Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3256/20.9T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PREVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
Nº do Documento: RP202304183256/20.9T8STS-B.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No confronto exclusivo entre o crédito garantido por penhor e o crédito da Segurança Social que beneficie de privilégio mobiliário geral, este prevalece, sendo pago com preferência relativamente àquele pelo produto da venda dos bens abrangidos pelo penhor, por força da norma especial do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS.
II – No confronto entre o crédito garantido por penhor, o crédito da Segurança Social e outros créditos que beneficiem de privilégio mobiliário geral, maxime créditos laborais e créditos por impostos, aquela norma especial não tem aplicação, pelo que prevalece o crédito pignoratício, seguido dos créditos laborais e, por fim, dos créditos por impostos a par dos créditos da segurança social.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3256/20.9T8STS-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 7

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de A..., Lda., veio o Administrador da Insolvência (AI) apresentar a lista dos credores por si reconhecidos e a lista dos não reconhecidos, nos termos do disposto no artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Decididas as reclamações apresentadas, foi proferida sentença de verificação e graduação dos créditos reconhecidos, na qual se decidiu, para além do mais, o seguinte:
«Pelo exposto, graduo os créditos acima reconhecidos da seguinte forma:
A) Relativamente à verba n.º 58 e 59: valores mobiliários e ações da B... apreendidas:
1) Em primeiro lugar e a par, os créditos privilegiados do Instituto da Segurança Social, no montante de € 6.182.04, e os créditos privilegiados do IEFP, nos montantes de € 30152.70 e € 4049.04;
2) em segundo lugar, será pago o crédito de B..., SA, que beneficia de penhor sobre tais ações.
3) Em terceiro lugar, deverão pagar-se os créditos privilegiados dos trabalhadores indicados na Lista do art. 129º CIRE, com a correção dos montantes dos créditos das trabalhadoras AA, BB (conforme acima exposto) e os créditos de que é titular o FGS (cfr. apensos de habilitação de cessionário)
4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária, provenientes de IRC, IRS e IVA;
5) Em quinto lugar, o crédito privilegiado do credor requerente da insolvência C... Company, nos termos do art. 98.º do CIRE, no montante de € 54.780.09;
6) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.
7) Por fim, e depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados (referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência), em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE.
(…)»
*
6. Inconformada, B..., S.A. apelou desta sentença, formulando as seguintes conclusões:
«i) A douta sentença recorrida deve ser revogada, porque nela se fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do Direito.
ii) O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que, face à conjugação dos nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º e 747º, nº 1, do Código Civil, entendeu que o crédito garantido reclamado pela Segurança Social deveria prevalecer sobre o crédito garantido por penhor e sobre os créditos laborais.
iii) Por aplicação do artigo 666º e 749º do Código Civil, o crédito garantido por penhor prevalece sobre i) o crédito com privilégio mobiliário geral dos trabalhadores (artigo 333º do Código do Trabalho) e ii) os créditos do Estado por impostos (mencionados na referida alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil).
iv) Segundo o nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito da Segurança Social por contribuições, quotizações e juros de mora “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
v) Pela mera aplicação da letra da lei, no confronto – exclusivo – entre um crédito da Segurança Social com privilégio mobiliário geral e um crédito garantido por penhor terá de prevalecer o primeiro.
vi) A solução poderá não ser a mesma quando, na graduação, estejam em concurso outros créditos com privilégio mobiliário geral (in casu, os créditos privilegiados dos trabalhadores e os créditos do Estado por impostos), sob pena de graves e arbitrárias distorções e incoerências jurídicas.
vii) A graduação levada a cabo pelo Tribunal a quo não resolve adequadamente o concurso de credores, especificamente o concurso entre os créditos que gozam de privilégios mobiliários gerais e o crédito garantido por penhor.
viii) Individualmente considerados, o crédito privilegiado dos trabalhadores prevalece sobre o crédito privilegiado da Segurança Social (cfr. artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009) mas cede perante o crédito garantido por penhor (artigo 666º e 749º, nº1, do CC); o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece sobre o crédito garantido por penhor (artigo 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009); o crédito garantido por penhor prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos do Estado por impostos (artigo 666º e 749º, nº 1 do Código Civil).
ix) Na categoria dos privilégios mobiliários gerais, o legislador conferiu uma força especial aos privilégios laborais, uma vez que estes devem ser graduados antes dos restantes créditos privilegiados, nomeadamente os do Estado e os da Segurança Social (artigo 333º, nº 2, a), do Código do Trabalho).
x) Todavia, no confronto entre os privilégios mobiliários gerais e o penhor (garantia real) apenas o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece, por aplicação da norma absolutamente excecional do nº 2 do artigo 204º, da Lei nº 110/2009, mas já não os privilégios laborais.
xi) Ao conjugar os normativos aplicáveis (nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º, 747º, nº 1, do Código Civil) de forma a graduar em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, em segundo o crédito pignoratício da B..., em terceiro o crédito dos trabalhadores, o Tribunal a quo não interpretou adequadamente a Lei.
xii) À luz dos critérios estipulados no artigo 9º do Código Civil, a unidade do sistema jurídico e a realização da justiça do caso reclamam uma interpretação corretiva-restritiva da norma do nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, segundo a qual quando concorram em exclusivo, este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
xiii) Quando concorrem outros créditos com privilégio mobiliário geral (nomeadamente os créditos dos trabalhadores) a prioridade conferida pelo artigo 204º, nº 2, da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro não opera, uma vez que há uma contradição insanável entre todos os dispositivos aplicáveis.
xiv) O princípio da prevalência do penhor sobre os privilégios mobiliários gerais deve, assim, enformar a decisão a proferir pelo Tribunal, por ser um princípio geral nesta matéria, respeitando-se, ainda, a coerência do sistema jurídico.
xv) Esta é a única solução que: i) Respeita a ordem geral de graduação dos privilégios mobiliários gerais, estabelecida no artigo 747º, nº 1, a) Código Civil, artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009 e artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho; ii) Cumpre os princípios gerais do direito, mormente a natureza real e a característica da sequela do penhor, nos termos dos artigos 666º do Código Civil; iii) Privilegia o substantivo em relação ao processual, na medida em que respeita o princípio substantivo, plasmado no artigo 749º do Código Civil, de que “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”, como é o caso do penhor.
xvi) A decisão a quo viola os artigos 9º, 666º, 747º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, o artigo 204º, nº 1 e 2 da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social), o artigo 333º, nº 1 e 2, do Código do Trabalho.
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que gradue, pelo produto da venda das ações, em primeiro lugar, o crédito reclamado pela B..., na parte garantida por penhor.
Não foi apresentada qualquer resposta a alegação do recurso.
*
II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se, com referência às acções descrias nas verbas n.º 58 e 59 do auto de apreensão, o crédito pignoratício da recorrente deve ser graduado antes ou depois dos créditos do Instituto da Segurança Social (ISS) e do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que beneficiam de privilégio mobiliário geral.
*
III. Fundamentação
1. Factualidade relevante
A decisão recorrida descreve assim a factualidade relevante:
- Foram reconhecidos os créditos acima referidos, constando a natureza dos créditos da Lista homologada;
- Foram apreendidos para a Massa Insolvente os seguintes bens:
a) bens moveis identificados no auto de apreensão de bens;
b) prédio urbano n.º ... CRP Vila do Conde, no qual a insolvente exercia a sua atividade;
c) valores mobiliários e ativos financeiros descritos no auto de apreensão de bens junto a 12.03.2021:


2. Direito
Nos termos do disposto no artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil (CC), não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
Esta norma consagra o princípio da par conditio creditorum, que a Ana Prata (Dicionário Jurídico, Coimbra, Almedina, 2006, 4.ª ed., p. 848) define como o «princípio segundo o qual todos os credores – que não gozem de nenhuma causa de preferência relativamente aos outros credores – se encontram em igualdade de situação, concorrendo paritariamente ao património do devedor para obter a satisfação dos respectivos créditos».
É, no entanto, frequente que um ou mais credores tenham direito a ser pagos, preferencialmente, por alguns ou por todos os bens do insolvente. Neste âmbito destacam-se as garantias e os privilégios creditórios, que constituem excepções ao referido princípio da igualdade dos credores. Por tal motivo, as normas que os consagram e tutelam devem ser interpretadas de acordo com a regra enunciada no artigo 11.º do CC.
Nas situações de declaração de insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência e tais créditos são denominados como créditos sobre a insolvência (artigo 47.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).
Os créditos sobre a insolvência são, de acordo com as “classes de créditos” introduzidas pelo CIRE: créditos “garantidos” e “privilegiados” (artigo 47.º, n.º 4, al. a), do CIRE), créditos “subordinados” (artigo 47.º, n.º 4, al. b), do CIRE) e créditos “comuns” (artigo 47.º, n.º 4, al. c), do CIRE).
Créditos “garantidos” e “privilegiados” são os créditos e respectivos juros que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre os bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalentes (sempre sem prejuízo das extinções previstas no artigo 97.º do CIRE).
Incluem-se nos créditos garantidos a consignação de rendimentos (artigo 656.º do CC), o penhor (artigos 666.º e ss. do CC), a hipoteca (artigos 686.º e ss. do CC) e o direito de retenção (artigo 754.º do CC).
Créditos garantidos são ainda, conforme se disse, os que beneficiem de privilégios creditórios especiais. Estão neste âmbito os privilégios creditórios imobiliários e mobiliários especiais.
São exemplos de privilégios creditórios mobiliários especiais os previstos nos artigos 738.º a 742.º do CC, como sejam as despesas de justiça, o crédito de autor de obra intelectual, etc.
Por sua vez, são exemplos de privilégios creditórios imobiliários especiais as despesas de justiça, o imposto municipal sobre imóveis (IMI, que substituiu a contribuição predial e que goza das garantias especiais previstas no Código Civil para esta, nos termos do artigo 122.º do código do IMI), o imposto municipal sobre transmissões onerosas de imóveis (IMT) e o imposto de selo (que substituíram o imposto de sisa e o imposto de sucessões e doações e que gozam das garantias concedidas a estes impostos, nos termos do artigo 39.º do código do código do IMT e do artigo 47.º do Código do Imposto de Selo) – cfr. artigos 735.º, n.º 3, 743.º e 744.º, do CC.
Créditos privilegiados são os que beneficiam de privilégios creditórios gerais sobre bens integrados na massa insolvente e que não se extingam por efeito da declaração de insolvência.
No presente recurso estão apenas em causa os créditos que beneficiam das garantias e privilégios que incidem sobre acções da B..., S.A. descritas sob as verbas n.º 58 e 59 do auto de apreensão, sendo aceite pelas partes – o que não merece qualquer objecção por parte deste Tribunal ad quem – que o crédito da recorrente B... beneficia de penhor sobre tais acções e que os créditos do ISS, do IEFP, dos trabalhadores, da Autoridade Tributária (provenientes de IRC, IRS e IVA) e da requerente da insolvência, C... Company, beneficiam de privilégio mobiliário geral.
Nos termos do disposto no artigo 666.º, n.º 1, do CC, o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro. Nestes termos, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela em anotação a esta norma (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra 1987, p. 685), trata-se de uma garantia real completa, oponível erga omnes e que confere ao seu titular o direito de sequela.
Por sua vez, o privilégio creditório é, nos termos do artigo 733.º do mesmo código, a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.
Já vimos que o privilégio creditório mobiliário é geral quando abrange o valor de todos os móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de ato equivalente (n.º 2, do artigo 735.º, do CC). Ao contrário do penhor, os privilégios mobiliários gerais não constituem verdadeiros direitos reais de garantia – desde logo porque não incidem sobre coisa certa e determinada, como é característico dos direitos reais, para além de não figuraram do elenco legal destes direitos, sendo certo que a seu respeito vigora um estrito princípio de tipicidade –, não conferindo ao respetivo titular direito de sequela sobre os bens por ele abrangidos.
Em caso de concurso entre o penhor ou outra garantia real das obrigações (hipoteca, consignação de rendimentos, penhora ou direito de retenção) e um privilégio geral, prevalece a referida garantia real, ainda que posteriormente constituída, nos termos do disposto no artigo 749.º do CC. Com efeito, dispõe o n.º 1 desta norma que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente. Ora, os direitos oponíveis ao exequente são os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido ou os direitos reais de garantia que o devedor haja constituído, aqui se incluindo o penhor.
Tal não obsta à existência de regras especiais que derroguem o regime geral assim delineado. É o que sucede com a norma do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, relativa aos créditos da Segurança Social, e a norma do artigo 7.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro, relativa aos créditos do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP).
De harmonia com o disposto no n.º 1, daquele artigo 204.º, os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a), do n.º 1, do artigo 747.º do CC, ou seja, a par dos créditos por impostos. Todavia, o n.º 2, do mesmo artigo 204.º preceitua que o referido privilégio mobiliário geral prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
Dispõe, por sua vez, o artigo 7.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro, que os créditos resultantes dos apoios financeiros concedidos nos termos deste diploma gozam de privilégio mobiliário geral sobre os bens móveis do devedor, graduando-se logo após os créditos referidos na alínea a), do artigo 747.º, do CC, nos mesmos termos dos créditos previstos no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, com prevalência sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
Os créditos previstos no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, são os créditos da Segurança Social, posteriormente regulados no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio. De acordo com estes dois diplomas, os créditos da Segurança Social que gozavam de privilégio creditório mobiliário geral eram graduados logo após os créditos referidos na alínea a), do artigo 747.º, do CC, em consonância com o disposto no artigo 7.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro. Vimos, porém, que o privilégio creditório mobiliário geral de que beneficiam os créditos da Segurança Social está actualmente regulado no CRCSPSS, preceituando o seu artigo 204.º que esses créditos são graduados nos termos referidos na al. a), do n.º 1, do artigo 747.º do CC, ou seja, a par dos créditos por impostos. Perante a alteração assim introduzida pelo CRCSPSS, a decisão recorrida – numa interpretação actualista da norma de 1978, que não foi impugnada por nenhuma das partes – considerou que o crédito privilegiado do IEFP dever ser pago a par dos créditos privilegiados da Segurança Social e, consequentemente, a par dos créditos privilegiados da AT (mas limitando esta última solução paritária aos bens móveis sobre os quais não incide penhor, pela razões melhor analisadas infra).
Perante as normas especiais do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, e da parte final, da al. a), do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 437/78, de 28 de Dezembro, que derrogam a norma geral do artigo 749.º, n.º 1, do CC (lex specialis derrogat lex generalis), é pacífico na jurisprudência que, no confronto exclusivo entre um crédito pignoratício e créditos privilegiados da Segurança Social e/ou do IEFP, estes prevalecem, sendo pagos com preferência relativamente àquele pelo produto da venda dos bens abrangidos pelo penhor. Neste sentido vide, a título meramente exemplificativo, o ac. do TRL, de 08.02.2022 (proc. n.º 857/21.1T8VFX-A.L1-1, rel. Isabel Fonseca).
Mas este consenso jurisprudencial cessa a partir do momento em que, a par do crédito pignoratício e dos créditos da Segurança Social e/ou do IEFP, concorram outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral, mormente os créditos dos trabalhadores e os créditos por impostos.
É o que sucede no presente caso, onde foram reconhecidos créditos laborais e créditos provenientes de IRC, IRS e IVA, para além do próprio crédito da requerente da insolvência.
Os créditos da Autoridade Tributária por IRS, IRC e IVA, dentro dos limites temporais estabelecidos pelo artigo 97.º do CIRE (se constituídos dentro dos 12 meses antes da data do início do processo de insolvência, extinguindo-se os demais), gozam igualmente de privilégio creditório mobiliário geral, nos termos do disposto nos artigos 736.º do CC, 111.º do Código do IRS e 116.º do Código do IRC, sendo graduados nos termos do já referido artigo 747.º, al. a), do CC.
Os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio creditório mobiliário geral por força do disposto no artigo 333.º, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho (CT), sendo graduados antes do crédito referido no n.º 1, do artigo 747.º, do CC, o que significa que prevalecem sobre todos os restantes créditos com privilégio mobiliário geral e especial, com excepção do crédito por despesas de justiça (cfr. artigo 746.º do CC), designadamente sobre os créditos da Segurança Social, do IEFP e dos créditos por impostos.
Por fim, o crédito da requerente da insolvência também goza de privilégio mobiliário geral, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC, sendo graduado em último lugar, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 1, do CIRE.
A graduação deste último crédito também não suscita dúvidas, não sendo, sequer, objecto do presente recurso.
As dúvidas surgem, como dissemos, a respeito das demais espécies de créditos em concurso.
Como vimos, a lei prevê expressamente a prevalência dos créditos da Segurança Social e do IEFP, que gozam de privilégio mobiliário geral, sobre os créditos garantidos por penhor; prevê ainda que esta garantia real prevalece sobre privilégios creditórios mobiliários gerais de que beneficiam os créditos dos trabalhadores e os créditos do Estado por impostos; mas também prevê que estes créditos por impostos devem ser graduados a par dos créditos da Segurança Social e do IEFP e que aqueles créditos laborais prevalecem sobre todos os demais, com excepção do crédito pignoratício. A contradição entre estas normas é ostensiva, transformando a interpretação coerente das mesmas numa verdadeira quadratura do círculo.
Nestes termos, o que neste recurso está em causa é saber se a prioridade conferida pelo artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS é sempre aplicável, determinando que os créditos da Segurança Social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora que gozam de privilégio mobiliário geral prevaleçam sempre sobre os créditos garantidos por penhor, ainda que isso implique o desrespeito das normas que regulam o concurso entre aqueles créditos da Segurança Social e os demais créditos que beneficiam de privilégio mobiliário geral, mormente os créditos laborais e os créditos por impostos, ou se a aplicação daquela norma é afastada quando aqueles créditos da Segurança Social concorram com estes créditos dos trabalhadores e do Estado, atenta a contradição insanável entre os diversos dispositivos legais aplicáveis, devendo então ser graduados em primeiro lugar os créditos pignoratícios.
A questão não é nova, sendo há muito debatida na doutrina e na jurisprudência – anteriormente perante o disposto no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, que aprovou o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência, e depois em face do atual artigo 204.º do CRCSPSS, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro –, sem que até agora se tenha obtido um consenso alargado.
Nos acórdãos do TRL, de 09.05.2019 (proc. n.º 2540/16.0T8STB-A.L1-2, rel. Jorge Leal), do TRC, de 21.05.2019 (proc. n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, rel. Barateiro Martins) e do TRP, de 28.10.2021 (proc. 630/20.4T8AMT-C.P1, rel. Fátima Andrade), podemos encontrar uma resenha elucidativa das três soluções que vêm sendo adoptadas pela jurisprudência a este respeito.
1.ª Uma primeira corrente jurisprudencial preconiza uma interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, circunscrevendo o seu campo de aplicação às situações em que o confronto se cinge aos créditos da Segurança Social e aos créditos garantidos por penhor.
Nas situações em que o concurso se estende a outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral, os defensores desta corrente afirmam que se verifica uma lacuna de colisão, que importa preencher com uma fórmula normativa materialmente coincidente «com a solução havida por mais condizente com o espírito do sistema jurídico».
Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1989, p. 196) descreve a lacuna de colisão da seguinte forma: «um espaço jurídico à primeira vista “duplamente ocupado” fica a constituir um espaço jurídico “desocupado”, uma lacuna. Em sede interpretativa apenas, a aplicação de qualquer das normas em concurso com a exclusão da outra seria arbitrária. Ora, como a aplicação simultânea das duas se mostra impossível ou absurda, podemos dizer que as duas normas (ou antes, as respectivas estatuições) se anulam uma à outra. Pelo que ficamos perante uma lacuna carecida de preenchimento».
O mesmo autor esclarece nada impedir «que esse preenchimento se faça mediante uma fórmula normativa materialmente coincidente com uma das normas em concurso (por ser essa a solução havida por mais condizente com o sistema jurídico)».
Em todo o caso, como se escreve no ac. do TRG, de 08.07.2020 (proc. n.º 159/15.2T8VLN-B.G1, rel. Fernando Fernandes Freitas), à semelhança do que havia feito o ac. do TRP, de 06.05.2010 (proc. n.º 744/08.9TBVFR-E.P1, rel. Filipe Caroço), ambos citando o ac. do TRC de 23.04.1996, «o preenchimento desta lacuna far-se-á, de acordo com o disposto no n.º 3 do art.º 10.º do C.C., pela criação de uma norma “que privilegie o substantivo em relação ao processual, que respeite o princípio substantivo de que «o privilégio não vale contra terceiros … titulares de direitos oponíveis ao exequente», que respeite o princípio da confiança, sabendo cada um – cada credor, no momento da constituição do seu crédito – com o que conta, que respeite o princípio da igualdade não privilegiando o Estado, nos vários graus da sua administração, em função do cidadão, que assegure o direito constitucional do acesso à justiça, não apenas como direito formal do recurso aos tribunais, mas como direito substantivo de, através dos tribunais, ver realizado o seu direito”, acrescentando ser esta, ao que parece, “a mais recente evolução legislativa, que caminha no sentido de pôr o Estado mais actuante, mas apenas através da sua actuação dinâmica, passe o pleonasmo, e não através de privilégios que o façam aproveitar do dinamismo (e do património) dos cidadãos.” (in C.J., ano XXI, Tomo II, pág. 38)».
Nestes termos, tendo em conta a natureza excepcional das normas que consagram privilégios gerais (à margem da autonomia privada e em derrogação da regra da par conditio creditorum), a proibição da sua aplicação analógica e a prevalência da sua interpretação restritiva, bem como o princípio da protecção da confiança e da segurança do comércio jurídico, a corrente que vimos expondo defende que a lacuna em causa deve ser colmatada através da prevalência do crédito pignoratício, seguido dos direitos de créditos garantidos por privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, e, por fim, dos créditos derivados de impostos a par dos créditos da Segurança Social.
Refira-se, num breve parêntesis, que embora os acórdãos que vimos citando refiram que os defensores desta corrente defendem que os créditos da segurança social devem ser graduados após os créditos por impostos, parece-nos evidente que tal afirmação é tributária das normas que precederam o actual artigo 204.º, n.º 1, do CRCSPSS, que mandavam graduar os créditos da Segurança Social que gozam de privilégio creditório mobiliário geral logo após os créditos referidos na alínea a), do artigo 747.º, do CC; ora, face à redacção do actual artigo 204.º, n.º 1, do CRCSPSS, que manda graduar os referidos créditos da Segurança Social nos termos referidos na al. a), do n.º 1, do artigo 747.º do CC, a coerência da corrente que vimos analisando impõe que esses créditos sejam graduados em paridade, nos termos expostos.
Neste sentido, para além de diversa jurisprudência, os referidos arestos citam a seguinte doutrina: Salvador da Costa, O concurso de credores, 4.ª edição, Almedina, p. 275; António Carvalho Martins, Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, Coimbra Editora, p. 91, nota 126.
No mesmo sentido, vide os acórdão do STJ, de 22.09.2021 (proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1, rel. José Rainho) e de 05.04.2022 (proc. n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1, rel. Ricardo Costa), afirmando-se neste último que, nos casos de confronto multilateral entre créditos garantidos por penhor e créditos laborais, fiscais e da Segurança Social dotados de privilégios mobiliários gerais, se deve seguir a ordem de prioridade determinada pelos critérios legais gerais.
Contra esta tese afirma-se que dá prevalência ao crédito pignoratício quando existe norma expressa a dar prevalência ao crédito da Segurança Social. Mas este argumento traduz uma verdadeira petição de princípio. Na verdade, o que se pretende é, por via interpretativa, definir o âmbito de aplicação da norma do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, para concluir se a mesma confere a aludida prevalência em todos os casos de concurso entre o penhor e o privilégio creditório mobiliário geral de que beneficia a Segurança Social ou se o legislador cingiu essa prevalência às situações em que aquele concurso é exclusivo.
Mais se afirma que, ao fazer depender a posição do crédito da Segurança Social, quando coexista crédito pignoratício, da circunstância de concorreram à graduação outros créditos do Estado ou dos trabalhadores, confere uma álea de incerteza que não pode ter sido pretendida pelo legislador. Mas este argumento é totalmente inconsistente pois, como decorre da própria formulação desta objecção, a posição do crédito da Segurança Social está sempre dependente de um factor aleatório – a coexistência do próprio crédito pignoratício. Note-se que mesmo os defensores da tese de que o artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS é sempre aplicável, que analisaremos de seguida, reconhecem (como sucede no já referidos acórdãos do TRP de 28.10.2021 e do TRC de 21.05.2019, embora as soluções aí apontadas para algumas as situações de conflitos não se afigurem inteiramente consentâneas com o disposto no artigo 204.º, n.º 1, do CRCSPSS) que o crédito da Segurança Social apenas prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e do Estado se com eles concorrer um crédito pignoratício, cedendo perante os créditos dos trabalhadores e sendo graduado a par dos créditos por impostos se não se verificar esse concurso com um crédito garantido por penhor.
2.ª A segunda corrente jurisprudencial em confronto corresponde à preconizada na decisão recorrida e que é sufragada no ac. do TRP de 28.10.2021 antes citado (ainda que com um voto de vencido, onde se defende a primeira tese exposta). Para esta segunda corrente deve dar-se prevalência ao crédito da Segurança Social, seguindo-se o crédito pignoratício, em terceiro lugar os créditos dos trabalhadores em por fim, os créditos do Estado por impostos.
