Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
170/10.0GAVLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP20110928170/10.0GAVLC.P1
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma ‘tutela especial e reforçada’ da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 170/10.0GAVLC.P1
- com os juízes Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 28 de setembro de 2011, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 170/10.0GAVLC, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Vale de Cambra, em que é demandante civil B… e é demandado civil e arguido C…, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos [fls. 150-151]:
«A) Pelo exposto, decide julgar-se parcialmente procedente a acusação pública deduzida pelo Ministério Público, e, em consequência:
» Condenar o arguido. C…, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, nº 1, alínea a) do Código Penal, numa pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, não se aplicando ao arguido nenhuma das penas acessórias, previstas nos números 4 e 5 do artigo 152° do Código Penal;
» Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses;
(…)
B) No que respeita à responsabilidade civil, decide julgar-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, e, em consequência:
» Condenar o demandado, C…, a pagar à demandante uma indemnização, a titulo de danos não patrimoniais, no montante de € 1.600,00 (mil e seiscentos euros), acrescido dos juros de mora, à taxa legal, a contar da data da notificação para contestar até integral e efectivo pagamento;
(…)»
2. Inconformado, o arguido recorre, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [fls. 162-163]:
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3. Na resposta, o Ministério Público, refuta, de forma detalhada, todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 166-176]. Também a demandante civil apresentou resposta, concluindo que a sentença proferida não merece censura [fls. 177-183].
4. Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta acompanha a resposta do MP, emitindo parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso [fls. 194].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação [fls. 130-138]:
«(…) II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão da mesma:
1. Do assento de casamento com o nº …, do ano de 1984, Maço nº 2, da Conservatória do Registo Civil de Vale de Cambra, constam como nubentes o arguido, C…, e a ofendida, B…, a declararem celebrar o seu casamento, em 22 de Setembro de 1984;
2. O arguido e a ofendida residem no 1° andar direito, do prédio com o número de porta …, da Rua …, em …, Vale de Cambra;
3. D…, nascido em 13 de Setembro de 1985, é filho de C… e B…;
4. E…, nascida em 13 de Julho de 2004, é filha de C… e B…;
5. O D… reside e trabalha fora de Portugal, sendo que, E… reside com o casal;
6. O arguido e a ofendida dedicam-se à actividade de fornecimento e venda de chocolates;
7. Para o efeito, a dita actividade reparte-se entre o funcionamento de um armazém, que fornece as mercadorias, e de um salão de chá, denominado "F…", que vende as mesmas;
8. O arguido, enquanto Técnico Oficial de Contas, procede à contabilidade da actividade do casal;
9. Assim, aos produtos que o armazém fornece ao salão de chá corresponde uma entrada e uma saída de dinheiro, respectivamente;
10. No final do mês de Janeiro de 2010, em dia que não foi possível determinar, pelas 13 horas e 30 minutos, a ofendida encontrava-se no salão de chá, denominado "F…", sito na Rua …, …, Vale de Cambra;
11- O arguido dirigiu-se ao estabelecimento acima identificado e juntamente com a ofendida deslocou-se para a cozinha do referido espaço;
12. Nesse circunstancialismo de tempo e de lugar, iniciou-se uma discussão entre o arguido e a ofendida sobre uma alegada relação amorosa que o primeiro manteria com outra mulher, que não a ofendida;
13. Nessa sequência, o arguido desferiu uma bofetada no lado esquerdo da face da ofendida;
14. Acto contínuo, o arguido, em voz alta, dirigiu à ofendida as expressões "és uma filha da puta, não sou teu pai, cada vez que abras a boca apanhas no focinho", "és uma puta que me apareceste no caminho";
15. Após o que, o arguido saiu do estabelecimento acima identificado;
16. Desconhecem-se lesões na integridade física da ofendida decorrentes da conduta do arguido acima descrita;
17. No dia 2 de Abril de 2010, pelas 20 horas e 30 minutos, estando a ofendida no salão de chá, "F…", o arguido dirigiu-se àquele espaço com o objectivo de cobrar quantias monetárias ao caixa desse estabelecimento e que diziam respeito ao período de vendas do Natal;
18. A ofendida afirmou que, antes de proceder ao pagamento, tinha de fazer a conta do caixa;
19. Simultaneamente, guardou o dinheiro numa mala que trazia a tiracolo, demonstrando que o dinheiro ficaria com a mesma;
20. Nesse momento, o arguido, com o intuito de cortar a alça da referida mala e puxá-la, mas conformando-se com a possibilidade de ofender a integridade física da ofendida, pegou numa tesoura de cabo de plástico e lâminas de metal, usada para cortar o papel de embrulho e outras utilidades de balcão, dizendo "eu resolvo já isto'";
21. De imediato, o arguido logrou cortar a alça, mas não conseguiu apoderar-se da pequena mala que aquela suportava;
22. Antes de sair do estabelecimento, o arguido dirigiu as seguintes expressões à ofendida "tu pensas que sou como o teu par, "'tu és uma filha da puta que quer levar o dinheiro para a tua família", "tu és uma filha da puta, não sou como teu pai", "queres levar o dinheiro para debaixo da cama da tua mãe";
23. De seguida o arguido abandonou o estabelecimento;
24. Em 29 de Abril de 2010, pelas 14 horas e 30 minutos, a ofendida, com o objectivo de sair de casa, encontrava-se na residência do casal a fazer as suas malas, com a ajuda de uma funcionária do salão de chá "'F…”, G…;
25. A ofendida tinha já algumas malas no hall que dá acesso ao elevador do apartamento onde residem, quando ali chegou o arguido;
26. Este dirigiu-se à ofendida dizendo que a mesma era uma "ladra";
27. De seguida, falando para G… disse "tu não tens culpa, ela é que é uma ladra, só quer o meu dinheiro", "nada sai do apartamento, porque ela é uma ladra";
28. Actuando continuamente, o arguido desferiu pontapés nas malas de viagem que ali se encontravam;
29. Com um desses pontapés projectou uma mala mais pequena que ali se encontrava, atingindo a perna direita da ofendida, na zona da canela;
30. De seguida agarrou a ofendida pelo seu braço direito com vigor;
31. Empurrando-a, de imediato, em sentido contrário;
32. Consequentemente, a ofendida perdeu o equilíbrio e embateu com o seu ombro direito na ombreira da porta da entrada do apartamento, sem, contudo, cair no chão;
33. A ofendida, com a ajuda de G…, desistiu de levar consigo as referidas malas e colocou-as no interior da residência;
34. Após o que, se dirigiu ao Centro de Saúde de …, e posteriormente ao Hospital …, em Santa Maria da Feira;
35. A ofendida foi submetida à realização de um exame de perícia médico-legal, em 30 de Abril de 2010, constando desse relatório que "na ausência de lesões o perito não tem elementos para se pronunciar médico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física”;
36. O arguido, em todas as condutas acima descritas, agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as mesmas não lhe eram permitidas, e que as mesmas eram punidas por lei;
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37. Como consequência das condutas descritas em 13. e 29. a 31., a demandante sofreu dores;
38. Com as condutas descritas em 10. a 14., 17. a 23. e 24. a 33.., a demandante sofreu vexame, desgosto, angústia, revolta e humilhação;
39. As condutas acima descritas foram objecto de comentários por parte das funcionárias, familiares e amigos da demandante e do demandado;
» Factos atinentes à situação económica e social do arguido:
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Factos não provados
A. O arguido, no circunstancialismo descrito em 14. tenha dirigido à ofendida a expressão "queres-me roubar todo o dinheiro, e não me pagas o que deves";
B. O arguido, quando proferiu as expressões descritas em 27. tenha dito à ofendida que esta era uma "ladra nojenta'', apenas afirmando que era uma ladra;
C. No contexto de 20. a 23., o arguido foi afastado da ofendida por uma funcionária, H…, que ali se encontrava presente;
D. A demandante é pessoa de sã formação moral e física e de grande sensibilidade;
E. Sendo respeitada por todos no meio em que socialmente se relaciona, avessa a desacatos e de um modo geral a qualquer tipo de conflitos;
F. A demandante em virtude das condutas descritas em 20. a 23. sentiu-se completamente insegura e apavorada, temendo pela sua saúde e pela sua própria vida;
G. Facto que fez com que se tivesse refugiado, por diversas vezes, em casa de familiares;
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III- Convicção do Tribunal
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II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir as seguintes questões:
● Qualificação jurídico-penal dos factos;
● Pedido de indemnização civil [indemnização por danos não patrimoniais].
Qualificação jurídico-penal dos factos
8. i. Diz o recorrente que os factos dados como provados na sentença recorrida não são suscetíveis de integrar a prática do crime pelo qual vem condenado [um crime de Violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal (CP)]. Em seu entender, “(…) a conduta do aqui recorrente não é idónea ou suficiente para lesar o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica ou, por outras palavras, não reveste gravidade suficiente para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da ofendida” [conclusão H)] — pelo que deve ser absolvido do crime e, bem assim, do pedido de indemnização civil.
9. No essencial, o recorrente tem razão. O crime de Violência Doméstica, do artigo 152.º, n.º 1, do CP, não se reconduz a uma qualquer agressão só porque praticada no seio da vida familiar/doméstica. Atente-se no diz o citado artigo:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - (…)”

10. A ação praticada pelo agente deve consistir, pois, em “maus tratos” físicos ou psíquicos, nos quais se incluem castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. A conduta típica inclui, assim, para além da agressão física [mais ou menos violenta, reiterada ou não], a agressão verbal, a agressão emocional [p.ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade], a agressão sexual, a agressão económica [p. ex. impedindo-a de gerir os seus proventos] e a agressão às liberdades [de decisão, de ação, de movimentação, etc.], que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima [ver artigo 25.º, n.º 2, da CRP].
11. Quando se trata de identificar o bem jurídico protegido, tanto a jurisprudência como a doutrina têm revelado alguma hesitação na exata definição do recorte teleológico da norma. Percebe-se que é imperioso achar uma definição do bem jurídico que se diferencie do bem jurídico protegido, em particular, pelo crime de Ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º, do CP, sob pena de sermos obrigados a concluir que o legislador se está a repetir, criando dois tipos de crime para proteção do mesmo valor ético-socialmente relevante.
12. Das propostas avançadas para a identificação desse bem jurídico – (i) a que estima que o objeto da proteção penal é a paz e a convivência familiar, (ii) a que considera que o bem jurídico é idêntico ao do resto das lesões (iii) e a que defende que o bem jurídico protegido é a dignidade humana – esta última é a que tem merecido um maior acolhimento.
13. Cremos, contudo, que a eleição da “dignidade humana” como bem jurídico protegido pelo crime em causa acaba por se revelar demasiado vaga e demasiado abrangente, não permitindo caracterizar e distinguir o bem jurídico efetivamente tutelado. Como tem sido salientado por alguns autores, a “dignidade humana” é um atributo de toda a pessoa [artigo 1.º, da CRP], um atributo totalizador, uma síntese de todas as dimensões da pessoa humana que tem tradução em diversos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento penal, razão pela qual não pode ser confinada à condição de bem jurídico tutelado pelo crime de Violência doméstica [v.g. Garcia Martin, “El delito y la falta de malos tratos en el Código penal Español de 1995”, in Actualidad Penal, n.º 31, 1996, pág. 581 e 582, citado por José Vázquez, ver infra, pág. 748].
[Sobre as várias propostas de identificação do bem jurídico protegido, ver José Antonio Ramos Vásquez, “La problemática del bien jurídico protegido en los delitos de malos tratos ante su (pen)última reforma”, disponível em ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/2356/1/AD-9-34.pdf; Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 2009, Número especial; e Nuno Brandão, in “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Julgar, 12 (Especial), pág. 9-24 – os dois últimos, com ampla referência à jurisprudência portuguesa. Da jurisprudência, destacamos o Acórdão desta Relação, de 26.5.2010 (Joaquim Gomes), com posição que não seguimos na íntegra].
14. Analisadas, criticamente, as várias posições, seguimos a tese proposta por Nuno Brandão segundo a qual “o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo” [pág. 18].
15. Temos assim que a panóplia de ações que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente [Plácido Conde Fernandes, pág. 307]; caracterizadas como maus tratos, entende-se que a situação integra um padrão de comportamentos com uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima – razão pela qual é crime.
16. Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) [ver artigo 25.º, n.º 1, da CRP] comum ao crime de Ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da atuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do “ambiente e da imagem global do facto” [Nuno Brandão, pág. 19] indiciador de um maior desvalor da ação e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima.
17. No caso da Violência Doméstica “não há nenhuma exigência legal expressa de que a lesão da integridade física ou a produção de perturbações ao nível da saúde psíquica da vítima constituam elementos do tipo-de-ilícito”. Nesse sentido, o crime de Violência doméstica assume “não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstracto. É, com efeito, o perigo para a saúde do objecto de acção alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstracto” [Nuno Brandão, pág. 17].
18. E remata: “Sendo dado o devido relevo a este último aspecto justificativo da criminalização da violência doméstica, poderão superar-se eventuais objecções opostas a esta concepção fundadas na dificuldade em explicar por que razão a violência doméstica é punida mais severamente que a ofensa à integridade física se ambas protegem o mesmo bem jurídico e esta constitui crime de dano e aquela mero crime de perigo abstracto, com a concomitante pos­sibilidade de por esta razão a ofensa à integridade física ter prevalência sobre a aplicação da violência doméstica em caso de concurso. Reservas que todavia se mostrarão infundadas se os maus tratos forem encarados na perspectiva da ameaça de prejuízo sério e frequentemente irreversível que os mesmos em regra comportam para a paz e o bem-estar espirituais da vítima. Acresce que aqui sim e para este efeito deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de acção que agrava a ilicitude material do facto. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de antijuridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso. Do mesmo passo, assim vistas as coisas, afigurar-se-ão descabidas as vozes críticas que julgam redutora a opção pela saúde como bem jurídico do crime de violência doméstica” [pág. 18].
19. Trata-se, no fundo, de garantir uma tutela especial e reforçada face ao perigo ou à ameaça de prejuízo sério e frequentemente irreversível para a paz e o bem-estar físico e psíquico da vítima que decorre do quadro específico em que são perpetradas as agressões, configurador de uma situação de maus tratos [“(…) neste tipo de crimes, são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica” – Fig. Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, pág. 309]. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um “risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima” [Nuno Brandão, pág. 21]. Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de Violência doméstica, do artigo 152.º, do CP. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de Ofensas à integridade física simples, do artigo 143.º, do CP [AcRG, 17.5.2010 (Cruz Bucho): “…II - Se as condutas apuradas integram os crimes de ofensa à integridade física simples e de ameaça mas não satisfazem o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” que fundamentam a especificidade deste crime, apenas há que aplicar as normas gerais].
20. Cremos que esta é a posição que mais se ajusta à evolução sociológica que o fenómeno da violência doméstica tem conhecido nos últimos tempos. Na verdade, constata-se que, no âmbito das relações familiares e da vida doméstica, duas situações se têm agudizado (fruto, em grande medida, de uma maior deteção e divulgação de casos, de uma maior consciencialização da sociedade e de uma maior exigência de equilíbrio e de paridade no quadro dos relacionamentos de tipo familiar): de um lado, o incremento do número e da gravidade das agressões perpetradas, que, não raro, determinam sequelas irreparáveis; do outro, o refinamento das práticas usadas pelos agressores que tornam mais difícil a sua deteção – às vezes até pela própria vítima que se vê envolvida em jogos de amor-ódio, de sedução intensa e de falsas contrições que ofuscam a real dimensão possessiva do agressor [o chamado “ciclo da violência”] – e diminuem, progressivamente, a capacidade de resistência e de oposição da vítima.
21. Foi a este quadro, de contornos graves, que o legislador procurou acudir com a incriminação da Violência Doméstica [artigo 152.º, do CP] e dos Maus tratos [artigo 152.º-A, do CP]. Propondo uma punição mais grave que a consignada para o crime de Ofensa à integridade física simples [artigo 143.º, do CP], a Lei delimita a ação típica, essencialmente, à produção maus tratos praticados sobre pessoas abrangidas por um relacionamento de tipo familiar ou em situação de dependência.
22. Como a própria expressão legal sugere, a ação não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa [vítima] tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de “maus tratos”. E estes [maus tratos] só se dão como verificados quando a ação do agente concretiza atos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.
23. É esse o objetivo da Lei: assegurar uma “tutela especial [e] reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação [geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores] constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da “ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível” [Nuno Brandão, pág. 18] para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima, mesmo que não se chegue a produzir um resultado lesivo [crime de perigo abstrato contra a saúde – solução também defendida em Espanha, por Garcia Martín e García Álvarez Delgado].
24. Em conclusão, não é por o agente ter atingido uma ou várias vezes o outro elemento do casal que, necessariamente, se configura uma situação de maus tratos que leve a condenação pelo crime de Violência doméstica do art. 152.º, do CP [AcRG, 3.5.2011 (Paulo Fernandes da Silva): … II- Os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem. Contudo, nem toda aquela ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. A ocorrência deste crime pressupõe uma agressão capaz de afectar a dignidade pessoal do cônjuge enquanto tal”]. Não é por a(s) agressão(ões) físicas terem sido praticada no seio da vida familiar/doméstica que, imediatamente, se mostra excedida a previsão do crime de Ofensas à integridade física simples, do artigo 143.º, do CP – tanto mais que, como bem salienta o Acórdão desta Relação de 26.5.2010 [Joaquim Gomes], este tipo de crime acolhe variáveis que têm em conta não só com as especificidades da relação entre agressor e vítima mas também níveis distintos de gravidade e reiteração das agressões [artigos 144.º e 145.º, do CP].
25. O que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”. Pois se assim for, e ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efetivo, é de admitir a existência de um perigo para a vida e para a saúde da vítima, que o legislador, consciente do padrão de comportamento deste tipo de agressores (por regra, intensifica o caudal de violência ou de manipulação da vítima ao longo do tempo), procura protegê-la por antecipação e de forma reforçada.
26. Aqui chegados, facilmente concluímos que os dois episódios relatados nos Factos Provados da sentença recorrida não representam um potencial de agressão que supere [transcenda] a proteção oferecida pelos crimes de Ofensa à integridade física simples e de Injúria, previstos pelos artigos 143.º e 181.º, do CP, na medida em que não descrevem uma situação de maus tratos da qual resultem ou sejam suscetíveis de resultar sérios riscos para a integridade física e/ou psíquica da vítima.
27. Além da pequena gravidade das ofensas (física e moral) cometidas, não podemos ignorar que as mesmas se enquadram num momento de rutura ou de prérutura da vida conjugal, momento esse que, por regra, introduz um elemento de tensão novo e compreendível. No caso presente, os autos não acrescentam episódios de violência ao longo dos 26 anos de vida em conjunto, ausência que, associada à fraca gravidade das ofensas produzidas, não permite configurar uma situação de maus tratos que faça presumir um perigo real para a saúde e bem-estar da vítima.
28. Como bem conclui a motivação do recurso, “a conduta do aqui recorrente não é idónea ou suficiente para lesar o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica” – pelo que deve ser absolvido.
29. ii. Coloca-se, porém, a questão de saber se a conduta descrita não integrará a prática de outro ou outros crimes – em concreto, os crimes de Ofensa à integridade física simples do artigo 143.º e de Injúria, do artigo 181.º, ambos do CP.
30. Em relação ao crime de Injúria, há a assinalar que o procedimento criminal está dependente de queixa e de acusação particular [artigos 49.º e 50.º, do CPP]. Ora, a ofendida não se constitui assistente nem formulou acusação particular – pelo que não podemos conhecer de tais factos.
31. E a Lei não consente, sequer, que se abra, de novo, a lide processual para conhecer os mesmos factos. De acordo com o princípio ne bis in idem, “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” [artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. A proibição do duplo julgamento penal [Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Tomo I, 2005, pág. 330] visa, não só, impedir a dupla punição pelo mesmo crime, mas também a repetição de julgamento dos mesmos factos. Nas palavras de Gomes Canotilho / Vital Moreira, o princípio plasmado neste preceito “garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto (…) obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto” [Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 2007, pág. 497]. Também o Professor Figueiredo Dias realça os efeitos jurídico-constitucionais deste princípio ao lembrar que ele implica “por um lado, a proibição de dupla valoração do mesmo substrato material nele contido e, por outro lado, o mandado de esgotante apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita submetida à cognição de um tribunal num certo processo penal” [ob. cit., pág. 978].
32. Esta foi a orientação seguida no Acórdão desta Relação, de 16.12.2009 [Joaquim Gomes], em cujo sumário se lê: “A proibição resultante dos princípios constitucionais “non bis in idem” e da confiança do Estado de Direito Democrático, conduz, em regra e na sequência do trânsito em julgado de uma decisão, à extinção definitiva da lide processual penal e à perempção do direito-dever do Estado em julgar o mesmo acusado” [disponível em www.dgsi.pt].
33. Já quanto à possibilidade de integração do crime de Ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º, do CP, verificamos que os Factos Provados são omissos relativamente à caracterização do elemento subjetivo do crime. Apenas na apreciação e enquadramento jurídico-penal dos factos, a sentença se refere a ele, dizendo: “Não tendo a lei definido o dolo do tipo, é na doutrina, hoje dominante, que o mesmo é conceitualizado como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito (cf(r). Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, Coimbra Editora, página 349)”.
34. Confirmamos o teor da transcrição. Mas o Professor acrescenta, na mesma linha: “Importa, por isso, perguntar antes de mais como se decompõe, em pormenor, esta estrutura (…)” passando, a tratar o momento intelectual do dolo e o momento volitivo do dolo [obra e local cit.].
35. O “dolo” é, portanto, constituído por esses dois elementos. Nos Factos Provados vemos referência ao designado momento intelectual do dolo [ponto 36] mas nenhuma referência ao momento volitivo. Trata-se de uma situação anómala na medida em que a acusação do Ministério Público faz-lhe uma referência expressa [artigo 35.º e 36.º - ver fls. 40] sobre a qual não houve pronunciamento [integrando-o nos Factos Provados ou nos Factos Não Provados].
36. De acordo com o preceituado pelo n.º 2 do artigo 368.º, do CPP, os factos provados e não provados são, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os demais factos relevantes que resultarem da discussão da causa. O tribunal a quo ao não se pronunciar sobre este facto concreto, ou seja, ao não o considerar como provado ou não provado, violou o disposto no n.º 2 do art. 374.º, fazendo incorrer a sentença na nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º, ambos do CPP, cujo conhecimento é oficioso [ver AcSTJ de 8.9.2010, disponível em dgsi.pt].
37. Por último: entendemos que a alteração da qualificação jurídica agora determinada não carece de prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, uma vez que, ao degradar a acusação por um crime de Violência doméstica [do artigo 152.º, n.º 1, do CP] – cometido por meio de condutas que traduzem ofensas à integridade física – em um crime de Ofensa à integridade física simples [do artigo 143.º, n.º 1, do CP], não implica a necessidade de nova defesa: não sendo juridicamente relevante, não “surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido” [nesse sentido, ver o Acórdão de 12.1.2011, que subscrevemos e Acórdão de 15.6.2011 [Joaquim Gomes], disponíveis em www.dgsi.pt. Ver tb. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99 que erige-se em critério orientador a “defesa eficaz do arguido”].
Pedido de indemnização civil [indemnização por danos não patrimoniais].
38. O conhecimento desta questão está prejudicado face à declaração da nulidade da sentença – que deverá ser sanada através de deliberação sobre o facto omitido, seguindo-se a elaboração de nova decisão conforme ao quadro factual que for fixado.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Sem tributação – procedência da parte mais relevante do recurso.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo recorrente C…, absolvendo-o do crime por que vinha condenado; e,
● Declarar nula a sentença, determinando que a mesma juiz se pronuncie sobre o facto omisso e elabore, em conformidade, uma nova decisão.
Sem tributação.
[Elaborado e revisto pelo relator – em grafia conforme ao Acordo Ortográfico de 1990]

Porto, 28 de setembro de 2011
Artur Manuel da Silva Oliveira
António Gama Ferreira Ramos
José Joaquim Aniceto Piedade (voto vencido conforme declaração de voto)
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Declaração de Voto
Voto a absolvição da prática do crime de violência doméstica.
Não voto a declaração de nulidade da Sentença, pelas seguintes razões:
Ao declarar-se nula a Sentença está a decidir-se um vício formal que é prévio ao Julgamento de mérito.
Com efeito, considerando-se que o acto (no caso a Sentença), não surge perfeito na sua configuração jurídica, sendo nulo, daí decorre que o acto em causa (a Sentença) fica invalidada, isto é, não produz efeitos.
É por essa razão (óbvia, a meu ver) que os vícios formais são apreciados como questões prévias à Decisão de mérito.
Não se me afigura admissível, declarar, em simultâneo, a nulidade da Sentença e julgá-la quanto ao seu mérito, absolvendo da prática do crime de violência doméstica.
Estas duas Decisões Jurisdicionais são, entre elas, incompatíveis.
Paralelamente, do ponto de vista substancial, não me parece que a nulidade declarada exista.
Voto, pois, o parcial provimento do recurso com a consequente absolvição do crime de violência doméstica, sem mais, e o subsequente conhecimento da matéria civil, uma vez que como é sabido, ainda que não existindo responsabilidade penal, pode existir responsabilidade civil, tal como decorre do disposto do art. 377º, do CPP.

José Joaquim Aniceto Piedade