Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
293/14.6PFPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: DUPLO JULGAMENTO
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
DESCONTO
Nº do Documento: RP20160603293/14.6PFPRT.P1
Data do Acordão: 06/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1008, FLS.140-142)
Área Temática: .
Sumário: I - A proibição do duplo julgamento [art. 29.º, n.º 5, da CRP] pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.
II - A sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor cumprida como injunção no âmbito da suspensão provisória do processo deve ser descontada na pena em que o arguido foi condenado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 293/14.6PFPRT.P1

Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos, o arguido vem recorrer da decisão que o condenou, por entender que o tribunal devia ter procedido ao desconto, na pena em que foi condenado, da injunção que já cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo que lhe foi aplicada, mas que veio a ser posteriormente revogada: a proibição de condução de veículos com motor.

Relatório

O arguido B…, solteiro, desempregado, filho de C… e de D…, nascido em 04-09-1964, natural de …, Porto e residente na Rua …, Bl. .., casa .., entrada …, Porto, foi julgado e condenado, em processo abreviado, pela prática, em 31.05.2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º, nº 1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), o que perfaz o montante global de 300,00 € (trezentos euros);
Nos termos do disposto no artº 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, foi ainda condenado na proibição de conduzir veículos motorizados durante o período de 3 (três) meses, ficando este obrigado a entregar a carta de condução, no prazo de dez dias a contar do trânsito desta sentença, na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial (arts. 69º, nºs 2 e 3 do Cód. Penal e 500º nº 2 do Cód. de Processo Penal), sob pena de, não o fazendo em tal prazo, cometer um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, nº 1, al. b) do Cód. Penal.
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Nestes autos, o arguido prestou declarações, tendo declarado que pretendia confessar os factos que lhe são imputados, fazendo uma confissão integral e sem reservas, de onde se destaca:
No dia 31 de Maio de 2014, cerca das 04h,51m, o arguido circulava na rua …, área desta comarca do Porto, conduzindo o veículo automóvel de marca Fiat …, com a matricula ..-..-EC.
Interceptado pela PSP e submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, registou uma taxa de álcool no sangue de 1,61g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível (EMA), o valor apurado de 1,530g/l.
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Não se conformando com a pena em que foi condenado, interpôs o arguido recurso desta decisão, alegando, em síntese, que foi violado o princípio do “ne bis in idem” já que o arguido, por já a ter cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo, não deveria ter sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.
Vem, pois, o arguido/recorrente alegar que deve proceder-se ao desconto, na pena em que foi condenado, da injunção que cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo que lhe foi aplicada, mas que veio a ser posteriormente revogada: a proibição de condução de veículos com motor.
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O MP em 1º Instância e o Sr. PGA junto desta Relação são de parecer que o recurso deve improceder.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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No âmbito da suspensão provisória do processo que foi aplicada ao arguido nos presentes autos, o processo foi para julgamento por não terem sido cumpridas todas as injunções, tendo o arguido cumprido três meses de proibição de conduzir veículos a motor, pretendendo agora, que aquela injunção fosse descontada na sentença proferida.
Assim, na fase inicial dos presentes autos, foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de oito meses, mediante o cumprimento das seguintes injunções: - prestar 80 horas de trabalho socialmente útil, frequentar a actividade taxa.zero e proibição de conduzir qualquer veículo motorizado durante o período de três meses.
Porém, como não cumpriu as horas de trabalho estabelecidas, foi determinado (cfr. art. 282º, nº 3, do CPP), o prosseguimento dos autos, revelando que o juízo inicial que levou à escolha da aplicação daquele instituto falhou.
Ora, na suspensão provisória do processo existe a faculdade de o Ministério Público, verificados os pressupostos legais e com a concordância do juiz de instrução, não acusar e suster o andamento do processo por período não superior a dois anos, aplicando-se ao arguido as injunções ou regras de conduta tipificadas na lei. Trata-se de uma forma consensual de resolução do conflito criminal, que visa alcançar a ressocialização do agente evitando a condenação e a audiência de julgamento e, deste modo, obviar ao seu efeito estigmatizante para si e facilitar a sua reintegração social.
Porém, refere o artigo 281º, nº 3, do Código de Processo Penal que “tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor”.
Por isso, de acordo com o artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal, em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta, como foi o caso dos autos, o processo prossegue.
Porém, a questão de saber se deve proceder-se ao desconto, nas penas em que se foi condenado, das injunções que cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo aplicada tem sido controversa na jurisprudência, havendo uma corrente jurisprudencial para a qual não há que proceder ao desconto, tendo em conta a diferente natureza e o diferente regime das injunções no âmbito da suspensão provisória do processo e o das penas (cfr. AC. da RL de 6 -3- 2012 e 17-12-2014 e da RP de 28-5-2014 e 13-4-2016, in www.dgsi.pt).
Refere esta corrente, que sendo a injunção um instrumento processual que visa a composição e pacificação social e tendo a pena fins de prevenção geral e especial, o cumprimento da injunção decorre de um acordo obtido com o arguido, enquanto as penas são impostas independentemente da vontade do arguido, e o despacho que determina a revogação da suspensão provisória do processo e o seu prosseguimento com a acusação não implica o julgamento sobre o mérito da questão, nem o incumprimento dessas injunções tem como consequência o prosseguimento do processo (cfr. art. 282º, nº 4, do CPP: «as prestações feitas não podem ser repetidas»).
Porém, uma outra corrente, aos argumentos atrás referidos, sobrepõe um critério de justiça material, que atenda à equivalência de ambas as prestações, uma vez que a injunção e a pena em causa decorrem da prática do mesmo crime.
Por isso, tratando-se de uma proibição de condução de veículos motorizados, a mesma afecta de igual modo os direitos de circulação rodoviária do arguido.
Assim, apesar da sua diferente natureza, têm funções de prevenção especial e geral equivalentes, pelo que a ausência do desconto em causa levaria a sancionar duplamente a mesma conduta (cfr. nº 3 do artigo 281º do CPP: «…tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor», de onde decorre a obrigatoriedade desta injunção.
Para esta corrente, quando o nº 4 do artigo 282º do CPP fala em “repetição”, o termo tem o sentido que lhe é dado no direito civil, isto é, que não será possível reaver o que foi satisfeito (indemnizações já pagas ou contributos para instituições já entregues), mas não que prestações de facto já efetuadas, tenham de ser efetuadas outra vez, havendo uma substancial equivalência entre as injunções e as penas, não impedindo que o cumprimento daquelas seja descontado nestas, nos termos do artigo 80º, nºs 1 e 2, do Código Penal (cfr. Ac. RP de 19-11-2014 e 22-4-2015; Ac. RE de 11-7-2013; da RG de 6-6-2014; de 22-9-2014 e de 06-01-2014, e Ac. da RC de 10-12-2014; Ac. RL de 12-5-2016, todos in www.dgsi.pt).
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Concordamos com esta última posição, pois o que se pretende evitar com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta. Assim, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, mas não deixa de ser a mesma sanção acessória de proibição de conduzir, só que aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, onde o fim e a sua execução são iguais, mesmo que se entenda que têm natureza jurídica diferente. Pela mesma razão, deve também proceder-se ao desconto na pena de multa aplicada.
As injunções são, pois, ordens dadas ao arguido para que cumpra determinadas obrigações, de facere ou de non facere, pelo que, neste ponto, se assemelham a uma sanção penal, com o mesmo objectivo de realização do interesse público, realizado através de uma pena, mas a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa (cf. Costa Andrade, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, 1988, pág. 353).
Por outro lado, o princípio “ne bis in idem” que está consagrado no n.º 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa, diz: “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Em anotação a este artigo os Profs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, consideram que a Constituição, “... proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».”
Por isso, o principio ne bis in idem tem de garantir ao indivíduo estabilidade da sua situação jurídica em relação a uma determinada infracção, que foi definitivamente fixada e que não será alterada por decisão posterior, impedindo a realização de uma segunda acção punitiva pelos mesmos factos, e garantindo ao indivíduo a protecção da sua pessoa contra os ataques à sua esfera jurídica decorrentes da repetição de uma acção punitiva
Assim, a cumulação, no mesmo processo e na sequência da mesma conduta, da injunção e da pena, com a consequente aplicação de duas medidas (a injunção e a pena) materialmente idênticas e tendo por base a mesma conduta criminosa, tem de levar o juiz a procurar a compressão material do principio ne bis in idem, no sentido de saber se a lei oferece uma resposta para que se obste a que um condenado, pela prática do mesmo facto, cumpra uma punição por duas vezes, assegurando-se que um efeito já sofrido pelo delinquente deve ser tido em conta na sentença, tal como se encontra na previsão dos arts. 80º a 82º do CP, onde se abrange não apenas a prisão preventiva mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto (cfr. Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).
Resulta ainda do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Só quando razões ponderosas, baseadas noutros princípios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
Este n.º 3 propõe um legislador sábio, racional e justo, que consagra as soluções mais acertadas, mais correctas, justas ou razoáveis, e que sabe exprimir-se por forma correcta.
Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss., refere que Manuel de Andrade, em caso de dúvida, propõe a procura de um certo ponto de equilíbrio, nos seguintes termos: "Dentre os dois sentidos, cada um deles o mais razoável sob um dos aspectos considerados, deve preferir-se aquele que menos se distanciar da razoabilidade sob o outro aspecto".
Também Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, L.da, -1974, p. 95, refere: " Nas suas linhas essenciais, portanto, o problema da interpretação da lei não ganha, em direito processual penal, autonomia: trata-se aí, como em geral, da necessidade de uma actividade - prévia em relação à aplicação do direito e que, por isso mesmo, em nada contende com o carácter não subsuntivo desta operação - tendente a descortinar o conteúdo de sentido ínsito em um certo texto legal. Só convirá aqui relembrar dois pontos já devidamente acentuados: é o primeiro o da relevância que, para uma interpretação axiológica e teleológica nos domínios da nossa disciplina, assume a consideração do fim do processo; é o segundo o da necessidade de, por ser o direito processual penal verdadeiro «direito constitucional aplicado», se tomar na devida conta o princípio da interpretação conforme à Constituição."
Na duvida, os direitos devem prevalecer sobre restrições – in dubio pro libertate (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 4.º, 308).
Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 1978, pág. 127 e segs., refere que: «...As palavras podem ser vagas, equívocas ou deficientes e não oferecem nenhuma garantia de espelharem com fidelidade e inteireza o pensamento: o sentido literal é apenas o conteudo possivel da lei; para se poder dizer que ele corresponde à mens legis, é preciso sujeitá-lo a critica e a controlo».
Também no Ac. STJ de 27-9-1995, DR, IA, de 14-12-95, pág. 7878, se diz: «O que se pretende com a interpretação juridica não é compreender, conhecer a norma em si, mas sim obter dela ou através dela o critério exigido pela problemática e adequada decisão justificativa do caso. O que significa que é o caso e não a norma o prius problemático- intencional e metódico».

Por tudo isto, entendemos que a interpretação da lei mais correcta, impõe um critério de justiça material, que leva à equivalência de ambas as prestações, pois a injunção e a pena concreta decorrem da prática do mesmo crime, e sendo proibido o duplo julgamento, como forma de evitar a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime», tem de proceder o recurso do arguido.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, determinando-se que se proceda ao desconto dos três meses na pena de proibição de condução de veículos motorizados já cumpridos pelo arguido durante a suspensão provisória do processo, mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

Sem custas.

Porto, 3–6–2016
Donas Botto
José Carreto