Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0741884
Nº Convencional: JTRP00040415
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
Nº do Documento: RP200706130741884
Data do Acordão: 06/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 270 - FLS 193.
Área Temática: .
Sumário: São distintos os campos de aplicação da Lei nº 28/2006, de 4 de Julho, e do art. 220º, nº 1, alínea c), do CP 95, na parte referente a meio de transporte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

1.
No âmbito do processo nº …./06.8TAMTS, do Tribunal Judicial de Matosinhos, foi proferido despacho de não recebimento da acusação deduzida contra o arguido B………., pela prática de um crime de burla para obtenção de transporte, previsto e punível pelo art. 220º, n.º 1, al. c). do Código Penal.

2.
Inconformado Magistrado do Ministério Público interpôs recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
«1 - A douta decisão recorrida ao não receber a acusação deduzida pelo Ministério Público por a considerar manifestamente infundada, violou o disposto nos artºs 9º do C Civil 1º, nºs 1 e 3, 2º e 220 nº1, al. c), do C Penal o estatuído na Lei 28/2006 - em especial os arts 7º, 14º e 15º -, artºs 1º e 2º do DL nº 433/82 ,de 27/10 (na redacção vigente), e 311º do CPP, pois:
2 - Os elementos do crime de burla pela utilização de meio de transporte, p. e p. pela alínea c) do nº 1, do artigo 220º do Código Penal encontram-se expressos na acusação formulada: utilização pelo arguido de transporte colectivo sem posse de título de transporte válido sabendo que tal supõe o pagamento de um preço, a intenção do arguido de não pagar, quer o preço do bilhete, quer a sobretaxa, bem como a respectiva recusa de solver a dívida contraída;
2.1 - E só com a referida recusa é que se efectiva a lesão do património do(a) Transportador(a) situação que é análoga em qualquer das modalidades de transporte aéreo, fluvial e terrestre de passageiros;
3 - Aquando da vigência do Decreto-Lei 108/78 (e demais normas que vieram a ser revogadas pela Lei nº 28/2006), verifica-se que praticava a(s) contravenção(ões) — ou transgressão(ões) - aí previstas quem utilizava os meios de transporte colectivo de passageiros aí referidos sem que fosse possuidor de título de transporte que o habilitasse a viajar no respectivo percurso, no caso de dolo ,desde que não houvesse a referida recusa, ou negligência;
4 - A Lei nº28/86, de 04.JUL, que revogou nomeadamente o DL nº 108/78, de 24/MAl, aprova o regime sancionatório aplicável às transgressões em matéria de transportes colectivos de passageiros, transformando as contravenções (e transgressões.) em contra-ordenações; e
4.1 - Atento preceituado no seu artº 7º, que identifica especificadamente quais as situações que integram a «falta de título de transporte válido», verifica-se que pratica a contra-ordenações aí previstas quem, em suma, dolosa ou negligentemente, utiliza meios de transporte colectivo de passageiros sem título de transporte que lhe permita fazê-lo, nada se referindo quanto à «recusa em solver a dívida».
4.2 - Estabeleceu, no seu artº 14º o regime transitório quanto às contravenções e transgressões praticadas antes da sua entrada em vigor, designadamente as previstas no DL 108/78, resultando de tal preceito (e dos mais dispositivos da mesma lei) que não há qualquer norma transitória para as condutas que anteriormente eram punidas pela lei penal - art. 220º, nº 1, al. c) do Código Penal
5 - O legislador com a Lei 28/2006 apenas quis proceder à alteração e aperfeiçoamento do regime que anteriormente vigorava quanto às transgressões (ou contravenções) ocorridas em matéria de transportes colectivos. E quis fazê-lo, como já fizera noutros domínios dentro de idêntica filosofia transformando, em suma, as velhas contravenções em transgressões em contra-ordenações, pois o «nosso ordenamento penal baseia-se em crimes e contra-ordenações»;
6 - O interesse tutelado no tipo de ilícito contra-ordenacional é o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos enquanto que a recusa efectiva do pagamento consubstancia a lesão do património da vítima (empresa); e a consideração de tal recusa como elemento relevante evidencia que o interesse tutelado é o património da empresa lesada, o que está de acordo a natureza de um crime contra o património;
7 - E entender, como o tribunal «a quo», que o referido novo regime contra-ordenacional retirou do âmbito do art. 220º do CP a utilização de transportes colectivos de passageiros sem título válido é olvidar a amplitude e o texto de ambos os preceitos punitivos, e, assim, o principio da legalidade e da tipicidade, bem como confundir os procedimentos adequados (trâmites) em caso de contra-ordenação com os procedimentos (‘trâmites,) em caso de crime;
7.1 - Ou seja, esse entendimento considera que a conduta de utilizar transporte colectivo de passageiros sem título válido com intenção de não pagar e recusa efectiva de pagamento passa a ser um ilícito de natureza conceptualmente autónoma, despido de qualquer fundamento ético-social” enquanto o caso de utilização de transporte não colectivo de passageiros sem título válido com intenção de não pagar continua a ter dignidade penal (e, assim, dados os interesses tutelados, dignidade ética e fundamento ético-social), o que não se mostra minimamente razoável e coerente;
8 - Não á razoavelmente concebível que um legislador cuja vontade seja transformar determinadas condutas integradoras de crime em contra-ordenação, bem como determinadas transgressões ou contravenções em contra-ordenações:
a) tenha apenas de modo expresso preceituado a revogação dos diplomas e de preceito de diploma que previam as contravenções (ou transgressões) e nada, mesmo nada, tenha dito sobre o preceito que previa o tipo de crime;
b) tenha apenas fixado um regime transitório quanto às contravenções ou transgressões e, mais uma vez, nada, mesmo nada, tenha dito no que concerne ao regime transitório pretendido quanto ao crime;
9 - Assim, atendendo às regras de interpretação das normas jurídicas constata-se que não houve (e o legislador não quis proceder a) qualquer revogação tácita (ou expressa) do ilícito criminal p. e p. pela al c) do nº 1, do artigo 220º do CP, continuando este tipo penal a ter a mesma aplicação que tinha antes da entrada em vigor desta lei;
10 - Face ao aduzido, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que receba a acusação pública e designe data para a realização da audiência de julgamento».

3.
O recurso foi admitido.

4.
O arguido não respondeu ao recurso.

Nesta Relação, o Exmº P.G.A. pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso, pelos fundamentos constantes da sua motivação.

Cumprido o disposto no art. 417º do C.P.P. nada mais foi acrescentado.

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

Cumpre decidir.
*

FACTOS PROVADOS

6.
Dos autos resultam os seguintes factos relevantes para a questão a decidir:
1º - A empresa C……….., S. A., apresentou queixa-crime contra B………., por este no dia 15/11/2005, às 17h 48m, ter viajado no veículo n.º …, na linha ., que circulava no concelho de Matosinhos, sem qualquer título de transporte, tendo-se recusado a solver a dívida correspondente ao preço do bilhete em falta, no montante de € 0,85 (oitenta e cinco cêntimos), acrescida da penalização prevista no art. 16º, a) das Condições Gerais de Transporte, no montante de € 77,00.
2º - Em 10 de Outubro de 2006 o Ministério Público deduziu acusação contra B………., porque «no dia 15/11/2005, cerca das 17h48m, o arguido viajava, na veículo nº …, na linha . do ………., que circulava em ………., Matosinhos, com destino a ………., sem possuir qualquer titulo válido de transporte.
Com efeito, B………., ao ser fiscalizado não exibiu qualquer titulo de transporte, pois não validara o titulo nº ……. .
O arguido, embora soubesse que a utilização do serviço de metro ligeiro, pressupõe o pagamento de um preço, nunca teve intenção de efectuar o pagamento do preço do bilhete correspondente ao serviço de que usufruía.
Assim, ao entrar no metro na ………., não validou o andante, na espera de não ser fiscalizado.
Posteriormente, recusou-se a solver a dívida contraída, que corresponde ao preço do bilhete em falta, no montante de 0,85, acrescida da penalização prevista no art. 16°, a) das Condições Gerais de Transportes, no valor de 77 €.
O arguido agiu livre e conscientemente, com a intenção conseguida de viajar sem pagar o preço dessa viagem, recusando-se posteriormente a solver essa dívida, bem sabendo que o seu comportamento era proibido por lei.
Constituiu-se, assim, autor de um crime de burla para obtenção de transporte, p. e p. pelo art. 220º nº 1, c) do CP».
3º - Em 5 de Dezembro de 2006 foi proferida a decisão recorrida, do seguinte teor:
Na douta acusação pública, a fls. 14, vem imputada ao(s) arguido(a/s) B………., a prática de um crime de burla para obtenção de transporte, p. e p. no art.º 220º, n.º 1, al. c) do CP.
Para tanto, refere, e em síntese, que no dia 15 de Novembro de 2005, o(a/s) arguido(a/s) fazia-se transportar nos veículos ., na linha ., pertencente à “C………., S.A.” com destino a ………. .
Abordado pelo agente fiscalizador, durante o trajecto, nesta comarca, verificou-se que o(a/s) arguido(a/s) se fazia transportar, sem qualquer título de transporte válido.
Assim o(a/s) arguido(a/s) utilizou tal meio de transporte sem qualquer título válido, bem sabendo que não o podia fazer, sem proceder ao respectivo pagamento. Mesmo com esse conhecimento, não se coibiu de praticar os factos descritos com vista a alcançar benefício que sabia não ser legítimo, o que conseguiu, uma vez que se recusou a proceder ao pagamento do bilhete, no valor de 0,85 euro.
O arguido agiu livre e conscientemente, com a intenção conseguida de viajar sem pagar o preço dessa viagem, recusando-se posteriormente a solver essa dívida
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Nos termos do art.º 311º, n.º 2, al. a) do CPP o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, designadamente, se os factos não constituírem crime, cfr. al. d) do n.º 3 do mesmo preceito legal.

Estipula o art.º 220º, n.º 1, alínea c) do Código Penal que “Quem, com intenção de não pagar:
(…)
c) Utilizar meio de transporte ou entrar em qualquer recinto público sabendo que tal supõe o pagamento de um preço;
… e se negar a solver a divida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.”
Simas Santos e Leal Henriques referem que está em causa uma burla privilegiada, em relação à qual não são exigidos todos os pressupostos estabelecidos para a burla simples. (in Código Penal Anotado, Volume II, 1997, Rei dos Livros, página 575 e seguintes).
Segundo estes autores, os requisitos deste tipo de burla são a utilização de meio de transporte, o agente negar-se a solver a divida contraída e a prática do acto sem intenção de pagar. Acrescentam que “Já referimos que os elementos típicos são aqui menos estritos do que na burla simples. Na verdade, não releva o meio que o agente se serviu…; não é necessário estabelecer que ele tenha astuciosamente induzido o burlado em erro ou engano. Basta que este tenha fornecido aqueles bens ou serviços, no desconhecimento de que o agente tinha intenção de não pagar.”
Para que se verifique o referido crime é necessário que a intenção de não pagar exista antes da utilização do meio de transporte. (Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 21/6/2006, no Proc. n.º 0612288, in www.dgsi.pt)
O tipo objectivo desdobra-se em dois momentos:
O primeiro correspondente à utilização de um meio de transporte, para o qual é razoável pressupor-se que se exige o pagamento de um preço, como contrapartida desse uso.
O segundo é a recusa em pagar a dívida contraída.
Uma interpretação coerente de todos os casos de burla previstos no art.º 220 do Código Penal, leva a que a “dívida contraída” seja o preço correspondente ao serviço prestado, quer se trate do preço de um quarto de hotel, de entrada num recinto público, de alimentos e bebidas em estabelecimento adequado, ou de um bilhete de transporte.
O tipo subjectivo pressupõe o dolo do agente, ou seja, o conhecimento de que a utilização de um transporte, público ou privado, supõe o pagamento de um preço – elemento intelectual – pelo que é ainda necessário que utilize o transporte com intenção de não pagar – elemento volitivo – determinando-se a sua vontade através da representação das circunstâncias do tipo legal de crime.
No entanto, a questão assume contornos mais complexos quando se confronta a disposição de índole penal referida com o regime constante do Decreto-Lei n.º 108/1978, de 24 de Maio, em vigor à data da prática dos factos
Conforme refere o preâmbulo do citado diploma pretendeu-se estabelecer normas relativas ao sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, de forma a garantir, entre o mais, o respeito da obrigação legal de pagar o preço do transporte, cominando com o pagamento de multas a não observância de tal comportamento.
Com efeito, estabelecia o respectivo artigo 2º, n.º 1, que “A utilização de transportes colectivos de passageiros só pode ser feita por quem tenha um título de transporte válido”, rezando o subsequente artigo 3º que quem infringisse tal disposição ficaria sujeito ao pagamento do preço do bilhete, acrescido de multa, em montantes aí definidos. Com interesse, refira-se ainda que o artigo 5º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei n.º 108/1978 estabelecia que “A multa e o preço de transporte poderão ser pagos ao agente autuante ou, no prazo de dez dias, nos escritórios da empresa transportadora”, completando o n.º 2 no sentido de que “O pagamento voluntário só pode ser feito se simultaneamente for liquidada a multa e o preço do bilhete”, e o n.º 5 quando reza que “Findo o prazo a que se refere o n.º 1 e sem que o pagamento tenha sido efectuado, será o original do auto enviado ao Tribunal da Comarca do lugar da infracção”.
Seguindo de perto a explanação de D………., na sentença proferida em 13 de Dezembro de 2006, no Proc. n.º …./05.5TAMTS, que correu os seus termos no .º Juízo Criminal deste Tribunal sufragamos o entendimento de que, não obstante a controvérsia jurisprudencial acerca da compatibilização entre os preceitos legais acabados de referir e a acima aludida incriminação, é mais correcta a tese segundo a qual haverá contravenção (nos termos deste último Decreto-Lei) nos casos de negligência e crime de burla nos casos de dolo.
Desta forma, somos da opinião que o Código Penal e o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, mantiveram em vigor o ilícito contravencional apenas sob a sua forma negligente. (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-10-87, in BMJ n.º 370, pág. 312 e seg.; Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-2-89, in CJ ano XIV, tomo I, pág. 77 e segs. e Acórdão da Relação de Lisboa, de 26-11-86, in CJ ano XI, tomo V, pág. 166 e segs.).
Com efeito, entendemos que, para que se encontre preenchido o tipo de crime é necessário que o agente tenha a intenção de não pagar, que utilize o meio de transporte sem título válido, que saiba que tal supõe o pagamento de um preço e que se recuse a solver a dívida contraída.
Diferentemente, para que fique preenchida a hipótese legal contravencional do Decreto-Lei n.º 108/1978, basta que o agente utilize o meio de transporte sem título válido sabendo que tal exige o pagamento de um preço. Estão assim incluídas no tipo contravencional condutas meramente negligentes (por exemplo o agente esquecer-se de obter ou validar o título), condutas estas que se encontram, por natureza, fora do ilícito criminal.
Com efeito, é também isto que resulta do regime legal do Decreto-Lei n.º 108/1978, na medida em que, é suficiente a mera constatação de que o agente viaja sem título válido para que seja imediatamente autuada a contravenção, nos termos do disposto no respectivo artigo 3º, sendo desnecessário sequer apurar dos restantes requisitos a que acima aludiu-se quanto à infracção penal, designadamente, que o agente tenha a intenção de não pagar e que (simultânea ou posteriormente) se recuse a solver a dívida contraída.
Por outro lado, e finalmente, defende-se a coexistência entre a contravenção e o crime em apreço, na medida em que ambas visam proteger interesses diversos: a primeira visa proteger o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos, e a segunda visa apenas proteger o património da empresa lesada, incorrendo na prática do crime e também da contravenção aquele cuja actuação integrar o âmbito de qualquer das (simultâneas) normas. (Neste ponto acompanhamos já o aludido Acórdão da Relação do Porto de 21 de Abril de 2004, no que é secundado pelo Acórdão da mesma Relação de 20 de Junho de 1990, in CJ, ano XV, tomo III, pág. 248).
É no enquadramento legal que se acaba de aduzir que, de acordo com o ordenamento jurídico vigente à data da prática dos factos, entendemos que o arguido deveria ser, como foi, no caso concreto e à luz da factualidade imputada, acusado pela prática do crime de burla para obtenção de serviços, não obstante a coexistente contravenção.
*
No entanto, e como supra já resultou ventilado, o Decreto-Lei n.º 108/78 foi entretanto integralmente revogado pela recente Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, a qual entrou em vigor no passado dia 4 de Novembro de 2006.
É à luz deste novo diploma que entendemos que todo regime legal terá de ser reequacionado, em homenagem ao princípio geral de direito penal segundo o qual, em caso de sucessão de leis no tempo, será sempre aplicável a lei que em concreto se revelar mais favorável ao arguido, ainda que retroactivamente, nos termos do artigo 2º do CP.
Importa, portanto, conjugar a citada lei com a disposição incriminadora objecto de análise.
Assim sendo, reza o artigo 1º desta Lei n.º 28/2006 que “A presente lei estabelece as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção.”
Da análise desta disposição legal é desde logo possível intuir-se uma pretensão de regulamentação globalizante desta temática, alicerçada no seu art.º 15º que revoga na íntegra o Decreto-Lei n.º 108/78.
No mais, estatui-se da mesma forma que é obrigatória a detenção de título de transporte válido, nos termos do art.º 2º, n.º 1, sendo a violação desta norma agora sancionada, em termos gerais, nos termos do artigo 7º, n.º 1, nos moldes seguintes: “A falta de título de transporte válido, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, em comboios, autocarros, troleicarros, carros eléctricos, transportes fluviais, ferroviários, metropolitano e metro ligeiro, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com o respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17º do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, constante do Decreto-Lei n.º 433/1982, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/1989, de 17 de Outubro, Decreto-Lei n.º 244/1995, de 14 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, e sem prejuízo do disposto no n.º 3 do presente artigo.”
Ressalta desta disposição legal, designadamente, o sancionamento com coima (e já não com multa), a declaração marcada que a infracção “é punida” como tal, e a referência expressa ao regime do ilícito de mera ordenação social previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que, aliás, é inclusivamente estabelecido como regime legal subsidiário, nos termos do subsequente artigo 12º.
Aqui chegados impõe-se concluir que fica definitivamente afastado, pelo menos, o sancionamento a título de contravenção.
Prosseguindo na nossa análise, constata-se que se mantém a possibilidade de pagamento voluntário da coima, quer logo perante o agente de fiscalização, quer num posterior prazo de cinco dias úteis (cfr. artigo 9º, n.º 1).
No entanto, caso o agente não use desta faculdade, verifica-se aqui uma diferença assinalável face ao anterior regime constante do Decreto-Lei n.º 108/78, estabelecendo agora o n.º 2 do art.º 9º que, nestes casos, “… a empresa exploradora do serviço de transporte em questão envia o auto de notícia à entidade competente, que instaura, no âmbito da competência prevista na presente lei, o correspondente processo de contra-ordenação e notifica o arguido, juntando à notificação duplicado do auto de notícia.”.
Diferentemente, postulava o pretérito art.º 5º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 108/78: “Findo o prazo a que se refere o n.º 1 (prazo de pagamento voluntário) e sem que o pagamento tenha sido efectuado, será o original do auto enviado ao Tribunal da Comarca do lugar da infracção”.
Assim, em caso algum há utilidade, na actualidade, remessa do auto para o tribunal nesta fase, mas sim para a entidade competente para o subsequente processo contra-ordenacional, que é, nos termos do artigo 10º da Lei n.º 28/2006, e conforme os casos, a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres e Fluviais ou o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário.
Prosseguindo, estabelece a nova lei citada, no respectivo artigo 14º, um regime transitório, causando uma certa perplexidade a ausência de qualquer alusão aos processos de índole criminal, sendo de conhecimento geral do foro a vasta pendência de processos da natureza do presente.
Com efeito, estabelece o n.º 1 que “As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.”.
Por seu turno, dispõe o n.º 2 que “Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a correr os seus termos perante os tribunais em que se encontrem, sendo-lhes aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, a legislação processual relativa às contravenções e transgressões.”. Mesmo neste último caso parece mais uma vez que tais processos serão apenas relativos a contravenções ou transgressões, uma vez que “continuam” nos mesmos moldes até final.
Presumindo que o legislador consagra sempre as soluções mais acertadas, e se sabe exprimir adequadamente, nos termos do artigo 9º, n.º 3, do CC, o referido regime transitório pode perfeitamente ser entendido como uma forma de se vislumbrar uma espécie de expressão de vontade manifestada agora pelo legislador no sentido de que as infracções que aqui se encontram em causa deveriam sempre ter sido apreciadas como ilícito contravencional, e não como ilícito criminal.
Acresce ainda que, por outro lado, perdeu totalmente força a tese que perfilhávamos no sentido de que coexistiria o ilícito contravencional para os casos de negligência e o criminal para os casos de dolo.
Com efeito, pretende a referida lei nova tratar a falta de porte de título válido apenas como contra-ordenação, devendo-se extrair todas as consequências da chamada à colação de todo o regime do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro como direito subsidiário.
Assim, estabelece o artigo 8º, n.º 1, que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”. No caso vertente, a infracção por negligência encontra-se prevista no artigo 7º, n.º 6 da citada lei, mas o que é facto é que o regime regra de punibilidade continua a ser a título de dolo (tanto mais que a referência expressa à punibilidade negligente foi considerada, e bem, como necessária), sendo certo que desta feita não se pode considerar que os casos em que tal dolo se verifica são afastados pelo Código Penal, uma vez que a nova lei, ora em análise, lhe é posterior.
Por outro lado, vigorando, simultaneamente, regimes processual e substantivamente acentuadamente diferentes, com base “apenas” na diferença da culpa do agente, em última análise, colidiria com a unidade e coerência que deve presidir a qualquer ordenamento jurídico na medida em que a mesma conduta dolosa poderia ser tratada, aleatoriamente, a título criminal ou contra-ordenacional.
De referir ainda que mesmo o argumento segundo o qual persistiria em simultâneo o ilícito contravencional como forma de proteger o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos colectivos, e o ilícito criminal como forma de proteger o património da empresa transportadora perdeu acutilância. Na verdade, já não se torna premente a protecção do património da empresa transportadora a título criminal, uma vez que, nos termos do artigo 11º da nova lei, uma percentagem do produto das coimas aplicadas reverte sempre a favor de tal empresa, enquanto que nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 1008/78 a multa constituía receita do Estado.
Assim, da análise do novo diploma legal que se vem empreendendo, é já por demais evidente que propendemos para considerar que os factos imputados ao arguido nestes autos se encontram actualmente punidos exclusivamente como ilícito contra-ordenacional, atenta a forma esgotante como o legislador pretendeu agora regular a situação.
Particularmente impressivo é, no nosso entender, e como se disse, a remessa do auto para entidade administrativa mesmo após a falta de pagamento voluntário, e a consequente intervenção de todo o arsenal normativo do Decreto-Lei n.º 433/82, mesmo, caso seja necessário, para eventual execução do valor coima por parte do Ministério Público.
Tal novo regime obedece também, e além do mais, ao propósito actual e confessado do legislador em proceder por este meio à progressiva abolição do ilícito contravencional e transgressional.
Sustentando a posição até agora perfilhada não é alheio o movimento empreendido pelo poder legislativo, sob a epígrafe “ Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais”, tendente a libertar os tribunais de processos judiciais e que o diploma em análise é caso paradigmático.
Elucidativo do até agora explanado, sendo pertinente citar, é um comunicado do Ministério da Justiça com o seguinte teor, “as transgressões e contravenções respeitam a infracções pouco graves (por exemplo, a utilização de transportes colectivos sem título de transporte válido ou a utilização de auto-estradas sem pagamento de portagem) e, por isso, não justificam a intervenção do tribunal na sua aplicação” (consultável in http://www.mj.gov.pt/sections/home)
Contra o que se acaba de defender não se diga que desta forma fica o artigo 220º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal esvaziado de conteúdo na parte em que se refere a “transporte” sem que tal tenha sido expressamente revogado. É que o mesmo subsiste claramente para os casos em que se encontre em causa meio de transporte que não caiba no âmbito da Lei n.º 28/2006, designadamente por não se revestir da qualidade de transporte colectivo de passageiros, como é exemplo o táxi.
Com efeito, pelo menos para este caso manterá plena aplicabilidade a sanção penal, o que, aliás, faz inteiro sentido. É manifesta a maior danosidade social nestes casos, uma vez que tal meio de transporte se desloca e procede à viagem por único e exclusivo interesse do agente da infracção, que não tem intenção de pagar pelo serviço que lhe é prestado e se recusa a fazê-lo, sendo certo que neste caso, o prejuízo do transportador corresponde à totalidade dos custos em que incorreu com a deslocação.
Bem diferente é a situação do utilizador não pagador de transporte colectivo, que apenas pretende “passar despercebido” entre os restantes utilizadores, sendo também certo que a empresa transportadora sempre procederia à viagem mesmo que o agente não acedesse ao veículo em causa. Por seu turno, o prejuízo da referida empresa neste caso encontra-se muito longe de corresponder ao custo total da deslocação, dado que equivale apenas, pelo menos em regra, ao singelo preço do bilhete em falta.
Aqui chegados, entendendo, como entendemos, que os factos constantes da acusação consubstanciavam crime na data da sua prática, mas que actualmente, face a lei entretanto vigente, apenas consubstanciam a prática de uma contra-ordenação, despiciendo se torna averiguar qual o regime que em concreto se revela mais favorável ao(s) arguido(a/s) por ser obviamente o contra-ordenacional, face à diferente natureza da própria sanção abstractamente aplicável, que de pena de multa ou de prisão passa a mera coima.
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Face a tudo quanto vem exposto, resta ainda então determinar-se a forma como haverá de ser ou não sancionado o(a/s) arguido(a/s), tendo em conta a verificação de uma sucessão de leis que determinou, como vimos, a conversão, no nosso entendimento, de um crime em contra-ordenação.
Dispõe a art.º 2º, n.º 2 do CP “O facto punível segundo a lei vigente deixa de o ser se uma lei o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.”
A este respeito, e referindo-se à eficácia temporal da lei contra-ordenacional nova face a antiga lei penal, escreve Taipa de Carvalho que “o princípio geral é o de que a lei que «cria» contra-ordenações só se aplica aos factos praticados depois da sua entrada em vigor (Dec.-Lei n.º 433/82, art. 3º, n.º 1 – eficácia pós-activa). Todavia, não está constitucionalmente consagrada – pelo menos de forma expressa – a proibição da retroactividade da lei sobre contra-ordenações.
Assim, se a lei que altera a qualificação do facto de crime (ou de contravenção) para contra-ordenação não estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às acções praticadas antes do seu início de vigência, tais acções que, necessária e constitucionalmente, são despenalizadas, também não podem ser julgadas como ilícitos de mera ordenação social. Tornam-se, portanto, juridicamente irrelevantes. (...)
Se, pelo contrário, a lei que converte a infracção penal em contra-ordenação estabelecer, por disposição transitória, a sua eficácia retroactiva, no sentido de tornar extensivo o seu regime e as coimas respectivas aos factos praticados na vigência da lei antiga (evitando, assim, a impunidade total dos factos ainda não julgados), podem não levantar-se, mas também poderão surgir problemas de constitucionalidade da norma transitória.” (in “Sucessão de Leis Penais”, Coimbra Editora, Coimbra, 1990, págs. 90 e 91)
Assim, ou a lei nova estabelece norma transitória que defina a forma de punição dos factos praticados antes da sua entrada em vigor, e então será tal norma aplicável, ressalvados problemas de eventual inconstitucionalidade que aqui não vêm ao caso, ou então não existe qualquer norma transitória, e os factos anteriores à entrada em vigor da nova lei ficam impunes.
Revertendo ao nosso caso concreto, e conforme se adiantou já acima, a nova Lei n.º 28/2006 dispõe de uma norma transitória no seu artigo 14º. A questão é que, conforme já igualmente se disse, tal norma não contempla os casos de crime praticado antes da sua entrada em vigor, mas apenas de contravenções ou transgressões.
Assim sendo, apesar de formalmente existir um “regime transitório”, a hipótese do nosso caso concreto não se encontra aí prevista, pelo que, em conformidade com o entendimento acima vertido, defendido por Taipa de Carvalho, e o qual subscrevemos, as condutas do(a/s) arguido(a/s) nestes autos terão de passar neste momento a considerar-se juridicamente irrelevantes, e consequentemente a ficar impunes.
Contra o que se acaba de dizer não se afirme que, se o regime transitório aludido determina a punição de antigas contravenções e transgressões agora como contra-ordenações, por maioria de razão assim deverão ser punidos os crimes. Tal não entendemos, uma vez que semelhante solução traduzir-se-ia numa aplicação analógica in malam partem de lei sancionatória, que é vedada pelo disposto no artigo 1º, n.º 3, do Cód. Penal.
E nessa medida estará vedada a possibilidade de julgar o(a/s) arguido(a/s) pela prática do crime previsto e punido no art.º 220, n.º 1, al. c) do CP
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Face a todo o exposto, conclui-se que os factos constantes da acusação pública não integram a previsão legal do tipo de ilícito que vem imputado ao(s) arguido(a/s), nem qualquer outro, em virtude de ter ocorrido descriminalização da conduta descrita, pelo que, nos termos do art.º 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP, rejeito a acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público contra B………., declarando extinto o procedimento criminal nos termos do art.º 2º, n.º 2 do CP e extintos os seus efeitos.
Notifique.
Oportunamente, arquive».
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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente – art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P. - cfr. Germano Marques as Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas).

Por via dessa delimitação a questão a decidir por este Tribunal da Relação do Porto reside em apurar se o comportamento punível a título de burla na obtenção de meios de transporte, através do art. 220º, nº 1, al. c), do Código Penal, foi descriminalizado pela Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho.
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Conforme se disse o arguido foi acusado da prática de um crime de burla para obtenção de transporte, previsto e punível pelo art. 220º, nº 1, al. c) do Código Penal, nos termos do qual «quem, com intenção de não pagar: … utilizar meio de transporte … sabendo que tal supõe o pagamento de um preço; e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias».
Os elementos deste crime são menos exigentes do que os da burla em geral, porquanto o tipo se basta com o facto de o agente usar transporte com intenção de não pagar recusando-se, depois, a proceder ao seu pagamento, quando instado a fazê-lo, sendo neste momento que o crime se consuma.

A redacção da norma citada resultou do D.L. 48/95, de 15/3, que veio colocar a questão de saber se o D.L. 108/78, de 24/5, se mantinha, ou não, em vigor.
O entendimento maioritário é que este diploma se manteve em vigor, continuou a coexistir a par do Código Penal, uma vez que o seu âmbito de aplicação era diferente: enquanto o Código Penal abrangia os casos que configuravam a existência de um crime (utilização de transporte que supõe o pagamento de um preço, intenção de não pagar, recusa de solver a dívida), o D.L. 108/78, de 24/5, abrangia as demais realidades não incluídas naquele.
«Com efeito, os preceitos em questão só coincidem em dois requisitos: (a) a utilização de meios de transporte pelo agente, e (b) o conhecimento de que tal utilização supõe o pagamento de um preço. Já o crime de burla em meios de transporte supõe dois outros requisitos típicos: (c) a intenção do agente de não pagar, e (d) negar-se o agente, efectivamente, a solver a dívida.
Ora, estes últimos requisitos são indiferentes para a ocorrência das contravenções prevenidas no referido DL n.º 108/78, pois que, para a perfectibilização do correspondente «tipo-de-ilícito» basta a mera negligência (o agente esqueceu-se de adquirir o bilhete ou de o obliterar), podendo mesmo o agente ter paga a dívida (como ocorre quando tem passe válido que não traz consigo).
Por outro lado ainda, o DL n.º 108/78 arrola os meios de transporte onde podem ocorrer as contravenções nele previstas de modo mais restritivo do que vem estabelecido para o crime de burla.
Vale por dizer que estamos em presença de normas que, tendo algo em comum, são, todavia, diferentes, no seu âmbito de aplicação. No dizer do prof. Cavaleiro de Ferreira, trata-se de normas com «relações de interferência propriamente dita», pois o conteúdo de uma coincide parcialmente com o conteúdo da outra, mas o que as une diz respeito a factos perfeitamente lícitos (no caso, utilização de meio de transporte e conhecimento de que tal supõe o pagamento de um preço), adiantando que estas normas não podem entrar em conflito entre si, nomeadamente, não uma ser especial em relação à outra, pois que, na relação de especialidade, todos os factos subsumíveis a uma norma (norma especial) se subsumem também, sempre, a outra norma (norma geral) …» - acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-4-2004, processo nº 2163/2004.

Entretanto, foi publicada a Lei 28/2006, de 4/7, que aprova o regime legal sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de transportes colectivos de passageiros.
O seu âmbito de aplicação está definido no seu art. 1º, que dispõe que «a presente lei estabelece as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção».
Nos termos do nº 1 do seu art. 7º a falta de título de transporte válido, a exibição de título inválido ou a recusa da sua exibição integra uma contra-ordenação punível com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante.
Conforme resulta da previsão desta norma, e da letra do seu art. 15º, esta lei, ao revogar o D.L. 108/78, entre outros, visou substitui-lo, introduzindo um novo regime jurídico aplicável aos casos nele previstos.
No entanto, o regime do Código Penal mantém-se em vigor, em paralelo, aplicando-se aos casos que ele já anteriormente abrangia.

A interpretação da lei parte sempre da consideração de que o seu sentido decisivo coincidirá com a vontade real do legislador.
No nosso caso é inequívoco que o legislador pretendeu aprovar um novo regime legal aplicável às transgressões, convertendo-as em contra-ordenações. Esta conclusão, clara, resulta da análise da parte introdutória da Lei nº 28/2006 e, também, da análise da norma do art. 15º, que expressamente revogou o Decreto-Lei nº 108/78 de 24 de Maio.
E resulta, ainda, do regime transitório que nela foi estabelecido. O art. 14º, que o estabelece, não prevê qualquer regime transitório para os casos em que os factos integradores do ilícito previsto no Código Penal, apenas estabelecendo normas referentes às situações que integravam contravenções e transgressões, praticadas antes da entrada em vigor da lei.
É inaceitável entender que, por isso mesmo, então o legislador quis, sem mais, descriminalizar as condutas puníveis pelo art. 220º, nº 1 al. c) do Código Penal, quando ocorridas em transporte colectivo de passageiros.
No caso não se verifica sucessão de leis penais entre a Lei 28/2006 e o art. 220º, nº 1 al. c), do Código Penal pois que, como dissemos, os respectivos campos de aplicação são distintos.
«… em coerência, então, veio esta Lei a revogar aquele Dec.-Lei (art. 15º), não deixando de, com idêntica coerência, estabelecer um regime transitório (art. 14º, n.ºs 1 a 3).
Tudo isto com uma, igualmente coerente, consequência: a de que o art. 220º, n.º 1, al. c), do C. Penal, no segmento ora relevante, não viu cessada a respectiva vigência.
E de tal maneira as coisas são deste modo que podemos eleger aquele regime transitório para, como que em excesso de demonstração, afirmar que estaria consagrado um autêntico absurdo se se mantivesse o sancionamento de infracções anteriores de menor gravidade (as que não integrassem o dito crime) e, no caso de ter cessado a vigência daquela precisa norma do C. Penal, tal não tivesse lugar em relação às que o integrassem …» - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-5-2007, processo 0742046.

Conforme se refere nas alegações de recurso, com a Lei 28/2006 o legislador «apenas quis proceder à alteração e aperfeiçoamento do regime que anteriormente vigorava quanto às transgressões (ou contravenções) ocorridas em matéria de transportes colectivos … transformando … as velhas contravenções e transgressões em contra-ordenações …».
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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos:
I – Concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que receba a acusação deduzida, se outra razão a isso não obstar, determinando o prosseguimento dos autos.

II – Sem custas.

Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1.º signatário.

Porto, 13 de Junho de 2007
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira