Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1413/21.0T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FIADOR
TÍTULO EXECUTIVO COMPLEXO
Nº do Documento: RP202209151413/21.0T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A situação do fiador, enquanto executado, é similar à do próprio arrendatário, pois ambos figuram no contrato de arrendamento, ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas e de ambos pode o credor/senhorio exigir tal pagamento.
II - O título executivo complexo formado nos termos do artigo 14º-A do NRAU abrange não apenas o arrendatário, mas também o fiador, cabendo no seu âmbito todas as rendas devidas e demais encargos até à restituição do respectivo locado.
III - Para fazer valer o título executivo contra o fiador, impõe-se que sejam cumpridas também quanto a ele as formalidades da comunicação previstas no artigo 10º do NRAU.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº1413/21.0T8VLG.-A.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução de Valongo

Relator: Carlos Portela
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço



Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório:
Nos presentes Embargos de Executado instaurados por apenso aos autos de Execução Ordinária para Pagamento de Quantia Certa em que é exequente S.... - .... …e executado/fiador AA e outros, foi proferido o seguinte despacho:
“AA deduziu os presentes embargos à execução ordinária para pagamento de quantia certa que lhe moveu a S.... - .... alegando que os documentos dados à execução não constituem título executivo contra o fiador por a comunicação efectuada a este não ter sido efectuada nos mesmos termos das efectuadas aos arrendatários e por não ter obedecido às formalidades exigidas pelos artº. 9º. e 10º. do NRAU uma vez que no contrato dos autos não foi convencionado domicílio quanto ao fiador, que a comunicação enviada ao fiador não goza de exequibilidade na parte respeitante ao valor da indemnização previsto no artº. 1045º. nº. 2 do CC, que o exequente atua em abuso de direito por não o ter informado atempadamente da verificação da mora no pagamento das rendas, por não lhe ter comunicado a resolução do contrato e por nada ter feito para reaver o locado. Finalmente alega que o contrato dos autos foi denunciado pelos arrendatários em abril de 2016 e para surtir efeitos a 31 de agosto de 2016, tendo o locado sido entregue em meados de agosto de 2016 pelo que a existir alguma renda em dívida respeita apenas ao mês de maio de 2016.
Recebidos os embargos e notificado o exequente veio o mesmo na sua contestação reafirmar o alegado no requerimento executivo e impugnar o alegado pela embargante na petição de embargos, concluindo pela improcedência dos mesmos.
Questões a decidir:
- Disponibilidade por parte da exequente de título executivo bastante para cobrar do executado fiador os valores constantes do requerimento executivo;
- Actuação do exequente em abuso de direito
- Denúncia do contrato de arrendamento por parte dos arrendatários.
Do alegado pelas partes e dos documentos juntos aos autos resultam os seguintes Factos:
1 – Em 01.03.2014, o Exequente e os Executados subscreveram um documento denominado “Contrato de Arrendamento Para Habitação Com Prazo Certo e Com Opção de Compra”, resultando dos termos do mesmo que o aqui exequente deu de arrendamento aos executados BB e CC a fracção AG, correspondente ao 4º. Andar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº. ... da Freguesia ... (...).
2 – Ainda nos termos do mesmo documento o contrato tinha prazo certo e a duração de cinco anos com início em 1 de Março de 2014 e termo em 28 de Fevereiro de 2019, renovando-se por iguais e sucessivos períodos de um ano, salvo se denunciado por qualquer das partes nos termos e prazos previstos na cláusula terceira, sendo a renda mensal fixada inicialmente no valor de €300,00, com vencimento no primeiro dia do mês anterior a que respeita, sendo pago aquando da subscrição do acordo o valor de €600,00 correspondente às rendas dos dois primeiros meses de vigência do contrato.
3- Nos termos do número quatro da cláusula terceira convencionou-se que “Quando o senhorio proceda à denuncia do presente contrato nos termos definidos no número um ou o contrato cesse por qualquer outra causa e o Arrendatário não restitua o locado até ao termo do prazo contratual em vigor ou até à data em que o deveria fazer, o Arrendatário constitui-se na obrigação de indemnizar o senhorio no valor diário correspondente a 1/10 (…) do valor mensal da renda por cada dia de atraso na restituição do locado e ainda na obrigação de suportar as despesas judiciais e extrajudiciais que o senhorio venha a ter, incluindo custas judiciais e honorários de Advogado ou Solicitador de Execução”.
4 – Nos termos da cláusula oitava convencionou-se que “O Fiador obriga-se, na qualidade de obrigado principal e solidariamente com o Arrendatário, renunciando ao benefício da excussão prévia, a proceder ao pagamento ao Senhorio de qualquer importâncias que sejam devidas pelo Arrendatário a título de celebração, execução ou cessação do presente contrato, suas renovações e aditamentos, incluindo indemnizações por não cumprimento e, bem assim, declara que a fiança que acaba de prestar subsistira ainda que haja alteração de renda fixada no arrendamento”.
5 – Nos termos da cláusula décima convencionou-se como domicílio dos arrendatários o imóvel objecto do contrato.
6 - O referido documento foi ainda subscrito pelo executado/embargante na qualidade de fiador.
7 – Em 20 de Setembro de 2016 a N..., S.A. enviou para a R. ..., ..., em ..., Gondomar, dirigida a BB e a CC, cartas registadas com aviso de recepção dando-lhes conta que estavam em dívida as rendas respeitantes aos meses de maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016 e que vinha “pela presente resolver o contrato de arrendamento em cima identificado (…), resolução que produzirá efeitos no último dia do mês em que V. Exªs sejam notificados da presente, …”.
8- Mais consta da missiva atrás referida que “poderão evitar a resolução do contrato de arrendamento, caso procedam ao pagamento da totalidade das rendas em dívida, acrescidas de metade do seu valor (penalização legal) …no prazo de 30 dias contados da recepção da presente carta …” e que “Caso não procedam aos pagamentos e/ou à entrega do locado ao Fundo nos prazos referidos, o Fundo será forçado a actuar os meios judiciais e a responsabilidade de V. Exªs será agravada pelos custos judiciais e ainda:
a) Pelos juros vincendos (futuros) à taxa legal até efectivo e integral pagamento, calculados sobre cada uma das rendas vencidas e não pagas;
b) Pela indemnização legal por não entrega do locado, correspondente ao dobro do valor da renda mensal, desde a cessação do contrato e até efectiva entrega do locado (artº. 1045º. do C.C.)”.
9 – As cartas atrás referidas foram devolvidas em 4 de Outubro de 2016 com a menção “Objecto não reclamado”.
10 – Em 4 de maio de 2020 o exequente enviou para a R. Campo ..., ..., ..., dirigida ao executado/embargante AA carta registada com aviso de recepção dando conta que se encontravam em dívidas as rendas maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, que procedeu à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento das referidas rendas e que a resolução operou em 30 de Setembro de 2016 e reclamando ainda o pagamento da quantia de €13.200,00 correspondente ao dobro do valor da renda mensal desde a data da resolução e até à entrega do locado que ocorreu em 2 de Julho de 2019.
11 – A carta atrás referida foi recebida em 7 de maio de 2020 por terceira pessoa.
12 – Em 4 de junho de 2020 o exequente enviou para a R. Campo ..., ..., ..., dirigida ao executado/embargante AA carta registada com aviso de recepção dando conta que se encontravam em dívidas as rendas maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, que procedeu à resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento das referidas rendas e que a resolução operou em 30 de Setembro de 2016 e reclamando ainda o pagamento da quantia de €13.200,00 correspondente ao dobro do valor da renda mensal desde a data da resolução e até à entrega do locado que ocorreu em 2 de Julho de 2019.
13 – A carta atrás referida foi recebida em 5 de Junho de 2020 por terceira pessoa.
Do Direito
O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora, probatória e constitutiva da obrigação exequenda (artº 10º. nº. 5 CPC), estando sujeito ao princípio da tipicidade, pelo que só os enunciados na lei (artº. 703º. CPC) são títulos executivos. Para maiores desenvolvimentos pode ver-se Miguel Teixeira de Sousa, A acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998 págs 65 e 66.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 14.º-A do NRAU, “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.
Estamos perante um título executivo complexo, composto por dois elementos: contrato de arrendamento e comprovativo da comunicação “do montante em dívida, … correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário” e que tem gerado entendimentos diversos, quer na doutrina quer na jurisprudência, acerca da possibilidade de o título executivo formado à luz do referido preceito permitir a propositura de ação executiva também contra o fiador, defendendo uns a constituição de título executivo sem necessidade de notificação do fiador, admitindo outros a constituição do título com a notificação do fiador e, finalmente, uma terceira posição, que recusa a possibilidade de constituição de título executivo contra o fiador.
Os defensores da primeira posição alicerçam o seu entendimento, no essencial no facto da obrigação de pagamento resultar do contrato e do fiador responder nos mesmos termos do afiançado por força do disposto no artº. 634º. do CC. Defendem esta posição, na doutrina, Menezes Leitão – Arrendamento Urbano, 6ª. Ed., pág. 234 e na jurisprudência, entre outros, Adeodato Brotas, Ac da RL de 14/03/2019 e Tomé Gomes, ainda na redação anterior à introduzida pela L. 31/2012 no AC da RL de 12/12/2008, admitindo, no entanto, que a solução era discutível. A segunda posição é defendida na doutrina por Laurinda Gemas – Arrendamento urbano, 2ª. ed., pág. 54 e na jurisprudência, a título meramente exemplificativo, por Luís Espírito Santo e Carlos Castelo Branco in, respectivamente, Acs da RL de 6/6/2016 e 5/11/2020. A defender a terceira posição temos Teixeira de Sousa – Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação de Menezes Leitão, 2014, pág. 406 – que partindo da letra da lei diz que “O preceito apenas admite que a comunicação seja realizada ao arrendatário, certamente porque somente este está em condições de controlar a veracidade do seu conteúdo e de deduzir alguma eventual oposição. Por isso o título executivo (…) não se estende ao fiador.” Por sua vez Rui Pinto – Manual da Execução e Despejo, 2013, págs 1162 e sgs - defende também esta posição por apelo à natureza restritiva das normas que preveem as categorias de títulos executivos. Na jurisprudência encontramos a defender também esta posição Alberto Ruço no Ac. da RC de 20/03/2018, Manuel Domingos Fernandes, Ac da RP de 2/12/2019 e Aristides Rodrigues de Almeida, Ac RP de 24/04/2014.
Também é nosso entendimento que deste princípio da tipicidade decorre a proibição do recurso á analogia ou à interpretação extensiva para atribuir valor executivo a um documento que a lei não qualifica como titulo (art.º 10 do C. Civil).
Como ser diz no referido Ac da RP de 24/4/2014 para o qual, para maiores desenvolvimentos se remete, estando-se perante um título executivo complexo e que “pressupõe a reunião conjunta de dois documentos, pelo que se o fiador não consta de um deles não existe título executivo contra ele; a alteração do NRAU pela Lei n.º Lei n.º 31/2012, de 14/08, deixou intocado o texto quando a questão já se discutia num sinal de que o legislador não pretendeu tornar claro que o fiador também pode ser executado; o Decreto-Lei n.º 1/2013, de 7 de Janeiro, denuncia essa intenção legislativa ao consagrar expressamente que só o arrendatário pode ser objecto do procedimento especial de despejo quando nele está compreendido a execução das rendas em dívida. Também Fernando de Gravato Morais, in Cadernos de Direito Privado, n.º 27, pág. 57 e seguintes, e in Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, pág. 76 e seguintes, defende que não se forma título executivo contra o fiador, com o fundamento essencial de que não sendo a norma clara no sentido de incluir o fiador e havendo elementos literais que indiciam que o quis excluir, uma vez que o fiador se encontra numa posição mais débil não lhe deve corresponder um regime mais agravado do ponto de vista processual, como sucede se inclusivamente se prescindir da notificação dele”, sendo que se se exigir a notificação do fiador, que não está prevista na lei, está-se “a reconstruir (aumentando-lhe o alcance) a norma do artigo 14.º-A por interpretação extensiva ou a construir uma nova norma por analogia” – Ac. RP de 2/12/2019 – o que vai contra o princípio da tipicidade dos títulos executivos.
Temos, assim, que o contrato de arrendamento, acompanhado ou não de comunicação do valor das rendas em dívida, nunca constitui título executivo contra o fiador, do que resulta a procedência dos presentes embargos, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo embargante.
*
Pelo exposto julgo os presentes embargos procedentes e, em consequência, extinta a execução.
Custas pelo embargado.
Notifique.
*
A embargada Solução Arrendamento veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos, as suas alegações.
O embargante AA contra alegou.
Foi proferido despacho onde se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação foi emitido despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas nas respectivas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor das conclusões das alegações da embargada/exequente:
1. O Embargado intentou requerimento executivo contra o Embargante, com vista à cobrança coerciva do valor total de 20.438,25€ (vinte mil quatrocentos e trinta e oito euros e vinte e cinco cêntimos).
2. Valor que corresponde a rendas vencidas e não pagas no valor de 1.200,00 Euros (mil e duzentos euros); à indemnização do art.º 1045.º/2 do C.C no valor de 19.200,00 Euros (dezanove mil e duzentos euros), acrescidos das custas processuais.
3. Na sequência do contrato de arrendamento habitacional celebrado em 1 de Março de 2014, o Embargado procedeu à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1083.º n.º 3 do C.C, com fundamento no não pagamento das rendas referentes aos meses de Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2016, no valor global de 1.200,00 Euros, mediante comunicação registada e enviada com A/R para a morada do locado.
4. Não tendo os Executados Arrendatários liquidado a totalidade das rendas em falta, bem assim da mora respeitante a 50% pelo atraso no seu pagamento, no período de trinta dias desde a devolução da carta enviada, não se encontra verificada a situação prevista no n.º3 do artigo 1084.º do C.C, e em consequência a resolução produziu retroactivamente os seus efeitos a 20.09.2016.
5. O contrato cessou todos os seus efeitos nessa data, momento em que os Executados Arrendatários deveriam ter procedido à entrega do locado.
6. Apenas em 2 de Julho de 2019 o Embargado recuperou a posse do imóvel.
7. Portanto, além das rendas vencidas e não pagas à data da resolução do contrato de arrendamento o Embargado peticionou ainda que lhe fossem pagas as quantias vincendas desde a data da resolução e até entrega efectiva do locado, a título de indemnização, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1045.º do C.C.
8. Por intermédio do despacho saneador sentença recorrido, o Tribunal a quo decidiu julgar procedentes os embargos de executado e, em consequência, extinguir a execução, por manifesta falta de título executivo em relação ao Embargante Fiador.
9. A jurisprudência dominante entende que existe, de facto, título executivo contra o fiador, atendendo, por um lado, ao regime substantivo da própria fiança e ao que dela está implícito, ou seja, além do conteúdo da obrigação principal, também as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal. E, por outro lado, defende ainda que, o contrato de arrendamento, enquanto documento particular que importa a constituição de obrigações pecuniárias, por si só, já seria título executivo, em termos gerais, logo contras todas as partes nele obrigadas, quer arrendatários, quer fiadores. E, bem assim, a norma do NRAU apenas restringe a sua exequibilidade intrínseca ao exigir a apresentação do comprovativo de notificação ao arrendatário junto com o contrato de arrendamento.
10. Nos termos do disposto pelo artigo 14.º – A do NRAU existe, de facto, título executivo contra o Embargante Fiador AA.
11. Atendendo ao regime substantivo da própria fiança e ao que dela está implícito, a posição do fiador no contrato é a de garante da obrigação principal com o seu património pessoal, por um lado e, por outro lado, também das consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor principal.
12. No contrato, o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia e obrigou-se a proceder ao pagamento ao senhorio de "quaisquer importâncias que sejam devidas pela celebração, execução ou cessação do presente contrato, suas renovações e aditamento, incluindo indemnizações por não cumprimento" (clª 8º do contrato).”.
13. O Embargante Fiador é, desta forma, responsável pelo pagamento dos valores em dívida nos mesmos termos dos Executados Arrendatários, tendo também sido interpelado pelo Embargado por comunicação enviada em 04.05.2020 e 04.06.2020, incluindo quanto à indemnização prevista no art.º 1045.º n. º 2 do C.C. (neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/10/2015, Proc. 4156-13.4TBALM-B.L1-8, in www.dgsi.pt.).
14. O contrato de arrendamento, enquanto documento particular que importa a constituição de obrigações pecuniárias, por si só, já seria título executivo, em termos gerais, logo contras todas as partes nele obrigadas, quer arrendatários, quer fiadores.
15. A norma do NRAU apenas restringe a sua exequibilidade intrínseca ao exigir a apresentação do comprovativo de notificação ao arrendatário junto com o contrato de arrendamento.
16. O fiador é, desta forma, directamente responsável pelas consequências patrimoniais associadas ao incumprimento pelo arrendatário, portanto não se vislumbra qualquer motivo suficientemente forte e relevante para não ser abrangido pela previsão da norma do artigo 14.º - A do NRAU.
17. O Recorrente encontra-se munido de um título executivo complexo nos termos da al. d) do n.º1 do artigo 703.º do C.P.C., conjugada com o artigo 14-A do NRAU, a obrigação é certa, exigível e líquida, salvo devido respeito pelo entendimento perfilhado, o Recorrente não pode aceitar que a execução seja extinta quanto ao Embargante Fiador sem que haja razões de direito para tal.
Por outro lado é o seguinte o teor das conclusões nas contra alegações do executado/embargante:
A. A sentença ora recorrida considerou que “ … o contrato de arrendamento, acompanhado ou não de comunicação do valor das rendas em dívida nunca constitui título executivo contra o fiador, do que resulta a procedência dos presentes embargos, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo embargante.”
B. Não se conformando, a Recorrente deduziu recurso da sentença do Tribunal de Primeira instância por considerar que no caso concreto se encontra, efectivamente, munida de um título executivo complexo nos termos da al. d) do n.º1 do artigo 703.º do C.P.C., conjugada com o artigo 14-A do NRAU.
Alegando, para tanto, que:
C. Juntou como título executivo o “contrato de arrendamento e cartas registadas com aviso de recepção”, datadas de 20 de Setembro de 2016, e enviadas aos inquilinos/1º e 2º executados (e só a eles), onde comunicava o valor das rendas em débito e a resolução do contrato de arrendamento, remetidas para a Rua ..., ..., em ..., Gondomar, que vieram devolvidas, em 04 de Outubro de 2016, com a indicação de «objecto não reclamado»,
D. No que ao Recorrido/3º executado diz respeito, para além dos documentos supra referidos, juntou um “…escrito assinado pelo declarante e remetido por carta regista com aviso de recepção”, em 04 Maio de 2020.
E. Mas como a comunicação foi recebida por pessoa diferente do Recorrido embargante, em 4 de Junho de 2020, dando cumprimento ao preceituado no nº 3 do artigo 10º da NRAU, enviou nova carta, também por “… escrito assinado pelo declarante e remetido por carta regista com aviso de recepção”, sendo a mesma recebida por terceira pessoa.
F. Considera, assim, a Recorrente que no caso concreto opera a presunção legal prevista no nº 4 do artigo 10º da NRAU.
Uma vez que,
G. “Aplicou-se na íntegra o regime das comunicações plasmado nos artigos 9.º e 10.º do NRAU quanto à comunicação da dívida emergente do contrato ao Embargante, tendo como resultado, de acordo com o nº4 do artigo10.º do NRAU, a comunicação a 4 de Junho de 2020 ao Embargante Fiador do montante em dívida. “ Não pode o Recorrido/fiador concordar com tal entendimento. Isto porque,
H. O artigo 703º do C.P.C., apresenta uma enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma acção executiva.
I. As normas que prevêem a criação dos títulos executivos dispensam a existência de processo judicial prévio, pelo que devem ser interpretadas restritivamente, não se podendo ir além da sua literalidade.
J. “Do princípio da tipicidade decorre a proibição do recurso á analogia ou à interpretação extensiva para atribuir valor executivo a um documento que a lei não qualifica como título)”.
K. Como promana do artigo14º A NRAU, o título executivo é formado pelo contrato de arrendamento complementado pela notificação de liquidação ao inquilino.
L. A norma especial em apreço, cria um específico título executivo, só permitindo a formação de título executivo contra o arrendatário. Para se entender que permite a formação e título executivo contra o fiador tem de se proceder a uma correcção de expressão do pensamento legislativo.
M. Não pode esquecer-se que “o intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e que tem de se presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir adequadamente o seu pensamento”.
N. Sendo, assim, tal título é restrito ao arrendatário, pelo que não se estende ao respectivo fiador ainda que, este, tenha intervindo no contrato de arrendamento e renunciado ao benefício da excussão prévia.
O. A notificação ao fiador não está prevista na lei e não estando não pode o tribunal criá-la ou atribuir-lhe valor jurídico, pois estaria a construir uma norma fora dos casos em que o pode fazer.
P. Caso assim sucedesse, estaria a reconstruir a norma do artigo 14.º-A da NRAU, por interpretação extensiva ou a construir uma nova norma por analogia, o que não é aplicável no presente caso.
Caso assim não se entenda, e que se coloca por mero dever de patrocínio,
Q. A comunicação ao arrendatário, a que alude o artigo 14º-A, do NRAU, funciona como requisito complementar de exequibilidade do título.
