Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12957/22.6T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
SIGILO MÉDICO
ACESSO A DOCUMENTAÇÃO CLÍNICA
AUTORIZAÇÃO DO SEGURADO
Nº do Documento: RP2023061512957/22.6T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A celebração de um seguro do ramo vida não permite a interpretação que o segurado autorizou tacitamente a ré a aceder aos seus registos clínicos e outra documentação clínica e ainda que essa autorização tivesse sido expressamente concedida, designadamente na proposta de seguro, pode ser revogada pelo segurado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 12957/22.6T8PRT.A. P1


Relator – Leonel Serôdio (n.º 2 -2023)
1º Adjunto –Des. João Venade
2ª Adjunta – Des. Ana Vieira



Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto


Na presente ação declarativa com processo comum que AA intentou contra A... SA, veio a ré interpor recurso de apelação do despacho que não deferiu o seu requerimento probatório, na parte em que pedia, que fossem notificados, nos termos do artigo 432.º do Código de Processo Civil, o Centro de Saúde de Celorico de Basto e da Administração Regional do Porto, I.P., para virem juntar diversos documentos.
Termina a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“I. A Recorrente intenta o presente recurso por não concordar com o teor do despacho recorrido, uma vez que o mesmo, salvo o devido respeito, não consubstancia a rigorosa aplicação do direito, razão pela qual não concorda com as conclusões retiradas e a decisão proferida, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça uma correta aplicação do direito.
II. Na modesta opinião da Recorrente, o despacho recorrido enferma de um erro ao considerar, desde logo, que o consentimento dado pelo Recorrido aquando da subscrição do contrato de seguro não abrange o Tribunal nem os presentes autos, bem como, enferma de erro ao concluir pela inversão do ónus da prova quanto à matéria de exceção alegadamente invocada pela Recorrente.
III. A Recorrente, na sequência da participação do sinistro pelo Recorrido, solicitou, por diversas vezes, documentação para instrução do processo de sinistro, designadamente, o “relatório do médico de família/assistente, com referência, detalhada a data do diagnóstico, histórico da evolução da doença ou do acidente que motivou a Invalidez”, bem como, de “documento oficial comprovativo da situação de reforma por invalidez”.
IV. O Recorrido nunca enviou os aludidos documentos à Recorrente, optando por intentar a ação, sem que, contudo, tenha procedido à sua junção também nessa sede.
V. Face ao não envio dos documentos solicitados pela Recorrente por parte do Recorrido, a Recorrente requereu, no seu requerimento probatório, que fossem notificados, entre outros, nos termos do artigo 432.º do Código de Processo Civil, o Centro de Saúde de Celorico de Basto e da Administração Regional do Porto, I.P., para virem juntar diversos documentos, designadamente, a notificação do Centro de Saúde de Celorico de Basto para juntar aos autos processo clínico completo do Recorrido, bem como a identificação dos médicos responsáveis pelo acompanhamento médico, com vista à sua indicação como testemunhas, e a notificação da Administração Regional do Porto para vir juntar aos autos processo administrativo que esteve na base da atribuição de incapacidade de 64,2%, designadamente pedidos apresentados pelo Recorrido e documentos anexos, atestados ou declarações médicas, pareceres, entre outros.
VI. Sem o acesso aos documentos clínicos solicitados, encontra-se vedada à Recorrente a possibilidade de arguir matéria de exceção, designadamente, anulabilidade do contrato de seguro por omissão de factos essenciais aquando da subscrição do contrato de seguro, nos termos do artigo 25.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, e, bem assim, exclusão do sinistro participado por decorrer de patologia prévia à data da celebração do contrato de seguro.
VII. O “Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I – Baixo Tâmega” (onde se insere o Centro de Saúde de Celorico de Basto”) e a ARS do Porto solicitaram, para o envio das informações solicitadas, a junção do consentimento do titular dos dados.
VIII. A Recorrente, face ao silêncio do Recorrido, requereu a notificação das entidades em causa para a junção dos elementos solicitados, dado que o pedido dessas entidades era infundado, por já ter sido dada autorização pelo Recorrido à Recorrente para o acesso aos registos clínicos ou outros documentos/informações.
IX. Sucede que, por despacho proferido com a referência 447310223, concluiu que “o tribunal, porém, obviamente não sendo “parte” nesse contrato, não é abrangido por essa “autorização”, o que legitima Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I – Baixo Tâmega e ARS Porto a invocar o sigilo médico”.
X. Acresce que, entendeu o Tribunal a quo que “Nos termos do disposto no art. 417 nº 2 do Código de Processo Civil, quando o recusante for parte, “o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no nº 2 do art. 344 do Código Civil”, relativamente à matéria de exceção invocada pela ré na sua contestação.”, a qual não se pode aceitar.
XI. No entendimento da Recorrente, tal pedido pelas entidades em causa é, desde logo, descabido, dado que os elementos constantes dos autos permitem concluir que o consentimento para o acesso aos registos clínicos ou a outros documentos/informações foi dado pelo Recorrido, atento o consentimento expresso e inequívoco da pessoa segura, aqui Recorrido, aquando da apresentação da proposta de seguro a um seguro de vida, e tratando-se de documentos necessários à execução do contrato na qual o Recorrido é parte e funda o direito que pretende fazer valer nos autos, é manifesto que deve ter-se por excluída a confidencialidade da reserva da vida privada e, nessa medida, afastada a necessidade de qualquer consentimento.
XII. Assim, deveria o Tribunal a quo ter ordenado a notificação do Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I- Baixo Tâmega e ARS Porto para virem juntar aos autos os documentos cuja junção havia sido previamente ordenada, com a nota de que a autorização foi oportunamente concedida.
XIII. Atente-se no disposto no artigo 417.º, n.º 2, 2.ª parte, e no artigo 344.º, n.º 2, para se perceber que a cominação aplicada pelo Tribunal não tem qualquer efeito nos autos.
XIV. Com efeito, a cominação que o Tribunal a quo aplicou, da inversão do ónus da prova não faz sentido nos presentes autos, não culminando numa verdadeira “sanção” pela falta de colaboração do Autor pela descoberta da verdade, uma vez que não há matéria de exceção arguida que culmine numa inversão do ónus da prova.
XV. O Tribunal a quo, decidindo da forma como decidiu, pela aplicação da inversão do ónus da prova, beneficiou o Recorrido, que se recusou em colaborar com o Tribunal e contribuir para a descoberta da verdade, contrariando assim o espírito das normas em causa e os interesses que visam proteger.
XVI. O Recorrido, ao recusar colaborar com o Tribunal não vê, assim, aplicada qualquer cominação, atenta a ausência de matéria de exceção arguida em sede de Contestação, provocada, precisamente, por essa recusa.
XVII. O Recorrido consentiu que a Recorrente acedesse a toda as informações necessárias à regularização dos sinistros participados.
XVIII. Atento o que se encontra em causa nos autos, e face à postura do Recorrido, dúvidas não restam que é essencial o acesso da Recorrente às informações/documentos solicitados, a fim de não só concluir pelo enquadramento ou não do sinistro nas garantias do contrato de seguro e, por outro lado, apurar se existem factos passíveis de serem alegados que permitam concluir pela dedução de matéria de exceção.
XIX. É manifesto que o Recorrido já prestou consentimento para o acesso às aludidas informações pela Recorrente, aquando da subscrição do contrato de seguro e da participação do sinistro.
XX. É ao Recorrido e à Recorrente que aproveita a prestação das informações /documentos solicitados, e ter-se-á que concluir que, tendo o Recorrido prestado consentimento à ora Recorrente, o Tribunal encontra-se munido dos elementos necessários para considerar que o Recorrido já consentiu no envio dos aludidos elementos aos autos.
XXI. O Tribunal a quo, ao aceder à recusa do Recorrido em cooperar com o Tribunal para a descoberta da verdade, e aplicando uma cominação que não resulta em qualquer prejuízo para o Recorrido, mas sim para a Recorrente, contraria não só o princípio da cooperação para a descoberta da verdade previsto no artigo 417.º do Código de Processo Civil, como compactua com a postura do Recorrente, o qual impediu a alegação de factos que possam prejudicar a sua demanda.
XXII. Nesta conformidade, deve o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que ordene a notificação do Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I – Baixo Tâmega e ARS Porto para vir juntar aos autos os elementos/documentos requeridos, com indicação que o Recorrido autorizou a recolha de documentação clínica.

A contra-alegação do autor, não foi admitida.

Fundamentação

A questão a decidir é apenas a de saber se o tribunal devia ter ordenado a notificação do Centro de Saúde e ARS Porto para juntarem aos autos a documentação clínica do autor, no pressuposto que este autorizou a recolha da sua documentação clínica.

Factualidade a considerar:

1. O autor intentou a presente ação, invocando a celebração de um contrato de seguro do ramo Vida, modalidade A... Seguro Vida Habitação, em 18 de novembro de 2021.
2. Acionou o contrato de seguro em causa, designadamente da cobertura Invalidez Total e Permanente, alegando que, em 6 de abril de 2022, foi sujeito a junta médica, na qual foi atribuída uma incapacidade de 64% e que estavam verificados os requisitos para o preenchimento da cobertura invocada.
3. Pediu a final a condenação da ré a pagar ao autor, “todas as mensalidades que após ter sido decretada a invalidez de 64 por cento, o A. pagou ao Banco 1... S.A., e a pagar ao Banco 1... S.A., o capital que, na mesma data se encontrar em dívida com referência a crédito habitação” e, bem assim, a quantia de €1.200,00 a título de danos morais.
4. A ré pretende que o autor lhe envie documentação para instrução do processo de sinistro, designadamente, o “relatório do médico de família/assistente, com referência, detalhada à data do diagnóstico, histórico da evolução da doença ou do acidente que motivou a Invalidez”, bem como, de “documento oficial comprovativo da situação de reforma por invalidez” e o autor não lhe enviou essa documentação.
5. O “Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I – Baixo Tâmega” (onde se insere o Centro de Saúde de Celorico de Basto”) e a ARS do Porto solicitaram, para o envio das informações pedidas a junção do consentimento do titular dos dados.
6. Não obstante a notificação por parte do Tribunal ao autor para este vir dar o seu consentimento, o mesmo nada disse.
7. A ré, defendendo que o autor já lhe tinha dado autorização para aceder aos registos clínicos, quando celebrou o contrato de seguros, requereu que fossem notificados, entre outros, nos termos do artigo 432.º do Código de Processo Civil, o Centro de Saúde de Celorico de Basto e da Administração Regional do Porto, I.P., para virem juntar diversos documentos.
8. De seguida foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Requerimento da ré, A... SA, sob a ref. 45182166:
Em processo civil, não são raros os casos em que, para a prova de determinados factos, com eventual utilidade para a descoberta da verdade, seja necessária a obtenção de elementos (informações médicas) que se encontram na disponibilidade de instituições de saúde e que, a coberto do sigilo médico, não fornecem informação sem autorização do utente clínico.
Sustenta a requerente que, com a subscrição do contrato de seguro, o autor autorizou a ré a recolher documentação clínica para aferição da ocorrência e/ou cobertura do sinistro.
Tal, será relevante nas relações contratuais entre as partes e que, eventualmente, poderá mesmo legitimar a ré/requerente a, por si própria e munida dessa “autorização” solicitar diretamente informações clínicas a instituições de saúde.
O tribunal, porém, obviamente não sendo “parte” nesse contrato, não é abrangido por essa “autorização”, o que legitima o Agrupamento de Centros de Saúde Tâmega I – Baixo Tâmega e ARS Porto a invocar o sigilo médico”.
Por outro lado, o tribunal já por duas vezes notificou o autor, solicitando que este desse autorização expressa para a recolha de tal informação médica.
O autor não deu resposta a nenhuma dessas notificações, o que equivale a recusa em colaborar com o tribunal na obtenção de elementos probatórios.
Nos termos do disposto no art. 417 nº 2 do Código de Processo Civil, se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil, decorrente da exceção invocada pela ré na sua contestação.”

De Direito
A ré/apelante pretende que o Tribunal notifique instituições de saúde para estas entregarem no tribunal documentação clínica relativa ao autor, designadamente, o “relatório do médico de família/assistente, com referência, detalhada à data do diagnóstico, histórico da evolução da doença ou do acidente que motivou a Invalidez”, bem como, de “documento oficial comprovativo da situação de reforma por invalidez.”

Relativamente à entrega de documentos em poder de terceiros, o artigo 432º do CPC, estipula:
“Se o documento estiver em poder de terceiro, a parte requererá que o possuidor seja notificado para o entregar na secretaria, dentro do prazo que for fixado, sendo aplicável a este caso o disposto no artigo 429º.”
Nos termos do n.º 2 do artigo 429º, se os factos que a parte pretender provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a junção.
No caso, atenta a causa de pedir invocada, que inclui padecer o autor de uma incapacidade de 64% e os pedidos formulados, os documentos clínicos que a ré pretende podem ter interesse para a discussão da causa.
Assim, em princípio, o Tribunal podia ter notificado as entidades de saúde para juntar a referida documentação clínica.
O artigo 417º do CPC, com a epígrafe dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe no seu n.º 2:
“- Aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”
E no n.º 3, acrescenta: “A recusa é, porém, legítima se a obediência importa: (…).
c) Violação do sigilo profissional (…) sem prejuízo do disposto no n.º 4.”

No caso, está em causa a entrega de relatórios médicos por unidades de saúde.
Está fora de dúvida que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de proteção legal (art.º 70º do Código Civil que, designadamente, proíbe toda e qualquer ofensa ilícita à personalidade moral e art. 80º do Código Civil, que estipula no seu n.º1: “Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada” e constitucional (artigo 26º da Constituição, que estipula que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal (…) ao bom nome e reputação, (…) à reserva da intimidade da vida privada …” e ainda o art. 35º n.º4 que proíbe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na lei.
A saúde faz parte da individualidade privada do ser humano, e, assim, do contemplado resguardo da vida particular contra a eventualidade de divulgação pública.
Assim, o direito à reserva da intimidade da vida privada, incluirá, em princípio, a proibição de ações com o objetivo de tomar conhecimento ou obter informações sobre a vida privada de outrem, incluindo, obviamente, os elementos respeitantes à saúde.
Os direitos à reserva da intimidade da vida privada e de autodeterminação informativa no domínio da saúde, está legalmente protegido, numa dupla vertente.
Para além da proteção conferida pelos citados artigos 18ºn.º1, 26º n.º 1 e 35º n.º 4 da Constituição e 70º e 80º do Código Civil, esses direitos são protegidos pela proibição da divulgação dos dados respeitantes à saúde.
Desde logo a Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 04.98, consagra o direito à reserva dos elementos referentes à saúde ao estipular na Base 15 n.º 1: “A informação de saúde é propriedade da pessoa.”
Também dos artigos 30º a 32ºº do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, Regulamento n.º 707/2016 de 21.07, resulta que o segredo médico se impõe em todas as circunstâncias, dado que resulta de um direito inalienável de todos os doentes e abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e mantém-se mesmo após a morte do doente (art. 30 n.º 1 e 2).
Os médicos que trabalhem nas unidades de saúde estão obrigados a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente (art. 31º n. º1)
Nos termos do art.º. 33º do referido Código Deontológico apenas excluem o dever de segredo médico: a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico ou do doente, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória.
Perante os citados normativos é indiscutível, que, por regra, os médicos e as instituições que prestam serviços de saúde e têm na sua posse elementos e registos clínicos dos seus clientes não podem revelar quaisquer dados relativos aos seus clientes, sem consentimento do respetivo cliente, em benefício do qual primeiramente se impõe o dever de sigilo.
No caso, estando em causa a entrega de relatórios clínicos, é inquestionável ser legítima a recusa das unidades de saúde, atento o dever de sigilo profissional, exceto se o autor expressamente o tivesse consentido.
Ora, como consta do despacho recorrido, o tribunal já por duas vezes notificou o autor, solicitando que este desse autorização expressa para a recolha de tal informação médica e este não deu resposta a nenhuma dessas notificações, o que equivale a recusa em colaborar com o tribunal na obtenção de elementos probatórios.
Assim sendo, estando assente que o autor se recusa a dar a autorização para que as unidades de saúde remetam para o Tribunal os seus registos clínicos e a outra informação médica pretendida pela ré, é inútil e, por isso, ilícito, nos termos do artigo 131º do CPC, estar a notificar as unidades de saúde para entregarem essas documentação.
A recusa do autor de colaborar no campo da prova, não o sujeita apenas à livre apreciação do seu comportamento, nos termos do art.º 344º n.º 2 do Código Civil, para onde remete, o art. 417º n.º 2, pode também dar lugar à inversão do ónus da prova.
Essa inversão do ónus da prova, apenas se pode aferir, caso a caso, atenta a prova produzida em audiência e ocorre quando o tribunal constata que a recusa da entrega dos documentos impossibilita a prova dos factos alegados pela contraparte, no caso pela ré, ora recorrente.
A Apelante defende, por um lado, que a sanção prevista no citado n.º 2 do art. 417º do C.P.C, não assegura o seu direito de defesa, sustentando que sem o acesso aos documentos clínicos solicitados, encontra-se-lhe vedada a possibilidade de arguir matéria de exceção, designadamente, anulabilidade do contrato de seguro por omissão de factos essenciais aquando da subscrição do contrato de seguro, nos termos do artigo 25.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e ainda a exclusão do sinistro participado por decorrer de patologia prévia à data da celebração do contrato de seguro.
Ainda que se admita que essa documentação clínica podia favorecer a defesa da ré/ seguradora, esta ainda que de forma incipiente não deixou de alegar factos, nos artigos 51º e 52º da contestação, que integram defesa por exceção, como refere o despacho recorrido.
Por outro lado, a falta de acesso à documentação clínica poderá, em princípio, ser ultrapassada com a realização de perícia médica ao autor e se dela resultarem factos novos relevantes, pode apresentar articulado superveniente e arguir as referidas exceções da anulabilidade do contrato ou a exclusão do sinistro.
De resto, a procedência da ação pressupõe que o autor prove os factos constitutivos do direito que invoca, designadamente que a sua alegada incapacidade decorre de lesão sofrida depois da celebração do contrato de seguro e a prova que apresentar será sempre valorada, nos termos do artigo 417º n.º 2 do CPC, considerando a sua recusa em colaborar.
A Apelante defende ainda que os elementos constantes dos autos permitem concluir que o consentimento para o acesso aos registos clínicos ou a outros documentos/informações foi dado pelo autor, aquando da apresentação da proposta a um seguro de vida, por serem documentos necessários à execução do contrato em causa e que funda o direito que pretende fazer valer nos autos.
Apesar dessa alegação, a ré não juntou, neste recurso, documento subscrito pelo segurado autor, onde conste de forma clara e expressa que deu o seu consentimento para que a ré acedesse aos seus registos clínicos e a outros documentos médicos.
A ré sustenta que a celebração do contrato de um seguro de vida, exclui a confidencialidade da reserva da vida privada e, nessa medida, estaria afastada a necessidade de qualquer consentimento.
No entanto, não indica norma legal que apoie essa posição e o princípio da boa fé é manifestamente insuficiente para a sustentar, atentas as normas atrás citadas, incluindo constitucionais, que protegem o direito à reserva da intimidade da vida privada e proíbem a divulgação dos dados respeitantes à saúde.
Por isso, mesmo que o autor tivesse consentido expressamente que a ré acedesse aos seus registos clínicos e a outra documentação médica, quando celebraram o contrato de seguro, nada legalmente pode impedir que o autor revogue essa autorização, que representa uma limitação ao seu direito, constitucionalmente consagrado, à reserva da intimidade da vida privada.
Assim e estando assente que o autor não consentiu que as unidades de saúde enviassem os seus registos clínicos e outros documentos médicos para serem juntos ao processo, era ilegal estar o Tribunal a comunicar a essas entidades que o autor tinha consentido nesse envio, apenas por ter celebrado o contrato de seguro do ramo vida, com cobertura de invalidez total e permanente.
Não há, pois, fundamento legal para o tribunal ordenar a notificação das unidades de saúde para juntarem os registos clínicos e demais documentação médica do autor, com indicação que ele autorizou a recolha de documentação clínica.
Assim, a entrega desses documentos apenas será legalmente admissível na decisão do incidente do levantamento do sigilo profissional, a correr termos no Tribunal da Relação, nos termos dos art.º. 417º nº 4 do CPC e art.º 135º do CPP, mas a requerer pela ré, no tribunal de 1ª instância.

Sumário:
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Decisão
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se o despacho recorrido.

Custas pela Apelante.





Porto, 15.06.2023
Leonel Serôdio
João Venade
Ana Vieira