Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4/12.0S1LSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
EXPLOSIVO CIVIL
Nº do Documento: RP201311204/12.0S1LSB.P1
Data do Acordão: 11/20/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É suscetível de integrar a prática de um crime de Detenção de arma proibida, do art. 86.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, a utilização de pólvora grafitada (explosivo civil) em local não autorizado, mesmo que o agente esteja autorizado a utilizá-la noutro local.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4/12.0S1LSB.P1
Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório.
B… recorreu da sentença proferida no processo em epígrafe que o condenou, como autor material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 2 anos de prisão, pedindo que a mesma seja substituída por outra que o absolva do crime por que foi condenado, culminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões, já aperfeiçoadas na sequência de convite, aceite, que para tanto lhe foi dirigido pelo relator:
1 - Vem o presente recurso interposto porquanto se considera ter havido factos que foram incorrectamente julgados, impondo-se uma decisão diversa da recorrida atentas as provas produzidas, depoimentos das testemunhas e declarações do arguido nos lugares assinalados supra e os documentos relativos à contra-ordenação derivada da decisão do M.P. perante toda a factualidade denunciada que deu origem àquele e a este processo.
2 - Face a tanto, é nosso modesto entendimento que o arguido não cometeu o crime por que foi acusado, julgado e condenado mas antes uma contra-ordenação pela qual também foi condenado tendo cumprido tal condenação, como documentado nos autos.
3 - De facto iniciaram-se os presentes autos com o auto de notícia lavrado a 15/02/2012 por, na tarde do dia anterior, 14/02/2012, o arguido ter sido surpreendido pela Fiscalização, na sua pedreira “C…”, com 2,5Kg de pólvora grafitada, 2 m de rastilho, 15 m de cordão detonante e uma caixa de plástico com 36 detonadores, que haviam sido adquiridos para a pedreira “D…”.
4 - Tais materiais encontravam-se ali acondicionados, necessariamente em sítios diferentes do mesmo local e encobertos por rochedos, não por baixo dos mesmos por razões de segurança, tendo sido por ele para lá levados nos paióis móveis que possui para o efeito.
5 - Aqueles materiais foram destruídos no local, na presença e por ordem dos Senhores Fiscalizadores mas, felizmente, não desperdiçados porquanto aproveitados para o fim a que se destinavam, i. é., rachar uma pedra para uma padieira que queria levar para uma obra que estava a construir em … – Vila Real.
6 - O arguido, tal como o seu operador de explosivos que com ele se encontrava, estava convencido de que, por se tratar de tão pouco material sobrante da última utilização, uma vez que possui paióis móveis e instalações seguras na pedreira “D…”, tipo paiol fixo, para os guardar, não teria que ir levar tais sobras para tão longe, cerca de 80 km, para o paiol da empresa fornecedora, E…, Ld.ª.
7 - Estava o arguido convencido de que a sua esposa havia deixado em 29 de Dezembro/2011, data da última compra de pólvora e de explosivos nesse ano, as autorizações para esse ano, e requerido outras novas ou pedida a sua renovação para o ano de 2012, como costuma fazer todos os anos, sendo ela quem se ocupa dessas questões burocráticas com a empresa fornecedora.
8 - E porque aquelas autorizações costumam sempre demorar bastante tempo, pensava o arguido que, embora as não tivesse com ele já teriam sido emitidas ou, assim não tendo sucedido, estavam pelo menos requeridas sendo a demora da concessão era da responsabilidade da autoridade emitente.
9 - Contudo, veio a verificar depois que, afinal tal não sucedera por mero esquecimento da sua esposa.
10 - Informado então disso o arguido, como é de folhas 10 dos autos, requereu nessa mesma data da fiscalização, as novas autorizações.
11 - Assim, o facto sob a alin. h) da matéria provada, salvo o devido respeito encontra-se incorrectamente julgado, devendo face à prova produzida ser julgado provado que o arguido estava convencido de que havia requerido autorização para explosivos, que a mesma ainda tardava e que as sobras que detinha, por serem em tão pouca quantidade, não teriam que ser entregues por dispor ele de paióis móveis adequados para as guardar.
12 - Impunham tal juízo, diverso daquele, a prova produzida nos autos evidenciadora de que o arguido agiu sempre no pressuposto de que estaria a fazer tudo dentro da legalidade, não tendo consciência da ilicitude dos factos, a tanto não tendo atendido a douta sentença recorrida.
13 - Tal prova resulta desde logo dos depoimentos assinalados nos lugares da motivação supra, prestados em sede de audiência e julgamento pelo próprio arguido, B… e pelas testemunhas F… e G…, não contraditados por ninguém,
Porquanto este nunca deteria aqueles explosivos se não estivesse convencido de que tinha licença válida para tanto.
14 - Salvo o mais elevado respeito parece-nos assim que a matéria de facto provada nos autos, imporá que o arguido não cometeu efectivamente o crime em apreço.
15 - Por outra lado é nosso convencimento, consentido pela lei que ao arguido que se encontrava a trabalhar numa pedreira nos termos preditos, não poderá ser imputado um crime como se com ele tivesse “equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioactiva ou susceptível de explosão nuclear”, passível de uma pena de prisão, superior até à do crime de roubo, igual à do crime de rapto e próximo da relativa a ofensa à integridade física grave.
16 - O M.º P.º, entendeu efectivamente no seu despacho prévio à prolação da acusação dos autos que relativamente aos detonadores, rastilho e cordão detonante, o circunstancialismo em causa determinava procedimento contra-ordenacional e não criminal contra o arguido,
17 - Desconsiderando, contra o que efectivamente advogamos, que a detenção e uso da pólvora naquelas circunstâncias e para o fim a que se destinava, totalmente conforme com o visado pela sua aquisição, documentada nos autos, deveria também ser objecto daquele mesmo procedimento contra-ordenacional.
18 - Modestamente entendemos que não é por àqueles materiais acrescer esta pólvora que o procedimento e condenação deverá ser diferente.
19 - Aquele processo de contra-ordenação foi instaurado e tramitado com o n.º 110DAECO12 e nele foi condenado o arguido nos termos e fundamentos que do mesmo constam, encontrando-se a respectiva cópia junta a estes autos.
20 - O arguido pagou a coima e custas nos termos e prazo constante da notificação para a sua defesa.
21 - Aquando da sentença recorrida, o Tribunal dispunha daquele processo de contra-ordenação, da respectiva decisão condenatória, dos seus fundamentos e da prova do seu cumprimento, bem como do parecer que aceitou do M.P. a tal propósito, o que lhe impunha decisão diferente., como advogamos.
22 - Sempre salvo o mais elevado respeito, modestamente entendemos que o artigo 86.º da Lei das Armas, estabelece a punição de quem praticar os factos ali descritos de explosivo civil, engenhos explosivos, engenhos incendiários, arma biológica, química, radioactiva, equipamentos, produtos ou substâncias e armas das classes ali referidas, tudo em situação análoga à de armas e munições.
23 - Qualquer produto ou substância que se destine ou possa destinar a uma utilização como arma ou munição, na situação a que alude o n.º 1 do artigo 86.º daquela Lei, preenche objectivamente os respectivos elementos típicos.
24 - Contudo, relativamente ao arguido, porque comprou aqueles produtos com a competente autorização emitida pela autoridade legítima, embora os destinando à respectiva utilização na pedreira “D…”, aquando da fiscalização detinha-os para utilizar de harmonia com os fins para que foram adquiridos e autorizados,
25 - Só que, numa sua pedreira diferente daquela outra, também sua, para que foram concedidos, encontrando-se com a autorização caducada mas tendo requerido imediatamente uma nova na mesma precisa data.
26 - Ou seja, estava a utilizar aquelas sobras fora das condições estabelecidas pelo Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos (RLEFAPE), bem como do Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos (RFACEPE), bem como do Regulamento sobre a Fiscalização de Produtos Explosivos (RFPE) a que se reporta o Dec. Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro.
27 - É óbvio que o cordão detonante é tão explosivo quanto a pólvora, sendo no entanto que os produtos explosivos mencionados no anexo I do RFACEPE (Dec. Lei 376/84), fundamento da contra-ordenação pela qual o arguido foi condenado, refere-se tanto a pólvoras ((alin. a) e é de pólvora que se ocupa o presente processo); como a detonadores, rastilhos e cordões detonantes (alin. b).
28 - Por força do estatuído nas normas citadas, conclui-se que o arguido não cometeu o crime por que vem condenado mas antes a contra-ordenação por que também já foi julgado e condenado,
29 - Salvo o devido respeito, entendemos que a Douta Sentença Recorrida não se pronunciou devidamente sobre as questões que devia apreciar relativas à legislação invocada sobre o Regulamento de Produtos Explosivos e, com a matéria de facto provada deveria concluir pela autoria de uma contra-ordenação e não do ilícito penal por que condenou o arguido, assim violando o estatuído nas disposições legais citadas bem como no artigo 379.º n.º 1 alin. c) e 410.º do CPP.

Respondeu o Ministério Público, pedindo que se negue provimento ao recurso e se mantenha a sentença proferida, nos seus precisos termos.

Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto teve vista do processo e emitiu parecer no mesmo sentido.

O recorrente foi convidado a aperfeiçoar as conclusões do recurso, por se ter entendido que nelas não havia indicado as provas que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, o que fez nos termos atrás referidos.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:
a) No dia 14 de Fevereiro de 2012, o arguido detinha, quantidade não concretamente apurada de pólvora grafitada n.º 1, 1.1D, sendo que na data referida tais explosivos estavam a ser utilizados na pedreira denominada “C…”, sita em …, Vila Pouca de Aguiar.
b) Tais explosivos foram encontrados debaixo de um rochedo, dentro de uma saca plástica.
c) Na data da fiscalização o arguido possuía as autorizações nº …. e …. emitidas em nome da firma “H…”, da qual o arguido é sócio gerente, para a pedreira denominada “D…”.
d) Tais autorizações eram válidas até 31 de Dezembro de 2011.
e) No ano de 2012 foram emitidas novas autorizações, com os n.os 487 e 488 para a aquisição e emprego de 75kg explosivos e 350kg pólvora, respectivamente, a 8 de Março de 2012, validas até 31 de Dezembro de 2012, sendo que a autorização n.º … já foi revalidada a 4 de Janeiro de 2013 para a aquisição de 197,5kg de pólvora, valida até 31 de Dezembro de 2013.
f) Para a pedreira “C…” nunca foram emitidas autorizações pela DN/PSP para uso de explosivos.
g) O arguido, à data da fiscalização não se encontrava autorizado pela autoridade competente à detenção, guarda, compra e utilização de produtos explosivos na pedreira “C… n.º …..
h) O arguido bem sabia que não podia deter aqueles explosivos sem ter autorização válida para tal, e que caso não utilizasse os explosivos teria que os entregar, não obstante, o arguido detinha na sua posse, quantidade não concretamente apurada, de explosivo - pólvora grafitada.
i) Apesar disso, de forma livre, voluntária e consciente, teve consigo e acomodou o referido explosivo, nas circunstâncias descritas.
(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido).
j) O arguido é empresário, explorando uma pedreira, auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior a uma média mensal de € 700,00.
k) Vive com a sua esposa, a qual também é sócia da empresa “H…” mas sem qualquer retribuição e com três filhos em casa própria.
l) Dois dos filhos encontram-se a estudar e uma filha, embora maior, padece de uma deficiência, sendo que em medicação e tratamentos, o agregado despende quantia não concretamente apurada mas não inferior a €350,00 por mês e com a estadia da filha em Vila Real (atendendo a que tais tratamentos têm de ser feitos em tal cidade), despende quantia não concretamente apurada mas não inferior a € 300,00 por mês.
m) Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
n) O arguido é uma pessoa trabalhadora e respeitadora.

1.2. Factos julgados não provados:
1. No dia mencionado no ponto a) dos factos provados e nas referidas circunstâncias, o arguido detinha 2,5kg pólvora grafitada n.º 1, 1.1D.

1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
A convicção do Tribunal, no que concerne à matéria de facto dada como provada fundou-se na análise crítica da totalidade da prova produzida e, bem assim, dos documentos juntos aos autos, designadamente, os constantes de fls. 135 e ss.
Assim, o arguido admitiu a prática dos factos constantes do libelo acusatório, tendo apenas justificado a mesma, com referência à actividade que exerce e ao facto de a quantidade de pólvora que, no momento, se encontravam a utilizar ser diminuta.
Confirmou que a pedreira “C…”, uma das pedreiras exploradas pela empresa de que é sócio, não tinha à data da prática dos factos, nem nunca teve, qualquer autorização para uso de explosivos. Justificou tal facto dada a sua pouca utilização e por isso nunca efectuou qualquer pedido de autorização para uso na mesma de explosivos. Mais justificou que no dia e hora em que foram fiscalizados, encontravam-se a utilizar tais explosivos com o intuito de fazer retirar uma pedra para uma obra que se encontrava em curso.
Mais admitiu o arguido saber que tinha de pedir uma licença para uso de explosivos e usá-los durante o período da licença, sendo que caso tal não aconteça, mais confirmou o arguido saber, ter de os devolver. Sendo que no presente caso, também admitiu não ter devolvido a pólvora encontrada, pois entendia ser pouca.
Apenas contrariou o arguido que a quantidade de pólvora ali encontrada na “C…” e descrita no auto de apreensão não correspondia a 2,5kg de pólvora, já que o saco em que a pólvora se encontrava apenas comporta 2,5kg e o mesmo já se encontrava aberto e não cheio.
Ora, desde logo, perante tal postura do arguido, o Tribunal não poderia ter dúvidas quanto à matéria dada como provada e constante do libelo acusatório.
De todo o modo, ainda foram tidos em consideração os depoimentos das testemunhas I… e J…, agentes da PSP, que procederam à fiscalização da identificada pedreira no dia constante dos autos e que confirmaram, quase na totalidade, os factos descritos no auto de noticia.
Apenas no que respeita à quantidade de pólvora encontrada na aludida pedreira e descrita no auto de apreensão, não ficou o Tribunal convencido da mesma, desde logo, e não obstante a sua quantidade se mostrar ali descrita, pelo facto de tais agentes terem confirmado em depoimento que não procederam à sua pesagem, tendo dado um numero aproximado.
Daí que tal quantidade, por ser um dado objectivo, não se mostra provada nos autos, sendo certo que, conforme infra se melhor explicará, em sede de enquadramento jurídico-penal, a quantidade ali encontrada não se mostra, de todo, relevante, já que o que está em causa é o facto de a pedreira “C…” não possuir qualquer autorização para uso de explosivos.
Mais foi ainda tido em consideração, para o assentimento dos factos supra elencados, o depoimento da testemunha F…, o qual apesar de trabalhar para a empresa de que o arguido é sócio desde o ano de 2002, depôs de forma descomprometida e seria, pelo que foi merecedor de credibilidade. Igualmente, confirmou que no dia descrito nos autos, encontrava-se no local a preparar um rebentamento, e que ali foi encontrada pólvora, sendo certo que a mesma era o resultado de sobras de utilizações anteriores e que não chegava ao peso de 2,5kg.
Por último, as testemunhas indicadas pelo arguido, G… e K…, nada de novo trouxeram ao tribunal, com relação à matéria de facto constante do libelo acusatório, sendo certo que as mesmas foram relevantes quanto à caracterização da personalidade do arguido e sua maneira de ser.
No que concerne à situação socio-económica e profissional do arguido, o Tribunal teve em consideração o depoimento do mesmo que se mostrou claro e coerente, sendo certo que não foi produzida prova que o infirmasse.
A ausência de antecedentes criminais resulta do teor do respectivo CRC.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. O recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios da sentença ou do acórdão a que se reporta o art.º 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.[2]
Sendo impugnada a decisão da matéria de facto pelo recorrente, quer amplamente,[3] quer pela via da invocação dos vícios da sentença ou do acórdão, na chamada revista alargada,[4] é sabido que «impõem razões de método que se comece pelo reexame de mais largo espectro, para que se não tenha eventualmente de entrar na análise mais limitada, o que só sucederá na falência daquele reexame. No caso, dever-se-ia ter começado a análise da crítica de facto efectuada pela Relação, pela impugnação alargada da matéria de facto provada, só depois se entrando, se fosse o caso, nas restantes questões respeitantes à decisão sobre o facto.»[5]
Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio,[6] diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª Tendo o recorrente impugnado a decisão proferida sobre a matéria sem indicar nas conclusões do recurso, mas apenas na sua motivação, as provas concretas que, na sua opinião, impunham diferente decisão e não tendo acatado o convite para as aperfeiçoar, pode dele conhecer-se nessa parte?
2.ª Podendo, deve a decisão da matéria de facto ser alterada e considerado não provado o facto julgado provado enunciado em h)?
3.ª Na hipótese contrária, a utilização de pólvora grafitada em local previamente não autorizado não é crime mas contra-ordenação?
4.ª Tendo sido omitida pronúncia acerca dos Regulamentos sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos e sobre a Fiscalização de Produtos Explosivos?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas, a qual, recorde-se, consiste em saber se podemos conhecer amplamente da decisão da matéria de facto.

Pretendendo impugnar amplamente a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar na motivação e nas conclusões:[7]
- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- As provas que devem ser renovadas.

No que concerne à primeira daquelas especificações (isto é, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados), importa dizer que só é cabalmente cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado.[8] Quanto à segunda e à terceira daquelas especificações, quando as provas tenham sido gravadas fazem-se, por referência ao consignado na acta,[9] pela indicação pelo recorrente das concretas passagens em que funda a impugnação.[10] E nesse caso, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.[11] Sendo que a especificação das passagens na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações basta ao recorrente transcrevê-las.[12] E se tal não cumprir, omitindo nas conclusões o que alegou na motivação, deve ser convidado a suprir essa omissão, no prazo de 10 dias, pelo relator do processo, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada,[13] sem que com isso possa alterar o objecto do recurso fixado na motivação.[14]

Baixando ao caso sub iudicio, diremos que o recorrente deu cumprimento ao primeiro dos ónus supra referidos, tanto na motivação como também nas conclusões do recurso, pois que indicou expressamente os factos que impugna por considerar erradamente julgados, a saber, o facto julgado provado enumerado em h).

Porém, já assim não procedeu quanto ao segundo dos referidos ónus, pois que não indicou, nas conclusões, por referência ao suporte digital,[15] qualquer passagem das declarações ou depoimentos produzidos na audiência de julgamento nem ali procedeu à sua transcrição. E isto mesmo depois de ter sido convidado para suprir tal omissão, no prazo de 10 dias, sem que com isso pudesse modificar o objecto do recurso fixado na motivação.

Destarte, não se poderá conhecer do recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto em sede de impugnação ampla. Embora se possa conhecer das outras questões nele suscitadas,[16] com excepção da subsequente pois que supunha que outra fosse a decisão desta.

2.3 Vejamos agora a última das atrás enunciadas questões e, por conseguinte, se a utilização de pólvora grafitada em local previamente não autorizado não é crime mas contra-ordenação (mesmo tendo o recorrente sido autorizado a tê-la noutro local).
Começamos por dizer que compreendemos que o recorrente discorde da separação feita pela lei entre a ilicitude da detenção e do uso de pólvora, considerando aquela uma contra-ordenação e esta um crime mas as coisas são o que são e aqui impera o princípio da legalidade, pelo que nada mais nos assiste dizer sobre esta questão que não seja a necessidade imperiosa de o respeitar. E, por conseguinte, esquecer, por ser irrelevante, que o recorrente foi condenado como autor de uma contra-ordenação por deter pólvora negra na pedreira onde também foi constatado que utilizava esse material sem que para tal aí estivesse autorizado.

Passando adiante, importa dizer que efectivamente o art.º 86.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, efectivamente tipifica como crime de detenção de arma proibida quem detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo equipamentos, meios militares e material de guerra, arma biológica, arma química, arma radioactiva ou susceptível de explosão nuclear, arma de fogo automática, arma longa semiautomática com a configuração de arma automática para uso militar ou das forças de segurança mas não foi disso que ele foi acusado e depois condenado, pelo que são totalmente irrelevantes as considerações que a esse propósito apresenta nas conclusões do recurso. Mas já importa saber que a norma também assim tipifica quem praticar qualquer daquelas condutas relativamente a explosivo civil, na versão vigente ao tempo da prática dos factos,[17] ou engenho explosivo, na lei actualmente em vigor.[18] /[19]
É certo que o art.º 2.º, n.º 5, em qualquer das suas versões relevantes, se define:
l) «Explosivo civil» todas as substâncias ou produtos explosivos cujo fabrico, comércio, transferência, importação e utilização estejam sujeitos a autorização concedida pela autoridade competente;
m) «Engenho explosivo civil» os artefactos que utilizem produtos explosivos cuja importação, fabrico e comercialização estão sujeitos a autorização concedida pela autoridade competente;

mas é evidente que o conceito de engenho explosivo civil engloba em si mesmo a de explosivo civil, sendo aquele conceito engenho explosivo civil um maius relativamente a este explosivo civil dado pelos artefactos que o utilizem. Ora, se é admissível a existência de explosivo civil sem um engenho, já não é concebível um engenho explosivo civil sem explosivo civil. Pelo que é irrelevante para a tipificação criminal das condutas como a do recorrente que tenha deixado de constar autonomamente do art.º 86.º, n.º 1, alínea a) a expressão explosivo civil para apenas constar a de engenho explosivo civil, como de resto a jurisprudência já o enfatizou.[20]

Por outro lado, sendo a pólvora negra um explosivo civil, a sua utilização naquele local sem autorização da autoridade competente[21] não deixa de constituir crime mesmo estando o recorrente autorizado a utilizá-la noutro local, pois que isso inviabilizaria a fiscalização por parte da autoridade competente e, eventualmente, a imposição de medidas de segurança para a execução ali do acto, quer prévia, quer durante e até mesmo depois da sua execução.[22]

2.4. Diga-se, por fim, que o Tribunal não cometeu omissão de pronúncia ao não se pronunciar especificamente sobre o Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84, de 30 de Novembro, o Regulamento sobre o comércio e controlo de produtos explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 336/83, de 19 de Julho e o Regulamento sobre a Fiscalização de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/94, de 15 de Julho, pois que ou se não referem à utilização de explosivos ou, quando assim é, a sua punição não é especificamente ali feita mas por remissão para o Código Penal então vigente nessa matéria.[23] Pelo que também por aqui terá o recurso que naufragar.
***
III - Decisão.
Termos em que se nega provimento ao recurso e se confirma a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC´s (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e sua Tabela III a ele anexa).
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Porto, 20-11-2013.
Alves Duarte
Castela Rio
______________
[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[2] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido ora propugnado, vd. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[3] Art.º 412.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Penal.
[4] Art.º 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-07-2007, no processo n.º 07P2279, relatado pelo Exm.º Cons.º Simas Santos, visto em http://www.dgsi,pt, assim sumariado, na parte que aqui releva:
1 – Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a questão de facto deve dirigir-se, à Relação que tem competência para tal, como dispõem os art.os 427.º e 428.º, n.º 1 do CPP. O recurso pode então ter a máxima amplitude, abrangendo toda a questão de facto com vista à modificação da decisão da 1.ª Instância sobre essa matéria, designadamente quando, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3 [art. 431.º, al. b)].
2 – Para além da já referida impugnação alargada da decisão de facto, pode sempre o recorrente, em todos os casos, dirigir-se à Relação e criticar a factualidade apurada, com base em qualquer dos vícios das alíneas do n.º 2 do art. 410.º, como o consente o art. 428.º n.º 2 do CPP.
3 – É essa a ordem pela qual a Relação deve conhecer da questão de facto: primeiro da impugnação alargada e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal.
[6] Neste sentido, vd. Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1094. É certo que o recorrente alega que a sentença violou o art.º 410.º do Código de Processo Penal mas não especifica porque assim entende, razão pela qual nada mais se nos afigura pertinente dizer sobre essa temática.
[7] Art.º 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.
[8] Como refere o Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1121, «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado. Por exemplo, é insuficiente a indicação de todos os factos ocorridos entre duas datas ou de todos os factos ocorridos em determinado espaço fechado ou certo aglomerado urbano».
[9] O citado n.º 2 do art.º 364.º do Código de Processo Penal.
[10] Art.º 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, 6.ª Edição, Porto Editora, página 241, passagem é um substantivo feminino que, entre outras coisas irrelevantes para esta temática, significa «frase ou trecho de um discurso.»
[11] Art.º 412.º, n.º 6 do Código de Processo Penal.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, de 08-03-2012, no processo n.º 147/06.0GASJP.P1 -A.S1 — 3.ª Secção, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 77, de 18 de Abril de 2012.
[13] Art.º 417.º, n.os 3 do Código de Processo Penal.
[14] Art.º 417.º, n.os 4 do Código de Processo Penal.
[15] Não foi feita gravação das declarações nem de testemunhos em cassete magnética.
[16] Acórdão da Relação de Lisboa, de 23-04-2008, no processo n.º 2660/2008-3, publicado em http://www.dgsi.pt.
[17] Dada pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril.
[18] Resultante da Lei n.º 50/2013, de 24 de Julho.
[19] Sendo a lei posterior eventualmente relevante se concretamente mais favorável ao arguido / recorrente, nos termos dos art.os 29.º, n.º 4 da Constituição da República e 2.º, n.º 4 do Código Penal.
[20] Foi o caso do acórdão da Relação do Porto, de 12-10-2011, no processo n.º 2/08.9GCVPA.P1, publicado em http://www.dgsi.pt, citado na sentença recorrida, único que encontrámos publicado sobre esta temática (o que vale por dizer que não encontrámos aquele que vem citado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso. De resto, na data ali indicada não houve sessão nesta Relação do Porto).
{21] Pela Polícia de Segurança Pública, em consonância com o disposto nos art.º 19.º do Decreto-Lei n.º 521/71, de 24 de Novembro.
[22] Daí que a identificação do local da utilização dos explosivos tenha que contar do requerimento, como se vê do art.º 20.º, n.º 1, alínea e) do Decreto-Lei n.º 521/71, de 24 de Novembro.
[23] Que assim resulta expressamente do Decreto-Lei n.º 521/71, de 24 de Novembro.