R. Caso se admita que, nos termos do artigo acima referido, é possível a formação de título executivo contra o fiador do arrendatário, sempre se dirá que se se exige a notificação do arrendatário para que se constitua em relação a ele o título executivo, então por identidade de razão e enquanto condição de exequibilidade do título, a mesma notificação deve ser exigida e feita também aos fiadores.
S. Uma vez que a situação do fiador é a de garante da obrigação, sendo assim acessória e logo, a posição deste, é muito mais frágil do que a de devedor principal. Posto isto, refere-se que;
T. O título executivo em que se baseia a execução tem que ser efectivamente junto pelo exequente sob pena da execução não poder prosseguir por falta de título, não podendo tal junção ser dispensada nem se podendo presumir, seja por que meio for, a existência do título. A junção do título executivo é condição indispensável à execução. E tal título só existe e se forma da conjugação dos diversos elementos que o compõem.
U. Como título executivo a exequente apresentou o contrato de arrendamento, duas notificações dirigidas aos arrendatários/1º e 2º executados, datadas de 20 de Setembro de 2016, e duas missivas dirigidas ao fiador/3º executado datadas de 04 Maio de 2020 e 4 de Junho de 2020.
Como se comprova destas comunicações,
V. Existem, caso assim se considere, as comunicações realizadas aos 1º e 2º executados/inquilinos em 20/09/2016, mas quanto ao aqui Recorrido não existe qualquer comunicação contemporânea dessa data.
W. O que foi junto foram duas missivas, com uma discrepância grosseira, quer em período temporal, quer em teor, comparativamente com as comunicações dirigidas aos executados inquilinos.
A saber;
X. A comunicação foi dirigida ao Recorrido/executado, num período temporal superior a três anos e meio das comunicações efectuadas aos executados / inquilinos.
Y. Nas notificações dirigidas aos executados/inquilinos, a exequente pede-lhes o montante devido a título de rendas vencidas, no valor de 1.200,00 (mil e duzentos euros), a indemnização pela mora ao abrigo do nº 1 do artigo 1041º do C.C., e caso não procedam ao pagamento, informam que se pretende resolver o contrato de arrendamento, resolução que operará no final do mês referente á notificação (resolução que poderá ou não operar os seus efeitos) e que devem desocupar e entregar o locado, livre de pessoas e bens, até ao final do mês seguinte.
Z. já nas notificações dirigidas ao executado/fiador a exequente pede o montante devido a título de rendas vencidas e de indemnização pelo atraso na restituição da coisa, ao abrigo do artigo 1045º do C.C. (e já não ao abrigo do artigo 1041º do mesmo diploma) ou seja: o valor das rendas em dobro, contadas até à entrega do locado no montante de €13.200,00, o que perfaz o valor global de €14.400,00 (catorze mil e quatrocentos euros),
A A. comunica que se procedeu á resolução do contrato de arrendamento, tendo a mesma produzido os seus efeitos em 30 de Setembro de 2016 (ou seja: quando a comunicação lhe é feita, já a resolução operou os seus efeitos há cerca de 3 anos e meio atrás), e que a restituição do locado ocorreu dia 02 de Julho de 2019. Confrontando-se o aqui Recorrido com uma situação que já correu todos os sus trâmites e onde já não há espaço para qualquer possibilidade de actuação.
Sendo assim, como na realidade o é,
BB. facilmente se conclui que, no caso, ao aqui fiador/recorrido não foi feita comunicação idêntica daquela que foi feita aos arrendatários.
CC. Como a comunicação prevista no art. 14°-A do NRAU não foi realizada ao embargante, ora Recorrido, á altura da que foi realizada aos arrendatários, tal impediu-o de pagar em substituição dos 1º e 2º executados, pois desconhecia o incumprimento destes
DD. O fiador foi confrontado com uma situação muito mais gravosa.
EE. A Recorrente não comunicou, ao Recorrido, previamente ou a par, das comunicações dirigidas aos arrendatários o montante das rendas em divida.
FF. A Recorrente/embargada coartou o direito ao Recorrido/fiador de honrar a sua fiança e agir em conformidade, diligenciando pela entrega do locado, de forma atempada, e pagamento das rendas que, alegadamente, se encontravam em divida.
Pelo que,
GG. Não pode vir, agora, a exequente querer exercer o seu direito contra o fiador sem que lhe tenha assegurado os mesmos direitos que aos arrendatários.
HH. É que, tal como os arrendatários, o fiador tem todo o interesse em conhecer em tempo oportuno do incumprimento a fim de, querendo, lhe pôr termo, diligenciando pelo rápido cumprimento da obrigação a que também ele estaria vinculado.
II. As notificações dirigidas aos arrendatários, previstas no artigo 14.º-A do NRAU, além da função de liquidação (até àquele momento), ainda têm uma finalidade relevante que é a de constituir uma derradeira interpelação dos mesmos para que procedam ao pagamento, sob pena de execução, o que já não sucedeu nas, alegadas, comunicações dirigidas ao ora Recorrido/3º executado.
JJ. Dispõe o artigo 1084º do C.C., sob a epigrafe “Modo de operar” no seu nº 1 e 3 que “1 - A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no n.º 3 do artigo anterior (“É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda,…”…, onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.”, “3 - A resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de três meses.”
Em suma,
KK. Face à ausência de pagamento das rendas, em 20 de Setembro de 2016, a Exequente/Recorrente, alegadamente, interpelou os inquilinos/1º e 2º executados dos valores das rendas em divida nessa data, dando-lhes a possibilidade de pagamento das mesmas, acrescido de 50% do seu valor (ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 1041º do C.C.), e caso assim não actuassem, então o contrato de arrendamento considerava-se resolvido com as demais consequências.
LL. Disso, não interpelou o fiador, aqui Recorrido, deixando-o á margem de tudo.
MM. Vindo, anos depois, numa tentativa de colmatar a sua inércia, a enviar duas missivas, sendo o seu teor, já em tudo, diferente das enviadas aos inquilinos. Isto dito, porque o Recorrido confrontou-se com a impossibilidade de pagar as rendas, de pôr fim á mora, de obstar á resolução do contrato de arrendamento, e/ou evitar a demora na entrega do locado.
NN. Ou seja: Ou pagava o valor das rendas em divida, acrescido da mora pela não entrega do locado (ao abrigo do artigo 1045º do C.C.), tudo no valor de €14.400,00, ou seguiam para execução.
OO. O fiador, ora Recorrido, após o contrato, não teve qualquer relação com a Recorrente, uma vez que a mesma não o interpelou para a situação. Pelo que seria injustificado confrontá-lo com a existência de uma execução sem que, após o contrato, tenha tido qualquer intervenção na formação do título executivo.
PP. Pelas razões aduzidas, não podem tais missivas, mesmo conjugadas com o contrato de arrendamento, constituir título executivo.
QQ. O novo CPC visou contrariar o aumento exponencial de execuções e o risco de execuções injustas.
RR. O título executivo em que se baseia a execução tem de ser efectivamente junto pelo exequente sob pena da execução não poder prosseguir por falta de título, não podendo tal junção ser dispensada nem se podendo presumir, seja por que meio for, a existência do mesmo.
SS. Tendo o embargante sido fiador dos arrendatários, figurando a fiança no contrato de arrendamento e não tendo aquele sido notificado das rendas em atraso, nem da resolução do contrato pelo senhorio, ainda que este tenha notificado o arrendatário, não pode a execução avançar contra o embargante, por falta de título.
TT. Assim, contrariamente ao alegado pela Recorrente, a “mesma” não dispõe de título executivo contra o Recorrido. Pelo que as comunicações não foram redigidas nos termos dos artigos 9.º e 10.º e ao abrigo do disposto no artigo 14º A, todos do NRAU.
*
Perante o antes exposto, resulta claro que é a seguinte a questão suscitada no presente recurso:
A de saber se no caso existe ou não título executivo relativamente ao fiador/executado.
Para apreciar e decidir esta questão importa considerar os factos que na decisão recorrida foram tidos como provados e que já antes aqui deixamos melhor descritos (cf. ponto I).
Como antes já vimos, na decisão recorrida foi entendido que o “contrato de arrendamento, acompanhado ou não de comunicação do valor das rendas em dívida, nunca constitui título executivo contra o fiador.” (sublinhado nosso)
Não é no entanto este o entendimento que subscrevemos, como já de seguida veremos citando o Acórdão que relatamos em, 16.12.2020, no processo 3566/19.8T8LOU-A.P1, publicado em www.dgsi.pt.
Assim e como ali se refere:
“Segundo o disposto no artigo 14º-A do NRAU, sob a epígrafe “título para pagamento de rendas, encargos ou despesas”: “O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
É por demais sabido que antes das alterações operadas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, o NRAU regulava esta matéria no artigo 15º, nº2, no qual se dispunha da seguinte forma:
“O contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.”
Todos sabemos da discussão doutrinária e jurisprudencial que se coloca a propósito desta questão.
Assim, alguns consideram que também existe título executivo contra o fiador, conhecendo-se que dentro desta tese há quem entenda como necessário, para haver título executivo, que se mostre comprovada a comunicação ao próprio fiador.
Já para outros bastará a comunicação ao arrendatário.
A argumentação que sustenta este entendimento assenta, fundamentalmente, no regime substantivo da fiança e na ideia de que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal cobrindo as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (cf. art.º 634º do Código Civil).
Por isso e salvo se houver estipulação diversa, considera-se ser desnecessária a interpelação dos fiadores.
A este propósito, aponta-se a ideia de que enquanto documento particular que importa a constituição de obrigações pecuniárias, o contrato de arrendamento já seria título executivo, nos termos gerais, contra todas as pessoas obrigadas no mesmo.
Deste modo, a notificação não será necessária para o vencimento da obrigação, destinando-se apenas a conseguir o objectivo de obrigar a uma como que liquidação extrajudicial prévia do montante em dívida, o que não se verifica em relação ao fiador uma vez que, em qualquer circunstância, a medida da sua obrigação é a da obrigação principal.
Daí que se considere que a sua notificação se mostra inútil e desnecessária.
Neste sentido o de que existe título executivo contra o fiador do arrendatário, vão entre outros, os acórdãos desta Relação do Porto de 21.03.2013, processo 8676/09.7TBMAI-A.P1, de 06.03.2018, processo 13535/14.9T8PRT-A.P1 e da Relação de Lisboa de 7.06.2016, processo 5356/12.0TBVFX-B.L1-7 e de 26.09.2019, processo 6298/13.7TBVFX-L1-6, todos em www.dgsi.pt.
Já a outra posição sustenta o entendimento de que o artigo 14.º-A do NRAU não prevê a formação de título executivo contra o fiador do arrendatário.
Assim esta tese fundamenta-se na ideia de que na Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, que alterou o NRAU, o legislador se preocupou em retirar este normativo do lugar secundário de último número do artigo 15.º, conferindo-lhe a dignidade de constituir sozinho um preceito autónomo.
A ser assim e conhecendo-se a polémica jurisprudencial e doutrinal que a norma vinha suscitando, a circunstância das alterações introduzidas no seu texto não terem compreendido, como era possível que tivesse acontecido, a tomada de posição expressa sobre tais divergências e a opção pela manutenção da menção exclusiva ao arrendatário (e não, por exemplo, a sua substituição pela referência a “devedor” ou a “obrigado”), pode ser interpretada como um sinal de que para o legislador a norma legal abrange exclusivamente a formação do título executivo contra o arrendatário.
Nesta linha cf. na Doutrina, Rui Pinto Duarte, Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013 e Fernando de Gravato Morais que, Cadernos de Direito Privado, n.º 27, pág. 57 e seguintes, e Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, pág. 76 e seguintes, os quais defendem que não se forma título executivo contra o fiador com o fundamento essencial de que não sendo a norma clara no sentido de incluir o fiador e havendo elementos literais que indiciam que o quis excluir e uma vez que o fiador se encontra numa posição mais débil, não lhe deve corresponder um regime mais agravado do ponto de vista processual, como sucede se inclusivamente se prescindir da notificação dele.
Na jurisprudência cf. entre outros os acórdãos desta Relação do Porto de 24.04.2014, processo 869/13.9YYPRT.P1 e de 02.12.2019, processo 8820/18.3T8PRT-A.P1, ambos em www.dgsi.pt.
Seguindo as considerações que constam do supra citado acórdão desta Relação de 06.03.2018, também nós temos como certo que quanto à fiança se deve considerar o que decorre do disposto nos artigos 627º, nº1 e 634º do Código Civil.
Assim e segundo o primeiro deles, “o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor”.
Por outro lado e de acordo com o segundo, “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.
A ser deste modo, é correcta a afirmação ali contida e segundo a qual, “a situação do fiador, enquanto executado, é neste contexto, precisamente similar à do próprio arrendatário: ambos figuram no contrato de arrendamento; ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas; de ambos pode o credor senhorio exigir tal pagamento.”
Por isso, também sufragamos o entendimento segundo o qual, a ausência de referência expressa à figura do fiador na letra do artigo 14º-A do NRAU, não pode, só por si, obstar à formação de título executivo contra o garante dada a referida característica dessa obrigação de garantia.
No entanto, deve ser igualmente defendido que só existe título executivo mesmo contra o arrendatário se existir também uma comunicação da dívida exequenda.
Assim e transcrevendo com o respeito que é devido o consignado no referido acórdão, “o título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objectivos e subjectivos), probatória e constitutiva (artigo 10.º do CPC), estando sujeito ao princípio da tipicidade.
A causa de pedir não se confunde com o título, sendo antes a obrigação exequenda (pressuposto material) nele certificada ou documentada, pelo que a desconformidade objectiva e absoluta entre o pedido e o título situa-se ao nível da inviabilidade por inexistência de título, o que significa a ausência de direito à prestação e consequentemente absolvição, não da instância, mas do pedido (cf., por ex., Castro Mendes, Acção Executiva, pág.7 a 13).
Ao contrário da acção declarativa, a acção executiva não tem lugar perante a mera invocação da violação dum direito; antes pressupõe uma prévia solução sobre a existência e configuração do direito exequendo.”.
Como todos aceitam, para além da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação exequenda, condições processuais de exequibilidade intrínseca da pretensão, não pode deixar de ser exigida a verificação de condições ou pressupostos processuais de natureza específica.
E isto porque os mesmos são requisitos de admissibilidade da acção executiva, sem os quais as providências executivas que o tribunal deverá realizar com vista à satisfação da pretensão do exequente não podem ter lugar.
Revertendo todas estas considerações para situações como a dos autos, resulta claro que do ponto de vista substantivo, para que exista título executivo é necessário que haja um contrato de arrendamento e uma dívida, certa, exigível e liquida.
Ou seja, estamos perante condições processuais de exequibilidade intrínseca, sendo certo que aqui a documentação da comunicação ao arrendatário do montante em dívida é um pressuposto processual específico de exequibilidade.
Quanto às modalidades e à formalidade da comunicação entre as partes no contrato de arrendamento importa recordar o que está disposto nos artigos nos artigos 9º e 10º do NRAU.
Assim e segundo as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14/08, é a seguinte a actual redacção do referido art.º 9º:
“1 - Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, actualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de recepção.
2 - As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação por escrito deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado.
(…) 5 - Qualquer comunicação deve conter o endereço completo da parte que a subscreve, devendo as partes comunicar mutuamente a alteração daquele.
6 - O escrito assinado pelo declarante pode, ainda, ser entregue em mão, devendo o destinatário apor em cópia a sua assinatura, com nota de recepção.
7 - A comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do nº2 do artigo 1084.º do Código Civil, é efectuada mediante:
a) Notificação avulsa;
b) Contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, sendo feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original;
c) Escrito assinado e remetido pelo senhorio nos termos do nº1, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, caso em que é inoponível ao senhorio qualquer alteração do local, salvo se este tiver autorizado a modificação”.
Por outro lado é a seguinte a redacção do art.º 10º:
“1 - A comunicação prevista no nº1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que:
a) A carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais;
b) O aviso de recepção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário.
2 - O disposto no número anterior não se aplica às cartas que:
a) Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e actualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º;
b) Integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14º-A e 15º, respectivamente, salvo nos casos de domicílio convencionado nos termos da alínea c) do nº7 do artigo anterior.
3 - Nas situações previstas no número anterior, o senhorio deve remeter nova carta registada com aviso de recepção decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta.
4 - Se a nova carta voltar a ser devolvida, nos termos da alínea a) do nº1, considera-se a comunicação recebida no 10º dia posterior ao do seu envio.
5 - Nos casos previstos nas alíneas a) e b) do nº7 do artigo anterior, se:
a) O destinatário da comunicação recusar a assinatura do original ou a recepção do duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, o advogado, solicitador ou agente de execução lavra nota do incidente e a comunicação considera-se efectuada no próprio dia face à certificação da ocorrência;
b) Não for possível localizar o destinatário da comunicação, o senhorio remete carta registada com aviso de recepção para o local arrendado, decorridos 30 a 60 dias sobre a data em que o destinatário não foi localizado, e considera-se a comunicação recebida no 10º dia posterior ao do seu envio”.
Ora pode ser legítimo questionar a aplicação destas exigências no que toca ao fiador nos casos em que se pretende fazer valor contra si, o título dado à execução.
No entanto, ninguém questiona que nestes casos se mostra essencial a apresentação do contrato de arrendamento onde o fiador intervenha e o documento comprovativo da comunicação a este das rendas em dívida, nos precisos termos em que essa comunicação deve ser feita ao arrendatário.
E isto por ser evidente que o credor/exequente não pode querer exercer o seu direito contra o fiador sem lhe assegurar os mesmos direitos que ao arrendatário.
Tudo porque este, tal como o arrendatário, tem todo o interesse em conhecer em tempo oportuno do incumprimento a fim de, querendo, lhe pôr termo, diligenciando pelo rápido cumprimento da obrigação a que também ele está vinculado.”
Aplicando tal entendimento ao acaso concreto o que se verifica e o seguinte:
Em face do que se provou em 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, resulta para nós evidente, que relativamente à comunicação entre a arrendatária/exequente e o fiador/executado, não foram cumpridas as regras impostas pelos artigos 9º e 10º do NRAU.
Se não vejamos:
O título executivo contra os arrendatários, os aqui 1º e 2º executados, formou-se em 20 de Setembro de 2016, data em que lhes foram remetidas as cartas melhor identificadas em 7 dos factos provados.
Como se verificou, nesta data não foi enviada qualquer carta ao fiador, o aqui 3º executado.
Assim, só em 4 de Maio e 4 de Junho de 2020, foram enviadas cartas a este último (cf. pontos 10 e 12 dos factos provados).
Sabe-se, também, que nas cartas dirigidas aos executados/inquilinos, é feita a liquidação do montante devido a título de rendas vencidas, no montante de 1.200,00 (mil e duzentos euros) (cf. ponto 7 dos factos provados).
Por outro lado, nas cartas dirigidas ao executado/fiador é feita a liquidação do montante devido a título de rendas vencidas e de indemnização do valor das rendas em dobro, contadas até à entrega do locado no montante de €14.400,00 (catorze mil e quatrocentos euros) (cf. pontos 10 e 12 dos factos provados).
Mais ainda, das referidas cartas dirigidas aos executados/inquilinos consta expressamente que que se pretende resolver o contrato de arrendamento, resolução que operará no final do mês referente á notificação e que devem desocupar e entregar o locado, livre de pessoas e bens, até ao final do mês seguinte, e que poderão evitar a resolução do contrato de arrendamento, caso procedam ao pagamento da totalidade das rendas em divida …
Já no que toca às cartas enviadas executado/fiador nas mesmas consta que se procedeu á resolução do contrato de arrendamento, produzindo “esta” resolução os seus efeitos em 30 de Setembro de 2016, e que a restituição do locado ocorreu dia 02 de Julho de 2019.
Ou seja, quanto ao fiador/executado não é dada qualquer possibilidade de liquidação de rendas alegadamente vencidas e não pagas e que a ocorrer poderia evitar a resolução do contrato de arrendamento, nos termos legalmente previstos, declarando-se expressamente que já se procedeu à resolução do mesmo.
Em face de tais dados, impõe-se pois concluir que não se se formou título executivo contra o executado/fiador.
E as razões para se chegar a tal conclusão são as seguintes:
Como antes já vimos, em casos como o dos autos mostra-se essencial a apresentação do contrato de arrendamento onde o fiador intervenha e o documento comprovativo da comunicação a este das rendas em dívida, nos precisos termos em que essa comunicação deve ser feita ao arrendatário.
Ou seja, o credor/exequente não pode querer exercer o seu direito contra o fiador sem lhe assegurar os mesmos direitos que ao arrendatário.
Na situação em apreço resulta claro que o fiador/executado foi confrontado com uma situação muito mais gravosa.
Assim, a arrendatária/exequente não comunicou, ao executado/fiador, previamente ou em simultâneo com as comunicações dirigidas aos arrendatários o montante das rendas em divida.
Ou seja, ao notificar este último como notificou, declarando expressamente que o contrato dos autos se encontrava já resolvido, a primeira impediu o executado/fiador de cumprir as obrigações decorrentes da fiança.
Em conclusão:
Pelos fundamentos expostos, não pode a execução dos autos avançar contra o executado/fiador por falta de título.
Deste modo, tinham que ser julgados procedentes os presentes embargos e em consequência, declarada extinta a execução de que os mesmos dependem.
Assim, deve ser negado provimento ao recurso aqui interposto e ainda que com fundamentos diversos deve ser confirmada a decisão proferida.
*
Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….
*
III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso de apelação e nos termos supra referidos, confirma-se a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da apelante/exequente Solução Arrendamento (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.

Porto, 15 de Setembro de 2022
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço