Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO EXCESSO DE VELOCIDADE | ||
Nº do Documento: | RP202105101362/20.9T8PNF.P1 | ||
Data do Acordão: | 05/10/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | Independentemente de não se ter apurado a velocidade instantânea a que circulava imediatamente antes do acidente, viola o disposto no artigo 24, n.º 1 do Código da Estrada o condutor de um veículo automóvel que atropela um peão caído de joelhos na hemifaixa de rodagem em que circulava esse veículo, numa via plana, iluminada e já dentro de uma localidade, quando o peão era visível a mais de trinta metros para qualquer condutor atento. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1362/20.9T8PNF.P1 Recorrentes – B…, C… e D… Recorrida – E…, Companhia de Seguros, SA Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho. Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório 1 – B…, C… e D… vieram propor contra E…, Companhia de Seguros, SA, a presente ação, para pagamento de indemnização emergente de acidente de viação e, pretendendo que se declarem os autores como únicos e universais herdeiros da vítima, pedem a condenação da ré a pagar-lhes a quantia global de 105.000,00€ [70.000,00€ pela perda do direito à vida; 30.000,00€ por danos morais dos autores e 5.000,00€ por danos próprios da vítima, sofridos entre o atropelamento e a sua morte] e, bem assim, no pagamento das custas, procuradoria e demais encargos legais. 2 - Para fundamentar a pretensão aduziram, em suma, serem os irmãos de F…, malograda vítima mortal de atropelamento, falecido no estado de solteiro e sem ascendentes, falecimento que ocorreu em virtude da conduta do condutor de veículo seguro na ré, por circular desatento e em excesso de velocidade. Mais convocaram o risco próprio do veículo. 3 - Contestou a ré, reconduzindo-se à ausência de qualquer comportamento culposo pelo condutor seguro e sempre à culpa da vítima, a determinar a improcedência da pretensão indemnizatória. 4 - Dispensada a audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador, no qual se aferiram positivamente a totalidade dos pressupostos processuais e se selecionou a matéria assente e controvertida com interesse para a decisão da causa. 5 - Teve lugar a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, nos termos que dos autos resultam e foi proferida sentença que absolveu integralmente a ré do pedido. II – Do Recurso 6 – Inconformados, os autores apelaram. Pretendendo a revogação da sentença e a condenação da ré no pedido, formulam as seguintes conclusões: ……………………………… ……………………………… ……………………………… 7 – A ré respondeu ao recurso, sustentando a bondade da decisão apelada. Em síntese, refere que “Os factos assentes e provados em audiência de julgamento, demonstram que o comportamento da vítima, naquelas circunstâncias de tempo (de noite) e modo (caída – de gatas – na via pública, com uma taxa de álcool no sangue de 2,45g/l, sob efeito de benzodiazepinas e avisado pelo outro condutor, não foi capaz de movimentar daquele local) foi decisivo para a produção do acidente. Concluindo a Mma. Juiz do Tribunal a quo que o comportamento da vítima foi mesmo causa única e exclusiva do acidente. Afastando assim a possibilidade de responsabilizar, por via do risco, o condutor do veículo segurado na Ré e, em consequência, a responsabilidade civil da Ré. De todo o exposto é de louvar a decisão do Tribunal “a quo” que se traduz na melhor interpretação e aplicação do direito aos factos”. 8 – O recurso foi recebido nos termos legais e, nesta Relação, nada foi alterado ao pertinente despacho. Os autos correram Vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito da apelação. 9 – O objeto do recurso, atentas as conclusões dos apelantes, consiste em saber se a decisão relativa à matéria de facto deve ser alterada e, com essa alteração ou mesmo independentemente dela, se a sentença deve ser revogada, condenando-se a recorrida nos termos peticionados pelos apelantes. III – Fundamentação III.I – Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto 10 - Como decorre do disposto no artigo 662, n.º 1 do CPC A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 11 - Efetivamente, com a atual redação do citado artigo 662 do CPC fica claro que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” e mantém-se, mas “agora com mais vigor e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão assente em prova que foi oralmente produzida e que tenha ficado gravada, afastando-se definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para os casos de “erro manifesto” ou de que não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1.ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação.[2] 12 - A modificabilidade da decisão de facto, desde logo se pretendida pelo recorrente, exige a este um determinado ónus. Efetivamente, o artigo 640 do CPC, como decorre das várias alíneas do seu n.º 1, impõe ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto que especifique “Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” e ainda “A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. Acrescenta a alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito que “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. 13 - Independentemente da maior ou menor exigência que se tenha como decorrente da oneração do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, será sempre necessário, pois tal decorre da própria pretensão recursória e das finalidades e razão de ser das conclusões que nestas se identifiquem os concretos pontos de facto que se pretendem ver alterados, desde logo porque as mesmas concretizam o objeto do recurso. 14 - Tendo em conta as considerações anteriores, e porque entendemos que os apelantes cumprem o ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto, verificamos que, em concreto, pretendem: A – Quanto aos factos dados como não provados [1. A via no local do acidente: - a faixa de rodagem e atento o sentido de marcha do veículo segurado é ladeada por bermas; - do lado direito da via, atento o sentido de marcha cidade do … – …, há casas de habitação, uma paragem coberta de transporte público e um estabelecimento comercial (café) muito frequentado; - o local do evento e as suas imediações (área circundante de cerca de 50 metros) é bastante frequentado por pessoas e veículos; - Entre guias atinge uma largura de circulação de 5,40m (...) 6. Na concreta posição em que o F… se encontrava na via, era visível para o Sr. G… a mais de 30 metros de distância. 7. Previamente ao embate, o G… circulava desatento; 8. A mais de 60 km/hora; 9. Só conseguindo, por isso, imobilizar o Seat a mais de 10 metros de distância do local do embate] que passe a considerar-se provado: “Facto 1: 1. A via no local do acidente; do lado direito da via, atento o sentido de marcha cidade do … – …, há casas de habitação e um estabelecimento comercial (café) muito frequentado. Facto 6: Na concreta posição em que o F…/vítima se encontrava na via, era visível para o Sr. G… a mais de 30 metros de distância. Facto 7: Previamente ao embate, o G… circulava desatento; Facto 8: A pelo menos 60km/h (...) Relativamente ao facto 9 - Só conseguindo, por isso, imobilizar o Seat a mais de 10 metros de distância do local do embate. 15 - Já quanto às alíneas G) [A vítima encontrava-se caída na via pública/pavimento, com os joelhos no chão, fazendo menção de se levantar, muito lentamente, mais junto à hemifaixa, quando foi embatida pela frente esquerda, junto à ótica do Seat e, por força desse embate, foi projetada para a frente e para a esquerda, acabando por ficar prostrada na via de trânsito, logo atrás do veículo conduzido por H…, a distância não concretamente apurada do local do embate/atropelamento] e R) [O condutor do veículo referido em N) gritou/avisou a vítima para que saísse da estrada, sem êxito, mantendo-se aquela na estrada, em plena faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos, tentando levantar-se sem o conseguir, lentidão de movimentos esta necessariamente relacionada com os factos assentes em O) e P)], dos factos dados como provados, os apelantes entendem que a redação das mesmas devia ser, respetivamente, “A vítima encontrava-se caída na via pública/pavimento, com os joelhos no chão, mais junto à hemifaixa, quando foi embatida pela frente esquerda, junto à ótica do Seat e, por força desse embate, foi projetada para a frente e para a esquerda, acabando por ficar prostrada na via de trânsito, logo atrás do veículo conduzido por H…, a distância não concretamente apurada do local do embate/atropelamento” e “O condutor do veículo referido em N) gritou/avisou a vítima para que saísse da estrada, sem êxito, mantendo-se aquela na estrada, em plena faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos, tendo também colocado o braço de fora da janela e buzinado por forma a avisar o veículo do segurado da Ré, mas também sem êxito”. 16 – Na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, o tribunal recorrido deixou dito o que ora se transcreve e sublinha: “ (...) o teor do relatório da autópsia, mediante as lesões cerebrais caracterizadas, como o depoimento das testemunhas H…, o condutor do veículo referido em N) e I…, o condutor do veículo atropelante, que verificaram a inconsciência da vítima imediatamente após o embate, descaracterizam a afetação e sofrimento entre o embate e a morte, em termos que prova alguma confirmou ou induziu também. Bem assim aquele relatório de autópsia e a toma de medicação emergente induzem um outro, não tão perfeito, estado de saúde da vítima. Tiveram-se presentes os relatórios de exame toxicológico quanto à TAS e vestígios de benzodiazepinas. Quanto à configuração do local, posição do veículo atropelante e da vítima, sinalização existente, em termos de resultar já o alegado limite de velocidade, mas não também, [no confronto agora com o croquis constante do auto de participação (não à escala), o teor do relatório tático de inspeção ocular e relatório final], a distância de 10 metros percorrida pelo veículo seguro após o embate, embora necessariamente inferior a 15 metros, de acordo com aqueles elementos, tiveram-se em consideração aqueles auto de acidente/participação policial, teor do relatório tático de inspeção ocular e o relatório final de averiguações junto aos autos, ambos integrantes do processo crime que correu termos em função do óbito da vítima... No que interessa à dinâmica do sinistro, a aquisição dos factos provados e a falta de prova dos essenciais alegados pelos AA. fundou-se na conjugação do depoimento de ambos os condutores que presenciaram o sinistro, o condutor do veículo atropelante e do veículo identificado em N), com os elementos objetivos extraídos dos já mencionados auto de notícia/participação e croquis dele constante, relatório tático de inspeção ocular, fotografias incluídas e relatório final... Afastados, pois, nessa medida, os dois factos mais relevantes: a possibilidade de o condutor do veículo atropelante ver ou se aperceber da vítima, enquanto indiciária da sua distração ou desatenção e a velocidade do mesmo veículo atropelante. Tudo sem prejuízo também da falta de prova do encandeamento e/ou do abrandamento pelo condutor do veículo seguro, como alegado por esta..., factos que sequer o depoimento do segurado trouxe à audiência. Quanto à velocidade imputada ao condutor do veículo atropelante, nenhum facto objetivo a corrobora, contrariando-a indiciariamente a descrição do sinistro pelos condutores presenciais, ambos. Assim, a distância de paragem do veículo atropelante, a muito breve tempo e espaço, após o embate (menos de 15 metros)... é perfeitamente compatível com a velocidade legalmente permitida... É sabido que a distância de paragem dum veículo mede-se desde o ponto em que o condutor aplica força nos travões até à posição de imobilização do veículo, ou até à posição correspondente ao momento em que o funcionamento do sistema de travagem é interrompido (para situações em que não há imobilização completa do veículo). Naturalmente que a distância de paragem não é constante para todas as gamas de velocidade nem para todos os veículos e depende de fatores físicos de diversa ordem. A distância de paragem dum veículo depende particularmente dos fatores seguintes: Velocidade; Atrito; Massa; Declive da via; Eficiência do sistema de travagem; Forma de operar o sistema de travagem. Uma coisa fundamental a reter é que na interação pneu-piso, o atrito cinético é sempre inferior ao atrito estático. Isto significa que a força de travagem máxima com bloqueio das rodas (com derrapagem) é sempre menor do que sem derrapagem. Por conseguinte, a distância de travagem resultante, em situação de derrapagem, é sempre maior. É sobre este princípio, de resto, que o sistema de travagem ABS foi desenvolvido. As fórmulas clássicas utilizadas para calcular a distância de paragem são puramente cinemáticas, ou seja, não têm em conta a massa do veículo nem a transferência de peso como fatores de stress, nem sequer a força de resistência aerodinâmica que, a velocidades elevadas pode ser bastante considerável. Partem, ainda, do princípio de que a eficiência do sistema de travagem é sempre máxima, ou seja 100%. A fórmula convencionalmente utilizada pela American Association of State Highway and Transportation Officials (AAHSTO) é um pouco mais completa. Por outro lado, outros factores há ainda que não são considerados como sejam a influência da massa do veículo como fator de stress nos pneus onde se inclui a transferência de peso, ou até a eficiência dos próprios travões. Em relação a este último fator, as equações aludidas aplicam-se a situações de máxima eficiência dos travões (100%), ou seja, em que o atrito disponível é aproveitado de forma ótima por todas as rodas do veículo que não apenas pelas rodas do eixo dianteiro... Em conclusão, para obter o valor da aceleração com a máxima precisão, torna-se necessário fazer uso dum programa informático com um modelo dinâmico que tenha em conta todos os demais fatores influentes e as respetivas dependências através de equações. Consultadas várias tabelas de distâncias de paragem (disponíveis on line e em manuais clássicos) (mediante a consideração ademais do princípio geral supra), a distância de paragem de um veículo como o tripulado pelo autor a 40 Km/hora, num piso de alcatrão e tempo seco varia entre os 20 e os 32 metros... Irreleva outrossim nesta sede a gravidade das lesões, quando se atente nas fotos do veículo atropelante e na impressiva descrição do embate pelos já aludidos condutores e pela passageira do veículo atropelante, em termos da demonstração de um embate “seco” entre a cabeça/face da vítima e a frente esquerda do veículo, em circulação “normal”, sem travagem ou abrandamento, sendo que mesmo a uma velocidade até 40 Km hora sempre letal um tal choque... De todo o modo, as fotografias que acompanham o relatório tático de inspeção ocular documentam uma zona razoavelmente “escura”... A visibilidade não é apenas função da configuração da via, uma reta, ou da existência de iluminação pública... Há que atender bem assim ao declive da via, à posição da vítima, à roupa que vestia, em termos de não se destacar da via nas condições dadas, à possível e admissível interferência (não em sede de encandeamento, mas de criação de uma “zona de sombra”, como anotado no relatório final de averiguação do sinistro em sede de inquérito criminal) das luzes de cruzamento de que o veículo em sentido oposto ao do condutor do veículo atropelante fazia uso; tudo em termos de não ter resultado, com a certeza necessária, a visibilidade ou possibilidade de avistamento da vítima pelo condutor do veículo atropelante e por isso que inviável inferir que o adquirido e confessado não avistamento da vítima se tivesse ficado a dever a falta de atenção ou cuidado à condução... Falecendo, pois, completamente, a prova dos dois comportamentos a que os AA reconduziam a culpa e a causa do sinistro ao condutor do veículo atropelante. Os demais factos havidos por não provados foram-no por absoluta ausência de referenciação testemunhal ou documental, por estarem em contradição com outros havidos por assentes, ainda na medida da insuficiência de factos indiciários a concluir pela probabilidade qualificada daqueles ou também mediante a falta de afirmação/confirmação médico-legal que se impunha. Assim, renova-se, a consciência da vítima após o embate é contrariada pela gravidade e extensão das lesões craneo-encefálicas apresentadas, corroborada a inconsciência imediata pelas testemunhas presenciais, os já referidos condutores”. 17 – Da prova testemunhal retirámos os apontamentos que se seguem. 18 – J…, agente da GNR, elaborou a participação de acidente que consta (fls. 2/4) dos autos (Ficheiros n.ºs 20201210101729, 20201210102038 e 20201210102316). Refere que elaborou o auto, tomou declarações ao condutor da viatura (atropelante). Conhece perfeitamente o local, sabendo que há habitações à frente, mas no local exato do acidente não pode precisar. A via não tem obstáculos, não havia nevoeiro, àquela hora o local é pouco movimentado, a distância entre os postes de iluminação é a normal e há algumas árvores antes do local [do acidente] mas “mesmo no local” pensa que não. 19 – H…. Gerente de uma empresa de reboques, conhece os autores de vista e assistiu ao acidente. Ficheiro n.º 2020 1210104234. Presenciou o acidente, “estava a chegar”. Vinha a conduzir e vinha com uma senhora, tal como o condutor da outra viatura também vinha. Seguia na direção contrária, a descer. O local tem casas do lado esquerdo. Quando saiu da rotunda viu que estava algo no chão, não se apercebendo logo o que era, a uma distância de “duas ou três vezes esta sala”... acha que o poste (iluminação) não estava próximo do senhor... ele estava na estrada, na faixa contrária... podia ser um animal. Abrandou e, mais próximo viu que era uma pessoa. “Sai daí” – gritou-lhe, e “nesse preciso momento vem o Seat de baixo para cima e embateu no senhor, na cara”. A testemunha estava a abrandar, para parar. Abriu o vidro, quando disse “Sai daí”. Não sabe se o carro viu ou não, “estava a tentar alertá-lo, para ver se ele não batia no senhor” (min. 5,00). Aquilo é logo após a curva, a subir, duas ou três salas como esta, não sabe precisar... a testemunha estava com os quatro piscas, a abrandar, mas ainda não tinha parado e o corpo estava à sua frente “um bocadinho”. Tentou buzinar e fazer sinal, mas acha que o senhor [do carro] não viu. Na estrada não conseguia passar, só desviando-se para o monte; podia parar, mas não viu nenhuma manobra. A velocidade do outro veículo, não tem noção. O corpo foi projetado além do seu carro. O senhor estava de gatas, com a cara virada para baixo. O veículo parou alguns metros mais à frente, mais ou menos ao lado do corpo, depois deste ser projetado (9,40). Saiu do carro. A namorada entrou em pânico. Foi ver o senhor que “tinha esta parte da face aqui pendurada”. O senhor do carro veio a correr, ver o corpo. A testemunha disse-lhe que já chamara as autoridades. Ficou [o senhor do carro] aflito e a namorada também estava em choque (11,30). Vistas as fotografias, reconhece o local. Ali [a velocidade] é 40, tem sinal um pouco abaixo do caixote do lixo. O corpo veio para junto do caixote. Acha que quem vem a subir tem outra perceção. Antes da [primeira] casa, quem sobe, se há um caminho, não tem presente, pensa que sejam as garagens para a casa (22,20). Não se apercebeu que o senhor se estivesse a movimentar. Não fez movimento, estava parado. Acha que o senhor do carro, se visse [o outro senhor] tinha parado. Logo após a curva, tem a perceção da reta toda, por algum motivo não viu. As luzes eram duas, “as minhas e as do senhor”, e quem vai a subir consegue travar mais rápido (33,00). Se tivesse visto, tinha facilidade de parar “e se fosse eu até estragava o meu carro contra o outro” (34,00). O senhor estava no chão, de gatas, de cara virada para a curva. Não o viu voar, depois do embate, nem chegou a bater com o corpo no seu carro (38,00). Provavelmente seria [viria a] “alguma velocidade, para o senhor ir para àquela distância”. Não recorda a roupa da vítima, a cor da mesma... a distância até à curva são “três ou quatro salas”. Acha que o “estado normal” da vítima era bêbado (44,40). 20 – I…. Ficheiro n.º 20201210114118. Dos autores, conhece bem o C… e, das conversas com ele, mostrou tristeza por ter perdido o irmão. Admito que tenha ficado afetado. Não faz ideia se [a vítima] morreu logo ou não. 21 – L…. Camareira. Vinha no veículo atropelante, conduzido pelo G…. Ficheiro n.º 20201210121124. Vínhamos do Marco, a subir, fizemos a curva, estava um carro parado do outro lado e, de repente, apareceu uma cabeça... só “me apercebo da cabeça, redonda... um chapéu... só me recordo da cabeça aparecer (min. 2,00). Estava um veículo parado do outro lado da faixa... apareceu aquela cabeça, não tinha visto o vulto antes... não se apercebeu de nada. A única explicação para não ver [o vulto] é o outro carro estar ali parado, com as luzes ligadas. Acha que o carro estava parado. Não vinham a conversar, vinham os dois atentos à estrada... se não houvesse o veículo parado, pensa que veriam o senhor. O sítio é a subir um bocadinho e acha que tem um sinal de quarenta. Não se apercebeu do movimento do corpo, só o viu do outro lado, quando saiu do veículo... o corpo estava... “não sei, não recordo”. Tem ideia de que vinham devagar, a 40 ou 50, “mas não consegue dar resposta”... tentaram parar “o mais depressa... foi travar logo” (11,40). 22 – G…. Condutor do veículo atropelante. Ficheiro n.º 20201210114949. As luzes do outro carro é que não o deixaram ver? Sim. Sim, não percebe como não conseguiu ver. O outro carro estava junto ao senhor, acho (min. 2,20). Só depois de passar as luzes do outro carro é que vê o senhor... tentou travar, mas não sabe se travou antes ou depois de bater e o carro parou 2, 3, 4 metros mais à frente. O senhor ficou na faixa contrária, atrás do [outro] carro, mais ou menos ao lado, ainda mais para trás e o seu carro mais à frente (4,30). Embateu com o lado esquerdo do carro, na cabeça, a única parte que conseguiu ver. Não recorda como o senhor estava vestido, se de escuro ou claro. Já lá passou várias vezes e a única razão [para o acidente, em seu entender] “é o carro que estava em sentido contrário”. Não tem noção como o senhor ali foi parar, nem se se estava a mexer. Àquela hora costumam lá estar parados 3 ou 4 carros, “mas nada de especial”. Levava os médios acesos. O acidente foi antes do meio da reta, é possível que a 100 metros, depois da curva. Os médios do seu carro funcionavam normalmente e há um sinal de limitação de quarenta e, antes, um de cinquenta. A vítima estava com a cabeça ao nível do capot... a ideia que tem é ter visto a cabeça; as luzes estavam acesas, a estrada seca e não havia nevoeiro. Não tem perceção para que lado foi o corpo, viu depois do embate que foi para a outra faixa. Não olhava para o conta quilómetros, mas circularia aí a uns quarenta e tem ideia que o carro não derrapou (20,30). 21 – Na apreciação da prova, além dos depoimentos testemunhais que anteriormente foram referidos, tivemos em conta os documentos juntos aos autos, concretamente a participação do acidente, o relatório da autópsia (fls. 5/9 e 20/21), o relatório final do “Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação” (fls. 24/28), o “Relatório Tático de Inspeção Ocular” (fls. 40/53) e as fotos juntas em audiência (correspondentes, no processo físico, a fls. 54/57). 22 – Na análise crítica da prova, importa ponderar vários elementos, tendo sempre presente que a “verdade processual” é, ou é também, a “verdade adquirida no processo, sujeita à apresentação da causa e ao modo como a mesma ocorreu, submetida à discussão contraditória, sujeita ao julgamento produzido pelo julgador e, bem assim, sujeita à maior ou menor amplitude da produção e investigação probatória que se efetue naquele determinado litígio e aos mais variados fatores que influem no desfecho do processo”[3] e, por outro lado, citando Michele Taruffo[4]: “quando existem provas conflituantes, o julgador deverá sopesar as probabilidades relativas às diferentes versões e fazer uma escolha em favor da afirmação que lhe parecer relativamente “mais provável”, com base nos meios de prova disponíveis. Tal standard é obviamente racional, uma vez que seria irracional permitir ao julgador escolher a versão mais debilmente sustentada pelos meios de prova (...). Ademais, podem-se elencar várias outras razões em favor deste standard, como, por exemplo, a sua capacidade de minimizar erros prováveis na tomada de decisões, bem como de fazer cumprir o princípio da igualdade das partes no processo civil.” 23 – No caso presente, o que verificámos é que, em rigor, apenas a testemunha ouvida H… presenciou o acidente, no sentido em que o condutor do veículo atropelante e a senhora que o acompanhava, apenas viram a cabeça da vítima e essa visão coincidiu com o embate. A versão daquela testemunha (começou por ver um vulto, abrandou a velocidade ao aproximar-se e verificou que era um homem “de gatas”) tem de ser conciliada com os elementos objetivos que o local do acidente revela. O local onde ocorreu o acidente – conforme as fotografias revelam suficientemente e os testemunhos denotam – é uma reta com velocidade limitada a 40 Kms/hora, tem iluminação pública e casas de habitação, com início junto ao local do embate e a prolongarem-se (do lado direito atenta a marcha do atropelante, lado onde também se encontram os postes de iluminação) ao longo de toda a restante (cerca de 200 metros) reta. Também resulta da prova, documental e testemunhal, que o piso estava seco e, no sentido que seguia o condutor atropelante, é a subir. A explicação dada pelo condutor do veículo atropelante (bem como pela senhora que com ele seguia) para não terem visto a vítima, ainda que sem certeza, ou seja, tomam essa explicação como a possível, por outra não verem, é a de que o veículo da testemunha H…, estacionado na outra faixa e com as luzes ligadas, lhe impediu essa visão da vítima. Não se percebe exatamente se tais testemunhos pretendem dizer que houve um encandeamento das luzes (todos aceitando que se trata de médios) ou uma distração por olharem para o veículo estacionado na outra faixa, sendo certo que a primeira hipótese foi mesmo afastada pelo tribunal recorrido. Tribunal recorrido que, ainda assim, na fundamentação da matéria de facto, começa por afastar “a possibilidade de o condutor do veículo atropelante ver ou se aperceber da vítima”, o que, com o devido respeito, não vemos que resulte da prova. Quanto à velocidade instantânea que o veículo atropelante imprimia ao veículo, os elementos documentais revelam uma distância entre embate e imobilização efetivamente inferior a 15 metros, mas, entre 10 e 15 metros, difícil de concretizar. Dessa distância não pode retirar-se, ao contrário do que pretendem os apelantes, uma velocidade instantânea próxima dos 60 Kms/hora ou sequer superior a 40 Kms/hora. Não tanto pela conclusão constante da fundamentação da decisão relativa à matéria de facto de que a distância de travagem, a esta última velocidade, seria variável entre os 20 e os 32 metros, ou seja, 26 metros, em média (pois, sabendo-se que a distância de travagem é uma função quadrilátera da velocidade inicial, ou seja, antes do início da travagem, isso equivaleria a dizer que no limite legal de condução em autoestrada – 120Kms/hora – tal veículo só se imobilizaria depois de cerca de 230 metros), mas porque não pode deixar de se contar com o tempo de reação do condutor que, considerando-se um segundo, significa que o veículo percorre ainda 11 metros, à velocidade de 40Kms/hora. É verdade que a projeção da vítima indicia uma velocidade superior à ali permitida e os testemunhos, não a afirmando, não a desmentem, mas o elemento objetivo da distância de paragem – atento o tempo de reação previsível – não permite essa conclusão. No entanto, parece-nos perfeitamente de concluir que o condutor do veículo atropelante podia ver a vítima (um homem de 1,60 metros e 95 quilos) a mais de 30 metros desta: desde a curva até ao local do embate são cerca de 100 metros, o tempo estava limpo e a estrada iluminada, com postes localizados exatamente do lado direito, atento o sentido ascendente. Salvo o devido respeito, o tribunal recorrido perspetivou o acidente essencialmente a partir da posição e conduta do peão, certamente socorrendo-se da análise pericial do órgão de polícia criminal que não deixa de dizer (fls. 27 dos autos) que “no caso em apreço poderemos apontar logo de imediato o facto de a vítima se encontrar alcoolizada ao ponto de não se conseguir equilibrar e cair na via de trânsito, portanto podemos apontar esta como a causa principal, ou seja, sem a presença da vítima na via de trânsito não se produziria o acidente”. A este propósito diga-se, por fim, que apenas esse relatório refere que a vítima estava com os joelhos no chão “e a tentar levantar-se” (fls. 25), facto este – independentemente do seu significado em termos de volumetria ou de movimento – que não resulta de qualquer depoimento. 24 – Do que antes se deixa dito, entendemos que os apelantes têm razão na sua pretensão de ver alterada a matéria de facto, concretamente as alíneas G) e R) dos factos provados e os pontos 1 (parcialmente) e 6 dos factos não provados, o que se alterará na factualidade provada e não provada, sublinhando-se. Além disso, importa clarificar a matéria de facto de modo a tornar percetível o sentido de circulação do veículo atropelante (o que nos parece não ter sido feito) e, bem assim, aditar o facto alegado pelos apelantes no seu artigo 3.º da petição, que não se mostra impugnado (e verdadeiramente legitima os autores, independentemente do estado de solteiro da vítima, sequer alegado) o que se fará oficiosamente, igualmente, sublinhado as correspondentes alterações. III.II – Fundamentação de facto 25 - Factos provados A - No dia 09.08.2018, por volta das 23H45, na rua …, na freguesia …, concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um acidente de viação, do qual resultou, como consequência direta e necessária, a morte de F…. B - O local do acidente carateriza-se por uma faixa de rodagem com dois sentidos de trânsito. C - A via apresenta um traçado retilíneo e perfil ascendente, com inclinação longitudinal positiva de 4,5% e transversal de 2,1% da direita para a esquerda, no sentido de marcha (cidade do … – …) que era seguido pelo condutor do veículo segurado na ré, com a matrícula ..-CN-... D - No acidente/atropelamento foram intervenientes: o F…, na qualidade de peão e vítima mortal e o veículo matrícula ..-CN-.., ligeiro de passageiros, marca Seat, conduzido por G…. F - No local do acidente a via apresenta as seguintes características: - existe sinalização vertical, ao menos no sentido de marcha do segurado (cidade do … – …), a proibir a circulação a mais de 40 km/hora, sinal C13; - a via é asfaltada a betuminoso, encontrava-se sem buracos ou qualquer outro tipo de irregularidades; - A via possui uma única faixa de circulação em cada sentido e perfaz uma largura de circulação de 6,40m. G - A vítima encontrava-se caída na via pública/pavimento, com os joelhos no chão, mais junto à hemifaixa, quando foi embatida pela frente esquerda, junto à ótica do Seat e, por força desse embate, foi projetada para a frente e para a esquerda, acabando por ficar prostrada na via de trânsito, logo atrás do veículo conduzido por H…, a distância não concretamente apurada do local do embate/atropelamento. H - O acidente aconteceu em plena semirreta. I - O condutor do veículo seguro na ré não realizou qualquer tipo de manobra evasiva antes de embater no peão. J - O condutor do veículo seguro, o qual apenas acionou o travão aquando do embate, conseguiu imobilizar o veículo num espaço inferior a 15 metros. L - O irmão dos autores encontrava-se prostrado na hemifaixa direita, atento o sentido de marcha cidade do … - …, conforme assente em G). M - No momento do embate era de noite e a iluminação pública no local era constituída por lâmpadas em postes distanciados entre si, de um único lado da via. N - Em sentido contrário ao de circulação do veículo segurado, circulava um veículo que, ao aproximar-se do local de cruzamento com a vítima, abrandou a marcha, sendo que tinha ligadas as luzes de cruzamento (médios). O - Sem que se tivesse apercebido da presença da vítima ou de qualquer outro vulto ou objeto na via estradal, o condutor do veículo segurado somente no momento do embate se apercebeu da vítima na via. P - A vítima na altura do acidente apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,45g/L. Q - Mais se achava sob o efeito de benzodiazepinas. R) O condutor do veículo referido em N) gritou/avisou a vítima para que saísse da estrada, sem êxito, mantendo-se aquela na estrada, em plena faixa de rodagem destinada ao trânsito de veículos. S) Após o sinistro o F… foi retirado do pavimento e colocado numa ambulância dos bombeiros voluntários …, sendo que algum tempo depois chegou o INEM, sendo declarada a morte pela médica daquela instituição, pelas 0H40m. T) À data do sinistro a vítima era relativamente saudável e normalmente estimada. U) Devotava aos autores normal estima. V) Os autores sofreram com a morte do irmão. X) Os autores são irmãos do falecido F…, o qual faleceu deixando aqueles, à data do óbito, como seus únicos e universais herdeiros. Z) A via no local do acidente: - do lado direito da via, atento o sentido de marcha ..-CN-.., há casas de habitação. AA) Na concreta posição em que o F… se encontrava na via, era visível para o Sr. G… a mais de 30 metros de distância. 26 - Factos não provados 1. A via no local do acidente: - a faixa de rodagem e atento o sentido de marcha do veículo segurado é ladeada por bermas; - do lado direito da via, atento o sentido de marcha cidade do … – …, há uma paragem coberta de transporte público e um estabelecimento comercial (café) muito frequentado; - o local do evento e as suas imediações (área circundante de cerca de 50 metros) é bastante frequentado por pessoas e veículos; - Entre guias atinge uma largura de circulação de 5,40m; 2. O F… havia caminhado pelo passeio do lado esquerdo, atento o sentido de marcha … – cidade do …. 3. A dada altura, quando se preparava para deixar a parte da via provida de passeio, já muito próximo do seu final, devido ao declive aí existente, tropeçou e caiu desamparado na via, sensivelmente a meio da hemi-faixa esquerda – atento o sentido de marcha … – cidade do …. 4. Foi na sequência imediata de queda pelo sinistrado que ocorreu o acidente; 5. Por força do embate a vítima foi projetada/atirada a mais de 15 metros do local do embate; 7. Previamente ao embate, o G… circulava desatento; 8. A mais de 60 km/hora; 9. Só conseguindo, por isso, imobilizar o Seat a mais de 10 metros de distância do local do embate; 10. O veículo referido em N) passou a alternar repetidamente entre luzes de cruzamento (médios) e luzes de estrada (máximos), por forma a sinalizar a presença da vítima na estrada; sendo que a intensidade de iluminação do veículo referido em N) encandeou o condutor do veículo segurado na R.; 11. Perante o encandeamento e a sinalização do veículo referido em N) o condutor do veículo seguro na Ré, à cautela, ainda abrandou; 12. Foi o facto de caminhar com álcool ou sob o efeito de benzodiazepinas que causou que a vítima caísse à faixa de rodagem. 13. À data do acidente a vítima era particularmente saudável, tranquila, vivia com alegria; Devotava aos AA. muita estima, amizade e carinho; 14. A mágoa dos AA manteve-se durante o dia do acidente, no dia da realização do funeral e nos dias seguintes e ainda se hoje mantém e vai continuar a manter, por muito mais tempo; 15. A saudade e a mágoa acentua-se nas datas festivas, designadamente, aniversários, Páscoa, Natal, em que os irmãos com alguma frequência se juntavam; 16. O F… padeceu no intervalo entre o embate e a morte de intenso sofrimento; ainda mediante a perceção de que podia vir a falecer. III.III – Fundamentação de Direito 27 – Na aplicação do Direito, o tribunal recorrido entendeu que “A procedência do pedido supõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual contidos nomeadamente nos artigos 483, 487, n.º 2, 488 e 562 a 564 do Código Civil” e, analisando os pressupostos da responsabilidade civil, considerou que “no âmbito da presente acção, embora caiba ao lesado a prova da culpa do lesante, a posição daquele será frequentemente aliviada por intervir aqui a chamada prova de primeira aparência ou presunção simples: feita a prova dos factos que legitima a presunção, fica a parte contrária com o ónus da contraprova destinada a invalidar aquela, neutralizando-a, criando no Juiz um estado de dúvida ou incerteza, ou seja, se a prova prima facie ou por presunção judicial produzida pelo lesado apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova (...) Contudo, não basta a condução infracional para se concluir de imediato pela culpa; presumindo-se esta da conduta transgressional, necessário se torna provar que aquela conduta foi a causa do acidente. Acontece porém, que a violação duma regra legal de trânsito ou a desobediência por exemplo a um sinal por parte dum condutor, quando concomitantes com um acidente de viação, não implicam automaticamente a existência de culpa desse condutor na produção do mesmo acidente, sendo para isso necessário demonstrar que aquela ou aquelas condutas contravencionais foram causa do evento ou para ele contribuíram adequadamente” e, mais adiante: “Ora, não resultaram, pelas razões melhor explicitadas em sede de motivação da matéria de facto, provados os factos alegados pelos AA que consubstanciariam a culpa do condutor do veículo seguro na Ré. Assim a velocidade superior à legalmente permitida e a desatenção face à visibilidade manifesta da vítima na via... Por outro lado, vem sendo correntemente entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores que o condutor não é obrigado a prever ou contar com a falta de prudência dos restantes utentes da via, antes devendo, razoavelmente, partir do princípio de que todos cumprem os preceitos regulamentares do trânsito e observam os deveres de cuidado que lhes subjazem. Desta sorte, não é de exigir a um condutor razoável ou meridianamente prudente uma previsibilidade para além do que é normal (...) Ora, sabido como é que as normas estradais têm dois horizontes (afastamento do perigo para a segurança das pessoas e das coisas e não perturbação ou entrave para o trânsito), cabe, quanto à conduta da vítima mesma, considerar o disposto no artigo 99 do Código da Estrada, na redação vigente à data do sinistro, a aplicável, nos termos do qual, os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas; sendo que podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, para além do mais, quando efetuem o seu atravessamento (...) o que ressalta é o comportamento contraordenacional da vítima, que se encontrava sob o efeito do álcool e benzodiazepinas, prostrado na faixa de rodagem, lentificado e sem conseguir levantar-se, como atestado pelo condutor do veículo referido em N), valendo aqui a prova prima facie da respetiva culpa negligente, que não logrou ilidir. Em conclusão, da factualidade apurada decorre que o acidente não resultou de qualquer comportamento lesivo de um dever de cuidado da parte do condutor do veículo, o qual não resulta ter desrespeitado as normas de circulação rodoviária, nem também a violação do dever geral de cuidado de circular atento. De resto, não se provou a violação por aquele condutor das regras que impõem limites de velocidade, pelo que não resultando a violação, alegada, das regras plasmadas no Código da Estrada. Nem também a violação de um dever geral de cuidado ou diligência”. 28 – Equaciona ainda a sentença “se estamos perante uma hipótese de responsabilidade objetiva nos termos do art. 503/1, começando por adiantar que, nos casos em que é invocada a culpa do lesante, a falta de prova em relação ao circunstancialismo em que a mesma assentava não impede a apreciação de uma eventual responsabilidade pelo risco”, mas conclui: “não se crê que, no caso, seja possível ter o risco próprio da circulação do veículo como concausal, a par da culpa do sinistrado e lesado mesmo, para a verificação do sinistro... Com efeito, o embate verifica-se na hemifaixa por onde circulava o veículo, mediante ocupação da via pelo sinistrado, prostrado, de noite, sob o efeito do álcool, lentificado, sem capacidade de se levantar... Não pode ter-se, pois, como caracterizada aquela concausalidade, ainda por via do risco. É que, por outro lado e finalmente, não está sequer em causa o comportamento de uma criança ou inimputável. Por isso que se julga excluída a possibilidade de responsabilizar, por via do risco, o condutor do veículo seguro na Ré, assacando-se a causa do sinistro ao lesado mesmo e à culpa negligente deste, em termos de não se antever fundamento para a responsabilidade civil daquele condutor e, nessa mesma medida, da Ré”. 29 – Apreciando o recurso, avançamos, desde já, a nossa discordância relativamente à sentença recorrida. E se os factos aqui fixados e que, nessa medida, alteraram a factualidade provada e não provada na primeira instância, permitem realçar essa discordância, sempre diremos que, mesmo sem tal alteração seria de entender verificada a responsabilidade civil do condutor do veículo, quer por facto ilícito e, por maioria de razão, pelo risco. 30 – No fundo, a decisão recorrida – como já se disse aquando da apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, parece ter analisado o acidente de viação apenas na perspetiva do comportamento do peão, a quem imputa a violação do artigo 99 do Código da Estrada (CE), embora este preceito permita aos peões o atravessamento da via, naturalmente com as devidas cautelas e sendo certo que sequer se apurou que ao peão, a concreta vítima, era possível fazer a travessia usando passadeira próxima. 31 – Desconhece-se a causa que levou o peão a estar caído na faixa de rodagem e a ingestão de álcool ou medicamentos não explica o concretamente sucedido. Note-se que o peão, no caso concreto, não atravessou inopinadamente a via de trânsito, estava caído, de joelhos no solo. 32 – Para o condutor do veículo seguro, o peão era um obstáculo que se encontrava na via. Um obstáculo numa via retilínea e iluminada, que podia ser visto a mais de trinta metros, e sempre a esta distância, atento o normal alcance das luzes em médios, numa zona com casas de habitação e numa noite de tempo seco. 33 – O peão estava imóvel e foi visto pelo condutor que circulava em sentido contrário. 34 – Nos termos do artigo 24, n.º 1 do CE “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” e, nos termos do artigo 25, n.º 1, alínea c), “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: (...) c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações”. 35 – Concluímos, assim, que o condutor do veículo atropelante violou o disposto nos preceitos acabados de citar, quando podia e devia agir de outro modo, encontrando-se reunidos os pressupostos da obrigação de indemnizar. 36 – Nas circunstâncias apuradas não pode imputar-se à vítima o acidente, nem concluir-se que haja agido culposamente. 37 – Em conformidade, a ré deve reparar os danos sofridos pela vítima (dano da morte) e pelos autores, os danos não patrimoniais próprios destes. 38 – Na fixação desses danos há que seguir a jurisprudência mais recente e atender ao pedido formulado pelos demandantes. 39 – Como se sumaria no acórdão muito recente do Supremo, de 3.03.2021 (Relatora, Conselheira Maria do Rosário Morgado), in dgsi, “III – Pela perda do direito à vida, atendendo aos padrões jurisprudenciais utilizados em casos semelhantes, afigura-se-nos ajustado fixar em €80.000,00, a correspondente indemnização”. 40 - Noutro acórdão do Supremo, também muito recente (25.02.2021, Relatora, Conselheira Rosa Tching), in dgsi, vem sumariado: “IV. Em sede de compensação pela perda do direito à vida, tendo em conta que a vítima tinha 53 anos e não contribuiu para a produção do acidente, à luz dos parâmetros mais recentes da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se por razoável fixar o valor base daquela compensação em 80.000,00€ (...) VI. Tendo em conta os parâmetros seguidos pela jurisprudência deste Supremo Tribunal e a necessidade de uma progressiva atualização dos valores indemnizatórios, considera-se justo e adequado fixar o valor base da compensação pelos sofrimentos próprios do filho da vítima e da pessoa com quem esta vivia em união de facto desde há 6 anos, em 35.000,00€, não se vislumbrando razões para estabelecer, a este nível, qualquer diferenciação entre eles visto resultar claro da matéria provada que ambos mantinham com a vítima laços de afetividade e convivência no âmbito de um mesmo consolidado agregado familiar, admitindo-se, por isso, que terão ficado psicologicamente afetados, em igual medida, pela perda da vítima”. 41 – Considerando os pedidos formulados, a jurisprudência citada e um juízo de normalidade, temos por adequada a compensação peticionada, salvo no que se refere ao sofrimento da vítima imediatamente antes da morte, já que os factos revelam ter havido instantânea perda de consciência. Com efeito, não obstante o referido em S) [Após o sinistro o F… foi retirado do pavimento e colocado numa ambulância dos bombeiros voluntários …, sendo que algum tempo depois chegou o INEM, sendo declarada a morte pela médica daquela instituição, pelas 0H40m] que apenas revela o tempo que mediou entre o acidente a morte declarada do irmão dos autores, o facto não provado n.º 16 [O F… padeceu no intervalo entre o embate e a morte de intenso sofrimento; ainda mediante a perceção de que podia vir a falecer] não foi sequer impugnado pelos recorrentes. 42 – Assim, e aferida ao momento presente, fixa-se a compensação pelo direito à vida em 70.000,00€ e a compensação pelo dano moral sofrido por cada um dos autores em 10.000,00€, ou seja, no total de 30.000,00€, assim procedendo parcialmente a ação e o recurso. 43 – As custas da ação e do recurso, atento o decaimento respetivo, são a cargo dos autores/recorrentes e da ré/recorrida, na proporção de 1/20 e 19/20. IV - Dispositivo Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso parcialmente procedente e, em conformidade, alterando a decisão relativa à matéria de facto nos termos supra assinalados, revoga-se a sentença recorrida que se substitui pela presente decisão: “Declarando os autores como únicos e universais herdeiros de F…, condena-se a ré no pagamento aos mesmos da quantia de 100.000,00 – cem mil euros – correspondente à perda do direito à vida da vítima (70.000,00€) e a título de compensação por danos não patrimoniais próprios (10.000,00€ x 3), do mais a absolvendo. Custas do recurso e da ação por recorrentes e recorrida, na proporção respetiva de 1/20 e 19/20. Porto, 10.05.2021 José Eusébio Almeida Carlos Gil Mendes Coelho ___________ [1] No que se segue o relato constante da sentença recorrida. [2] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, pág. 331. [3] Carlos Castelo Branco, A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina/Coletânea de Jurisprudência, 2018, págs. 17/18. [4] A Prova (tradução João Gabriel Couto), Editora Marcial Pons, São Paulo, 2014, pág.135. |