusão que a decisão foi tomada sem recurso a informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança, a recorrente terá razão (quanto ao fundamento) se a consideração destas informações for obrigatória nos apontados casos de indeferimento do regresso.
E não cremos que seja. A letra da norma não aponta para esta obrigatoriedade como resulta da expressão “as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações” e não uma qualquer outra que inequivocamente expresse a obrigatoriedade, sendo que a troca de informações relativas à situação social da criança, poderá ou não ocorrer entre os Estados conforme a consideração da sua utilidade (artº 7º, al. d), da Convenção).
E razões teleológicas também afastam a preconizada obrigatoriedade; a ser obrigatória, tal solução colocaria à partida um grave entrave à urgência que subjaz a todo o procedimento – a Convenção tem por objeto assegurar o regresso imediato das crianças ao lugar da residência - naquelas situações, como é o caso, em o procedimento não se mostra instruído com informações da situação social da criança prestadas por qualquer autoridade competente do Estado da residência habitual da criança, pois a observância desta formalidade implicaria sobrestar na decisão e aguardar por um relatório sobre a situação social da criança das referidas autoridades a elaborar num contexto em que a criança se encontra num outro Estado.
O alcance da norma compreenderá, pois, aquelas situações em que o processo se mostra instruído com informações da situação social da criança prestados pelas autoridades competentes do Estado da residência habitual ou cuja obtenção venha a ser considerada indispensável para a prolação da decisão pelo Estado requerido, nestas situações tais informações deverão tomar-se em consideração para efeitos de indeferimento do pedido de regresso.
No caso dos autos, inexiste qualquer informação prestada pela autoridade competentes do Estado da residência habitual das crianças sobre situação social destas, e a mesma não foi considerada, ou agora se considera, indispensável ao indeferimento do regresso imediato das crianças ao Brasil, como se decidiu e agora se reitera.
Improcede, pois, o recurso, restando confirmar a decisão recorrida

Sumário:
I- Verificando-se a existência de um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer modo fica numa situação intolerável, os Estados Contratantes ficam desobrigados de ordenar o regresso de criança ilicitamente transferida ou indevidamente neles indevidamente retida (artº 13º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia, em 25 de Outubro de 1980).
II – Na apreciação destas situações as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança, mas a aquisição destas informações no procedimento não é condição da prolação da decisão, mesmo nos casos de indeferimento do regresso.

IV. Decisão:
Delibera-se, pelo exposto, em julgar improcedente o recurso confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas (artº 26º da Convenção e 4º, nº2, al. f), do Regulamento das Custas Processuais).

Porto, 25/11/2014
Francisco Matos
Maria de Jesus Pereira
Maria Amália Santos
______________
[1] Reprodução de fls. 182 a 194.
[2] Sobre o conceito de sentença inexistente, cfr. A. Reis, CPC, anotado, V, pág. 113.
[3] Cfr. Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 176.
[4] Admitindo, por mera necessidade de raciocínio, que o princípio foi violado, pois ir mais além, ou seja, determinar se, no caso concreto, a recorrente deveria, ou não, ter sido notificada das alegações e documentos que o recorrido juntou aos autos, implicaria conhecer da nulidade.
[5] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pág. 164.
[6] BMJ 371, pág. 160.
[7] Ob. cit. pág. 379
[8] A que o Brasil aderiu em 14 de abril de 2000.
[9] Cfr. preâmbulo da Convenção.