O já referido acórdão do TRP de 28.10.2021, citando a decisão da primeira instância sobre que versou, afirma que «o penhor só cede perante o crédito do ISS, porque assim o impõe a norma do art.º 204, nº 2, da Lei nº 110/2009 de 16/09, sem que, quanto aos outros créditos (designadamente o crédito dos trabalhadores), isso prejudique a aplicação da regra geral de que o penhor confere ao credor respetivo prioridade de pagamento perante créditos que apenas beneficiam de privilégio mobiliário geral».
Mais se afirma naquele acórdão – que a decisão em apreço no presente recurso parece secundar – não ser «defensável que esta disposição do nº 2 só tenha aplicação quando se verificasse um conflito graduativo exclusivo das duas referidas causas de preferência – a do privilégio mobiliário geral dos créditos do ISS e o penhor», que «[n]ão impede a aplicação deste n.º 2 o facto de concorrerem também créditos laborais ou créditos da Autoridade Tributária», pois isso não resulta da letra da lei, nem se «afigura que tal ideia haja estado na mente do legislador, sabendo-se como se sabe que só muito raramente com aqueles dois créditos não concorrerão outros igualmente privilegiados, como são os da Fazenda Nacional ou dos trabalhadores».
Mas a verdade é que esta aplicação abrangente da norma do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, ainda que sustentada na letra da lei, desemboca numa violação frontal das normas que regem a ordem de graduação entre os diversos privilégios creditórios mobiliários gerais em confronto.
E não se diga, como faz no acórdão que vimos citando e na decisão recorrida, que este argumento «acaba por ser artificial, uma vez que esses créditos nada receberão (o que ocorre na maioria dos casos, atenta a superioridade do valor do crédito pignoratício face ao valor dos bens dados de penhor)». Está por demonstrar que o valor dos créditos garantidos por penhor seja sempre ou na maioria dos casos superior ao valor dos bens sobre que incide essa garantia. Com o mesmo grau de certeza – que é naturalmente muito reduzido, para não dizer nulo – poderíamos afirmar que, na maioria das situações, no momento da cobrança judicial, os referidos créditos já foram parcialmente amortizados. Seja como for, tal argumento está assente num pressuposto de facto que só a posteriori e casuisticamente poderá ser confirmado ou infirmado, pelo que não é passível de fundar uma interpretação metodologicamente válida da norma em apreço.
Com maior propriedade, argumenta-se na decisão sobre que versou o ac. do TRC, de 28.06.2022 (proc. n.º 3620/21.6T8LRA-C.C1, rel. Helena Melo), que a prevalência dos créditos da Segurança Social sobre o penhor «nem sequer entra em colisão direta e frontal com o artigo 333.º do Código do Trabalho, uma vez que aqui apenas se determina que os créditos dos trabalhadores são graduados antes dos referidos no artigo 747.º do CC e esta disposição nem sequer alude aos créditos da segurança social (sendo que estes são graduados nos termos da alínea a) desse artigo 747º por força de disposição legal que consta de outro diploma)»; assim, acrescenta-se, «se os créditos dos trabalhadores forem graduados antes dos créditos do Estado e depois dos créditos da segurança social, estar-se-á a respeitar – ou pelo menos não se estará a desrespeitar abertamente – o citado artigo 333º onde não se determina (de modo expresso) que esses créditos sejam graduados antes da segurança social». Ainda assim, esta argumentação não convence. Por um lado, faz uma leitura segmentada das normas, desprezando a sua leitura sistemática e violando o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do CC. Por outro lado, ainda que se entenda que, por esta via, se ultrapassa a contradição entre a solução adoptada à luz do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS e o disposto nos artigos 204.º, n.º 1, do CRCSPSS, e 333.º do CT, permanece por resolver a contradição entre a referida solução e o disposto nos artigos 204.º, n.º 1, do CRCSPSS, e 747.º, al. a), do CC.
Mais ponderoso é o argumento segundo o qual, depois da publicação do Código do Trabalho em Fevereiro de 2009, o legislador publicou o CRCSPSS em Setembro do mesmo ano, mantendo a precedência do privilégio mobiliário dos créditos da Segurança Social sobre o penhor anteriormente constituído, não desconhecendo as normas com que o artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS entra em colisão, nem a controvérsia jurisprudencial que esta solução já havia gerado, não ignorando designadamente a regra geral da ineficácia dos privilégios mobiliários gerais prevista no artigo 749.º, n.º 1, do CC, o que legitima a conclusão de que pretendeu, deste modo, conferir aos créditos da Segurança Social um tratamento privilegiado no confronto com o penhor e outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral, incluindo os créditos mencionados no artigo 333.º do CT. De resto, acrescenta-se, este propósito insere-se na necessidade de assegurar a sustentabilidade da Segurança Social e o direito que a todos é garantido pelo artigo 63.º da Constituição da República Portuguesa (cfr. ac. do TRC, de 28.06.2022 antes citado).
Mas este argumento é totalmente reversível. Ao referir-se apenas ao concurso entre os créditos privilegiados da Segurança Social e os créditos pignoratícios, apesar da controvérsia gerada, é legítimo concluir que, ostensivamente, o legislador não quis regular mais do que esse concurso bilateral, não dando qualquer sinal de querer alterar, de forma tão imperfeita e pouco clara, as diversas normas contidas no código civil, no código do trabalho e na legislação tributária que consagram outros privilégios creditórios mobiliários gerais e regulam a respectiva precedência.
Dito de outro modo, a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. artigo 9.º, n.º 3, do CC), e a obrigação do intérprete de reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (cfr. artigo 9.º, n.º 1, do CC) apontam precisamente no sentido contrário.
Concordamos, assim, com o ac. do STJ quando, no seu acórdão de 24.01.1999 (CJ STJ, VII, tomo II, p. 77), afirma que esta tese em apreço não tem correspondência nem na letra nem no espírito de nenhuma das formulações normativas em confronto, não se conformando nem com disciplina geral do artigo 749.º do CC, nem com o regime especial do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 103/80, correspondente ao actual artigo 204.º do CRCSPSS.
Por fim, sem querer de alguma forma menosprezar a importância fundamental das contribuições para a sustentabilidade da Segurança Social e o interesse público por ela prosseguido, a verdade é que o próprio legislador as situa, na ordem de pagamentos, a par dos créditos por impostos e depois dos créditos dos trabalhadores. Acresce que, como também se alerta no ac. do TRG de 08.07.2020, já antes citado, «cumpre fazer evidenciar que a Segurança Social desde a entrada em vigor da Lei n.º 110/2009 já dispõe da possibilidade de garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos art.os 601.º e sgs. do C.C.», conforme preceituado no artigo 203.º do CRCSPSS (e não no artigo 20.º como, por manifesto lapso, aí se refere).
3.ª Uma terceira corrente afirma que os créditos do Estado por impostos devem ser pagos em primeiro lugar, seguindo-se o crédito da segurança social e, por fim, o crédito pignoratício. Neste sentido, para além de diversa jurisprudência, é citado o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 40/90, de 07.11, BMJ 415, pp. 55 e ss, também consultável em www.dgsi.pt, e, na doutrina, Rui Pinto, A Acão Executiva, AAFDL, 2018, p. 853.
Claro que, de acordo com esta tese, concorrendo também créditos laborais dotados de privilégio mobiliário geral, estes teriam de ser graduados em primeiro lugar, mantendo-se a ordem dos restantes. Isso mesmo é afirmado no ac. do TRG, de 10.01.2011 (proc. n.º 881/07.7TBVCT-M.G1, rel. Teresa Pardal), que cita nesse sentido Manuel Lucas Pires, “Privilégios creditórios dos trabalhadores”, na revista “Questões laborais”, Ano XV, nº31, págs 76 e 87, bem como anteriores arestos da mesma relatora (dando nota de que esta abandonou, entretanto, tal corrente, em favor da primeira das teses aqui descritas).
Também esta terceira corrente se baseia na interpretação menos restritiva do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, que considera esta norma aplicável sempre que o concurso envolva créditos garantidos por penhor e créditos da Segurança Social dotados de privilégio mobiliário geral, independentemente de abarcar outros créditos dotados de privilégio mobiliário geral. Invoca, para tanto, a longa tradição daquela solução normativa no nosso sistema jurídico, em nome da relevância das finalidades subjacentes ao sistema da Segurança Social, bem como a sua conformidade constitucional (cfr. ac. do TRL, de 09.05.2019, proc. n.º 2540/16.0T8STB-A.L1-2, rel. Jorge Leal).
Contudo, argumenta-se no mesmo acórdão que «o legislador tem mantido, ao longo do tempo, a prevalência, nos pagamentos forçados, dos créditos do Estado sobre os da segurança social, graduando os respetivos privilégios creditórios à frente dos da segurança social (vide, sucessivamente, art.º 1.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 512/76, art.º 10.º n.º 1 do Dec.-Lei n.º 103/80 e art.º 204.º n.º 1 do Código da Segurança Social)».
Assim, acrescenta-se no mesmo acórdão, a solução interpretativa preconizada «é a única que, por um lado, respeita a proteção concedida aos créditos da segurança social expressamente consignada no n.º 2 do art.º 204.º do Código da Segurança Social e, em simultâneo, se harmoniza com a hierarquia implicitamente e logicamente decorrente do disposto no art.º 204.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Segurança Social, e 747.º n.º 1 al. a) do CC, devendo, como é próprio do funcionamento do sistema jurídico, as regras gerais contidas nos artigos 666.º n.º 1 e 749.º n.º 1 do CC ceder perante o regime especial supra descrito».
Afigura-se, porém, que esta tese parte de uma premissa desactualizada. Está correcta a afirmação de que, à luz do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, e do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, os créditos da Segurança Social gozavam de privilégio mobiliário geral e eram graduados «logo após os créditos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil», ou seja, logo após os créditos por impostos, que assim prevaleciam sobre aqueles. Contudo, já vimos que o actual CRCSPSS introduziu uma alteração nada despicienda nesta disciplina, preceituando que os referidos créditos da Segurança Social se graduam «nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil», o que significa que se graduam a par destes, cuja anterior prevalência foi, deste modo, extinta.
Em todo o caso, contra esta tese tem-se argumentado que, ao graduar os créditos do Estado à frente dos restantes e o penhor em último lugar, vai além do propósito do legislador e penaliza em demasia o credor pignoratício (cfr. o ac. do TRG de 10.01.2011 antes citado), que se vê ultrapassado não apenas pelos créditos da Segurança Social, mas também pelos créditos por impostos, sem qualquer base legal.
Feita a análise crítica das teses em confronto, facilmente se verifica que a mesma já tem implícita nossa opção pela primeira. Para além de tudo quanto ficou exposto – melhor diríamos, como corolário de tudo quanto ficou exposto –, em abono da corrente que preconizamos pesa decisivamente a circunstância de, estando metodologicamente sustentada a interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS em que a mesma assenta, a solução alcançada respeita todas as regras de graduação de créditos previstas na lei.
Assim, concluímos como o ac. do TRG de 10.01.2011 acima citado:
«Tudo ponderado e recorrendo aos critérios de interpretação consignados no artigo 9º do CC, parece-nos que a melhor solução para harmonizar as normas dos artigos 747º nº1 a) do CC, 377º nº2 a) do Código do Trabalho e 10º do DL 103/80 [esta última substituída pelo artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS] será a solução defendida por Salvador da Costa na obra citada e pelo referido acórdão da RP de 6/05/2010.
Pese embora os inconvenientes apontados, tal solução tem, por um lado, a vantagem de respeitar a natureza real e os direitos de sequela do penhor face aos privilégios mobiliários gerais, com excepção do privilégio mobiliário da Segurança Social, protegido pela norma especial do artigo 10º nº2 do DL 103/80 [actualmente pela norma especial do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS] e apenas quando concorre em exclusivo com este último.
Por outro lado, tem a vantagem de, concorrendo outros créditos com privilégio mobiliário geral, como é o caso dos créditos laborais e dos créditos por impostos, respeitar não só a natureza real do penhor, mas também a ordem estabelecida pelos artigos 747 nº1 a) do CC, 377 nº2 a) do CT» e 204.º, n.º 2, do CRCSPSS.
Em suma, existindo créditos laborais e créditos por impostos, estes só são ultrapassados pelo crédito garantido por penhor, de harmonia com as regras gerais dos artigos 666.º e 749.º do CC, mas não são ultrapassados pelos créditos da Segurança Social que, neste caso, não gozando da regra especial do artigo 204.º, n.º 2, do CRCSPSS, se graduam depois do créditos laborais e a par dos créditos por impostos.
Nestes termos, impor-se-ia refazer a graduação constante dos números 1) a 4) do ponto A) do dispositivo da decisão recorrida, mantendo-se apenas a ordem de graduação constante dos números 5) a 7).
Contudo, tendo em conta que apenas a titular do crédito pignoratício apelou desta parte da decisão, pretendendo que o seu crédito garantido ser graduado em primeiro lugar, acima dos créditos privilegiados do ISS do IEFP, o mesmo não tendo feito nenhum dos trabalhadores nem a Autoridade Tributária, que assim se conformaram com a graduação dos seus créditos privilegiados depois dos créditos antes referidos, os poderes de cognição deste Tribunal ad quem estão limitados à ordem de graduação determinada nos pontos 1 e 2 da decisão recorrida, atento o disposto no artigo 635.º do CPC.
Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, p. 135), «[N]o requerimento de interposição de recurso de decisão que integre diversos segmentos decisórios, a delimitação do seu objecto pode ser feita pelo (sic) enunciação de algum ou alguns dos respectivos segmentos. Não o fazendo, o recurso abarca, por defeito, “a parte dispositiva da sentença” (ou de qualquer outra decisão) que se revele desfavorável ao recorrente, naturalmente demarcada da argumentação ou da fundamentação que antecede a extração das conclusões» (cfr. artigo 635.º, n.º 3, do CPC). Ora, o segmento da decisão que se revela desfavorável à recorrente é, tão-só, o segmento que gradua os créditos do ISS e do IEFP antes do crédito daquela, o mesmo não sucedendo com o segmento que gradua os demais créditos depois dos anteriormente referidos, ainda que, para fundamentar a sua posição, a recorrente argumente que os créditos laborais também não deviam ter sido preteridos pelos créditos da Segurança Social.
Afirma o mesmo autor (cit., p. 138s) a respeito do n.º 5, do mesmo artigo 635.º, que «[s]e apenas uma das partes interpuser recurso relativamente a uma parte da decisão, o tribunal ad quem não pode, sob pretexto algum, revogar ou modificar outro segmento decisório em relação ao qual tenha saído vencedora a parte contrária». É o que sucede com o segmento da decisão que graduou os créditos do ISS e do IEFP acima dos créditos descritos nos números 3) a 7), do ponto a), do dispositivo da sentença recorrida.
Nestes termos, a procedência do recurso interposto traduz-se, tão-somente, na alteração da graduação plasmada nos números 1) e 2) da decisão recorrida, graduando-se o crédito da recorrente garantido por penhor em primeiro lugar, seguido dos créditos da Segurança Social dotados de privilégio mobiliário geral, mantendo-se a restante parte decisão.
*
IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os Juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto revogam parcialmente a decisão recorrida, graduando o crédito da recorrente garantido por penhor em primeiro lugar, seguido dos créditos da Segurança Social dotados de privilégio mobiliário geral, mantendo-se a restante parte decisão.
Custas pelo recorrido Instituto da Segurança Social.
Registe e notifique.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
Porto, 18 de Abril de 2023
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença